Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4992/13.1TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS
ACIDENTE
CONCEITO JURÍDICO
CAUSAS
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 03/01/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 563º DO CC
Sumário: I – Pressupondo o conceito de “acidente” que o evento em causa tenha decorrido de causa externa – excluindo, portanto, os eventos que são originados e desencadeados por factores inerentes ao próprio organismo – não se exige, no entanto, que o evento tenha sido provocado exclusivamente por uma causa exterior, bastando, para o efeito, que uma causa exterior tenha contribuído de forma decisiva, em termos de causalidade adequada, para a sua verificação ainda que em concurso com outras causas internas e inerentes ao corpo humano.

II – Nessa perspectiva e tendo em conta que a introdução de um medicamento no corpo humano não é um acto que, pela sua natureza, se revele, de todo, inadequado a produzir reacções adversas de maior ou menor gravidade e, designadamente, um choque anafiláctico, nada obsta a que se considere como “acidente” o choque anafiláctico que se verificou pela introdução de um medicamento/antibiótico aquando da indução anestésica para efeitos de realização de uma cirurgia, ainda que esse choque não prescinda de um factor interno e inerente ao organismo da pessoa a quem é administrada a substância que provoca aquela reacção.

III – Todavia, resultando provado que a morte ocorreu devido a um enfarte agudo do miocárdio e não estando provado se este enfarte foi determinado pelo choque anafiláctico que se havia produzido algum tempo antes ou se foi provocado por causas internas existentes no organismo – como sejam a obesidade, os diabetes e a hipertensão arterial de que a pessoa padecia – não é possível qualificar esse evento (enfarte do qual resultou a morte) como acidente, para efeitos de um contrato de seguro de acidentes pessoais em que o falecido figura como “pessoa segura”, por não ser possível estabelecer se ele decorreu de causa externa.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A... , residente na Rua (...) , Leiria, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de C... , instaurou a presente acção contra B..., Companhia de Seguros, S.A., com sede na Av. (...) , Lisboa, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de 9.975,96€ acrescida de juros desde 11/11/2010.

Alega, para o efeito, que o autor da herança – falecido em 11/11/2010 – havia celebrado com a Ré – em 29/09/2000 – um contrato de seguro de acidentes pessoais, cuja cobertura base era “por morte ou invalidez permanente” com o capital de 9.975,96€ e no qual constavam com beneficiários, em caso de morte, os herdeiros legítimos. Mais alega que o autor da herança veio a falecer devido a enfarte agudo do miocárdio de causas naturais que, não sendo expectável, do ponto de vista clínico e dos exames efectuados, deve ser qualificado como acidente para os efeitos do aludido contrato de seguro, sendo certo, porém, que a Ré tem negado a sua responsabilidade por considerar que a morte não foi consequência de acidente mas sim de uma situação de doença que não se enquadra nas garantias da apólice.

A Ré contestou, sustentando, em suma, que a morte de C... deveu-se a enfarte agudo do miocárdio, situação que não se subsume à definição de acidente que constava do contrato, porquanto não decorre de qualquer causa externa, sendo certo, além do mais, que para a sua verificação também terão contribuído as doenças de que o mesmo padecia, como sejam diabetes, hipertensão arterial e hipertrofia ventricular.

Assim e porque o contrato de seguro apenas garantia a cobertura de morte em consequência do acidente, conclui pela improcedência da acção.

Foi realizada a audiência prévia, no decurso da qual a Ré invocou a ilegitimidade da cabeça de casal porquanto a herança ilíquida e indivisa deveria estar representada por todos os herdeiros.

A Autora aceitou essa ilegitimidade e comprometeu-se a deduzir o competente incidente de intervenção provocada.

Foi proferido despacho que concedeu à Autora o prazo de dez dias para deduzir o aludido incidente.

As partes foram, então, informadas que estavam reunidas todas as condições para proferir decisão de mérito e pelas mesmas foi dito que mantinham a posição já assumida nos articulados, concordando que inexistia prova a produzir.

 Posteriormente, na sequência do incidente deduzido pela Autora, foi admitida a intervenção principal de D..., E... e F... (esta representada pela sua progenitora, G... ), os quais, conjuntamente com A... , asseguram a representação da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de C... .

Citados os Intervenientes, vieram A... , D... e E... juntar procuração, declarando ratificar o processado anterior.

Foi proferido despacho saneador onde se conheceu do mérito da causa – por se ter entendido que o estado do processo permitia a apreciação total do pedido deduzido sem necessidade de mais provas – decidindo-se nos seguintes termos:

• Condeno a ré a pagar à HERANÇA ILÍQUIDA E INDIVISA ABERTA POR ÓBITO DE C... – representada por A... , D... , E... e F... (representada pela sua progenitora, G... ) – a quantia de € 9.975,96 (nove mil, novecentos e setenta e cinco eur os e noventa e seis cêntimos), acrescida esta quantia dos juros de mora às sucessivamente vigentes taxas supletivas para os juros comerciais, desde a data da participação efectuada à ré – 27/10/2011 - e até integral pagamento.

1. Absolvo a ré do demais peticionado.

2. Condeno autora e ré no pagamento das custas na proporção dos seus decaimentos, a calcular aritmeticamente considerando a data a partir da qual a autora peticiona o pagamento dos juros de mora – 11/11/2010 - e aquela que se veio a fixar – 27/10/2011”.

Discordando dessa decisão, a Ré veio interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

I. O direito ao Capital Seguro peticionado pela A. nos presentes Autos não integra o acervo hereditário deixado por C... , pois não integrava o conjunto de situações jurídicas na sua titularidade no momento da morte.

II. Tal direito só passa a existir se a Pessoa Segura falecer e já após a sua morte, pelo que surge, desde logo, na esfera jurídica dos respectivos Beneficiários, a título próprio.

III. Muito embora o direito à prestação devida pela Seguradora resulte da morte da Pessoa Segura não assume natureza sucessória nem determina qualquer aplicação das regras próprias do direito sucessório.

IV. Daí que o pagamento eventualmente devido aos Beneficiários seja feito no estrito cumprimento de um dever ou obrigação contratual assumida no Contrato de Seguro celebrado com o falecido C... e não por via sucessória ou equivalente.

V. A designação dos Beneficiários do Contrato de Seguro dos Autos por alusão aos Herdeiros legais, é uma mera fórmula de referenciação, cuja interpretação imposta pelo n.º 2 do artigo 201.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro é a de que se consideram como tais todos os Herdeiros legais que o sejam à data do falecimento da Pessoa Segura e nunca a própria Herança, que é parte ilegítima nos presentes Autos.

VI. É este o sentido com que a dita norma, em conjugação com o disposto no artigo 2024.º do Código Civil, devia ter sido interpretada e aplicada pela Meritíssima Juiz do Tribunal “a quo”, a qual, por isso mesmo, mal andou ao condenar a R. a pagar o Capital Seguro à Herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de C... , quando os Beneficiários do Contrato de Seguro dos Autos são, isso sim, os seus Herdeiros legais, cada um por si.

Acresce que,

VII. O Tribunal “a quo” não pode fazer aplicar o artigo 27.º do Código de Processo Civil para admitir a «Intervenção Principal Provocada» dos Herdeiros em falta e não os sujeitar às demais consequências aí estipuladas, pelo que, salvo melhor entendimento, também a este propósito, não podia o Douto Tribunal “a quo” Decidir como Decidiu.

VIII. Ao silêncio da Chamada F... que nada disse, após ter sido regularmente notificada para tanto, não pode deixar de se aplicar o disposto no n.º 2 do artigo 27.º do Código de Processo Civil, pois, sem a ratificação de todo o processado por todos os Herdeiros não pode senão concluir-se pela irregularidade da representação da Herança nos presentes Autos e, por consequência, também, pela ilegitimidade da Apelada para peticionar da ora Apelante o pagamento da totalidade do Capital Seguro, tal como o faz.

Por outro lado,

IX. A morte de C... foi devida a enfarte agudo do miocárdio, o qual, salvo melhor opinião, não se subsume à definição de acidente contratada, desde logo, porquanto lhe falta tanto o requisito da exterioridade como o nexo causal exigidos para accionar a Apólice em apreço.

X. O requisito da exterioridade, que é um dos elementos integradores do conceito de «acidente», para efeitos do Contrato de Seguro dos Autos, impõe a exclusão dos eventos ocorridos ou desencadeados no interior do corpo, inerentes à própria vítima, como é o caso de um enfarte agudo do miocárdio, que advém do próprio organismo, tendo uma génese perfeitamente interna.

XI. O Douto Tribunal “a quo” opera uma deficiente valoração da prova para concluir que o enfarte agudo do miocárdio que vitimou a Pessoa Segura resultou do choque anafiláctico que desenvolveu durante a indução anestésica a que se submeteu para a realização de uma intervenção cirúrgica, por ser portador de Transtorno de disco invertebral.

XII. Contudo, a aceitar-se que o enfarte agudo do miocárdio sofrido por C... resultou desse choque anafiláctico então não podia a Meritíssima Juiz do Tribunal “a quo” desatender a origem interna de uma reacção alérgica como a descrita, que ocorre inegavelmente dentro do próprio corpo e já aí existia ainda que não previamente detectada ou manifestada e, portanto, ainda que não fosse expectável.

XIII. A mera administração de antibiótico para indução anestésica, por si só, sem o concurso de uma desconhecida predisposição do organismo da Pessoa Segura (a alergia), não é suficiente para causar esse choque anafiláctico, determinando um enfarte agudo do miocárdio e, por sua vez, a morte, a qual, nesse sentido, não foi causada por causa exterior.

XIV. Aliás, do Certificado de Óbito de C... consta que a causa da sua morte (causa directa i.e. doença, traumatismo ou complicação que levou directamente à morte) é desconhecida (Facto Provado 9), o que significa que para os próprios médicos não se mostrou tão evidente como para a Meritíssima Juiz do Tribunal “a quo” que o enfarte agudo do miocárdio resultou daquele choque anafiláctico, o que esta não podia simplesmente concluir sem qualquer confirmação médica nesse sentido.

XV. Consequentemente, também não podia dar como não provado que «o enfarte agudo do miocárdio causador da morte de C... se tenha ficado a dever a qualquer circunstância atinente ao organismo do falecido C... , designadamente aos antecedentes pessoais de Diabetes Mellitus Tipo II e Hipertensão arterial, à obesidade ou à hipertrofia ventricular ou de qualquer modo associado ao outro enfarte agudo do miocárdio recentemente sofrido pela vítima».

XVI. Pois, se a própria ciência não pôde determinar com rigor a causa da morte de C... não é de afastar liminarmente a possibilidade de outros factores, tais como os que antecedem, terem influído na sua ocorrência.

XVII. O facto de não ser expectável que tais antecedentes pessoais pusessem em causa a realização da cirurgia acima referida, nem o surgimento do choque anafiláctico, não implica que não estes não tenham efectivamente contribuído para a causa da morte de C... , ademais quando esta permanece desconhecida, o que quebra irrecuperavelmente o nexo de causalidade.

XVIII. Por fim, merece censura a condenação da R. ora Apelante no pagamento de juros de mora supletivos, à taxa comercial, porquanto o disposto no n.º 3 do artigo 102.º do Código Comercial apenas se aplica «relativamente a créditos de que sejam titulares empresas comerciais», o que não sucede no presente caso face à aqui A. que é a Herança deixada por óbito de C... .

TERMOS em que deverá ser concedido provimento ao presente Recurso de Apelação, revogando-se a Sentença Recorrida.

A cabeça de casal da herança, A... , E... e D... apresentaram contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

1ª Por despacho saneador, foi decidido pelo Tribunal julgar a presente ACÇÃO parcialmente procedente, por parcialmente provada, em consequência condenou a ré a pagar à HERANÇA ILÍQUIDA E INDIVISA ABERTA POR ÓBITO DE C... – representada por A... , D... , E... e F... (representada pela sua progenitora, G... ) – a quantia de € 9.975,96 (nove mil, novecentos e setenta e cinco euros e noventa e seis cêntimos), acrescida esta quantia dos juros de mora às sucessivamente vigentes taxas supletivas para os juros comerciais, desde a data da participação efectuada à ré – 27/10/2011 - e até integral pagamento.

2ª Em 11 de Novembro de 2010 faleceu C... , de 46 anos de idade, deixando como herdeiros cônjuge e filhos, já acima identificados.

3ª A questão de saber se o enfarte agudo do miocárdio que causou a morte do falecido C... consubstancia um acidente (nos termos clausulados no contrato de seguro) ou uma doença ou, em todo o caso, se não se trata de acidente é o que definirá a responsabilidade da ré.

4ª Ora, resulta dos autos a seguinte factualidade a considerar para a decisão que: “não era expectável, tando do ponto de vista clínico, como através dos exames efectuados, qualquer alteração patológica que pusesse em causa a realização da intervenção cirúrgica acima referida, nem o surgimento de choque anafiláctico; Os exames toxicológicos efectuados ao sangue do falecido C... foram negativos para álcool, drogas e medicamentos pesquisados”.

5ª Notoriamente nunca se pode dar como provado que o enfarte agudo do miocárdio causador da morte de C... se tenha ficado a dever a qualquer circunstância atinente ao organismo do falecido C... , designadamente aos antecedentes pessoais de Diabetes Mellitus tipo II e Hipertensão Arterial, à obesidade ou à hipertrofia ventricular ou de qualquer modo associado ao outro enfarte agudo do miocárdio recentemente sofrido pela vítima.

6ª Segundo as regras de repartição do ónus da prova, não teve dúvidas o Tribunal a quo a considerar os fatos como provados face à documentação junta pela autora (esta documentação como única forma de provar em exclusivo quanto ao alegado) e ré, o que é notório.

7ª A ré aceitou o documento junto pela H... – cfr. artigo 2º da contestação – e cujo conteúdo não permite outra conclusão, posto que acaso houvesse existido a possibilidade de tais antecedentes influenciarem o evento ocorrido jamais o relatório médico poderia concluir nos termos em que o fez.

8ª Dúvidas não existem quanto à qualificação das declarações negociais prestadas pelo falecido C... e pela ré como consubstanciadoras de um CONTRATO DE SEGURO.

9ª No caso, o tomador do seguro encontrava-se abrangido por um Seguro do Grupo de ACIDENTES PESSOAIS da ré desde o dia 29/09/2000, por força do qual a ré assumiu a obrigação de garantir a cobertura de morte ou invalidez permanente sofridas pela pessoa segura em consequência de acidente emergente de risco profissional ou extra-profissional, incluindo a utilização de meios de transporte regular e prática acidental de desportos amadores, até aos 70 anos de idade. Ademais, a cobertura base era “por morte ou invalidez permanente” com o capital de € 9.975,96 (nove mil novecentos e setenta e cinco euros e noventa e seis cêntimos) e no qual constavam como beneficiários em caso de morte os “herdeiros legítimos”.

10ª Um SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS tem por objecto a reparação, seja em forma de indemnização ou renda, seja em forma de assistência médica, dos danos sofridos pelo segurado na sua pessoa em virtude de acidente acontecimento fortuito, súbito e anormal, devido a acção de uma causa exterior e estranha à vontade da pessoa segura e que nesta origine lesões corporais”.

11ª O conceito de ACIDENTE (que o contrato prevê como o acontecimento provocado por causa súbita, externa e violenta, alheia à vontade da pessoa segura e do beneficiário, que produza lesões corporais, invalidez, temporária ou permanente, ou morte) parece dever construir-se a partir dos seus elementos integradores, isto é: a lesão corporal há-de consubstanciar-se na invalidez (parcial ou total) ou na morte, e resultar de um evento involuntário, externo, violento e súbito.

12ª Saber se o enfarte agudo do miocárdio causou a morte do falecido C... consubstancia um acidente (nos termos clausulados no contrato de seguro) ou uma doença ou, em todo o caso, se não se trata de acidente – o que definirá a responsabilidade da ré.

13ª No caso, provou-se que o referido C... foi internado na H... para realização de intervenção cirúrgica no âmbito do programa SIGIC, por ser portador de Transtorno de disco intervertebral.

14ª No início da intervenção cirúrgica, no período de indução anestésica e durante a administração de antibiótico, o doente desenvolveu quadro de choque anafiláctico severo, tendo sido necessário chamar o INEM, que transferiu o doente para a Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital de Santo André, em Leiria. Admitido no Serviço de Medicina Intensiva após estabilização hemodinâmica e pelas 2h20 do dia 11/11/2010, o referido C... sofreu mais um evento de assistolia, que reverte o ritmo sinusal mas desta vez com deterioração hemodinâmica irreversível. Tendo falecido nesta data e na sequência do ocorrido.

15ª Mais se apurou que não era expectável, tando do ponto de vista clínico, como através dos exames efectuados, de qualquer alteração patológica que pusesse em causa a realização da intervenção cirúrgica acima referida, nem o surgimento de choque anafiláctico.

16ª Daí que tenha resultado não provado que o enfarte agudo do miocárdio causador da morte se tenha ficado a dever a outra circunstância atinente ao organismo do falecido C... , designadamente, como sustenta a ré, aos antecedentes pessoais de Diabetes Mellitus tipo II e Hipertensão Arterial, à obesidade ou à hipertrofia ventricular ou de qualquer modo associado ao outro enfarte agudo do miocárdio recentemente sofrido pela vítima.

17ª A decisão da questão impõe, desde logo, o recurso às regras da interpretação da declaração negocial nos termos do artigo 236º Código Civil, sendo certo que o objectivo da solução aceite na lei é o de proteger o declaratário, conferindo à declaração o sentido que seria razoável presumir em face do comportamento do declarante, e não o sentido que este lhe quis efectivamente atribuir.

18ª Consagra-se assim uma doutrina objectivista da interpretação, em que o objectivismo é, no entanto, temperado por uma salutar restrição de inspiração subjectivista.

19ª O declaratário normal deve ser uma pessoa com “razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas fixando-a na posição do real destinatário, isto é, acrescentando as circunstâncias que este conheceu concretamente e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo”

20ª Não há, pois, qualquer “sujeição” do segurado à interpretação dos conceitos escritos que, na acepção normativa, nem sequer lhe é exigível conhecer.

21ª Isto posto, cumpre referir que, em sentido comum, acidente é um acontecimento fortuito e Doença é a alteração na saúde, a falta de saúde.

22ª A ré sustenta, como se referiu, que o enfarte causador da morte do falecido C... não adveio de causa externa ao seu corpo mas do organismo e que não se trata de facto súbito nem involuntário – apenas aceita a característica da natureza violenta.

23ª Mas não se provou que o enfarte causador da morte se tenha ficado a dever a qualquer circunstância atinente ao organismo do falecido C... , designadamente, como sustenta a ré, aos antecedentes pessoais de Diabetes Mellitus tipo II e Hipertensão Arterial, à obesidade ou à hipertrofia ventricular ou de qualquer modo associado ao outro enfarte agudo do miocárdio recentemente sofrido pela vítima.

24ª Provou-se que não era expectável, tando do ponto de vista clínico, como através dos exames efectuados, qualquer alteração patológica que pusesse em causa a realização da intervenção cirúrgica acima referida, nem o surgimento de choque anafiláctico.

25ª Por assim ser, nunca se poderia sufragar a ré do entendimento de que considera que a lesão não foi originada por causa exterior e que não se revestiu de natureza inesperada (súbita).

26ª Carece de fundamento, outrossim, a alegação de que o falecido C... , por força das suas características e antecedentes, deveria ter como previsível a verificação de evento (do enfarte que causou a sua morte), na medida em que se provou exactamente o contrário: não era expectável, tando do ponto de vista clínico, como através dos exames efectuados, qualquer alteração patológica que pusesse em causa a realização da intervenção cirúrgica acima referida, nem o surgimento de choque anafiláctico; se o evento tal como ocorreu não era expectável do ponto de vista clínico, não se compreende, realmente, como pode a ré sustentar que tal evento seria previsível para a vítima.

27ª Tratou-se, pois, de evento violento, devido a uma causa exterior ao tomador do seguro e à sua vontade (involuntário) e súbito.

28ª Embora o acidente pessoal seja externo à vítima e a doença seja um facto que ocorre no interior do seu corpo por factores vários que nem sequer o estado da ciência pode determinar com rigor, certo é que este critério não exclui que determinados factores possam ser incluídos no conceito de acidente pessoal, se pelo seu carácter fortuito, imprevisível e alheio à vontade do segurado causarem danos na sua saúde, como será o caso da existência de enfarte de miocárdio num quadro em que a vítima não apresentava sinais de doença ou factores predisponentes9 - como é precisamente o caso dos autos, não obstante a conclusão diversa retirada pela ré com base em características da vítima que nem a ciência médica associa causalmente ao evento ocorrido.

29ª Isto é, o evento em causa nos autos desencadeia a verificação de um acidente nos termos clausulados no contrato de seguro outorgado entre as partes.

30ª É, pois, patente que o evento se ficou a dever a factores imprevisíveis, súbitos e imprevistos, importa concluir que a morte em apreço foi consequência de acidente que o falecido C... sofreu enquanto sujeito uma intervenção cirúrgica, no caso enfarte agudo do miocárdio – verifica-se o nexo de causalidade exigido pelo artigo 563º do Código Civil.

31ª Na realidade, sem embargo de não estar explicitamente consagrada no artigo 563º do Código Civil, deve entender-se estar subjacente a este artigo a teoria da causalidade adequada, que nos diz, na sua formulação negativa, que o facto que foi condição do dano só deixará de ser causa adequada deste se, dada a sua natureza geral, se revelar totalmente indiferente para a produção do dano, só o tendo provocado por virtude de circunstâncias atípicas ou excepcionais – opta-se por esta ramificação da teoria da causalidade, porque estamos perante um caso em que se pressupõe um facto ilícito culposo, o que justifica a inversão do sentido natural dos acontecimentos, fazendo recair o prejuízo, em princípio sobre quem, agindo ilicitamente, criou a condição do dano.

32ª O facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo em todo indiferente para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude de circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto.

33ª Ora, valorando, integrando e enquadrando normativamente a sequência naturalística dos factos e das coisas, em ordem a saber se - face ao mundo do direito - essa sequência releva de forma a poder fixar-se normativamente a conexão de causa/efeito entre um facto e um dano, conclui-se que se pode estabelecer tal nexo de causalidade no caso dos autos entre a morte ocorrida e o enfarte/acidente.

34ª Por tudo teve bem o Tribunal em julgar a acção procedente e, em consequência, condenar a ré no pagamento à herança autora da quantia de €9.975,96 (nove mil, novecentos e setenta e cinco euros e noventa e seis cêntimos).

35ª Tendo em conta que está em causa uma obrigação de carácter pecuniário, a respectiva indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora, atento o preceituado nos artigos 562º e 806º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil.

36ª A mora da ré constituiu-se na data da sua interpelação para proceder ao pagamento – cfr. artigo 805º/1 do Código Civil -, no caso na data da participação – sendo que se provou que a ré teve conhecimento do falecimento de C... no dia 27/10/2011 com base na participação efectuada pela cabeça-de-casal A... .

37ª A ré deverá, pois, ser condenada no pagamento dos juros de mora às sucessivamente vigentes taxa supletivas para os juros comerciais, desde a data da participação e até integral pagamento, improcedendo, nesta parte, a pretensão da autora.

Nestes termos, deve o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão/conclusão/despacho recorrida(o).

O Ministério Público também apresentou contra-alegações, em representação da menor, F... , sustentando a improcedência do recurso e a confirmação da decisão recorrida.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se o direito ao capital seguro – que é peticionado nos autos – integra o acervo hereditário deixado por C... (pessoa segura) ou é um direito próprio dos respectivos beneficiários, com vista a saber se a Ré poderia ter sido condenada a pagar essa quantia à Herança Ilíquida e Indivisa;

• Saber se o silêncio da Chamada F... implica (ou não) a irregularidade de representação da Herança e, consequentemente, a sua ilegitimidade para peticionar o capital seguro;

• Saber se o evento que conduziu à morte de C... (pessoa segura) deve ou não ser considerado como acidente para efeitos do contrato de seguro em causa nos autos;

• Saber se os juros de mora eventualmente devidos devem ser contabilizados à taxa comercial aplicável aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais.


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III.

Na 1ª instância, considerou-se provada a seguinte matéria de facto:

1. C... , nascido a 22 de Maio de 1964, faleceu no dia 11/11/2010 no estado de casado com A... , com residência habitual na Rua da (...) , concelho de Leiria.

2. O referido C... deixou como únicos e universais herdeiros os seguintes:

• A... , casada com o falecido C... na data da sua morte;

• D... , filho do falecido C... e da referida A... , nascido no dia 16/06/1991;

• E... , filha do falecido C... e da referida A... , nascida no dia 3/12/1994; e

• F... , filha do falecido C... e de G... , nascida no dia 6/10/2002.

3. Antes do óbito referido em 1), C... foi internado no estabelecimento denominado H... para realização de intervenção cirúrgica no âmbito do programa SIGIC, por ser portador de Transtorno de disco intervertebral.

4. No início da intervenção cirúrgica, no período de indução anestésica e durante a administração de antibiótico, o doente desenvolveu quadro de choque anafiláctico severo, tendo sido necessário chamar o INEM, que transferiu o doente para a Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital de Santo André, em Leiria.

5. Admitido no Serviço de Medicina Intensiva após estabilização hemodinâmica e pelas 2h20 do dia 11/11/2010, o referido C... sofreu mais um evento de assistolia, que reverte o ritmo sinusal mas desta vez com deterioração hemodinâmica irreversível.

6. O falecido C... faleceu nos termos referidos em 5) na sequência de enfarte agudo de miocárdio.

7. Não era expectável, tando do ponto de vista clínico, como através dos exames efectuados, qualquer alteração patológica que pusesse em causa a realização da intervenção cirúrgica acima referida, nem o surgimento de choque anafiláctico.

8. Os exames toxicológicos efectuados ao sangue do falecido C... foram negativos para álcool, drogas e medicamentos pesquisados.

9. Foi emitido certificado de óbito do qual consta “causa de morte desconhecida”.

10. O falecido C... tinha antecedentes pessoais de Diabetes Mellitus tipo II e Hipertensão Arterial e apresentava 100 Kg de peso.

11. Por escrito datado de 29 de Setembro de 2000 titulado pela Apólice n.º (...) o falecido C... outorgou um contrato de seguro de acidentes pessoais, cujo produto era denominado “Atlântico Renda”, sendo o tomador do Seguro “ C... ”, sendo que a cobertura base era “por morte ou invalidez permanente” com o capital de € 9.975,96 (nove mil novecentos e setenta e cinco euros e noventa e seis cêntimos) e no qual constavam como beneficiários em caso de morte os “herdeiros legítimos”.

12. Através do contrato de seguro acima identificado, a ré assumiu garantir a cobertura de morte ou invalidez permanente sofridas pela pessoa segura em consequência de acidente emergente de risco profissional ou extra-profissional, incluindo a utilização de meios de transporte regular e prática acidental de desportos amadores, até aos 70 anos de idade.

13. Nos termos contratados e clausulados, entende-se por acidente o acontecimento provocado por causa súbita, externa e violenta, alheia à vontade da pessoa segura e do beneficiário, que produza lesões corporais, invalidez, temporária ou permanente, ou morte.

14. A ré teve conhecimento do falecimento de C... no dia 27/10/2011 com base na participação efectuada pela cabeça-de-casal A... .

E considerou-se não provado que o enfarte agudo do miocárdio causador da morte de C... se tenha ficado a dever a qualquer circunstância atinente ao organismo do falecido C... , designadamente aos antecedentes pessoais de Diabetes Mellitus tipo II e Hipertensão Arterial, à obesidade ou à hipertrofia ventricular ou de qualquer modo associado ao outro enfarte agudo do miocárdio recentemente sofrido pela vítima.


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IV.

Começamos por apreciar a questão de saber se o evento em causa nos autos é ou não um acidente para efeitos do contrato de seguro, já que, como veremos, a solução a dar a essa questão tornará inútil a apreciação das demais.

Conforme resulta da matéria de facto provada, a Ré celebrou com C... um contrato de seguro de acidentes pessoais, por via do qual garantiu a cobertura de morte ou invalidez permanente sofridas pela pessoa segura em consequência de acidente emergente de risco profissional ou extra-profissional, incluindo a utilização de meios de transporte regular e prática acidental de desportos amadores, até aos 70 anos de idade.

E o que importa agora saber é se o evento ocorrido – na sequência do qual veio a ocorrer a morte da pessoa segura – pode ou não ser qualificado como “acidente” para os efeitos previstos no aludido contrato de seguro.

De acordo com o estabelecido no contrato, entende-se por acidente o acontecimento provocado por causa súbita, externa e violenta, alheia à vontade da pessoa segura e do beneficiário, que produza lesões corporais, invalidez, temporária ou permanente, ou morte, importando notar que esta noção de acidente coincide, no essencial, com aquela que vulgarmente é utilizada para definir e delimitar, em abstracto, o conceito de acidente. Veja-se, por exemplo, a noção dada por José Vasques[1]: “acontecimento fortuito, súbito e anormal, devido a acção de uma causa exterior e estranha à vontade da pessoa segura e que nesta origine lesões corporais”.

Mas a verdade é que a aplicação prática dessa noção (abstracta) nem sempre é linear e suscita, por vezes, algumas dificuldades, como acontece na situação dos autos.

Vejamos.

Resulta da matéria de facto provada que C... (pessoa segura), no início de uma intervenção cirúrgica a que ia ser submetido, no período de indução anestésica e durante a administração de antibiótico, desenvolveu um quadro de choque anafiláctico severo, na sequência do que foi transferido para a Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital de Santo André, em Leiria, onde veio a sofrer mais um evento de assistolia, acabando por falecer na sequência de enfarte agudo de miocárdio. Considerou-se ainda provado que não era expectável, tando do ponto de vista clínico, como através dos exames efectuados, qualquer alteração patológica que pusesse em causa a realização da intervenção cirúrgica acima referida, nem o surgimento de choque anafiláctico. Mais se considerou provado que o falecido tinha antecedentes pessoais de Diabetes Mellitus tipo II e Hipertensão Arterial e apresentava 100 Kg de peso, considerando-se, no entanto, como não provado que aquele enfarte se tivesse ficado a dever a qualquer circunstância atinente ao organismo do falecido, designadamente aos antecedentes pessoais de Diabetes Mellitus tipo II e Hipertensão Arterial, à obesidade ou à hipertrofia ventricular ou de qualquer modo associado ao outro enfarte agudo do miocárdio recentemente sofrido pela vítima.

A sentença recorrida considerou que o aludido evento deve ser considerado como acidente para os efeitos previstos no contrato de seguro.

A Apelante discorda dessa conclusão, dizendo que o enfarte agudo do miocárdio não se subsume à definição de acidente, por lhe faltar, desde logo, o requisito da exterioridade, já que tal enfarte tem génese interna, na medida em que advém do próprio organismo. Contestando ainda a conclusão da decisão recorrida, segundo a qual o enfarte teria resultado do choque anafiláctico (porque, no seu entender, a prova não permite essa conclusão), sustenta que, ainda que assim fosse, não poderia ter sido desatendida a origem interna da reacção alérgica em causa e que já existia no organismo, sendo certo que a mera administração de antibiótico para indução anestésica, por si só, sem o concurso de uma desconhecida predisposição do organismo (a alergia), não é suficiente para causar esse choque anafiláctico, razão pela qual a morte daí decorrente não teria sido causada por causa exterior.

A caracterização do evento como acidente pressupõe, efectivamente, que o mesmo tenha decorrido de causa externa, excluindo, portanto, os eventos que são originados e desencadeados por factores inerentes ao próprio organismo e sem intervenção de forças que lhe sejam exteriores. Como refere José Vasques[2], “A exterioridade do evento relativamente ao corpo afasta os danos sofridos sem intervenção de forças exteriores (:sirva de exemplo a doença)”.

Temos como certo que a morte encontra sempre a sua causa imediata no corpo humano, na medida em que ela ocorre, necessariamente, por força de uma qualquer alteração aí produzida e, portanto, aquilo que importa – para efeitos de qualificação (ou não) do evento como acidente – é apurar se a concreta alteração produzida no corpo humano que veio a determinar a morte tem origem numa causa interna (situação que se integrará no conceito de doença, ainda que súbita e inesperada) ou se tem origem e foi provocada (ainda que não exclusivamente) por causa externa.

O evento a que importa atender para efeitos de apurar as suas causas e proceder à sua qualificação (como acidente ou não) não será, portanto, o resultado produzido (a morte), mas sim a concreta alteração que se produziu no corpo humano e que veio a determinar aquele resultado.

Assim, nesta perspectiva e com vista a determinar se a situação dos autos pode ou não ser considerada como acidente, o que interessa saber é se o enfarte agudo do miocárdio que determinou a morte da pessoa segura (enfarte que, evidentemente, tem origem interna, pois ocorre dentro do corpo humano) foi ou não provocado por causas externas ao corpo.

Sabemos, perante a matéria de facto provada, que C... sofreu um choque anafiláctico severo, no início de uma intervenção cirúrgica e durante o período de indução anestésica e administração de antibiótico, tendo ocorrido posterior evento de assistolia e sabemos que, após esses eventos, sofreu um enfarte agudo do miocárdio que lhe provocou a morte.

Sustenta a Apelante que, ainda que se aceitasse que o enfarte agudo do miocárdio sofrido por C... resultou desse choque anafiláctico – e, na sua perspectiva, isso não está demonstrado – não poderia ser desatendida a origem interna de uma reacção alérgica como a descrita, que ocorre inegavelmente dentro do próprio corpo e já aí existia ainda que não previamente detectada ou manifestada e, porque a mera administração de antibiótico para indução anestésica, por si só, sem o concurso de uma desconhecida predisposição do organismo da Pessoa Segura (a alergia), não é suficiente para causar esse choque anafiláctico, sempre se deveria concluir que a morte não foi causada por causa exterior.

Admitindo que a indução anestésica foi efectuada de acordo com os procedimentos correctos e admitindo que o antibiótico usado era o adequado e que foi usado nas quantidades adequadas – excluindo, portanto, a ocorrência de qualquer erro médico que não foi alegado e que não está, sequer, indiciado – parece impor-se a conclusão de que esse facto não teria idoneidade para provocar, numa pessoa saudável e sem qualquer predisposição alérgica, qualquer choque anafiláctico. De facto, ao que supomos – e sem pretender entrar na apreciação de matérias que não são do nosso domínio –, o choque anafiláctico pressupõe uma reacção alérgica do organismo ao medicamento/substância que lhe é introduzido e, como tal, o choque ocorre em virtude de um problema pré-existente no corpo/organismo (ainda que esse problema não tivesse sido detectado atempadamente). Daí que a introdução da substância seja, só por si, inidónea para provocar aquele choque; o choque ocorre pela conjugação daquela força exterior com o problema pré-existente no corpo humano, sendo certo que, sem este problema, o choque não teria ocorrido.

É certo, portanto – como diz a Apelante – que o aludido choque não prescinde de um factor interno e inerente ao organismo da pessoa a quem é administrada a substância que provoca aquela reacção.

Mas será isso bastante para concluir que o choque anafiláctico não se deveu a uma causa exterior e que, como tal, não corresponde a um acidente?

Refira-se, desde já, que não nos parece que o conceito de acidente (seja o conceito corrente e vulgar, seja o que foi inserido no contrato) exija que o evento tenha sido provocado exclusivamente por uma causa exterior, bastando, para o efeito, que uma causa exterior tenha contribuído de forma decisiva para a sua verificação ainda que em concurso com outras causas internas e inerentes ao corpo humano. Importa notar que, se é certo que o medicamento, só por si, não provocaria o choque, é igualmente certo que o factor predisponente (alergia) também não o faria; só a intervenção desses dois factores ou causas poderiam determinar a verificação daquele evento.

Pensando em situações similares, parece que um choque anafiláctico provocado por picadas de abelhas que surgiram em dado local, de forma súbita e imprevista, atacando uma pessoa que era alérgica, deveria ser considerado um acidente, ainda que a produção daquele evento não prescindisse de um factor interno ou predisposição do organismo daquela pessoa. E a verdade é que essa situação não será substancialmente diversa daquela que ocorre no caso sub judice, já que, excluindo a existência de erro médico (erro que existiria se os clínicos sabiam daquela alergia ou se podiam e deviam ter efectuados os exames e testes necessários que lhe permitiriam ter esse conhecimento) – erro que, reafirmamos, não foi alegado e não está demonstrado – o choque anafiláctico terá sido um acontecimento súbito, imprevisto, violento, alheio à vontade da pessoa segura e determinado (pelo menos em termos naturalísticos e ainda que não exclusivamente) por causa externa (o medicamento introduzido no organismo).

Mas, ainda que o medicamento em causa tenha actuado como condição do evento, poder-se-á afirmar a existência de causalidade adequada entre essa condição e o evento?

De acordo com a doutrina da causalidade adequada, considera-se que “…o facto que actua como condição só deixará de ser causa do dano desde que se mostre por sua natureza de todo inadequado e o haja produzido apenas em consequência de circunstâncias anómalas ou excepcionais[3] e, portanto, a introdução do medicamento no organismo só deixaria de ser causa adequada do choque anafiláctico que veio a ocorrer se os factores predisponentes da reacção alérgica, existentes no corpo do doente, puderem ser considerados como circunstâncias anómalas e excepcionais. Parece-nos, porém, que assim não deverá ser considerado, já que, ainda que aqueles factores não pudessem ter sido detectados previamente, será sempre de admitir alguma probabilidade (maior ou menor) de um medicamento produzir efeitos ou reacções adversos no organismo e, portanto, não nos parece que se possa afirmar que a introdução de um medicamento no corpo humano seja um acto que, pela sua natureza, se revele, de todo, inadequado a produzir reacções adversas de maior ou menor gravidade e, designadamente, um choque anafiláctico.

Inclinamo-nos, portanto, a considerar que o choque anafiláctico que se verificou poderá ser considerado como acidente, porquanto foi provocado por causa súbita, externa e violenta, alheia à vontade da pessoa segura e do beneficiário.

Mas, tal como referimos supra, não é esse o evento a que importa atender para efeitos de apurar as suas causas e proceder à sua qualificação (como acidente ou não).

O evento a considerar, para esse efeito, é o enfarte agudo do miocárdio, já que foi este o evento que, em termos imediatos, determinou a morte de C... e, porque nenhuma outra causa externa ou exterior foi alegada para a verificação deste evento, o mesmo apenas poderá ser considerado como acidente, caso se possa concluir que ele foi determinado pelo choque anafiláctico (que, como concluímos, foi determinado por causa exterior).

Entende a Apelante que não é possível afirmar que o enfarte tenha resultado do choque anafiláctico, porquanto constando do certificado de óbito que a causa da morte é desconhecida, tal significa que para os médicos não se mostrou evidente que o enfarte tenha resultado daquele choque.

A matéria de facto provada não estabelece, efectivamente, com a necessária precisão, o nexo de causalidade entre o enfarte do miocárdio que vitimou C... e o choque anafiláctico; sabemos apenas que este choque ocorreu pouco tempo antes do enfarte.

E, importa notar, os elementos clínicos juntos aos autos também não estabelecem essa ligação. No certificado de óbito, a propósito da causa da morte (doença, traumatismo ou complicação que levou directamente à morte), apenas se refere “causa desconhecida” e no relatório de patologia forense, efectuado pelo Instituto de Medicina Legal apenas se conclui que a morte foi devida a enfarte agudo miocárdio, sem qualquer alusão ao choque anafiláctico que havia ocorrido.

É certo que o enfarte poderá ter ocorrido por causa do choque anafiláctico, mas a verdade é que não estamos habilitados a fazer essa afirmação. Importa notar que C... tinha diabetes, hipertensão arterial e 100 Kg de peso, resultando ainda dos relatórios juntos aos autos (embora não tenha ficado vertido na matéria de facto provada) que o mesmo apresentava sinais de doença isquémica crónica severa do miocárdio, factores que, por si só, poderiam ter determinado o enfarte independentemente da verificação do aludido choque anafiláctico. E, apesar de não estar provado que o enfarte agudo do miocárdio causador da morte de C... se tenha ficado a dever a qualquer circunstância atinente ao seu organismo – designadamente aos antecedentes pessoais de Diabetes Mellitus tipo II e Hipertensão Arterial, à obesidade ou à hipertrofia ventricular ou de qualquer modo associado ao outro enfarte agudo do miocárdio recentemente sofrido pela vítima – a verdade é que também não se provou o contrário, ou seja, não se provou que o enfarte não tenha sido originado por esses factores.

Diz-se na sentença recorrida, a dado passo, o seguinte: “Embora o acidente pessoal seja externo à vítima e a doença seja um facto que ocorre no interior do seu corpo por factores vários que nem sequer o estado da ciência pode determinar com rigor, certo é que este critério não exclui que determinados factores possam ser incluídos no conceito de acidente pessoal, se pelo seu carácter fortuito, imprevisível e alheio à vontade do segurado causarem danos na sua saúde, como será o caso da existência de enfarte de miocárdio num quadro em que a vítima não apresentava sinais de doença ou factores predisponentes - como é precisamente o caso dos autos…”.

Mas, salvo o devido respeito, não será bem assim.

De facto, a vítima apresentava factores predisponentes para a ocorrência de um enfarte; o falecido C... tinha antecedentes pessoais de Diabetes Mellitus tipo II e Hipertensão Arterial e apresentava 100 Kg de peso e tais circunstâncias não deixarão de corresponder a factores de risco em relação ao resultado que veio a ocorrer e, apesar de não ter ficado provado que tenham sido esses factores a provocar o enfarte, também não se provou o contrário, ou seja, não se provou que esses factores tenham sido alheios à ocorrência do evento que veio a determinar a morte.

Ora, na nossa perspectiva, para que se concluísse que o evento em causa (enfarte) era um acidente não bastava que não se provasse que o mesmo havia sido originado por circunstâncias atinentes ao organismo do falecido; para que se concluísse que estava em causa um acidente seria necessário que se provasse que o mesmo não havia sido provocado por tais circunstâncias.

Diz-se, na matéria de facto provada, que não era expectável, tando do ponto de vista clínico, como através dos exames efectuados, qualquer alteração patológica que pusesse em causa a realização da intervenção cirúrgica acima referida, nem o surgimento de choque anafiláctico e terá sido, essencialmente, com base neste facto (ou conclusão) que a sentença recorrida conclui estarmos perante um evento súbito e determinado por causa exterior ao segurado.

Mas, salvo o devido respeito, não poderemos entender essa afirmação com esse alcance.

Com efeito, a realização de uma intervenção cirúrgica importa sempre algum risco e exige, naturalmente, uma avaliação prévia da condição física do organismo e do maior ou menor risco que eventuais problemas já existentes possam acarretar para a realização da intervenção e em função dos quais os clínicos ponderam se a mesma deve ser realizada, atendendo ao risco (maior ou menor) que ela representa e atendendo, naturalmente, às consequências emergentes da sua não realização. E é neste quadro que entendemos a conclusão supra mencionada; ou seja, os clínicos, tendo em conta os exames que efectuaram (desconhecemos quais) e a avaliação que fizeram, entenderam que a intervenção poderia ser realizada; mas a verdade é que C... apresentava alguns factores de risco, já que, além do peso, tinha diabetes e hipertensão arterial e, portanto, não seria, de todo, imprevisível que esses factores viessem a condicionar o sucesso da intervenção e a provocar alterações que determinassem a morte (ainda que os clínicos entendessem – e não estamos a questionar esse juízo – que, em função dos elementos de que dispunham, não era, apesar de tudo, expectável, que tais problemas viessem a ocorrer).

Parece-nos, portanto, em face do exposto, não ser possível concluir que o evento em causa é um acidente para os efeitos previstos no contrato de seguro, porquanto não está provado que esse evento (o enfarte do miocárdio) tenha sido determinado pela acção de uma causa externa ou exterior.

A única força exterior ao organismo que, de acordo com os factos alegados, poderia ter tido intervenção na produção do evento seria a introdução do medicamento aquando da indução anestésica; todavia, nada nos permite afirmar que esse facto tenha sido causa ou condição do enfarte que veio a ocorrer. Essa força exterior causou, efectivamente, o choque anafiláctico que, por essa razão e como concluímos supra, deve ser considerado um acidente; mas não temos elementos para concluir que a morte tenha sido determinada por esse acidente. A morte ficou a dever-se a um enfarte do miocárdio e, não sendo possível afirmar que este enfarte foi causado pelo choque anafiláctico e não pela condição física de C... e dos vários problemas/doenças de que padecia, não é possível concluir que este enfarte tenha sido determinado por causa exterior e que, como tal, possa ser considerado um acidente para efeitos do contrato de seguro aqui em causa.

Assim sendo, a acção terá que improceder, ficando prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas no recurso.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – Pressupondo o conceito de “acidente” que o evento em causa tenha decorrido de causa externa – excluindo, portanto, os eventos que são originados e desencadeados por factores inerentes ao próprio organismo – não se exige, no entanto, que o evento tenha sido provocado exclusivamente por uma causa exterior, bastando, para o efeito, que uma causa exterior tenha contribuído de forma decisiva, em termos de causalidade adequada, para a sua verificação ainda que em concurso com outras causas internas e inerentes ao corpo humano.

II – Nessa perspectiva e tendo em conta que a introdução de um medicamento no corpo humano não é um acto que, pela sua natureza, se revele, de todo, inadequado a produzir reacções adversas de maior ou menor gravidade e, designadamente, um choque anafiláctico, nada obsta a que se considere como “acidente” o choque anafiláctico que se verificou pela introdução de um medicamento/antibiótico aquando da indução anestésica para efeitos de realização de uma cirurgia, ainda que esse choque não prescinda de um factor interno e inerente ao organismo da pessoa a quem é administrada a substância que provoca aquela reacção.

III – Todavia, resultando provado que a morte ocorreu devido a um enfarte agudo do miocárdio e não estando provado se este enfarte foi determinado pelo choque anafiláctico que se havia produzido algum tempo antes ou se foi provocado por causas internas existentes no organismo – como sejam a obesidade, os diabetes e a hipertensão arterial de que a pessoa padecia – não é possível qualificar esse evento (enfarte do qual resultou a morte) como acidente, para efeitos de um contrato de seguro de acidentes pessoais em que o falecido figura como “pessoa segura”, por não ser possível estabelecer se ele decorreu de causa externa.


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V.
Pelo exposto, concede-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida e absolve-se a Ré do pedido.
Custas a cargo dos Apelados.
Notifique.

Des. Relatora: Maria Catarina Gonçalves

Des. Adjuntos: Nunes Ribeiro

                              Helder Almeida

                    


[1] Contrato de Seguro, 1999, pág. 61.
[2] Ob. cit., pág. 61.
[3] Cfr. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 4ª ed., pág.519.