Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | EMÍDIO SANTOS | ||
Descritores: | CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA RESOLUÇÃO INCUMPRIMENTO DEFINITIVO RECUSA DE CUMPRIMENTO DECLARAÇÃO NEGOCIAL RESERVA MENTAL DOLO ILÍCITO DOLO NEGATIVO ANULAÇÃO | ||
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Data do Acordão: | 06/11/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 1 | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 227, 244, 253, 254, 289, 410, 442, 762, 801, 808 CC | ||
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Sumário: | I – Não vale como não cumprimento de uma obrigação a mera intenção de não a cumprir, não manifestada ao credor. II – A intenção de não cumprir uma obrigação só adquirirá relevância, para efeitos de não cumprimento do contrato, se o devedor exteriorizar essa intenção mediante uma declaração expressa e categórica dirigida ao credor no sentido de que não cumprirá a obrigação ou mediante a prática de factos que revelem com toda a probabilidade que não irá cumprir a obrigação. III – Agiram como dolo ilícito os promitentes vendedores que esconderam intencionalmente à promitente compradora que já haviam prometido vender 3 dos 4 prédios que lhe estavam a prometer vender, pois foi graças à dissimulação dos negócios que pendiam sobre os prédios que os promitentes vendedores conseguiram obter, da promitente compradora, a promessa de compra deles. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 1.ª secção cível do tribunal da Relação de Coimbra
U (…), Lda, com sede na (...) , propôs a presente acção declarativa com processo comum contra D (…) residente (…) (...) , R (…) residente na (…), (...) , A (…) e mulher I (…), residentes (…) (...) , pedindo: Subsidiariamente, Subsidiariamente Os fundamentos do pedido principal foram, em resumo, os seguintes: Os fundamentos do primeiro pedido subsidiário foram, em resumo, os seguintes: Quanto ao 2.º pedido subsidiário, a autora alegou, para o fundamentar, que os réus receberam indevidamente a quantia de € 125 000,00, em virtude de um contrato-promessa cujo incumprimento se tornou impossível por facto só àqueles imputáveis. Os réus R (…) e A (…) e mulher, I (…), contestaram, pedindo se julgasse improcedente a acção. Na sua defesa informaram que o réu D (…) havia falecido em data anterior à propositura da acção, mais precisamente em 28 de Julho de 2014. Em consequência foram habilitados como sucessores de D (…), para com eles prosseguirem os termos da demanda, R (…), I (…) e A (…). O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da audiência final foi proferida sentença que, julgando procedente a acção, decidiu: O recurso Os réus não se conformaram com a sentença e interpuseram o presente recurso de apelação, pedindo se revogasse e se substituísse a sentença recorrida por decisão que julgasse a acção improcedente e que absolvesse os apelantes. Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram, em resumo, os seguintes: Não houve resposta ao recurso. No despacho inicial, o ora relator, entendeu que, para a hipótese de este tribunal vir a julgar procedente a apelação, cabia-lhe conhecer dos pedidos deduzidos a título subsidiário, começando pelo pedido de anulação do contrato promessa e pelo pedido de restituição da quantia de € 125 000, acrescida de juros. É o que prescreve o n.º 2 do artigo 665.º do CPC. Em cumprimento ao n.º 3 do artigo 665.º do CPC, as partes, notificadas para se pronunciarem, querendo, no prazo de 10 dias, sobre a decisão a proferir em relação ao primeiro pedido subsidiário: anulação do contrato-promessa e restituição da quantia de cento e vinte cinco mil euros (€ 125 000,00) acrescida de juros, não disseram nada. * Considerando as conclusões, o recurso suscita duas questões, sendo uma de facto e outra de direito. 1. A de facto consiste em saber se a sentença errou quando julgou provado que “a escritura definitiva devia ser marcada dentro do prazo de 90 dias a contar da assinatura do contrato-promessa, ou seja, até 29 de Maio de 2005; 2. A de direito consiste em saber se, ao declarar a resolução do contrato-promessa e ao condenar os réus a restituir à autora a quantia de duzentos e cinquenta mil euros, acrescida de juros, a sentença violou as disposições acima indicadas. * Impugnação da decisão de julgar provado que a autora e os réus acordaram que a escritura seria marcada por estes no prazo de 90 dias a contar da assinatura do contrato-promessa ou seja, até 29 de Maio de 2005. Os réus pedem se julgue não provado este facto com a alegação de que tal facto não resulta do contrato-promessa. Não assiste razão aos recorrentes. É certo que não está escrito expressamente no contrato que a escritura pública seria marcada no prazo de 90 dias a contar da assinatura do contrato-promessa. O que está escrito é que a escritura seria marcada pelos promitentes vendedores, devendo realizar-se dentro do prazo máximo de noventa dias. Ora, ao dizer-se que devia realizar-se dentro do prazo máximo de 90 dias, tem-se em vista o prazo de 90 dias a contar da celebração do contrato. E noventa dias a contar da celebração do contrato termina precisamente em 29 de Maio de 2005. Em consequência, julga-se improcedente a impugnação da decisão relativa à matéria de facto. * Factos considerados provados: 1. Por contrato-promessa de compra e venda celebrado em 28 de Fevereiro de 2005, a Autora prometeu comprar aos Réus que, por sua vez, prometeram vender, os seguintes prédios: a) Prédio urbano, composto de casa de habitação com cinco divisões e logradouro, sito em (...) , freguesia de (...) , concelho de (...) , descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º 7 (...) (sendo que aquando da celebração do contrato-promessa ainda não estava registado na conservatória, como decorre da cláusula segunda do mesmo) inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo número 8 (...) ; b) Prédio urbano, composto de casa de habitação de rés-do-chão direito e esquerdo, em (...) , freguesia de (...) , concelho de (...) , descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º 7772 (sendo que aquando da celebração do contrato-promessa ainda não estava registado na conservatória, como decorre da cláusula segunda do mesmo), inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo número 2316. 2. Através do mesmo contrato-promessa, os 3.ºs Réus prometeram ainda vender à Autora que, por sua vez, prometeu comprar os seguintes prédios: a) Prédio rústico, composto de terra com oliveiras, sito em (...) , (...) , freguesia de (...) , concelho de (...) , descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º 7105 (sendo que o contrato-promessa faz menção à anterior descrição em livro n.º 70433, folhas sete, Livro B-193), inscrito na respectiva matriz sob o artigo número 1 (...) ; b) Prédio urbano, composto de casa de habitação com cinco divisões, sito em (...) , freguesia de (...) , concelho de (...) , descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º 7773 (sendo que aquando da celebração do contrato-promessa ainda não estava registado na conservatória, como decorre da cláusula segunda do mesmo), inscrito na respectiva matriz sob o artigo número (...) 1. 3. De acordo com a cláusula segunda do contrato promessa, todos os prédios seriam vendidos “livres de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades”. 4. Nos termos da cláusula terceira do contrato promessa, o preço acordado pela Autora e Réus para a transacção foi de €340.000,00 (trezentos e quarenta mil euros), que seria pago da seguinte forma: a quantia de € 125.000,00 (cento e vinte e cinco mil euros), a título de sinal e princípio de pagamento, na data da assinatura do contrato promessa; a quantia remanescente que se cifra em € 215.000,00 (duzentos e quinze mil euros), no ato da outorga da escritura pública do contrato prometido. 5. No que respeita à outorga da escritura pública do contrato prometido, Autora e Réus acordaram que seria marcada por estes, no prazo de noventa dias a contar da assinatura do contrato promessa, ou seja, até 29 de Maio de 2005. 6. A intenção da autora era construir nos aludidos prédios, que submeteria depois ao regime da propriedade horizontal, de forma a vender as fracções autónomas a terceiros. 7. A possibilidade de construção no prédio constituía condição sine qua non, pressuposto essencial, da outorga do contrato-promessa e, por conseguinte, do contrato-prometido. 8. A Autora, na data da outorga do contrato promessa, entregou aos Réus a quantia de €125.000,00 (cento e vinte e cinco mil euros), correspondente ao sinal e princípio de pagamento. 9. Em 10 de Outubro de 2003, os Réus celebraram com F (...) , dois contratos-promessa de compra e venda, através dos quais, aqueles declararam prometer vender a este, os prédios descritos nos pontos 1.2, 2.1. e 2.2., sendo que F (…) entregou aos Réus a quantia total de €149.639,36, a título de sinal, reforço de sinal e antecipação de pagamento, nas seguintes datas: € 99.759,57, na data da outorga dos contratos-promessa, ou seja, em 10 de Outubro de 2013; e € 49.879,79, em Dezembro de 2003. 10. A celebração do contrato promessa com F (…) foi omitida pelos Réus à Autora. 11. Omissão essa, propositada e intencional, porquanto, a Autora não teria celebrado qualquer contrato-promessa com os Réus se soubesse que estes já tinham celebrado outros contratos promessa anos antes, versando sobre os mesmos imóveis. 12. Quando os Réus celebraram o contrato promessa com a Autora sabiam que não o podiam cumprir, pois tinham celebrado anteriormente outros contratos promessa com F (…), contratos esses que estipulavam a data de 10 de Abril de 2004 para a outorga do contrato prometido. 13. Os Réus, quando celebraram o contrato promessa de compra e venda com a Autora, não tinham intenção de o cumprir, atenta a celebração anterior do contrato promessa de compra e venda com um terceiro, referido nos pontos 9 e 10. 14. Os Réus sabiam que se não omitissem tal facto à Autora, esta jamais celebraria o contrato-promessa e lhes entregaria qualquer quantia. 15. Sobre os prédios urbanos descritos em 1.1, 1.2. e 2.2., impendem registos de uma acção judicial com o n.º 4316/05.1TBLRA (3.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Leiria). Não se provou: * Descritos os factos, passemos à resolução das questões suscitadas pelo recurso. Para bem se perceberem os fundamentos do recurso, importa expor, ainda que em termos sumários, as razões que levaram o tribunal a quo a julgar procedente o pedido principal. Segundo a sentença recorrida, a conduta adoptada pelos réus - consistente fundamentalmente no facto de já terem prometido vender a outrem 3 dos 4 imóveis que prometeram vender à autora, no facto de terem omitido à autora a promessa de venda feita anteriormente, e no facto de não terem intenção de cumprir a promessa de venda feita à autora - era inequívoca no sentido de que não pretendem, nem nunca pretenderam cumprir o contrato-promessa celebrado com os réus, mas apenas levar a autora a entregar-lhes a quantia que receberam, a título de sinal, e dessa forma se locupletarem de uma quantia em dinheiro, que de outra forma não teriam recebido. E assim - segundo a sentença - estando demonstrado o incumprimento definitivo e culposo, pelos réus, do contrato-promessa, assistia à autora o direito de o resolver, nos termos do n.º 2 do artigo 801.º do Código Civil, bem como o direito de exigir dos réus a restituição do sinal em dobro conforme os n.ºs 2 e 3 do artigo 442.º do Código Civil. Os recorrentes contestam a decisão do tribunal a quo com a alegação de que a sua conduta não podia ser vista como uma inequívoca e categórica declaração de que não pretendiam cumprir o contrato-promessa. E não podia ser vista em tal sentido porque, não constando do contrato-promessa a data dentro do qual deveria ter sido marcada a escritura relativa ao contrato definitivo e não tendo os réus marcado a escritura, os réus só entrariam em situação de incumprimento definitivo se, interpelados pela autora para marcar a escritura, com a advertência de que se ela não fosse marcada no prazo que lhes fosse assinalado, a não marcassem. Dado que – ainda segundo os recorrentes - até à presente data a autora não interpelou os réus em tais termos, não havia incumprimento definitivo do contrato, nem mora. Mais alega que a autora não invocou qualquer motivo objectivo e válido para o incumprimento definitivo por parte dos réus e, por conseguinte, não podia operar a resolução do contrato com a consequente restituição do sinal em dobro. Apreciação do tribunal Como se vê pela exposição efectuada a questão de direito essencial é a de saber se a decisão recorrida errou quando afirmou que os réus, ora recorrentes, estão em situação de não cumprimento definitivo quanto à promessa que fizeram à autora, em 28 de Fevereiro de 2005, de lhe vender os 4 imóveis. A resposta a esta questão é essencial para a decisão do recurso pelo seguinte: Adiantando desde já a nossa conclusão, diremos que não tem amparo nos factos o entendimento da sentença de que a conduta dos réus configura incumprimento definitivo da promessa de venda dos prédios. Os recorrentes sustentam que não estão em situação de incumprimento definitivo com base na seguinte linha argumentativa: como não consta do contrato-promessa a data dentro da qual devia se marcada a escritura relativa ao contrato de compra e venda dos imóveis e como os réus ainda não a marcaram, eles, réus, só cairiam em situação de incumprimento definitivo da promessa se a autora os interpelasse, assinalando-lhes um prazo para marcar a escritura, com a advertência de que caso o não fizessem, considerava-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação de celebrar o contrato definitivo e se os réus não marcassem a escritura em tal prazo. Sucede que até à presente data a autora nunca interpelou os réus nestes termos. Ao alegarem no sentido acabado de expor, os recorrentes argumentam como se, nos casos em que não constasse do contrato-promessa a data dentro da qual devia cumprir-se a promessa, o promitente vendedor só entraria em situação de incumprimento definitivo quando não marcasse a escritura relativa ao contrato prometido, depois de te sido interpelado para a marcar dentro de um prazo com a advertência de que, não sendo respeitado tal prazo, se consideraria definitivamente incumprido o contrato por facto imputável aos mesmos. Embora seja exacto que, numa hipótese como a que descreveram os recorrentes, o promitente vendedor cairia em situação de incumprimento definitivo, por aplicação do disposto na 2.ª parte do n.º 1 do artigo 808.º do Código Civil, não é exacto que só em tal hipótese é que se daria o incumprimento definitivo da promessa, por culpa do promitente vendedor. Vejamos. O não cumprimento definitivo de um contrato, por razões imputáveis ao devedor [única hipótese que interessa para a decisão do recurso], pode resultar de outras situações. Assim: Se o devedor cair em mora e se, em consequência dela, o credor perder o interesse que tinha na prestação, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação. É o que afirma a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 808.º do Código Civil. Neste caso, não é necessária a interpelação do devedor nos termos assinalados pelos recorrentes para que ele caia em incumprimento definitivo. Se a prestação se tornar impossível por causa imputável ao devedor, é este responsável como se faltasse culposamente ao cumprimento da obrigação. É o que afirma o n.º 1 do artigo 801.º do Código Civil. Também neste caso não é necessária a interpelação do devedor. Se o devedor declarar expressa e categoricamente ao credor que não realizará a prestação a que está vinculado ou se, não o declarando expressamente, tiver um comportamento que revele com toda a probabilidade que não realizará a prestação, considera-se também não cumprida a obrigação. Socorrendo-nos das palavras de Antunes Varela, “se for, porém, o próprio devedor em mora quem se adianta a declarar peremptoriamente que não cumprirá, não precisa naturalmente o credor de o interpelar mais e de lhe conceder a derradeira «chance» de cumprir, para considerar o contrato definitivamente violado e para ter a certeza do não-cumprimento por parte do faltoso” [Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 121, página 223]. Observe-se que apesar de esta modalidade de incumprimento definitivo não estar expressamente prevista na lei, ela é admitida há muito admitida pela jurisprudência, como o atestam, entre outras, as seguintes decisões: o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 24 de Outubro de 1995, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano III, 1995, Tomo III, páginas 78 a 82; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Setembro de 1998, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano VI, Tomo III – 1998, página 44 a 48, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Fevereiro de 2008, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano XVI, Tomo I/2008, páginas 85 a 90, e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24 de Abril de 2018, proferido no processo n.º 994/15. 1T8LRA.C1, publicado na Colectânea de Jurisprudência, n.º 285, Ano XLIII, Tomo II/2018, página 42. Segue-se do exposto que não vale contra a sentença a alegação de que só a interpelação dos réus, nos termos acima indicados por eles, seria apropriada para os fazer cair em situação de incumprimento definitivo e culposo da promessa de venda. No nosso entender, a sentença não pode subsistir pelas seguintes razões: Vejamos. Se nos termos do n.º 1 do artigo 762.º do Código Civil, o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado, então nem a mera intenção de cumprir o contrato vale como cumprimento dele nem a intenção de o não cumprir também não vale como incumprimento, para mais quando, como sucedeu no caso, tal intenção nem sequer foi manifestada à autora (credora). A circunstância de os réus, ora recorrentes, terem declarado que prometiam vender à autora os prédios identificados no contrato quando, na realidade, não tinha intenção de cumprir tal promessa, significa apenas que a declaração dos réus foi feita com reserva mental [n.º 1 do artigo 244.º do Código Civil]. Reserva mental que não prejudicou a validade da declaração [1.ª parte do n.º 2 do preceito anterior]. E assim mesmo que os réus, ora recorrentes, tivessem continuado com a intenção de não cumprir a promessa de venda, tal intenção só adquiriria relevância, para efeitos da questão do não cumprimento do contrato, se ela tivesse sido exteriorizada mediante uma declaração expressa e categórica dirigida à autora no sentido de que não cumpririam a promessa de venda dos prédios ou mediante a prática de factos que revelassem com toda a probabilidade que não iriam vender os bens à autora. Estaríamos, em tal caso, perante a hipótese de não cumprimento do contrato, referida acima em terceiro lugar. Sucede que os factos provados não dão conta da exteriorização da intenção de não cumprir o contrato. A conduta dos réus onde a sentença viu a demonstração inequívoca de que eles não pretendiam cumprir o contrato esgota-se na promessa de venda dos prédios à autora depois de já os terem prometido vender a um terceiro. Depois de feita a promessa de venda, com a intenção não revelada à autora de a não cumprir, a matéria de facto não compreende qualquer acção dos réus susceptível de ser interpretada como uma recusa expressa ou tácita do cumprimento do que acordou com a autora. Em terceiro lugar a norma jurídica que a sentença invocou para reconhecer à autora o direito à resolução do contrato-promessa [n.º 2 do artigo 801.º do Código Civil] não tem relação com os casos em que o incumprimento consiste na recusa do devedor em realizar a prestação a que está vinculado. A norma em causa diz respeito à impossibilidade da prestação por causa imputável ao devedor. Apesar de a hipótese típica prevista na norma ser a da impossibilidade objectiva superveniente, deve entender-se que a mesma abrange também os casos de impossibilidade originária imputável ao devedor. Esta é a interpretação de Calvão da Silva, Não Cumprimento das Obrigações, Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1977, Volume III, Direito das Obrigações, Coimbra Editora, página 492, segundo o qual “sendo originária impossibilidade objectiva e absoluta da prestação imputável ao devedor, seguir-se-á o regime da falta de cumprimento por impossibilidade culposa (artigos 801.º e 803.). No caso só teria sentido falar em impossibilidade jurídica da prestação. E parece ser nestas águas que navega a sentença ao julgar provado que quando os réus celebraram o contrato-promessa com a autora sabiam que o não podiam cumprir pois tinham celebrado anteriormente outros contratos-promessa com F (…), que estipulavam a data de 10 de Abril de 2004 para a outorga do contrato prometido. A verdade é que os réus, pelo facto de terem prometido vender anteriormente os prédios, não estavam impossibilitados juridicamente de cumprir a promessa feita à autora. Com efeito, a promessa anterior tinha efeitos meramente obrigacionais, razão pela qual os réus não perderam, por efeito dela, o direito de venderem os prédios à autora. O que não era juridicamente possível era o cumprimento das duas promessas de venda. Acresce, contra a tese da impossibilidade jurídica do cumprimento da promessa feita à autora, que, no momento em que a presente acção foi proposta, a promessa anterior já não produzia efeitos, em virtude de ter sido declarada resolvida na acção que o promitente-comprador (F (…)) instaurou contra os réus e que correu termos no tribunal judicial da comarca de Leiria sob o número 4316/05.1TBLRA. Em síntese: não há base factual para afirmar que os réus incumpriram culposamente e de modo definitivo a promessa de venda. Em consequência não há fundamento legal para reconhecer à autora o direito de resolver a promessa de compra feita aos réus e de lhes exigir o dobro da quantia entregue a título de sinal e princípio de pagamento (€ 250 000,00). Pelo exposto é de julgar procedente a apelação e de substituir a sentença recorrida por decisão a julgar improcedente o pedido principal, absolvendo dele os réus. * Considerando que o tribunal a quo deixou de conhecer dos pedidos subsidiários por os considerar prejudicados pela procedência do pedido principal, cabe a este tribunal, em cumprimento do n.º 2 do artigo 665.º do CPC, assumir a instância e conhecer do primeiro pedido subsidiário, consistente no pedido de anulação do contrato-promessa com fundamento em reserva mental e dolo e no pedido de restituição à autora da quantia de € 125 000,00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal, desde a data da celebração do contrato-promessa até integral e efectivo pagamento. A autora pediu a anulação do contrato-promessa por, segundo ela, os réus terem agido com reserva mental [n.º 1 do artigo 244.º do Código Civil] e com dolo [n.º 1 do artigo 253.º do Código Civil]. E agiram com reserva mental e dolo pelo seguinte: Pelas razões a seguir expostas, é de julgar improcedente o pedido de anulação do contrato-promessa com base na alegação de reserva mental; é de julgar procedente tal pedido com fundamento na alegação de dolo. Vejamos. Sobre a questão da reserva mental Diz o n.º 1 do artigo 244.º do Código Civil, que há reserva mental, sempre que é emitida uma declaração contrária à vontade real com o intuito de enganar o declaratário. Foi o que sucedeu no caso, como escrevemos acima: os réus fizeram uma declaração (prometeram vender à autora 4 prédios) que era contrária à sua vontade real (que era a de não cumprir a promessa). E fizeram tal declaração com o intuito de levar a autora a prometer a compra desses 4 prédios e a entregar-lhes a quantia de € 125 000,00, a título de sinal e princípio de pagamento. Sucede que, nos termos do n.º 2 do artigo 244.º do Código Civil, a reserva não prejudica a validade da declaração, excepto se for conhecida do declaratário, neste caso, a reserva tem os efeitos da simulação. Visto que os réus esconderam da autora a sua intenção de não cumprir, ou seja, a autora não conhecia a reserva mental dos réus, é válida a promessa de venda efectuada à autora. Sobre a questão do dolo Segundo o n.º 1 do artigo 253.º do Código Civil, “entende-se por dolo qualquer sugestão ou artificio que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante”. Por sua vez o n.º 2 do mesmo preceito afirma que “não constituem dolo ilícito as sugestões ou artifícios usuais, considerados legítimos segundo as concepções dominantes no comércio jurídico, nem a dissimulação do erro, quando nenhum dever de elucidar o declarante resulte da lei, de estipulação negocial ou daquelas concepções”. Para o caso interessa-nos a 2.ª parte do n.º 1 do artigo 253.º, ou seja, a que tem em vista o dolo consistente na dissimulação, pelo declaratário, do erro do declarante, modalidade de dolo designado na doutrina por dolo negativo, omissivo ou de consciência. Estão em causa os casos “de silêncio perante o erro em que versa o declarante” [Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª Edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, página 523”]. Noutra formulação, estão em causa as situações em que o declaratário guarda silêncio voluntariamente sobre factos que, por força da lei, de estipulação negocial ou das concepções dominantes no comércio jurídico, deveriam ter sido comunicados à outra parte. É o que se passa precisamente no caso: os réus esconderam intencionalmente à autora que já haviam prometido vender 3 dos 4 prédios que lhe estavam a prometer vender. E a promessa de venda anterior era facto que os réus tinham o dever de dar a conhecer à autora. E tinham este dever porque nos termos do n.º 1 do artigo 227.º do Código Civil quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, e faz partes das regras da boa fé na negociação de um contrato-promessa de compra e venda relativo a prédios rústicos e urbanos esclarecer a situação jurídica deles, designadamente os negócios que estão pendentes sobre eles, como era o caso da anterior promessa de compra e venda. Os réus agiram, pois, com dolo ilícito. E foi graças à dissimulação dos negócios que pendiam sobre os prédios que os réus conseguiram obter, da autora, a promessa de compra deles, pois provou-se que a autora não teria feito tal promessa se soubesse que os réus já tinham prometido vender os prédios a F (…). Os réus sabiam que se não escondessem à autora a anterior promessa de venda, ela (autora) não prometeria comprar os prédios nem, em consequência, lhes entregaria qualquer quantia a título de sinal e princípio de pagamento. Pode, assim, concluir-se que a conduta omissiva dos réus teve um papel determinante, causal, na declaração negocial da autora, consistente, no essencial, na promessa de compra dos 4 prédios. Como observa Carlos Mota Pinto, na obra supra citada, página 526, “na hipótese de dolo negativo trata-se de uma causalidade hipotética”, ou seja, o dolo será de considerar determinante ou causal da declaração se se provar que sem ele a declaração não teria sido emitida. Foi precisamente o que se passou no caos. Assim, visto o n.º 1 do artigo 254.º do Código Civil, segundo o qual o declarante cuja vontade tenha sido determinada por dolo pode anular a declaração, é de reconhecer à autora o direito de anular a sua declaração. Em consequência da anulação da promessa de compra, assiste-lhe também o direito de exigir aos réus a restituição da quantia de € 125 000,00. Este direito tem amparo no n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil, na parte em que dispõe que a declaração de anulação do negócio tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado e no facto de se ter provado que, na data da outorga do contrato-promessa, a autora entregou aos réus a quantia de € 125 000,00 (cento e vinte cinco mil euros), correspondente ao sinal e princípio de pagamento. Por último, também assiste à autora direito a exigir aos réus o pagamento de juros desde a data da celebração do contrato até ao integral e efectiva restituição da quantia de € 125 000,00, calculados à taxa dos juros legais. Este direito tem fundamento: * Decisão: 1. Julga-se procedente o recurso de apelação e, em consequência, revoga-se a decisão de julgar procedente o pedido de resolução do contrato-promessa celebrado entre a autora e réus e a de julgar procedente o pedido de condenação dos réus no pagamento à autora da quantia de duzentos e cinquenta mil euros (€ 250 000,00) acrescida de juros. 2. Ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 665.º do CPC, julga-se procedente o primeiro pedido subsidiário e, em consequência: a) Anula-se o contrato-promessa celebrado entre a autora e os réus; b) Condenam-se os réus a restituírem à autora a quantia de cento e vinte cinco mil euros (€ 125 000,00), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde a data da celebração do contrato-promessa até ao efectivo e integral pagamento, calculados à taxa legal. * Responsabilidade quanto a custas Custas do recurso: Visto o disposto na 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC, e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de a autora ter ficou vencida no recurso, as custas do recurso (restritas às custas de parte) são suportadas pela autora. As custas da acção: Visto o disposto nos preceitos acima referidos e o facto de os réus terem ficados vencidos no primeiro pedido subsidiário, as custas da acção são suportadas pelos réus. * Coimbra, 11 de Junho de 2019
Emídio Santos ( Relator) Catarina Gonçalves Ferreira Lopes |