Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
41/22.7T9FND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: FALSIDADE DE TESTEMUNHO
Data do Acordão: 05/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DO FUNDÃO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 360º, N.º 1, DO CÓDIGO PENAL; 128º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: Para o preenchimento do crime de falsidade de testemunho é sempre necessário que se prove que a testemunha, agindo intencionalmente, declarou o contrário do que percecionou ou declarou ter conhecimento direto dos factos que não percecionou, não sendo necessário provar em qual dos momentos processuais faltou à verdade.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO
No Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, Juízo Local Criminal do Fundão, AA, solteiro, polidor de metais, filho de AA e de BB, nascido a ../../1979, na ..., no ..., portador do Cartão de Cidadão... ..., com residência na Rua ..., ..., ..., ..., foi submetido a julgamento, em processo comum com intervenção do Tribunal Singular mediante acusação do Ministério Público que lhe imputava a prática, como autor material e na forma consumada de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal.
 Por sentença de 18-12-2023 foi julgada procedente a acusação e, em consequência, o arguido condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal, na pena de 190 (cento e noventa) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros).

Inconformado com a decisão, o arguido interpôs recurso, formulando no termo da respectiva motivação, as seguintes conclusões que se transcrevem:

“1ª - O Mmo juiz a quo, considerou ser manifesta a contradição entre os depoimentos da ali testemunha (aqui arguido) e que apesar de se desconhecer em qual dos momentos o arguido faltou à verdade, tal é irrelevante, para o preenchimento do tipo legal, uma vez, sempre um deles há-de ser falso.

2ª - Pelo que, entendeu estarem preenchidos todos elementos objectivos e subjectivos do crime e condenou o arguido pela prática de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360º, nº1 do Código Penal.

3º - Entende o arguido que o tipo legal de crime só está preenchido pelo relato de fatos concretos que demonstrem que o agente prestou, um depoimento falso e em qual dos momentos o arguido mentiu.

4ª O depoimento não é falso só porque o arguido prestou dois depoimentos contraditórios, é sempre necessário apurar qual deles é o falso, vez que tal definição é elemento típico do crime aqui em causa.

5ª - Assim não sendo, estar-se-á, salvo o devido respeito, a converter este tipo de crime num tipo legal de crime de contradição de testemunho, que não existe.

6ª - Para se saber se ocorreu ou não falsidade, e em que factos é que a mesma se concretizou é necessário conhecer-se ainda a verdade processual. Sendo que quanto a isto nada se provou.

7ª - Assim, nunca o arguido podia, como foi, ser condenado pela prática do crime de falsidade de testemunho, mas sim dele absolvido.

8ª - Ao decidir assim o Tribunal a quo, violou, salvo o devido respeito o artigo 360º, nº 1do Código Penal.

Nestes termos e com o douto suprimento que se invoca, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a aliás, douta sentença recorrida, substituindo-a por outra, que absolva o arguido da prática do crime, tal como acima se propugna, pois que assim se fará JUSTIÇA!!

*

Respondeu o MP, concluindo que deve ser negado provimento ao recurso apresentado pelo arguido.

*

Neste Tribunal da Relação o Exmo. PGA emitiu o seguinte parecer:

“ (…)

Afigura-se, assim, que o recurso é restrito a matéria de direito, cingindo-se à questão de saber se, perante depoimentos de testemunha, contraditórios e que se excluem entre si, é ou não essencial, para o preenchimento do tipo de crime pelo qual o arguido foi condenado (p. e p. pelo artº 360º, n.º 1, do CP) determinar qual dos depoimentos não corresponde à verdade, ou seja, em qual deles mentiu.

III- Na sentença perfilhou-se o entendimento expresso no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24-04-2018, Processo n. 1341/16.0T9CBR.C1 (Brízida Martins), disponível em dgsi.pt, no sentido de que:

«(…) caso se imponha concluir, perante declarações claramente contraditórias entre si, em que uma delas exclui necessariamente a outra, que o agente declarou com falsidade, é igualmente irrelevante que não se apure em que momento a testemunha faltou à verdade, pois o seu comportamento como declarante no processo deve ser perspectivado na sua globalidade, pelo que “essa falta de fidelidade à verdade traduzida num desvio da declaração em relação à realidade apreendida pelo próprio declarante e descortinada através de uma visão integrada de toda a sua conduta processual, é por si só suficiente para implicar a prática de um ilícito-típico objectivo de falsidade de depoimento».

No mesmo sentido, permitimo-nos também mencionar o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16/01/2013, Processo n.º 1689/11.0TACBR.C1 (disponível em ”jurisprudência.pt/acórdãos”) com o seguinte sumário:

“Comete o crime de falsidade de testemunho aquele que, em fases distintas do mesmo processo (inquérito e audiência de julgamento), na qualidade de testemunha, produz depoimentos contraditórios sobre a mesma realidade, não interessando saber para preenchimento do tipo de ilícito qual é o depoimento falso.

E, bem assim, o Acórdão também do Tribunal da Relação de Coimbra de 22/01/2020, Processo n.º 97/16.1T9CNT.C2 (disponível no site da dgsi), no qual se decidiu:

“I – O crime de falsidade de testemunho tutela o bem jurídico realização da justiça, enquanto função do Estado, e o seu tipo base, descrito no artigo 360.º, n.º 1 do Código Penal, tem como elementos constitutivos:

Quanto ao tipo objectivo,

- Que o agente, investido na qualidade processual de testemunha, preste depoimento falso;

- Perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento.

Quanto ao tipo subjectivo,

- O dolo, como conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal. Note-se que não se exige um qualquer elemento subjectivo específico, uma intenção de atentar contra a justiça, de beneficiar ou prejudicar uma das partes, apenas o dolo genérico sob qualquer das suas modalidades, nos termos atrás referidos.

II – Trata-se de um crime de perigo abstracto, pois não é necessário que a declaração falsa influencie, de forma efectiva, o esclarecimento da verdade, nem que, em concreto, tenha criado esse risco. É também um crime de mera actividade pois, para além da conduta típica traduzida na prestação de declaração falsa, não se exige a verificação de qualquer outro resultado. Isto para além de consistir num crime de mão-própria, que só pode ser praticado por determinadas pessoas investidas de certa qualidade (no caso, a de testemunha).

O tipo base é agravado na pena, com a moldura prevista no artigo 360.º, n.º 3 do Código Penal (prisão até cinco anos ou multa até 600 dias), se o agente tiver prestado juramento e tiver sido advertido das consequências da prestação de depoimento falso.

III – A falsidade de declaração a que se reporta o artigo 360.º, n.º 1 do Código Penal corresponde à desconformidade entre a declaração emitida pelo agente e a realidade por ele apreendida, independentemente de a verdade ter sido apurada no processo e qual seja ela, pelo que, perante declarações contraditórias entre si, uma delas exclui necessariamente a outra e sendo inequívoco que o agente declarou com falsidade. É irrelevante que não se apure em que momento o agente faltou à verdade, uma vez que o seu comportamento como testemunha no processo deve ser perspectivado na globalidade e não de uma forma fraccionada, em tantos momentos quantos aqueles em que foi chamado a depor (aferidos, cada um deles, com base na realidade histórica)”

IV- O Ministério Público da 1ª instância, na resposta apresentada, pronunciou-se no sentido dos mencionados acórdãos e da sentença, pugnando pela improcedência do recurso.

V- Perfilha-se, igualmente, quanto à questão objeto do recurso, o entendimento seguido na sentença e nos acórdãos citados.

Pelo que, sem necessidade de outras considerações, se entende que deverá ser negado provimento ao recurso, confirmando-se a sentença nos seus precisos termos.”

*

Foi cumprido ao disposto no art. 417º, nº 2, do C. Processo Penal.

*

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

*

II. FUNDAMENTAÇÃO.

II.1

Dispõe o art. 412º, nº 1, do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

O que suporta o entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 335, Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, 103, e Acs. do STJ de 24/03/1999, CJ, S, VII, I, 247 e de 17/09/1997, CJ, S, V, III, 173).

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, prende-se com o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360º, nº1, do Código Penal.

*

II.2

Para a resolução de tais questões, importa ter presente o que de relevante consta da decisão objecto do recurso. Assim:

Factos provados

Da audiência de julgamento, e com interesse para a decisão da causa, resultou provada a seguinte matéria factual constante da acusação:

1.  No dia 31-01-2020, pelas 11H15, nas Instalações do Núcleo de Investigação Criminal da Guarda Nacional Republicana do ..., perante o militar CC, o arguido foi ouvido na qualidade de testemunha, no âmbito do Inquérito 15/19.....

2.  Ao prestar o sobredito depoimento, o arguido declarou que conhecia o ali arguido DD e a ali arguida EE, há cerca de quatro anos, mais declarando que: «também lhe ia lá comprar produto estupefaciente».

3.  Porém, no dia 30-11-2021, no Juízo Local Criminal do ..., no âmbito da audiência de julgamento realizada no Processo Comum Singular n. 15/19...., o arguido foi inquirido como testemunha e, depois de ter prestado juramento e de ter sido advertido que se faltasse à verdade ou omitisse os factos de que tinha conhecimento, incorreria em responsabilidade criminal, respondeu que nunca adquiriu produto estupefaciente aos ali arguidos DD e EE.

4.  O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que estava obrigado a depor com verdade, tanto mais que prestou juramento e foi advertido das consequências penais de prestar falsas declarações e, não obstante, quis faltar à verdade no que diz respeito às declarações por si prestadas como testemunha em audiência de julgamento.

5.  Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

*

(…)

*

III. Apreciação do mérito

III.1

O art. 360.º, n.ºs 1 do Cód. Penal prescreve que, quem, como testemunha (…) perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento (…) falsos, é punido…

O bem jurídico protegido pela incriminação é a realização da Justiça, que na vertente da falsidade de testemunho visa assegurar a veracidade dos depoimentos, um dos meios essenciais à boa administração da Justiça como função do Estado.

É um crime de perigo abstracto quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido, porque o tipo não inclui a colocação em perigo do bem jurídico, mas o perigo constitui o motivo da incriminação, verificando-se uma presunção inilidível de perigo associada à conduta típica - cfr PPAlbuquerque, Com CP, pág 67.

Por se tratar de um crime de perigo abstracto, não é necessário que a declaração falsa prejudique o esclarecimento da verdade suporte da decisão (cfr Medina Seiça in Comentário Conimbricense, anotação ao artigo 360°, p 460 e ss).

E é um crime de mera actividade, quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção, porque a consumação do crime se verifica apenas pela mera execução de um comportamento humano.

A consumação do crime não exige a verificação de qualquer dano para a descoberta da verdade ou a justiça concreta do caso, nem sequer a adequação da conduta do agente para esse efeito - ob cit, pág 848.

Concordamos assim com o referido autor quando conclui que é irrelevante apurar se o meio de prova viciado foi ou não determinante para o sentido da sentença ou decisão processual.

São pois elementos do tipo, na vertente em questão:

- objectivo - a prestação de depoimento falso;

- subjectivo - o dolo em qualquer das suas modalidades;

- são elementos normativos do tipo: a qualidade de testemunha, os conceitos de tribunal ou funcionário.

Ao nível da jurisprudência dos Tribunais da Relação não tem sido unanime o entendimento sobre o conceito de “falsidade” no preenchimento do tipo do artigo 360.º, n.º 1, do Código Penal, dividindo-se as teorias em objectiva e subjectiva.

Conforme Ac do STJ de 18 de Janeiro de 2018 “A “teoria subjetiva” é a tradicionalmente seguida pela jurisprudência portuguesa e também pela doutrina. Mas a “teoria objetiva” foi defendida com vigor por A. Medina de Seiça, posição também subscrita por Paulo Albuquerque, e ultimamente por Iolanda Rodrigues de Brito.”

A primeira defende que há falso testemunho quando o que foi declarado não corresponde ao que efectivamente sucedeu, à verdade histórica. A segunda entende que é falso o que não está em correspondência com o que a testemunha percepcionou da realidade.

Consequentemente, a contradição entre o dito pela testemunha e a realidade objectiva, da qual tinha ciência e consciência ou a contradição entre o dito pela testemunha e aquilo que ela viu, ouviu ou entendeu, é que configura o crime.

Assim, seguem a teoria objectiva, a Relação de Guimarães, no acórdão de 29-06-2009, processo 840/08.2TABRG.G1, a Relação de Évora, no acórdão de 15-04-2008, proferido no processo n.º 2613/07.1.

Adeptos da teoria subjectiva, Ac TRL de 23-05-2013, TRG de 1-07-2013, Ac. TRE de 20-01-2015, Ac. TRP de 31.05.2017 e de 30-01-2008, proferido no processo n.º 0712790, que decidiu «Preenche o tipo objectivo de falsidade de testemunho a testemunha que, sobre a mesma realidade, presta dois depoimentos antagónicos, ainda que não se apure qual deles é falso.».

No mesmo sentido, da Rel. de Coimbra Acs de 29-02-2012, de 28.9.2011, de 2-07-2017 e Decisão sumária Des Jorge Jacob, 195/09.8T3AVR.C1, de 18-05-2011. 1.    

Medina de Seiça, no Comentário Conimbricense, pág. 477, defende que caso a narração do declarante se afaste do acontecido, isto é, daquilo que o tribunal, em face da produção da prova, tenha dado por acontecido, ela é falsa.

Para integrar o tipo basta que a testemunha profira - perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova o depoimento - declarações desconformes com a realidade (percepcionada) sobre um facto objecto do interrogatório (“…sobre os quais deve depor - art 359º, nº 1, do CPP), desconformidade que quis e alcançou.

O que se nos afigura em consonância com o bem jurídico protegido e com a natureza de crime de perigo abstracto.

Acresce que a testemunha é interrogada sobre factos concretos da queixa, da acusação/pronúncia ou da contestação, de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova e é sobre estes que impende o dever de verdade - artigo 128°, n.º 1, do CPP.

De todo o modo, é sempre necessário que se prove que a testemunha, agindo intencionalmente, declarou o contrário do que percepcionou ou declarou ter conhecimento directo dos factos que não percepcionou.

O que se torna óbvio quando em fases distintas do processo (por ex inquérito e julgamento), a testemunha prestou declarações contrárias, antagónicas, ainda que se desconheça qual delas é a falsa, porque as realidades subjacentes são inconciliáveis entre si.

A impugnação do recorrente assenta fundamentalmente no entendimento de que para integrar o tipo de crime é sempre necessário apurar qual dos depoimentos é o falso ou seja em qual dos momentos o arguido faltou à verdade.

Contudo e como se realça no Ac desta Relação de 12-07-2017…A narração do recorrente, em algum desses momentos, afastou-se da verdade objectiva, dele conhecida, violando, desse modo, o bem jurídico protegido: a realização da justiça como função do Estado, a qual requer a contribuição de todos os intervenientes processuais para o esclarecimento da factualidade relevante em ordem à correcta decisão. O tribunal não conseguiu apurar em que momento processual o recorrente prestou o depoimento falso, mas tal falta de determinação, apenas releva para a determinação do momento de consumação do crime. A consumação existe sempre que a declaração diverge da realidade objectiva. “

Consequentemente, “apurado que num dos momentos processuais o recorrente com a sua conduta preencheu os elementos objectivo (falsidade do depoimento) e subjectivo do tipo (sabendo que o conteúdo do seu depoimento era objectivamente falso – dolo), o tipo de ilícito está perfeitamente preenchido.”

No mesmo sentido esta Relação de Coimbra assim decidiu em decisão sumária datada de 18/5/2011 (Pº 195/09.8T3AVR.C1):

«Por outro lado, é irrelevante para a verificação do tipo a circunstância de se não ter apurado em qual das ocasiões o ora recorrente faltou à verdade, se quando prestou declarações em inquérito, se quando prestou depoimento em audiência. O requisito material ou objectivo que condiciona a verificação do tipo legal previsto no art. 360º, nº 1, do Código Penal, na vertente do depoimento testemunhal, é a prestação de depoimento falso, elemento que está indesmentivelmente comprovado, já que tendo o recorrente prestado declarações díspares naquelas duas ocasiões, não restam dúvidas de que num dos depoimentos faltou à verdade. E nem se diga, como o faz o recorrente, que nestas circunstâncias deveria ter sido absolvido em homenagem ao princípio in dubio pro reo. Este é um daqueles casos “em que o juiz não logra esclarecer, em todas as suas particularidades juridicamente relevantes, um dado substrato de facto, mas em todo o caso o esclarece suficientemente para adquirir a convicção de que o arguido cometeu uma infracção, seja ela em definitivo qual for (…). Nestes casos ensina-se ser admissível, dentro de certos limites, uma condenação com base em uma comprovação alternativa dos factos”. Esta determinação alternativa dos factos constitui uma excepção ao funcionamento do princípio in dubio pro reo, sofrendo apenas os limites decorrentes do princípio da legalidade e os decorrentes da eventual verificação da prescrição relativamente a uma das incriminações (não necessariamente a mais antiga), já que no caso de factos temporalmente distanciados, a determinação alternativa nos termos preconizados não poderá funcionar em desfavor do arguido».

E ainda em idêntico sentido o Ac da Rel de Évora de 03-11-2015:

“I - A circunstância de o tribunal de julgamento nada ter apurado sobre a verdade do facto objeto da declaração, não impede que a conduta da testemunha, o ora arguido, possa ter preenchido os elementos objetivos e subjetivos do crime de falsidade de testemunho previsto no artigo 360º do Código Penal, pois a falsidade de declaração a que se reporta este preceito corresponde à desconformidade entre a declaração emitida pelo agente e a realidade por ele apreendida, independentemente de a verdade ter sido apurada no processo e qual seja ela, de acordo com a conceção subjetivista que seguimos.

II - Perante declarações contraditórias entre si, pois uma delas exclui necessariamente a outra, tendo o agente declarado com falsidade, é irrelevante que não se apure em que momento a testemunha faltou à verdade, visto que o seu comportamento como declarante no processo deve ser perspetivado na sua globalidade, pelo que essa falta de fidelidade à verdade, traduzida num desvio da declaração em relação à realidade apreendida pelo próprio declarante e descortinada através de uma visão integrada de toda a sua conduta processual, é por si só suficiente para implicar a prática de um ilícito-típico objetivo de falsidade de depoimento.

III - Assim, não se impõe a sua absolvição por falta de prova de qual das declarações é falsa, e, subsistindo dúvida sobre o exato momento em que o agente faltou à verdade e essa dúvida tenha relevo penal ou processual penal, v. g. para efeitos de prescrição ou da agravação prevista no nº 3 do artigo 360º do Código Penal, tal dúvida não pode deixar de ser valorada a favor do arguido em obediência ao princípio in dubio pro reo.”

No caso presente, é manifesto que ao afirmar “que conhecia o ali arguido DD e a ali arguida EE, há cerca de quatro anos, mais declarando que «também lhe ia lá comprar produto estupefaciente» e afirmar depois em audiência que “nunca adquiriu produto estupefaciente aos ali arguidos DD e EE.” o arguido produziu declarações antagónicas por isso que num desses momentos processuais prestou uma declaração falsa porque divergente e contraditória com a outra, sobre a mesma realidade.

Em suma, tal como o tribunal recorrido, não concordamos com a tese da defendida pelo recorrente.

Improcede pois o recurso interposto pelo arguido.

*

Uma última nota apenas para aplaudir o tribunal a quo quanto entende que “desconhecendo-se em qual dos momentos o arguido faltou à verdade, ainda que se saiba que o fez, efectivamente, há que levar em consideração que no primeiro momento (cf. os factos 1 e 2), ao contrário do segundo (cf. o facto 3), aquele não se mostrou ajuramentado, razão pela qual se deverá entender, em benefício do arguido, que em causa está o disposto no artigo 360., n. 1, do Código Penal, e não o disposto no artigo 360., n.ᵒˢ 1 e 3, do mesmo diploma.”

IV - DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso, confirmando na íntegra a sentença recorrida.

Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

*

Coimbra, 08-05-2024

Elaborado e revisto pela relatora

Isabel Valongo

Alexandra Guiné

João Novais