Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1745/08.2TAVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RIBEIRO MARTINS
Descritores: CRIME DE VIOLAÇÃO DE PROIBIÇÕES
ELEMENTOS DO TIPO
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
Data do Acordão: 05/12/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: 1º,69º E 353ºDO CP, 500º DO CPP
Sumário: 1. Não comete o crime p. e p. artigo 353º do CP (Violação de imposições, proibições ou interdições) o agente que, condenado em pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, não entrega o título de condução, pese embora a expressa notificação para o efeito levada a cabo pelo tribunal da condenação.
Decisão Texto Integral: 12

Acordam na Secção Criminal de Coimbra –
I – Relatório
1- No processo comum n.º 1745/08 do tribunal judicial de Viseu, R foi absolvido da prática do crime de violação de imposições, proibições ou interdições, na previsão do art.º 353º do Código Penal.
2- Inconformado, o Ministério Público recorre concluindo –
a) O recurso é interposto da decisão judicial que absolveu o arguido do crime de violação de proibições previsto no art.º 353º do Código Penal que lhe fora imputado face à alteração feita em audiência de julgamento da qualificação jurídica constante da acusação.
b) A decisão absolutória viola, por errada interpretação, os art.ºs 353 e 69º do Código Penal.
c) Na verdade entendeu o M.mo Juiz que o artigo 353 do Código Penal não abrange a falta de entrega do titulo de condução para cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir, entendendo que ela extravasa o âmbito da pena acessória prevista no artigo 69º a qual se resume á proibição de conduzir.
d) Porém, tal interpretação contraria o texto da lei e deixa por explicar as alterações introduzidas pela Lei 59/2007 no artigo art. 353º do Código Penal.
e) Resultando manifesto da referida alteração que quando o legislador se refere á violação de imposições determinadas por sentença criminal a título de pena acessória, está a abranger a violação da obrigação de entrega da carta de condução para cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir.
f) Na verdade, como decorre dos artigos 69/3 do Código Penal e 500/2 e 4 do Código de Processo Penal, a obrigação de entrega da carta de condução é inerente à própria pena acessória de proibição de conduzir, não existindo esta sem aquela.
g) Como decorre de tais normativos, a condenação em pena de proibição de conduzir implica a imposição ao condenado da obrigação de entrega do título de condução.
h) Aliás, a interpretação efectuada na sentença, para além de violar o texto da lei não tem em conta a unidade do sistema jurídico.
i) Na verdade, segundo tal interpretação teríamos de concluir que o legislador tratava de forma mais benévola a violação da «sanção» de natureza criminal do que a violação da correspondente sanção de natureza contraordenacional.
j) Pelo que deve revogar-se a decisão absolutória, considerando verificar-se praticado o crime de violação de proibições, com a consequente condenação do arguido.
3- O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto subscreveu as razões do recorrente.
4- Colheram-se os vistos. Cumpre apreciar e decidir!
II – Apreciação –
1- Factos provados –
a) O arguido foi condenado no Prol. N.° ../08.1PFVIS, Processo Sumário, do 1.° Juízo Criminal, que correu termos neste Tribunal Judicial de Viseu, na pena acessória de proibição de conduzir veicules com motor, pelo período de 5 (cinco) meses, devendo entregar a carta de condução no prazo de dez dias após trânsito em julgado da sentença, no Tribunal ou em qualquer posto de polícia sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência.
b) O arguido foi notificado da sentença, a 12 de Março de 2008, tendo estado presente no momento da leitura da mesma, cujo teor lhe foi explicado, tendo assim ficado ciente do seu teor, designadamente do dever de entregar da carta de condução.
c) A sentença transitou em julgado mas o arguido não procedeu à entrega da carta de condução no aludido prazo.
d) A fim de executar a sentença, transitada em julgado, foi determinada a apreensão da carta de condução, o que foi cumprido pela autoridade policial (PSP) a 09.11.2008
e) O arguido, voluntária, livre e conscientemente não cumpriu a ordem dada pela M.ma Juiz, constante da sentença proferida nos autos supra indicados, transitada em julgado, que lhe foi regularmente comunicada e da qual ficou ciente.
f) O arguido é solteiro, não tem filhos, vive com a mãe, em casa desta, sendo a sua mãe doméstica.
g) Trabalha por conta de outrem, como empregado de balcão e na distribuição de peças auto, actividade onde, habitualmente, utiliza conduz veículo automóvel.
h) Aufere a remuneração mensal de 600,00€.
i) Tem o 9.º ano de escolaridade.
j) O arguido já foi condenado, por duas vezes, pela prática dos crimes de condução de veículo em estado de embriaguez e pelo crime de violação de proibição de proibições ou interdições.
2- Está em causa saber se condenado a quem foi imposta por sentença criminal a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor por determinado período de tempo comete o crime de «Violação de imposições, proibições ou interdições» previsto no art.º 353º do Código Penal caso não proceda, em 10 dias contados do trânsito da sentença, à entrega no tribunal ou em qualquer posto policial do título de condução, conforme o determina o art.º 69º/3 do mesmo Código.
2.1- O arguido fora condenado por condução em estado de embriaguez [art.º 292º do CP] em pena de multa e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de cinco meses.
Na leitura da sentença fora-lhe comunicado que tinha o prazo de 10 dias, contados do trânsito da decisão, para entregar a sua carta de condução no tribunal ou num posto policial, sob pena da prática do crime de desobediência.
O arguido não entregou a carta de condução, pelo que lhe foi levantado novo processo/crime onde foi acusado pelo crime de desobediência (art.º 348/1 alínea b) do CP). Crime que no decurso da audiência de julgamento se convolou para o de violação de imposições ou proibições previsto no art.º 352º do Código Penal.
Mas ao sentenciá-lo o M.mo Juiz acabou por reconhecer que a conduta do arguido não preenche qualquer tipo legal de crime, pelo que o absolveu.
2.2- A situação gerada pela omissão da obrigação de entrega da carta de condenação chama à colação a estatuição dos art.ºs 69, 348º e 353º do Código Penal e dos art.ºs 499/3e 6 e 500º do Código de Processo Penal. E tem dado azo a díspares entendimentos nesta Relação.
Face à sua extensão não reproduziremos o texto integral dos citados artigos, deles tão só respigando os segmentos que nos parecem essenciais para o caso e assinalando com asterisco os de especial importância. Assim -,
Art.º 69º do Código Penal [Proibição de conduzir veículos com motor]
1- É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre 3 meses e 3 anos quem for punido (…)
a) Por crime previsto nos artigos 291 ou 292;
b) ( …) c) (… )
2- A proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão (…)
*3- No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo.
*4- A secretaria do tribunal comunica a proibição de conduzir à Direcção-Geral de Viação no prazo de 20 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, bem como participa ao Ministério Público a situações de incumprimento do disposto no número anterior.
5- (…) 6- (…) 7- (…)
Art.º 348º do Código Penal [Desobediência]
1- Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de (….) se:
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou
*b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou funcionário fizerem a correspondente cominação.
2- (…)
*Art.º 353º do Código Penal [Violação de imposições, proibições ou interdições]
Quem violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.
Art.º 500º do Código de Processo Penal [Proibição de condução]
1- A decisão que decretar a proibição de conduzir veículos motorizados é comunicada à Direcção-Geral de Viação.
*2- No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo.
*3- Se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução.
*4- A licença de condução fica retida na secretaria do tribunal pelo período de tempo que durar a proibição. Decorrido esse período a licença é devolvida ao titular.
5- (…) 6- (…)
3- No caso foi arredada, com a concordância do Ministério Público, a aplicação duma pena por crime de desobediência. Também concordamos.
Contudo, porque não concordamos com a integração dos factos no tipo legal do art.º 353º do Código Penal como pretende o recorrente, sempre se dirá o seguinte:
3.1- A primeira observação que nos merecem os transcritos normativos dos art.ºs 69º do Código Penal e 500º do Código de Processo Penal é que dispondo eles sobre a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados e respectiva execução, com a consequente necessidade de privação física do título de condução pelo seu titular, não cominam expressamente a falta da sua entrega com a prática de qualquer tipo legal de crime.
Antes neles se prescreve que essa falta dita a sua participação ao Ministério Público (art.º 69º/4) e a ordem de apreensão do título (art.º 500º/4).
A segunda observação é que a alínea b) do falado art.º 348º do Código Penal só prevê a prática do crime por cominação da autoridade ou funcionário nos casos de «ausência de disposição legal» –, o que significa que tal cominação só terá relevância penal para casos de ausência de previsão legal de um qualquer procedimento.
Ou seja, não está na discricionariedade do juiz fazer ou não fazer em qualquer caso a referida cominação. Esta só pode ser feita nas situações em que a lei não preveja um procedimento para o incumprimento da proibição ou interdição.
É este o entendimento de Cristina Líbano Monteiro feito no “Comentário Conimbricense ao Código Penal” a fls. 354 do Tomo 3, onde afirma que «a alínea b) existe tão só para os casos em que nenhuma norma jurídica, seja qual for a sua natureza (i é, mesmo um preceito não criminal) prevê aquele comportamento desobediente. Só então será justificável que o legislador se tenha preocupado com um vazio de punibilidade, decidindo-se embora por uma solução, como já foi dito, incorrecta e desrespeitadora do princípio da legalidade criminal».
Só assim se acatará minimamente o princípio da legalidade e da proibição da analogia previstos no art.º 1º do Código Penal.
A função de garantia do princípio da legalidade exige que o legislador formule a lei penal de modo preciso e não susceptível de interpretações gravemente díspares, sobretudo quanto à natureza, âmbito e circulo material da conduta proibida. Deficiências de regulamentação ou de redacção funcionam sempre contra o legislador e a favor da liberdade.
Mas como vimos pela operada transcrição legal, o ordenamento jurídico prevê para o caso diferente procedimento, a saber –, a comunicação ao Ministério Público da falta de entrega do título e o consequente deferimento de promoção da sua apreensão.
Este é o entendimento que nos parece mais conforme com o primado da intervenção mínima em Direito Penal, o seu carácter fragmentário ou de última ratio na intervenção social.
O entendimento proposto pelo recorrente torna criminógenas as próprias instâncias judiciárias, fonte de novos crimes passíveis de cometimento pelo condenado, o que é indesejável a qualquer título.
4- Já se tem dito, como no apresentado recurso, que na situação se verificaria a prática do crime de violação de imposições, proibições ou interdições previsto no art.º 353º do Código Penal.
4.1- Concordamos com o entendimento vertido na sentença não nos parecendo que seja de acatar o vertido no recurso. Nela, a nosso ver correctamente, se pondera que -
“O que a norma do art. 353.º do CP diz é que pratica o crime quem violar as imposições determinadas a título de pena acessória; não diz, imposições processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória.
Logo, só pratica o crime de violação de proibições quem puser em causa o conteúdo material da pena acessória: v.g. quem conduzir (art. 69.º do CP), quem exercer função (art. 66.º do CP) ou quem violar a suspensão do exercício de funções (art. 67.º do CP). Já não pratica o crime quem não cumpre as obrigações processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória: v.g, não entrega a carta de condução, não entrega a cédula profissional, não entrega a arma e carteira identificativa de serviço, estas obrigações processuais (…).
E não se pode entender que a obrigação de entrega da carta faz parte do conteúdo da própria pena acessória (…). Isto porque o legislador define o conteúdo desta no art. 69/1do Código Penal. E o princípio da legalidade e da tipicidade da norma penal não deixam espaço para interpretações que contrariem o elemento literal do tipo. A imposição material penal é a “proibição de conduzir”, tão só.
Entende-se, pois, que a norma do art. 69/3 é meramente processual, ordenadora do cumprimento da pena e com função de controle deste mesmo cumprimento (…), demonstrando-o, aliás, o facto de estar “repetida” no art. 500/2 do CPP (com a diferença, apenas, no substantivo “licença” e “título”).
E faz todo o sentido que assim seja, até porque a execução da pena acessória só se inicia com a entrega da carta ou efectiva apreensão, como a jurisprudência definitivamente firmou (…)
Quer dizer (…) que as normas que processualmente regulamentam a execução da pena acessória estão sistematicamente bem delimitadas no Código. O substrato material da pena que aqui nos interessa é a proibição de conduzir, tão só (…), excluindo-se dela o acto de entrega da carta como elemento integrante desse substrato. Logo, se o arguido condenado não entrega a carta, como é sua obrigação processual, então é ordenada a apreensão. Enquanto não entregar, não se inicia o cumprimento da pena.
Concretizada a apreensão, inicia-se o cumprimento da pena. Se no período que dura a proibição o arguido conduzir, então põe em causa a imposição resultante da pena acessória e comete o crime de violação de proibições.
Assim, a falta de entrega da carta constitui obrigação processual do condenado não punível. Consequentemente não integra os elementos objectivos do tipo de ilícito do art. 353.º do Código Penal”.
4.2- Decorre dos preceitos acima transcritos que a referida pena acessória só é executada, por isso cumprida, a partir do momento em que o condenado entrega o título ou este lhe é apreendido em conformidade com o art.º 500/3 do CPP.
Isto porque logo no número seguinte, ou seja, no n.º4 do falado artigo 500º se estatui que a licença de condução ficará retida na secretaria [após a sua entrega ou a sua apreensão] «pelo período de tempo que durar a proibição».
O que significa que o cumprimento da pena acessória não ocorre de forma imediata e automática a partir do trânsito em julgado da sentença que a aplicou, mas tão só após a entrega espontânea ou forçada do título.
De outro modo poderiam ocorrer situações em que no momento da sua apreensão o arguido pudesse invocar ter já decorrido o tempo do cumprimento da pena.
Daqui poder defender-se que será irrelevante para a integração do tipo [violação de imposições, proibições ou interdições judiciais] o facto do condenado continuar a conduzir até à data da apreensão do título, pois só a partir dela se iniciará o cumprimento ou execução da pena da proibição de conduzir.
Só no período de execução da pena fará então sentido falar-se em violação de proibições judiciais. Até à entrega espontânea ou forçada da licença de condução não haverá execução da pena e consequentemente violação de proibição judicial.
Se bem se atentar na redacção do tipo e para o que ao caso interessa, nele se dispõe que comete o crime «quem violar imposições ou proibições determinadas por sentença criminal a título de pena acessória».
Ou seja, o tipo prevê como conduta criminosa a voluntária violação de imposições ou proibições que integrem o conteúdo duma pena acessória.
E a pena acessória no caso consubstancia-se na “proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 meses”. Pergunta-se -, a obrigação de entrega no indicado prazo da carta de condução integra tal proibição? Obviamente que não! É apodíctico que não integra a pena a obrigação da entrega da carta nas indicadas condições.
O legislador poderia tê-la incluído no tipo ou noutro, v.g., de desobediência, mas não o fez. Para o caso engendrou outro sistema de procedimento que o aplicador da lei até poderá criticar invocando v.g. a desarmonia do sistema face ao que se passa com o sistema contraordenacional do Código da Estrada; mas o que não pode é interpretar o tipo de modo a incluir situações nele não previstas, em violação do art.º1 do Código Penal.
Só a partir do momento em que o agente fica privado do título poderá ocorrer, com relevância penal, a frustração de imposições ou proibições sancionatórias constantes de sentença criminal, só então se podendo ver perfectibilizada a previsão dos elementos objectivos do tipo.
Como foi dito pelo ilustre Conselheiro Henriques Gaspar em declaração de voto no Ac. do STJ/ Fixador de Jurisprudência n.º8/2008 [DR I-A de 5/8/2008] –
“ O princípio da legalidade (…) significa (…) que não pode haver crime nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa (…)
É princípio inscrito como direito fundamental também em instrumentos internacionais, com conteúdo e sentido determinado através de referências objectivas e com modelação operativa.
O artigo 7.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, por exemplo, constitui também uma norma fundamental de direito penal material e mesmo de direito constitucional penal, afirmando (…) a legalidade dos crimes e das penas e a não retroactividade da lei penal.
A densificação convencional da garantia reverte à certeza, clareza ou previsibilidade da estatuição e suas consequências (…) o que releva (…) é que a estatuição seja clara, precisa, acessível e previsível. Do ponto de vista da protecção dos direitos do homem, é decisivo o princípio segundo o qual o legislador deve fixar de uma forma precisa e clara os limites entre os comportamentos permitidos e os comportamentos puníveis penalmente, interessando neste aspecto a previsibilidade da condenação por certo comportamento (acção ou omissão).
Na elaboração que tem sido desenvolvida a propósito das noções utilizáveis na integração do princípio, tem-se entendido que a clareza da estatuição (…) está preenchida quando o indivíduo possa saber a partir do texto pertinente (…) quais os actos ou omissões que constituem infracção e pelos quais pode ser criminalmente responsabilizado, mesmo que para tal tenha de recorrer a um conselho esclarecido para avaliar, com adequado grau de razoabilidade, as consequências que podem resultar de determinado acto.
Nesta perspectiva de ordenação da garantia, uma norma não pode ser considerada como «lei» para efeito da protecção contida no artigo 7.º da Convenção se não for formulada com suficiente precisão, de modo a que habilite um indivíduo a regular a sua conduta: este deve poder antever e prever, com um grau de razoável exigência nas circunstâncias do caso, quais as consequências de natureza penal que podem resultar de uma sua acção ou omissão (…).
Nos termos em que a garantia do artigo 7.º da Convenção tem sido considerada, o princípio da legalidade exige, pois, que a infracção esteja claramente definida na lei, estando tal condição preenchida sempre que o interessado possa saber, a partir da disposição pertinente, quais os actos ou omissões que determinam responsabilidade penal; a disposição tem de se revelar suficientemente clara. (…)
Por isso, o princípio significa «que por mais socialmente nocivo e reprovável que se afigure um comportamento, tem o legislador de o considerar como crime (descrevendo-o e impondo-lhe como consequência jurídica uma sanção criminal) para que ele possa como tal ser punido. Esquecimentos, lacunas, deficiências de regulamentação ou de redacção funcionam por isso sempre contra o legislador e a favor da liberdade, por mais evidente que se revele ter sido intenção daquele (ou constituir finalidade da norma) abranger na punibilidade também certos (outros) comportamentos » (cf. Figueiredo Dias, op. cit, p. 168).
O princípio da legalidade significa também a proibição da analogia, importando sempre determinar o que é susceptível de interpretação permitida (o sentido literal, as expressões polissémicas, os conceitos normativos e descritivos) e o que pertence já à analogia proibida em direito penal pelo princípio da legalidade. (…) A interpretação em direito penal (e sancionatório, em geral) não pode desconsiderar princípios fundamentais - tipicidade; legalidade; não retroactividade in malam partem; proibição de analogia. (…) A função de garantia do princípio da legalidade exige a qualidade da lei, previsibilidade e acessibilidade, de modo que qualquer pessoa possa perceber e saber quais as consequências sancionatórias de uma sua acção ou omissão.
A qualidade da lei supõe que o legislador formule a lei penal de modo preciso e não susceptível de interpretações gravemente díspares, sobretudo quanto à natureza, âmbito e círculo material da conduta proibida.
E, como é dos princípios, em direito penal (e sancionatório) não há integração de lacunas (…).”
A actuação em causa não cabe na letra da lei (art.º 353º do CP), sendo imposição do princípio da legalidade em matéria criminal que a norma se contenha no quadro de significações possíveis das palavras da lei, sob pena de se entrar no domínio proibido da analogia. Por isso não subscrevemos o Ac. desta Relação citado no douto parecer do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto.
A certeza e a previsibilidade exigíveis aos tipos afere-se pelo que é possível extrair directamente da sua letra.
Ora, como refere a sentença, o preceito em causa não consente a integração nele de comportamentos processuais prévios à execução da sanção acessória, mas tão só comportamentos ou proibições que a integrem.
III – Decisão –
Termos em que se tem o recurso por improcedente.
Sem custas.
Coimbra,