Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
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| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | RUI MOURA | ||
| Descritores: | TUTELA DA PERSONALIDADE DIREITO AO DESCANSO E TRANQUILIDADE RUÍDO COM ORIGEM EM PRÉDIO VIZINHO | ||
| Data do Acordão: | 09/10/2024 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | JUÍZO LOCAL CÍVEL DE COIMBRA | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Legislação Nacional: | ARTIGO 24.º, DO REGULAMENTO GERAL DO RUÍDO (DL 9/2007, DE 17/1) ARTIGOS 13.º; 18.º; 20.º, 5; 25.º, 1; 64.º, 1; 65.º E 66.º, DA CRP ARTIGOS 878.º A 880.º, DO CPC ARTIGOS 70.º, 2; 335.º; 483.º; 493.º; 829.º-A; 1346.º E 1422.º, DO CÓDIGO CIVIL | ||
| Sumário: | I- O novo art. 878º do CPC não prevê qualquer regra quanto ao que à legitimidade passiva diz respeito, pelo que a redacção deste artigo se aproximou muito mais, sendo mesmo semelhante, da redacção do nº 2 do art. 70º do CC. II- Hoje, é possível requerer o decretamento de providências tuteladoras da personalidade contra qualquer pessoa, desde que tal se mostre adequado a evitar a consumação de qualquer ameaça ou a atenuar, ou fazer cessar, os efeitos da ofensa já cometida. III- Destarte, o único limite hoje existente é o da adequação da providência cautelar requerida à situação concreta. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes na 2ª Secção Judicial do Tribunal da Relação ...: I - RELATÓRIO 1)- ..., ... - ...; na Rua ..., ... – ...; e na rua ..., ... - ..., pedindo: - a) serem os RR. condenados a não emitirem, ou a não permitirem a emissão, a partir do prédio sito na Rua ..., de que são proprietários, de ruídos que perturbem ou afetem significativamente os direitos de personalidade dos AA., como seja o direito ao sono, à tranquilidade e ao descanso, mormente decorrentes de festas e/ou outros eventos ocorridos no período compreendido entre as 22h00 e as 07h00; b) serem os RR. condenados, em conformidade com o previsto no n.º 4, in fine, do art. 879.º do CPC, no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória no valor de 1.500€, sempre que violem a(s) injunção(ões) que venham a ser impostas pela douta Sentença que vier a ser proferida. Para tanto alegam: - Os Autores são, pelo menos desde 2016, legítimos proprietários e possuidores do imóvel sito na Rua ..., ... ..., que é composto por uma habitação unifamiliar, com rés-do-chão, primeiro e segundo andar e logradouro. Nele habitam, quotidianamente, os Autores e os seus dois filhos menores, com idades de 15 e 12 anos. Sucede, todavia, que, desde o momento em que os Autores passaram a habitar o imóvel de que são legítimos proprietários e possuidores (pelo menos há 6 anos), que são vários, sucessivos e reiterados os graves constrangimentos e condicionamentos que sofrem ao uso e fruição do mesmo. Com efeito, afrontosos e problemáticos ruídos e perturbações sonoras são constantemente promanadas do edifício vizinho, sito na Rua ..., que é propriedade dos Réus. Neste edifício vizinho (afastado apenas 5 metros do prédio dos autores), que é constituído por uma casa de habitação com cave, rés-do-chão, primeiro e segundo andar, garagem, pátio e quintal, funciona, ao que tudo indica, uma unidade ilegal de alojamento local (conhecido como A...), que alberga, no mínimo, em cada ano lectivo, 25 estudantes do Programa Erasmus. Em consequência dos diversos distúrbios provocados pelos vários grupos de estudantes que por este prédio vão passando, sobretudo ao nível do ruído com a frequente realização de convívios, festas e outras actividades no exterior e interior da habitação, os Autores já apresentaram diversas denúncias junto da Polícia de Segurança Pública, que frequentemente se vê obrigada a intervir no sentido de pôr termo às actividades exacerbadas e excessivamente ruidosas que são levadas a efeito - um verdadeiro «inferno acústico», com música desconsoladamente alta e pontuado por gritos estridentes, gargalhadas exacerbadas, palavrões generalizados nos mais diversos idiomas, garrafas a partirem-se, motivado que é pelas alegrias decorrentes do consumo sistemático de álcool (como aliás se comprova pelo conteúdo dos contentores de lixo que servem a zona). Todavia, se é certo que, em alguns casos, a actividade ruidosa apenas se volta a verificar passados escassos dias, outros há, até mais frequentemente, em que, imediatamente após as autoridades policiais se ausentarem, há um imediato regresso daquela actividade ruidosa, que se prolonga “noite dentro” e cerceia os autores e os seus filhos menores da mais ínfima esperança de descanso, tranquilidade ou até mesmo de reserva e protecção da intimidade da vida familiar - o que sempre viola o direito de propriedade dos Autores e lhes abre, em consequência, a possibilidade de recorrerem ao direito de oposição consagrado no artº 1346º do CC. Ademais, e uma vez que, de facto e na realidade, se trata de alunos do ensino superior, mais propriamente alunos estrangeiros acolhidos ao abrigo do programa Erasmus, foi dado conhecimento desta situação à Universidade de Coimbra, a qual logrou reportar a situação às entidades competentes na matéria. O tipo de uso que é dado ao dito prédio rompe, com estrondo e de rompante, a calmaria típica desta rua (pelo menos na parte onde se encontra implantado o prédio dos Autores), reservada que é, como se disse, à habitação permanente (e civilizada). Há uma violação ostensiva do Regulamento Geral do Ruído, designadamente quanto ao cumprimento dos valores limites de exposição previstos no seu artº 11º. A vida familiar dos Autores e dos seus filhos menores tem sido séria e veemente afectada, já que se têm visto privados de toda a tranquilidade, serenidade e reserva de intimidade que por tanto lutaram e esperavam alcançar com a aquisição do seu imóvel, que constitui a sua casa de morada de família. Tanto assim é que a Autora, que é médica pediatra, se encontra proibida, desde Julho de 2018, por indicação médica em consequência da apresentação de um quadro clínico de enxaqueca violenta crónica - que, bem se entenda, tudo deve à falta de descanso provocada pelas sobreditas perturbações e, bem assim, ao stress que toda a situação provoca -, de prestar serviço nocturno, o que não só comporta a possibilidade de uma desvalorização profissional, como comporta uma significativa redução dos rendimentos que costumava auferir e que iria continuar a auferir, não fosse dar-se a situação em causa nos autos - cerca de 1000 € mensais. O Autor AA, que é engenheiro civil e que, no âmbito dessa actividade, prepara e leva a efeito revisões projectistas de grandes infraestruturas e onde, naturalmente, um erro poderá ser pago com o preço mais alto: a vida - o estado acentuado de nervosismo em que este Autor se encontra e que é motivado pelo clima de falta de descanso e repouso a que é totalmente alheio, aumenta, de modo exponencial, a possibilidade de erro humano e, por consequência, de catástrofe. Isto, sem esquecer as perturbações causadas aos filhos menores dos Autores, que têm sido também privados de um normal desenvolvimento da personalidade e do seu bem-estar, que não só não conseguem descansar e repousar como padecem de problemas ao nível de concentração, o que os cerceia do normal decurso dos seus planos académicos e que motiva frequentes (e compreensíveis) queixas aos Autores, seus pais. Em consequência de todas estas perturbações, os filhos menores dos Autores não podem convidar amigos a frequentar a sua casa e, muito em particular, a nela pernoitarem, uma vez que o descanso, como já se disse, é materialmente impossível - a música aos “altos berros” e desconsoladamente alta afasta qualquer esperança de sossego e tranquilidade. Como resulta dos autos de participação e demais relatórios, as festas/eventos prolongam-se, pelo menos, até às 2 horas, tendo mesmo uma delas decorrido até às 7 horas. São graves e várias as perpetuações a que têm sido sujeitos os Autores e os seus dois filhos menores e que afrontam, directa e inusitadamente, os seus direitos de personalidade corporizados no direito ao sono, à tranquilidade, ao descanso, à saúde ou, ainda, à habitação, não permitindo a sua vida familiar quotidiana e, muito particularmente, o normal desenvolvimento e aproveitamento da juventude e infância dos filhos dos autores. Requerem os Autores que sejam impostas aos Réus as injunções tidas por pertinentes, tais como a proibição de serem realizadas festas, convívios e outros eventos ruidosos no período nocturno compreendido entre as 22 horas e as 7 horas, de forma a que possam voltar a ter o mínimo de normalidade no seu quotidiano familiar, com o descanso, repouso, sono, tranquilidade e reserva que deve ser garantido a todas as famílias. Juntam procuração e documentos. 2)- 3)- 4)- A - No prédio sito no nº ...5 da Rua ..., na cidade ... e descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...19 da freguesia ... (..., ..., ... e ...) e inscrito na matriz predial urbana sob o nº ...79 da União de Freguesias ... (..., ..., ... e ...) funciona uma unidade ilegal de alojamento local; B - Nem o réu CC nem a referida EE ouvem o barulho acima referido. Proferiu-se decisão de mérito que, a final, julgou procedente a acção e se - Condenou os Requeridos a não emitirem nem permitirem a emissão, a partir do prédio sito na Rua ..., de que são proprietários, de ruídos que perturbem o sono, a tranquilidade e o descanso, designadamente ruídos decorrentes de festas e/ou outros eventos ocorridos no período compreendido entre as 22 horas e as 7 horas; - Condenou os Requeridos, nos termos do nº 4, in fine, do artº 879º do CPC, no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória no valor de 1.500 € (mil e quinhentos euros), por cada dia de infracção ao supra determinado. As custas ficaram pelos Requeridos. 5)- 1) Por sentença final proferida nos presentes autos, o tribunal a quo julgou procedente a presente ação, condenando os requeridos a não emitirem nem permitirem a emissão, a partir do prédio sito na Rua ..., de que são proprietários, de ruídos que perturbem o sono, a tranquilidade e o descanso, designadamente ruídos decorrentes de festas e/ou outros eventos ocorridos no período compreendido entre as 22 horas e as 7 horas, bem como no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória no valor de 1500 €, por cada dia de infração ao determinado. 2) Sucede, porém, que a sentença sub judice é manifestamente nula por omissão de pronúncia, nos termos da alínea d) do n.º 1 do art. 615.º do CPC. Nulidade que expressamente se invoca para todos os devidos e legais efeitos, considerando que não se pronuncia sobre a invocada ilegitimidade substancial decorrente do facto de os Réus não serem reconhecidamente os Autores do ruído, objeto dos autos, mas antes os arrendatários do seu prédio. 3) Ilegitimidade essa invocada em sede de contestação e sobre a qual o tribunal a quo decidiu expressamente, conforme consta da ata de audiência de discussão e julgamento de 09/11/2022 e da gravação da mesma sob o ficheiro n.º "Diligencia_3677-22.2T8CBR_2022-11-09_10-10-21.mp3", entre os minutos 05:05 a 05:11, que se pronunciaria em sede de sentença final. 4) Acresce que padece ainda a sentença sub judice de nulidade por falta de fundamentação, nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 615.º do CPC. Nulidade que expressamente se invoca para todos os devidos e legais efeitos. 5) Porquanto, incumbia ao julgador fundamentar expressamente por que razões foram valorados ou não os depoimentos e os documentos existentes no processo, concretamente quanto aos factos dados como provados e não provados, com vista a poder ser percecionado o raciocínio do julgador o que manifestamente não aconteceu. 6) Sem prejuízo do exposto, a prova impunha decisão diversa, porquanto resultou da matéria dada por provada que: "Pelo menos desde há cerca de seis anos são vários, sucessivos e reiterados os constrangimentos e condicionamentos que sofrem ao uso e fruição do mesmo, nomeadamente como consequência de ruídos e perturbações sonoras que são constantemente promanadas do referido edifício propriedade dos requeridos. Os arrendatários que por este prédio vão passando e amigos ou conhecidos destes, realizam frequentemente - cerca de duas ou três vezes por semana - convívios, festas e outras actividades no exterior e interior do dito prédio. Nesses convívios, que ocorrem em regra pela tarde e noite, põem música excessivamente alta, há gritos e gargalhadas estridentes, palavrões estridentes em diversos idiomas, garrafas a partirem-se - barulhos motivados, além do mais, pelo consumo sistemático de álcool. Tais convívios prolongam-se frequentemente até cerca das 2 horas.", mas os depoimentos testemunhais são manifestamente contraditórios, não coincidindo sequer na frequência dos alegados ruídos. 7) Apesar de o Autor referir que os ruídos ocorrem às terças, quintas e sábados, a Autora refere que "Com o processo em tribunal foi três vezes ", a testemunha II, refere que a mãe queixa-se às vezes, a testemunha JJ refere "uma ou duas vezes por semana", a testemunha KK, residente na mesma rua da testemunha JJ, só viu uma vez, a testemunha LL refere duas a três vezes por mês e o Réu refere uma vez desde a proposição da ação, como se constata dos depoimentos … 8) Acresce que também a prova testemunhal não foi cabal no que concerne ao tipo de ruído, sendo genéricos ao referir que existe agitação, música e "bruado" de pessoas a falarem, conforme depoimento da testemunha JJ, sob a gravação …, da testemunha II, …; 9) E muito menos o foi quanto ao período horário em que as mesmas decorrem, frisando a testemunha JJ, … que costuma ser à tarde e às vezes à noite e a testemunha II, … que desconhece quando acabam. 10) E nem quanto ao início destas inquietações, que na versão apresentada pelo Autor, começaram a ocorrer depois de a testemunha JJ ser sua vizinha, … o que atento o que consta da sentença e das declarações da referida testemunha ocorreu em 2018, depois desta se mudar para a Rua ..., sendo que a testemunha acrescenta que só passados meses é que viu que residiam estudantes na Rua .... 11) Pelo que, não resultando sequer da prova testemunhal, como não resulta da restante prova, que as perturbações se dão duas a três vezes por semana, até às 2h00 da manhã, música excessivamente alta, há gritos e gargalhadas estridentes, palavrões estridentes em diversos idiomas, garrafas a partirem-se, a matéria supra transcrita deverá passar a constar da matéria de facto dada por não provada. 12) Acresce que o tribunal a quo deu ainda por provado que: "Em consequência desses barulhos, a vida familiar dos autores e dos seus filhos tem sido afectada, dado que se têm visto privados de tranquilidade, serenidade e reserva de intimidade que esperavam alcançar com a aquisição do seu imóvel, que constitui a sua casa de morada de família. A autora BB, que é médica pediatra, encontra-se proibida, desde Julho de 2018, por indicação médica em consequência da apresentação de um quadro clínico de enxaqueca violenta crónica - devido à falta de descanso provocada pelas sobreditas perturbações e, bem assim, ao stress que toda a situação provoca -, de prestar serviço noturno. Tal implica a possibilidade de uma desvalorização profissional, bem como uma redução dos rendimentos que costumava auferir e que iria continuar a auferir, não fosse dar-se a referida situação. O autor AA, que é engenheiro civil e que, no âmbito dessa actividade, prepara e leva a efeito revisões projectistas de grandes infraestruturas, também é afectado por tal falta de descanso e repouso, que também motiva um estado acentuado de nervosismo em que se encontra. Os filhos menores dos autores também têm sido privados de descanso e bem-estar, dado que não conseguem dormir normalmente, padecem de problemas ao nível de concentração, o que afecta o seu rendimento escolar. Acresce que os filhos menores dos autores não podem convidar amigos a frequentar a sua casa e, muito em particular, a nela pernoitarem, uma vez que o descanso não é possível com música em “altos berros”. 13) Sucede que a Autora BB, na gravação … não refere que a enxaqueca se deve à falta de descanso, mas apenas que a falta de descanso se agrava com as perturbações do sono, o que é manifestamente contraditório, considerando que as alegadas festas até ocorrem sobretudo no período da tarde, pelo que se desconhece em que medida o descanso desta, e nesta sequência, também do seu marido e dos seus filhos poderá ser afetado. 14) Sobre as consequências provocadas aos filhos, refere na gravação n.º … que o barulho os perturba e desconcentra, salvo melhor opinião, sem qualquer referência ao rendimento escolar, sendo que o marido refere que o filho sofre de défice de atenção - depoimento gravado sob … - o que sempre justificaria a desconcentração. 15) Pelo que, também aquele segmento decisório da matéria de facto, deve passar a constar da matéria dada por não provada. 16) Acresce que a sentença sub judice não analisou criticamente a referida prova testemunhal com os documentos, constantes dos autos, não tendo considerado, nomeadamente os autos de participação emitidos pela PSP, que se cingiram a 6 (seis) participações,- às 19h00, 15h50, 23h40, 00h15, 23h20 e 17) Tais documentos são relevantes, sobretudo considerando que dos mesmos resulta que não existem festas constantes, nem sucessivas, nem frequentes, nem com duração até às 2h da manhã, nem incomodativas da população em geral. 18) Pelo que, atenta a prova testemunhal e documental laborou a sentença em manifesto erro nos pressupostos de facto. IV- mérito do recurso 1ª questão O tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada com base nos documentos juntos aos autos, conjugados com a prova testemunhal ouvida, declarações de parte dos autores e do réu CC. Fez depois uma elencagem exaustiva dos documentos juntos. Já relativamente ao restante do comando do nº 4 do referido artigo, o Senhor Juiz, sobre cada pessoa ouvida na audiência final, elaborou um circunstanciado e sequenciado resumo do que foi por ela dito, tudo em termos rigorosos e respeitadores das gravações da prova efectuada. Assim escreveu: O autor declarou que vive com a família naquela moradia há cerca de cinco anos. Queria ter uma moradia unifamiliar para ter sossego. Pensava que aquela era uma zona sossegada. A casa é antiga. Quando a comprou estava muito degradada. Reabilitaram-na. Quando a sua família foi para lá viver aquilo era calmo - era Verão. Passados meses começaram os problemas. Há festas no pátio do prédio vizinho, ruídos, “asneiredo”, fumam charros… No prédio ao lado - prédio dos réus - há uma cave onde vivem dois irmãos. No 1º e no 2º pisos há duas fracções (direito e esquerdo) e no 3º piso vivem os proprietários. As fachadas dos dois prédios (dos autores e dos réus) distam 4 metros. Há lá (no prédio do lado) entre 20 e 25 estudantes, nas ditas quatro fracções. Fazem festas no logradouro do prédio - chegou a haver 150 pessoas numa festa no logradouro. Às terçasfeiras, quintas-feiras e sábados há sempre festas. Os estudantes “picam-no” - dizem, por exemplo “tens uma mulher muito boa”… Uma vez queriam bater-lhe… Fazem e tomam refeições no exterior. Quando há festas põem o som muito alto. Ele, autor, para minimizar o problema do barulho ergueu uma barreira acústica e de incêndio, mas não resulta. O barulho incomoda-o a à sua família. Uma vez “mediu” o ruído e “acusou” 75 decibéis, que é o barulho que existe numa fábrica. A mulher é pediatra, fazia noites e deixou de fazer. O filho mais velho anda a ser medicado para défice de atenção. No que lhe diz respeito, com o tipo de obras (e volume) que tem, precisa de ter a cabeça limpa, precisa de dormir 8 horas. Ora, tem perturbações do sono. Deitava-se às 10 (22) horas, mas agora deita-se à meia noite e acorda às 5 da manhã. Anda a dormir 5 horas por noite. No prédio ao lado há festas todas as terças feiras, quintas feiras e sábados. Estão sempre em Queima das Fitas - porque depois vêm pessoas de fora. Na internet até está “fazer festas até vir a Polícia”. Já tiveram reuniões com o Comandante da Polícia e o Vice-Reitor da Universidade, mas estes dizem que nada podem fazer… Mais declarou que na mesma rua há outras casas com estudantes, mas estes comportam-se de outra forma, não fazem festas várias vezes por semana. A Rua ... é muito movimentada de dia, até lá existe um Conservatório e uma creche, mas não os incomodam. A autora BB declarou que é médica pediatra. Ela sempre morou naquela zona e tem consultório na ..., no Edifício .... A Rua ... era uma zona calma, segura. Durante o dia há alguma agitação, mas à noite não havia… O marido queria uma casa unifamiliar. Escolheram a casa onde moram há anos. O facto de a casa ter logradouro teve importância. Mas presentemente não usam o logradouro por causa do ruído. Quando mudaram para aquela casa o “A...” não tinha grande actividade. Mas depois passou a ter “uma Queima das Fitas permanente”. Fazem lá festas frequentemente, sobretudo às quintas feiras e fins de semana. Há lá consumo de substâncias ilícitas, pessoas alcoolizadas, com atitudes provocatórias, que até já ameaçaram o marido. Fazem muito barulho. Há períodos em que a música está muito alta, dizem palavrões, falam muito alto. Há cerca de um mês até tinham uma coluna (de som) com rodinhas. Atiram com garrafas para o chão. Ela dorme pouco e está sempre a acordar, anda stressada, tem enxaquecas - que agravam com a privação do sono -, toma medicação. Os filhos têm falta de concentração. O réu CC declarou reside no “A...”, no 2º esquerdo. No prédio residem ele e a esposa HH, bem como a ré EE. No rés do chão vivem arrendatários. Estes têm contratos de arrendamento. Nenhum deles tem menos de 18 anos. Os arrendatários fazem festas esporadicamente - menos de uma vez por semana. Ele e a esposa são enfermeiros, fazem turnos e não têm dificuldade em dormir. A rua onde moram nem sempre é sossegada. Passam muitas pessoas na rua, mesmo à noite. Ao lado há uma escola de música e uma creche. Noutras casas também há estudantes que também fazem barulho. Desde que surgiu esta acção teve de pedir aos arrendatários que fizessem menos barulho. Um dia, cerca das 21 horas, deram conta de que o barulho era excessivo e disseram-lhes que desligassem a música e falassem baixo - o que eles acataram. Os arrendatários são na sua maioria estrangeiros (cerca de 70%), mas não são todos estudantes de Erasmus. Até já tiveram arrendatários que eram professores a fazer doutoramentos. No logradouro do prédio havia um “local de convívio”, mas depois ele “mudou-o” para um local mais longínquo do prédio vizinho - pôs um relvado… O autor persegue-o, ameaça-o e ofende-o. Chamou-lhe cabrão e filho da puta e deu-lhe quatro joelhadas. Tem receio dele. Até teve de instalar um sistema de videovigilância. Já lá foram várias vezes várias polícias. Mais declarou que ouve música com auscultadores, mesmo dentro de casa. A testemunha II declarou que residiu na Rua ... e a sua mãe ainda lá vive. Ele vai a casa da mãe todos os dias. Faz lá grande parte das refeições. Durante o dia “é complicado”, nomeadamente para estacionar. Há casas de habitação, uma creche, já houve uma escola de música. Mas à noite a rua era sossegada. Mas agora a mãe queixa-se de barulho à noite. Conhece o A.... O barulho de que a mãe se queixa vem do A.... Há uma casa de permeio. O quarto da mãe dele é virado para as traseiras. No A... fazem barulho. Há festas - por regra às terças e quintas feiras -, música, vozes, risos… Já assistiu a confusão, viu vomitado ao pé da porta, copos no chão, garrafas nos muros. Pensa que as pessoas estão alcoolizadas. Ele assiste ao início das festas - por volta das 22 horas - mas não assiste ao final das festas. Também há estudantes a residir na Rua .... A testemunha JJ declarou que reside na Rua ... em 2018. Passados meses viu que havia estudantes na casa vermelha (A...). Começou a ver, com alguma frequência, as festas. Até teve de mudar de quarto por causa dos barulhos das festas da casa vermelha. Conheceu o autor por causa desta situação. Vê bem o logradouro e as varandas da casa vermelha - até consegue ver as caras das pessoas. O barulho depende da quantidade de pessoas que estão no logradouro. Já lá viu mais de 100 pessoas. O barulho incomoda-a - daí ter mudado de quarto. Mas ainda assim ouve barulho. Às vezes vê o réu CC, no último andar, na varanda, com fones. Até pensava “coitado” e tinha pena… Soube mais tarde que ele era proprietário do prédio. Durante a pandemia estava tudo mais calmo, mas depois ressurgiu o problema. Há festas pelo menos duas vezes por semana, à tarde e à noite. Ouve falar espanhol, italiano… O logradouro da casa vermelha tem um desnível. Ultimamente o convívio é feito mais do lado da casa dela e mais afastado da casa do autor. Durante os meses de férias é mais calmo. Nos convívios nunca viu o réu CC. No prédio onde ela habita também há estudantes, mas usufruem dos apartamentos de forma normal, não fazem festas. A testemunha KK declarou que vive na Rua ... e conhece a casa (A...). Passeia o cão quase todos os dias e passa ao pé da casa. Um dia, à tarde, passou lá e ouviu barulho que parecia de uma festa. O engº AA estava em sua casa e foi “mostrar-lhe” a festa. Há um logradouro nas traseiras. Estariam lá cerca de 20/30 pessoas. Um homem tirou as calças e mostrou o rabo, numa atitude provocatória. Havia música excessivamente alta, altos berros, vozes a conversar muito alto… O autor chamou a polícia. O autor queixa-se de que não dorme… Mais declarou que há uma residência de estudantes na rua onde ele, testemunha, reside, próximo da casa dele e não fazem barulho… A testemunha LL declarou que conhece o réu CC e a esposa e que viveu desde Agosto de 2019 a Outubro de 2022 na casa (A...), onde o réu CC e a esposa vivem. Trabalha desde Abril de 2021. É farmacêutico. Muito pontualmente - talvez duas ou três vezes por mês, até à 1 hora da manhã - sentia-se incomodado com o ruído. Ele por vezes também participava nas festas. Habitam lá estudantes - pensa que menos de 20. Tinha dificuldade em adormecer. Mas como o barulho acabava à 1 hora, não afectava o trabalho. Nunca viu necessidade de chamar a polícia. Nunca viu os réus nas festas. Na vizinhança, por exemplo na rua paralela, também há residências com estudantes. Ouviu dizer que o autor tinha uma atitude provocatória, que abordava os estudantes. Acabou por admitir que algumas festas iam para além da 1 hora da manhã. Por vezes havia pessoas alcoolizadas, bem como música alta demais e conversas altas demais. Uma vez viu lá a Polícia. O dever de fundamentação da decisão de facto exige actualmente a indicação do processo lógico-racional que conduziu à formação da convicção do julgador e, relativamente aos factos que considera provados ou não provados. Mas a violação deste dever de fundamentação não se confunde com a nulidade prevista no artigo 615º, 1, b) do CPC. A deficiente fundamentação apenas poderá afectar o valor doutrinal da sentença e acarretar a menor robustez da decisão, aumentando o risco de vir a ser revogada. Cfr- Ac. TRL de 22-2-2018, p. 332/15/3T8MTJ.L1-8, acessível no site da dgsi.net. Improcede, face a estes considerandos, a arguição da nulidade. * Os Apelante apodam padecer a sentença recorrida da nulidade de omissão de pronúncia prevista no artigo 615º, 1, d), 1ªparte, do CPC. Este vício acontece quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar. Ora, os Réus invocaram expressamente na contestação a excepção de ilegitimidade passiva, fundada no facto de lhes não ser imputável a emissão de qualquer ruído ou barulho, dado que os Autores sustentam que o tal alegado ruído e ou barulho que os incomoda é emitido por pessoas não concretamente identificadas, a quem os Autores se referem como "estudantes de Erasmus", arrendatários do imóvel, propriedade dos Réus, e, portanto, maiores, a quem os Réus, em face do contratualizado cedem o gozo do imóvel. Alegam os Apelantes ser a sentença totalmente omissa no que concerne à ilegitimidade substantiva, que provém da inexistência de qualquer facto imputado aos Réus - mas quando muito apenas e tão só aos seus arrendatários - como aliás, resulta da matéria dada por provada. Já vimos que foi julgada improcedente a excepção da ilegitimidade processual passiva, que levaria à absolvição dos réus da instância e à não apreciação do mérito da causa. A ilegitimidade substantiva foi relegada para a sentença a proferir. Postos eles elementos, vejamos. É sabido: I - Ao apuramento da legitimidade processual - pressuposto processual que se reporta à relação de interesse das partes com o objeto da ação e que, a verificar-se, conduz à absolvição da instância - releva, apenas, a consideração do concreto pedido e da respetiva causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram a última e do mérito da causa. A legitimidade processual afere-se pela titularidade da relação material controvertida tal como é configurada pelo Autor, na petição inicial, e é nestes termos que tem de ser apreciada. II - A legitimidade substancial ou substantiva respeita à efetividade da relação material. Prende-se com o concreto pedido e a causa de pedir que o fundamenta e, por isso, com o mérito da causa, sendo requisito da procedência do pedido. A verificação da ilegitimidade substantiva leva à absolvição do pedido. Cfr. Ac. TRP de 4-10-2021 prolatado no p. nº 1910/20.4T8PNF.P1 (Eugénia Cunha), acessível no site já aludido. Os Réus vêm demandados, ao abrigo do definido no n.º 2 do art. 70.º do CC, e, bem assim, do art. 878.º do CPC, na presente acção especial para tutela da personalidade. Olhemos a lição de Alexandra Filipa da Silva Duarte, in O Processo Especial de Tutela da Personalidade, Algumas questões Pertinentes, FDUC, 2014, p. 9 e ss, acessível na net, para perceber que nele tem legitimidade passiva. O processo especial de tutela da personalidade revela-se o meio idóneo para requerer as providências adequadas a evitar a consumação de ameaça ou atenuar os efeitos de ofensa já cometida aos direitos de personalidade. No que diz respeito à legitimidade processual passiva comecemos por olhar esta questão tal como se encontrava prevista no CPC revogado. Ora, … o processo especial em análise encontrava-se consagrado no CPC revogado como processo especial de tutela da personalidade, do nome e da correspondência confidencial. Por assim ser, o art. 1474º do CPC revogado previa em cada um dos seus números uma regra relativa à legitimidade processual passiva. De acordo com Pedro Pais de Vasconcelos seria uma regra geral e duas (cfr- PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Direito de Personalidade op. cit. p. 132.) especiais: a regra geral prevista no nº 1 estabelecia que o pedido deveria ser formulado contra o autor da ameaça ou da ofensa (e estaria em causa a tutela da personalidade de uma maneira geral); a regra especial consagrada no nº 2, prevista para aquelas situações em que se pretendia evitar o uso prejudicial de nome idêntico ao do requerente, estabelecia que o pedido deveria ser dirigido contra quem usou ou pretendesse usar o nome; já a regra especial do nº 3 estabelecia, para os casos em que se pretendia a restituição ou destruição de carta missiva confidencial cujo destinatário tivesse falecido, que o pedido deveria ser dirigido contra o detentor da carta. Eram estas as regras no que à legitimidade passiva diz respeito durante a vigência do CPC revogado. Isto levantava um problema. É que sendo aquelas as regras sobre legitimidade passiva, o regime plasmado no CPC revogado era mais restrito que o regime previsto no nº 2 do art. 70º do CC que não estabelece qualquer tipo de limite. O nº 2 do art. 70º apenas refere que a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, não estabelecendo qualquer tipo de limitação quanto a contra quem se podem requerer tais providências. Nestes moldes, o CPC revogado impedia o decretamento de providências de tutela da personalidade que tivessem de ser decretadas contra quem não fosse o autor da ameaça ou ofensa, não tivesse ou pretendesse usar o nome ou não fosse detentor da carta. Estas regras previstas no CPC revogado poderiam vir a deixar de fora situações igualmente merecedoras de tutela pelo processo especial. Pedro Pais de Vasconcelos avança com alguns exemplos dos quais aqui daremos conta de apenas um para ilustrar a situação mencionada: «Imaginemos o caso em que alguém, de identidade desconhecida, procede à pintura na parede exterior de um edifício murado, a vários metros de altura, de uma inscrição muito visível cujo conteúdo é gravemente ofensivo da honra de certa pessoa» (cfr- PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Direito de Personalidade op. cit. p. 133.). Apenas com recurso à regra (mais ampla) prevista no nº 2 do art. 70º do CC seria possível contornar esta situação, uma vez que o único limite que estabelece é o da adequação às circunstâncias do caso, pelo que seria possível requerer o decretamento de uma providência contra o proprietário do edifício (…), uma vez que este seria o único capaz de efectivar uma eventual providência que viesse a ser decretada. A verdade é que, já durante a vigência do CPC revogado, Pedro Pais de Vasconcelos defendia que a redacção do art. 1474º do CPC revogado não impedia que fossem requeridas providências contra um terceiro que não fosse qualquer dos sujeitos mencionados no referido artigo. De acordo com a sua opinião «C...] o nº 1 do art. 1474º do Código de Processo Civil, confrontado com o nº 2 do art. 70º do Código Civil, não impede o requerimento e o decretamento de providências de tutela da personalidade contra terceiro inocente, sempre que tal seja necessário para assegurar a adequação e eficiência da providência». Cremos que só uma interpretação no sentido acabado de referir permitiria uma cabal aplicação do processo especial de tutela da personalidade, caso contrário situações igualmente merecedoras de tutela por parte deste processo ficariam desprotegidas, pois sempre se poderia invocar a ilegitimidade processual passiva. Parece, contudo, que o NCPC, com a redacção dada ao art. 878º, veio resolver esta questão. O art. 878º prevê que pode ser requerido o decretamento das providências concretamente adequadas a evitar a consumação de qualquer ameaça ilícita e directa à personalidade fisica ou moral de ser humano ou a atenuar, ou a fazer cessar, os efeitos da ofensa já cometida. Deste modo, o novo art. 878º não prevê qualquer regra quanto ao que à legitimidade passiva diz respeito, pelo que a redacção deste artigo se aproximou muito mais, sendo mesmo semelhante, da redacção do nº 2 do art. 70º do CC. Nestes termos, a interpretação anteriormente já defendida por Pedro Pais de Vasconcelos parece ter agora consagração legal. Assim, hoje, é possível requerer o decretamento de providências tuteladoras da personalidade contra qualquer pessoa, desde que tal se mostre adequado a evitar a consumação de qualquer ameaça ou a atenuar, ou fazer cessar, os efeitos da ofensa já cometida. Destarte, o único limite hoje existente é o da adequação da providência cautelar requerida à situação concreta. Esteve bem o legislador ao pôr termo a esta controvérsia que afectava o processo especial de tutela da personalidade. Cremos também que a forma pela qual pôs termo à questão foi também a mais adequada, sendo que agora, sem quaisquer margens para dúvidas, se alargou o âmbito de aplicação do processo especial de tutela da personalidade. Por outro, a decretação das medidas peticionadas, no dispositivo final da decisão proferida, só demonstra que a questão da eventual ilegitimidade passiva substantiva foi implicitamente decidida improcedente. Daí improceder a arguição dos Apelantes. 2ª questão O edifício dos Réus não está no regime de propriedade horizontal. Tem vários andares e vários fogos. Na cave vivem lá dois irmãos. No 1º e 2º pisos há dois fogos por piso e no 3º piso vivem os Réus pessoas singulares. Com a cedência dos 1º e 2º pisos do edifício dos Réus, por estes, a estudantes, surgiram os barulhos. O Depoente edificou uma barreira acústica e de corta-fogo entre o seu prédio e o dos Réus, mas não se consegue evitar o ruído. O Depoente elenca várias diligências que fez junto dos Réus no sentido de evitar a emissão do barulho, mas estes não se mostraram compreensivos nem sensibilizados para intervir. Descreve os barulhos, a intensidade dos mesmos, a frequência dos mesmos. Descreve os comportamentos dos utentes dos dois referidos pisos do edifício dos Réus, para além das festas contínuas, do “asneiredo”, de palavrões, de comportamentos desviantes … Fala da última festa (há 4 dias atrás): começou às 3 da tarde. Um filho tinha exame na segunda-feira teve de ir estudar para outro lado. O outro filho teve de ir estudar para o consultório da esposa. A festa prolongou-se pela noite. O Depoente e uma vizinha chamaram a polícia. Anteriormente ( a esta última festa) o padrão de comportamentos é o mesmo. No logradouro da habitação dos Réus há um espaço para estar, conviver. Já depois de intentada a acção houve ali uma festa com pelo menos 150 pessoas. Já entrou no edifício dos Réus, o mesmo não tem requisitos de habitação para convivência. O Depoente tem os comportamentos gravosos dos utentes do prédio dos Réus, gravados em vídeos. Tais utentes tomam as refeições no tal logradouro. O edifício dos Autores e dos Réus dista entre si 4 metros. O edifício dos Réus está sobrelotado. Tem falta de casas de banho. Tem as janelas abertas. Os utentes estão convencidos de que estão numa “residência de estudantes”. Os comportamentos e posturas no interior são descontraídos, indiferentes aos vizinhos. O som da música está alto, atiram pedras para o logradouro do prédio dos Autores; a polícia diz não poder fazer nada; já chamou a polícia mais de 30 vezes; as festas chegam a acontecer até às 3 da manhã. Já fez medições ao ruído que deram de resultado o equivalente ao ruído de uma fábrica. Sobre as consequências… fala. A mulher (médica) deixou de fazer noites, anda com crises. O filho mais velho está a ser medicado. Tem obras muito importantes, com projectos muito exigentes a nível de concentração e “cabeça limpa”. Estas ofensas/confusões estão a “degradar-lhe a vida”. Está sempre preocupado com a mulher, com os filhos, com a saúde, segurança e tranquilidade da família. Não quer desgraçar a vida. Apenas quer que se faça justiça. Vive inseguro, desassossegado. Vive com stress. A frequência das altercações e festas no edifício dos Réus, que ocorre nos quartos e no logradouro:– às 3ª, 5ª e sábados. Na net pode ler-se os comentários dos utentes do edifício dos Réus: “festas até vir a polícia”. A Rua tem um Conservatório .... O barulho deste não chega à sua casa. Há uma creche. Mas o barulho desta não o incomoda. O barulho dos outros estudantes universitários, quer na rua, quer de outros locais onde estão alojados nas redondezas, mesmo quando há festas de “Queima das Fitas”, não o incomoda, porque cessa às horas de dormir. O barulho do prédio dos Réus é incomodativo. Está a falar de 22 horas até às uma ou duas horas da manhã. - Trata-se de um depoimento - de livre apreciação – artigo 466º, 3 do CPC – muito circunstanciado, algo que evidencia alguma descompressão de momento, mas emocionado e rigoroso. A defesa procura, descontextualizadamente, ver nestas declarações a diabolização “dos estudantes do ERASMUS”, hipersensibilidade do utente urbano face ao utente estudante ao abrigo de planos que visam o intercâmbio entre nacionalidades. As declarações são a ter em conta. * A Autora BB presta igualmente o seu depoimento. O depoimento segue na mesma senda do produzido antes. Fala de comportamentos inadequados dos utentes dos 1º e 2º pisos do prédio dos Réus para quem pretende viver numa comunidade urbana; de horários desadequados; de pessoas alcoolizadas às 8 da manhã a tocar à campainha; de barulhos, música e convívios; insegurança quer à frente da sua porta, quer na confrontação dos dois prédios. O barulho ocorre a várias horas. Pode ocorrer ao fim-de-semana. Dá um exemplo do barulho: 20 ou 30 pessoas a falar espanhol, em grupo. Há música, com frequência alta. Ouve-se mesmo com as janelas da sua casa fechadas. A Depoente tem filhos menores. Mas tem de pedir à empregada que feche as janelas que dão para o prédio vizinho, pois ali podem ver-se facilmente raparigas a arranjarem-se, etc. Chega a haver grupos de 100 pessoas com comportamentos provocatórios, trazendo para a rua uma aparelhagem musical/altifalante com rodinhas. Chegam a urinar numa garrafa à frente da porta da casa da Depoente. Admite que podem ser pessoas que os utentes do edifício vizinho levam para lá. Há residências de estudantes ali perto, onde há regras. Onde até há piscinas, mas com porteiro, etc.. Mas a UC não tem jurisdição sobre estes alunos externos à Universidade. Todos os anos, em Setembro, recomeçamos um processo novo, com provocações e ofensas novas, com novos protagonistas. Fala da frequência das “festas” – festas grandes são às 5ª, 6ª e sábado. Depois há outras. É variável. Durante o dia são poucos, mas à noite dá para perceber que há muito mais gente. São amigos. Não os conhece. Fala das consequências das “festas” dos “vizinhos” – provocam stress na Declarante; o marido tem sido provocado; os utentes não chamam nomes à Depoente, mas exprimem-se como um boçal provocador de rua. A Declarante verbaliza grande dificuldade em dormir, de ter necessidade de se medicar, de gerir emocionalmente a situação com o marido e filhos, o que lhe provoca desequilíbrios familiares. O filho mais velho está no 12º ano. Tem de se esforçar com os estudos. O outro igualmente. Os filhos têm de ir estudar para os lugares de trabalho dos pais. Por causa do barulho insuportável e irritante dos vizinhos, a Depoente não utiliza o logradouro do seu prédio – uma moradia. A Defesa limita-se a querer saber a que horas a Depoente chegou a casa no último sábado. - Declarações muito seguras, na mesma senda das proferidas pelo seu marido. Revelam sensibilidade, equilíbrio e razoabilidade. A ter em conta. Foi ouvido o Requerido CC. Evidencia dificuldade auditiva. No prédio dos Réus moram o depoente e a esposa HH – no 2º esq. -, uma senhora e os netos, no 2º direito. No restante são arrendatários. Todos são maiores. Todos têm contrato de arrendamento. Vive bem na sua habitação. Os arrendatários fazem esporadicamente festas. Podem ser almoços. O Depoente e esposa são enfermeiros. Trabalham por turnos. Não têm dificuldades em dormir. É um barulho normal de um prédio. Dorme bem, dorme várias horas. Dorme quando tem de dormir. Barulho produzido pelos seus arrendatários - já chegou a pedir aos arrendatários que não fizessem barulho. Desde que a acção foi intentada, isto já aconteceu uma vez. Acataram. Dessa vez pediu para desligarem a música e para se calarem. Estava “um barulho excessivo” no logradouro- reconhece. Reconhece que o Autor o abordou sobre o assunto. É raro o Depoente intervir junto dos arrendatários. Nem todos os arrendatários são alunos do ERASMUS. ... o presente processo ao ruído excessivo de que os Autores se queixam. Colocou um relvado no logradouro e a zona dos convívios ficou localizada mais ao fundo. O vizinho colocou entre os prédios uma barreira acústica. Sente-se intimidado pelo Autor. O Declarante ouve música com auscultadores, mesmo dentro de casa. É comum andar de auscultadores mesmo na rua. Ainda é em FM. Pede para falar mais alto... (dificuldades auditivas) A instâncias, o depoimento mostra-se menos consistente. Por exemplo- diz que teve arrendatários a fazer doutoramento (pessoas que previsivelmente precisam de estudar e não pactuam com estas “festas”), mas depois esclarece que isso foi há 3-4 anos. Diz que chega a estar 14 horas fora de casa. Faz turnos. A maior parte das vezes os arrendatários estão a conversar normalmente. - O Declarante que é demandado não se pronuncia sobre os protestos e queixas dos Autores, seus vizinhos, relativamente ao ruído de “festas” e convívios, ajuntamentos e circulação de arrendatários e amigos, quer no logradouro e no interior do seu prédio, quer na rua frente ao mesmo. Não os nega. O que diz é: admite esses ruídos, mas a frequência e a intensidade dos mesmos não o incomodam nem afectam no dia-a-dia. Reconhece que às vezes são excessivos. Não está sensibilizado para a possibilidade de estar a prejudicar terceiros, Autores e outros. Mas não explica porque afastou o espaço de convívios ( mesas e cadeiras ) mais para o fundo do logradouro. O som fica confinado no espaço dos quintais… Pessoaliza o litígio na pessoa do Autor. Trata-se de pessoa que é visto por vezes à varanda do piso onde habita, de auscultadores nos ouvidos. Pragmático, conveniente. Depoimento parcial que não colhe convencimento. II, testemunha. Descreve a realidade da Rua .... Vive ali há 17 anos. O “A...” é uma casa de cor bordeau duas ou três casas acima da da testemunha. Refere que a mãe se queixa do barulho dos convívios com origem no prédio e logradouro dos Réus. A mãe vive perto (uma casa de permeio). Houve-se música e agitação. Festejos. À 5ª e à 6ª feira os estudantes da cidade fazem festas com os do Erasmus. Já chegou a ver vomitado à porta da sua casa. Pessoas que sóbrias não estão de certeza. Explica como a mãe da testemunha identifica os ruídos que ouve como partindo do prédio dos Réus. A Defesa insiste para a testemunha identificar a pessoa que vê alcoolizada, que deixa a garrafa à porta dos Autores … - Mas o depoimento resulta descontraído, muito fundamentado, seguro e convincente. Depoimento que credibiliza a versão dos Autores. JJ, testemunha. É antropóloga. É vizinha das partes. Vive na Rua ..., desde 2018, num “andar”. Em “frente” à sua habitação situa-se o prédio dos Réus. Diz que o Autor está mais “exposto” ao ruído e às altercações provocadas pelos arrendatários do prédio dos Réus do que a testemunha. Concretiza os “barulhos” – um bruado de multidão, depende da quantidade de pessoas no logradouro. Já aconteceu olhar e ver mais de 100 pessoas na festa, ouvem música, falma, bebem. Os logradouros estão ladeados de prédios. O som fecha. O som incomoda. A testemunha tem de fechar as janelas, muda de quarto. Mas ouve-se sempre, uma festa, uma discoteca. Mas ali é um espaço habitacional. As pessoas têm família, têm de dormir. Têm de descansar para ir trabalhar no dia seguinte. Conhece o Réu CC, localiza-o no prédio mas mais longe do local dos barulhos. Vê o senhor a fumar e de fones na varanda. “Até tinha pena dele”, pensava que o aparelho servia para anular o incómodo do ruído dos utentes do prédio... Afinal é o senhorio, responsável pelos arrendamentos no local... diz. Pelo menos há festa uma, duas vezes por semana. Costuma ser à tarde, à noite, … vê um “churrasco”, uma “festa”. Conhece a tipologia do edifício dos Réus. Reconhece que há outras ocupações mais familiares no edifício dos Réus. Sabe dos “estudantes” por os ouvir falar em várias línguas. Descreve o logradouro do prédio dos Réus. Identifica os barulhos que ouve como provindos do logradouro dos Réus. Fundamenta. Fala de uma árvore, uma zona relvada recente. Descreve o logradouro. Fornece elementos para localizar no espaço físico outros depoimentos, de forma a que a Senhora Juiz que preside aos trabalhos possa aferir a respectiva razão de ciência. Refere que durante os meses de férias a situação é mais calma, durante a pandemia foi uma fase mais serena. Recentemente são convívios, festa, lanche. Não identifica ali outras festas que não sejam as com origem no logradouro e prédio dos Réus. - Depoimento calmo, seguro, pausado. Muito meticuloso e fundamentado. Muito convincente e fiável KK, testemunha Conhece os Autores. É arquitecto. Vive na Rua ..., em frente à Igreja .... Passeia o cão. Uma vez passou pela rua onde ficam a casa dos Autores e dos Réus. Viu a “festa”. Foi estudante na Inglaterra. Longe de pensar em fazer naquele País uma coisa daquelas, expulsavam-no. Aqui (Portugal) não. Aconteceu que a testemunha estava ali a perceber o que acontecia e apareceu um morador da casa que lhe “mostrou o rabo de forma provocatória para criar -na pessoa da testemunha- algum sentimento de raiva”. A testemunha saiu dali… Explica assim. Compreende e lamenta a sorte do Autor que tem de vir para Tribunal com “uma coisa destas”. Os Autores andam nervosos, dormem mal. Eles e os filhos. Frequência das “festas” - duas ou três vezes por semana. São coisas que vão para lá do normal. O que viu envolvia vinte pessoas. Fazem um forrobodó intenso e constante. Diz expressamente. A maior parte destas pessoas não são nacionais. Da vez em que assistiu ao barulho: música alta. Do outro lado da Rua (em frente à maternidade Dr. Bissaya Barreto) já se percebia a festa. Altos berros. Era final da tarde. Uma série de pessoas que iam a passar, viram, presenciaram e ficaram a ver. Foi chamada a polícia. Refere que o Autor se queixa de “festas” pela noite fora, mas a essas horas a testemunha não passeia o cão, e não vê. O que viu foi, na rua dos prédios dos Autores e dos Réus, uma “festa” ao fim da tarde. O edifício dos Réus está pintado com cor vermelha, vê-se sair de lá muitos estudantes, tem ligação a estudantes. - Depoimento que credibiliza a versão dos Autores. Apreciação cuidada dos factos, mas não condescendente. A ter em conta. MM, testemunha É farmacêutico. Barulho na parte exterior da casa sita na Rua .... Habitou lá cerca de 3 anos, desde Agosto de 2019 a final de Outubro do presente ano – 2022. Trabalha por turnos. Muito pontualmente sentiu-se incomodado pelo barulho. Esporadicamente, uma, duas três vezes por mês. Até à uma da manhã. Era pontual e limitado. Viviam lá várias pessoas. Quando estas coisas aconteciam tinha dificuldade em adormecer. Não vivia num “inferno acústico”. Conseguia trabalhar e estudar. Viviam lá o Sr. CC e a esposa. Nunca teve a necessidade de chamar a polícia. Eram coisas que se podiam resolver internamente, dentro da casa. O Sr. CC e a esposa não participavam nessas “festas”. Nas imediações há outras casas de estudantes, e ouve-se festas, barulho. Por exemplo, na rua paralela. Uma rua que vem do ... à .... Número de pessoas a viver no prédio – 20. Não conhece o Autor. Contacto, só de vista. Os estudantes comentavam que o Autor tinha uma posição provocatória, incitava à confusão. Os estudantes diziam que, sem provocação por parte deles, eram abordados na rua pelo ora Autor, AA. Os estudantes que habitam hoje, não são os daquele tempo. Por vezes participava nas festas – uma vez por mês, até à uma da manhã. A testemunha vem para casa às vezes tarde, e verifica que há grupos a circular naquela rua (meia-noite /uma da manhã). Há, no prédio dos Réus, estudantes, é variável. Há pessoas de 19 a 26 anos. Admite que algumas vezes as “festas” se prolongavam para lá da uma da manhã. Admite que haveria consumo de álcool, música alta de mais, agitação, o normal dentro de uma festa. As “festas” eram algumas lá fora, mas outras dentro do prédio, no Inverno. - Depoimento mais condescendente com o ruído provocado dentro e fora do prédio dos Réus, mas que não coloca em causa o fundamento das queixas dos Autores – as ofensas ao seu sossego, à tranquilidade da sua habitação e dos seus filhos. * ** * Dos autos constam outros elementos de prova. Designadamente: Dos autos constam documentos de conteúdos retirados da net relativamente ao “A...” instalado pelos Réus no prédio em apreço, que é dos Réus. Cfr- fls. 17 a 24. Neles podemos ver a oferta dos Réus para este tipo de arrendamento. Os preços. Há notícia de “casa de banho partilhada”, de “varanda grande” e de “pátio exterior”, tudo funcionalidades referidas na prova oral produzida. A fls. 24 verso está cópia de apelo de intervenção datado de 6 de Maio de 2022 dirigido pela Autora ao Senhor Vice-Reitor da UC. Este documento corrobora as declarações dos Autores produzidas em audiência de discussão e julgamento. De fls. 25 a 27 constam documentos médicos relativos ao acompanhamento médico da Autora, o que corrobora as declarações dos Autores produzidas em audiência de discussão e julgamento. De fls. 26 verso a 29 constam documentos comprovativos de diligências efectuadas por via do ruído nocivo e incomodativo com origem no prédio dos Réus a várias entidades públicas, o que corrobora as declarações dos Autores e os depoimentos das testemunhas II, JJ e KK produzidos em audiência de discussão e julgamento. Está junta cópia da douta sentença proferida no Julgado de Paz no âmbito de uma acção que os Autores intentaram contra os Réus e que homologou a desistência da instância dos primeiros, cujos efeitos foram os de cessar o processo que se havia instaurado – p. nº 74/20.... Cfr- fls. 61. A fls. 60 verso constam nomes de vários arrendatários dos Réus, com acesso aos contratos com estes celebrados, a que se referiram o Réu CC e a testemunha MM. * ** * Apreciando a prova produzida, quer documental, quer oral: - Os comportamentos dos utentes dos 1º e 2º pisos do prédio dos Réus, - festas e convívios, vários dias na semana e aos sábados depois do jantar e pela madrugada, à hora em que as pessoas precisam de descansar porque têm os seus afazeres profissionais e escolares; música alta; vozeirão; expressões exacerbadas; comportamentos ofensivos e provocatórios; comportamentos de grupo desenquadrados de qualquer entidade responsável / caracterizados por ineficácia das intervenções solicitadas junto dos Réus pessoas singulares, da Reitoria da UC, da CMC e das forças policiais da urbe / - são, para os Autores e filhos, persistentemente incomodativos do sossego e equilíbrio emocional e familiar, que cimentam o que procuram na habitação onde vivem. Cfr. Neste sentido a esmagadora maioria dos depoimentos – dos Autores, das testemunhas II, JJ, KK. Nocivos para o equilíbrio emocional dos Autores e Família, pelo stress e instabilidade que provocam, e degradantes da sua qualidade de vida. Mesma prova oral e documentação médica relativa à Autora. Só o Réu CC e a testemunha LL – o primeiro por razões que se prenderão por ser um dos demandados, e o segundo por já ter sido arrendatário do local, ser especialmente calmo como referiu em audiência e gostar de música -, embora não contestem as queixas dos Autores, porém, relativizam o número de festas, o ruído que provocam e o incómodo que – admitem – é pontual. A Senhora Juiz que presidiu aos trabalhos da audiência final foi muito cuidadosa e a certa altura procurou ter elementos sobre o que cada testemunha/depoente podia ver, atento a posição de observação que declarou possuir, para aquilatar da veracidade e consequente fiabilidade do respectivo depoimento. A prova, toda ela, é favorável á versão dos Autores. Foi essa a convicção manifestada na decisão proferida sobre a matéria de facto proferida no 1º grau. É essa a convicção alcançada na Relação, sem dúvidas. Os Apelantes insistem em que os vários depoimentos não são coincidentes quanto aos dias da semana em que os convívios, festas ou ruídos incomodativos e nocivos ocorrem. Mas não se pode exigir a quem depôs que mantenha, nesta parte, um depoimento a químico. É que uma testemunha tem conhecimento porque a certa hora passeia o cão num certo lugar e num certo dia; outra testemunha/depoente só verifica a factualidade que traz a tribunal porque chega a casa todos os dias as 17H e se deita à meia noite; outra trabalha por turnos e chega a estar ausente durante quase todo o dia, etc.. As horas e os dias em que os depoentes dizem presenciar os factos sobre que depõem não coincidem, o que desde logo impede que os depoimentos coincidam nesses pontos. Estranho é que os depoimentos coincidissem, neste circunstancialismo. Os Apelantes insistem sobre não estar concretizado o tipo de ruído, o valor em decibéis do mesmo, e as horas em que esses níveis se verificam. Ora este tipo de observação não tem qualquer interesse nem importância no caso dos autos. Por várias razões: - Essa factualidade não vem alegada, não podendo reclamar-se a sua competente prova; - Essa factualidade não é essencial para a constituição da causa de pedir da acção; - Esta acção não visa saber se os Réus têm, dever ter ou deixam de ter “licença especial de ruído” para as emissões provadas; - A causa de pedir da acção não exige uma avaliação acústica ao prédio dos Réus, indicando as horas de maior produção de ruído e os seus níveis; - Nem todo o ruído ilícito fica dependente da medição da sua intensidade, de se saber a sua fonte, de se averiguar a hora a que se verifica, os dias a que se verifica, a sua duração, persistência e natureza; Por exemplo o caso do “ruído de vizinhança”. O Regulamento Geral do Ruído – RGR – aprovado pelo DecretoLei n.º 9/2007, de 17-1, no seu artigo 3º, r) define-o assim: “Ruído de vizinhança”- o ruído associado ao uso habitacional e às actividades que lhe são inerentes, produzido directamente por alguém ou por intermédio de outrem, por coisa à sua guarda ou animal colocado sob a sua responsabilidade, que, pela sua duração, repetição ou intensidade, seja susceptível de afectar a saúde pública ou a tranquilidade da vizinhança; A ele se refere o artigo 24.º do mesmo diploma que estatui: 1 - As autoridades policiais podem ordenar ao produtor de ruído de vizinhança, produzido entre as 23 e as 7 horas, a adopção das medidas adequadas para fazer cessar imediatamente a incomodidade. 2 - As autoridades policiais podem fixar ao produtor de ruído de vizinhança produzido entre as 7 e as 23 horas um prazo para fazer cessar a incomodidade. Sobre ele, a APA – Agência Portuguesa para o Ambiente, no seu site, explica: o ruído de vizinhança é uma fonte de ruído não sujeita a requisitos acústicos estabelecidos legalmente. Contudo, os responsáveis pela produção de ruído de vizinhança devem ter o cuidado de não afetar a saúde pública ou a tranquilidade da vizinhança. - Decidiu-se no Ac. TRG de 29-10-2003 prolatado no p. nº 1620/03 (Relator Manso Raínho), acessionável no site da dgsi. Net: Condição necessária mas também suficiente para que se possa tomar medida judicial cautelar destinada a salvaguardar o direito ao descanso e ao sono ameaçado pelo ruído causado, é que o descanso e o sono estejam a ser prejudicados e não já que o ruído ofenda os limites máximos impostos por lei. Não se reconhece existir erro grave na decisão sobre a matéria de facto impugnada. Improcede a arguição de impugnação sobre a decisão da matéria de facto. * A ter em conta a factualidade vinda como provada, já transcrita supra, que não padece de contradição ou ambiguidade, a qual também não carece de ser oficiosamente alterada. 3ª questão 10 Acresce que os filhos menores dos autores não podem convidar amigos a frequentar a sua casa e, muito em particular, a nela pernoitarem, uma vez que o descanso não é possível com música em “altos berros”. 11 Os autores já apresentaram diversas denúncias junto da Polícia de Segurança Pública, que frequentemente intervém no sentido de pôr termo a tais actividades. Todavia, se é certo que em alguns casos a actividade ruidosa apenas se volta a verificar passados escassos dias, outros há, em que imediatamente após as autoridades policiais se ausentarem, há um imediato regresso daquela actividade ruidosa, que se prolonga “noite dentro” perturbando o descanso e tranquilidade dos autores e dos seus filhos menores. O ruído proveniente da casa dos Réus e do seu logradouro, provocado pelas “festas” e “convívios” dos arrendatários e amigos destes que os frequentam, está provado ser incomodativo para os Autores e filhos, e até nocivo para a qualidade de vida e saúde do agregado que constituem. Os Autores e filhos vivem desassossegados e com dificuldade em dormir. Os barulhos são produzidos por arrendatários dos Réus pessoas singulares, e amigos destes arrendatários. Os Réus permitem que os barulhos se produzam. Os factos estão provados, o nexo de causalidade entre os comportamentos ruidosos, o concreto ruído provocado, e o desconforto sentido pelos Autores e filhos, está verificado, em termos de causa adequada para a produção de tais efeitos. * Ensina Pinto Furtado no Manual de Arrendamento Urbano, vol. II, 4ª ed. actualizada, Almedina, pág. 1035: A má vizinhança, e em geral, a perturbação da tranquilidade das pessoas, é objecto de uma tríplice tutela: A- A de natureza pública exercida mediante regulamentos administrativos; B- A que se estabelece no seio da propriedade horizontal; C- A respeitante ao arrendamento urbano através do artigo 1083º, 2, a) do CC que permite a resolução pelo senhorio do contrato de arrendamento urbano por violação reiterada e grave, pelo arrendatário, das regras de higiene, de sossego e de boa vizinhança; Acrescenta-lhes a protecção permitida pelo direito de personalidade consagrado no artigo 70º do CC. E é nesta última protecção que nos situamos. * Continuando. Há várias normas no direito infra-constitucional que vedam a emissão de ruídos de uma propriedade sobre outra, quer provenham de coisas, animais ou de actividades. São exemplos os artigos 1346º, 1422º e 493º do CC. É exemplo o regime do ruído de vizinhança, já referido. Cfr- artigo 24º do Regulamento Geral do Ruído – RGR – aprovado pelo Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17-1. Mas independentemente disso e mesmo – como dissemos - para além disso, existe um núcleo de direitos fundamentais com assento constitucionais e cujas normas são de aplicação imediata e directa, não carecendo da mediação de direito substantivo de natureza infra-constitucional. É a situação em que o presente litígio se insere. Em causa o direito à saúde, ao repouso, com tutela constitucional. Como é referido por Carlos Mota Pinto (in Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 3.ª edição), toda a pessoa jurídica é titular de alguns direitos e obrigações, sendo titular de um certo número de direitos absolutos que se impõem ao respeito de todos os outros, incidindo sobre os vários modos de ser físicos ou morais da personalidade, são os chamados direitos de personalidade, os quais são gerais, extra-patrimoniais e absolutos. Tais direitos incidem sobre a vida da pessoa, a sua saúde física, a sua integridade física, a sua honra, a sua liberdade física e psicológica, o seu nome, a sua imagem, a reserva da intimidade e da vida privada. Todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover (art. 64.º, n.º 1 da CRP). Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar (art. 65.º da CRP). Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender (art. 66.º da CRP). O descanso, a tranquilidade e o sono são direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, que se inserem no direito à integridade física, preceituado no art. 25º, nº 1, da CRP. Este núcleo de direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas, nos termos do art. 18.º da CRP. No campo da lei ordinária, o direito ao repouso é, ainda, um direito de personalidade que beneficia da tutela do art. 70º, nºs 1 e 2, do Código Civil. Em causa, portanto, o comportamento permissivo dos Réus perante as emissões dos ruídos. Não se está perante um caso de conflito de relações pessoais de vizinhança a dirimir nos termos do art.º 335º do CC, uma vez que os Réus/Requeridos podem manter os arrendamentos que entenderem, desde que desta actividade lucrativa não emanem os ruídos perniciosos que se constatam. Se o exercício dessa actividade locatícia se contiver nos moldes normais e aceitáveis de comportamento humano, não produzirá os ruídos de vizinhança incomodativos e nocivos para os Autores e família. Porém, como se vê pela prova, a ilicitude da emissão destes ruídos ultrapassa o patamar do conflito das relações pessoais de vizinhança, envolvendo a tutela dos direitos de personalidade. Como a protecção destes direitos – direito ao descanso, à tranquilidade, ao sono, ao ambiente e à qualidade de vida – é constitucional e intangível – cfr. artigos 25º, 1 e 66º da CRP -, se acontecer estar em causa a ofensa a estes direitos, então não interessa saber se se respeita o nível de ruído permitido, ou se se respeita a lei do ruído, porque respeitar a lei do ruído e as leis fiscais do arrendamento, etc., não quer dizer seja permitido afectar os direitos ao repouso e à saúde de terceiros. Os Réus podem exigir aos arrendatários comportamentos segundo padrões de decoro, criando condições para tal. Os Réus podem exigir o cumprimento de regras de respeito mútuo nos espaços comuns do espaço locativo, criar um regulamento para a utilização do logradouro e vedar o acesso a este a estranhos ou a um número de pessoas superior a certo limite. O arrendamento é um contrato intuitu personae. Celebrado em atenção à pessoa do arrendatário. Os Réus podem aliviar o peso dos utentes na exploração locatícia que desenvolvem. Os Réus podem, eventualmente, vir a ter de alterar o modelo da actividade que desenvolvem. Nem o direito de propriedade é um direito absoluto, nem o direito ao estabelecimento é absoluto. Por isso que a medida necessária com vista a evitar ou atenuar os efeitos da ofensa aos Autores e Filhos passa por deferir à solução pedida. Mostram-se verificados os pressupostos para a aplicação de tal medida. Na sentença recorrida foi aplicada uma sanção pecuniária compulsória, ao abrigo do disposto no artigo 879º, 4 do CPC, de cujo montante discordam os Apelantes. O regime da sanção pecuniária compulsória está previsto no art. 829.º-A do CC. A lei permite aplicá-la no campo dos direitos de personalidade. Os Autores peticionaram-na. É equilibrada. Serve para desincentivar o obrigado de incumprir a obrigação de prestação de facto, positivo ou negativo, infungível a que está adstrito. * Não vem aplicada qualquer norma com um sentido que viole o comando constitucional do Princípio da Igualdade – artigo 13º da CRP. * Improcede a apelação. V-DECISÃO: Pelo que fica exposto, acorda-se neste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida. Custas pelos Apelantes. Valor da causa: € 30.000,01. Coimbra, 10 de Setembro de 2024. (Rui António Correia Moura) (Carlos Moreira) (João Moreira do Carmo) |