Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3677/22.2T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RUI MOURA
Descritores: TUTELA DA PERSONALIDADE
DIREITO AO DESCANSO E TRANQUILIDADE
RUÍDO COM ORIGEM EM PRÉDIO VIZINHO
Data do Acordão: 09/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 24.º, DO REGULAMENTO GERAL DO RUÍDO (DL 9/2007, DE 17/1)
ARTIGOS 13.º; 18.º; 20.º, 5; 25.º, 1; 64.º, 1; 65.º E 66.º, DA CRP
ARTIGOS 878.º A 880.º, DO CPC
ARTIGOS 70.º, 2; 335.º; 483.º; 493.º; 829.º-A; 1346.º E 1422.º, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I- O novo art. 878º do CPC não prevê qualquer regra quanto ao que à legitimidade passiva diz respeito, pelo que a redacção deste artigo se aproximou muito mais, sendo mesmo semelhante, da redacção do nº 2 do art. 70º do CC.
II- Hoje, é possível requerer o decretamento de providências tuteladoras da personalidade contra qualquer pessoa, desde que tal se mostre adequado a evitar a consumação de qualquer ameaça ou a atenuar, ou fazer cessar, os efeitos da ofensa já cometida.

III- Destarte, o único limite hoje existente é o da adequação da providência cautelar requerida à situação concreta.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 2ª Secção Judicial do Tribunal da Relação ...: 
 
I - RELATÓRIO 
 

1)- 
AA, Engenheiro Civil, e BB
, médica pediatra, casados entre si e ambos residentes na Rua ..., ... ..., vieram em 22 de Julho de 2022, ao abrigo do definido no n.º 2 do art. 70.º e do art. 1346.º, ambos do CC, e, bem assim, do art. 878.º do CPC, intentar ação especial para tutela da personalidade, a qual é, de acordo com o n.º 1 e 2 do art. 546.º do CPC, um processo especial, que segue, nos termos do n.º 1 do art. 549.º do CPC, a tramitação prevista no arts. 879.º e
880.º, ambos do CPC, contra  CC e  a Herança aberta e indivisa por óbito de DD, sendo nela herdeiros habilitados EE,

 
na qualidade de cabeça-de-casal, FF e GG, com residência, respetivamente, na Rua ..., ... - ...; na Rua ...,
..., ... - ...; na Rua ..., ... – ...; e na rua ..., ... - ..., pedindo:
- a) serem os RR. condenados a não emitirem, ou a não permitirem a emissão, a partir do prédio sito na Rua ..., de que são proprietários, de ruídos que perturbem ou afetem significativamente os direitos de personalidade dos AA., como seja o direito ao sono, à tranquilidade e ao descanso, mormente decorrentes de festas e/ou outros eventos ocorridos no período compreendido entre as 22h00 e as 07h00;
b) serem os RR. condenados, em conformidade com o previsto no n.º 4, in fine, do art. 879.º do CPC, no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória no valor de 1.500€, sempre que violem a(s) injunção(ões) que venham a ser impostas pela douta Sentença que vier a ser proferida.
 
Para tanto alegam: 
 
- Os Autores são, pelo menos desde 2016, legítimos proprietários e possuidores do imóvel sito na Rua ..., ... ..., que é composto por uma habitação unifamiliar, com rés-do-chão, primeiro e segundo andar e logradouro. Nele habitam, quotidianamente, os Autores e os seus dois filhos menores, com idades de 15 e 12 anos. Sucede, todavia, que, desde o momento em que os Autores passaram a habitar o imóvel de que são legítimos proprietários e possuidores (pelo menos há 6 anos), que são vários, sucessivos e reiterados os graves constrangimentos e condicionamentos que sofrem ao uso e fruição do mesmo. Com efeito, afrontosos e problemáticos ruídos e perturbações sonoras são constantemente promanadas do edifício vizinho, sito na Rua ..., que é propriedade dos Réus. Neste edifício vizinho (afastado apenas 5 metros do prédio dos autores), que é constituído por uma casa de habitação com cave, rés-do-chão, primeiro e segundo andar, garagem, pátio e quintal, funciona, ao que tudo indica, uma unidade ilegal de alojamento local (conhecido como A...), que alberga, no mínimo, em cada ano lectivo, 25 estudantes do Programa Erasmus. Em consequência dos diversos distúrbios provocados pelos vários grupos de estudantes que por este prédio vão passando, sobretudo ao nível do ruído com a frequente realização de convívios, festas e outras actividades no exterior e interior da habitação, os Autores já apresentaram diversas denúncias junto da Polícia de Segurança Pública, que frequentemente se vê obrigada a intervir no sentido de pôr termo às actividades exacerbadas e excessivamente ruidosas que são levadas a efeito - um verdadeiro «inferno acústico», com música desconsoladamente alta e pontuado por gritos estridentes, gargalhadas exacerbadas, palavrões generalizados nos mais diversos idiomas, garrafas a partirem-se, motivado que é pelas alegrias decorrentes do consumo sistemático de álcool (como aliás se comprova pelo conteúdo dos contentores de lixo que servem a zona). Todavia, se é certo que, em alguns casos, a actividade ruidosa apenas se volta a verificar passados escassos dias, outros há, até mais frequentemente, em que, imediatamente após as autoridades policiais se ausentarem, há um imediato regresso daquela actividade ruidosa, que se prolonga “noite dentro” e cerceia os autores e os seus filhos menores da mais ínfima esperança de descanso, tranquilidade ou até mesmo de reserva e protecção da intimidade da vida familiar - o que sempre viola o direito de propriedade dos Autores e lhes abre, em consequência, a possibilidade de recorrerem ao direito de oposição consagrado no artº 1346º do CC. Ademais, e uma vez que, de facto e na realidade, se trata de alunos do ensino superior, mais propriamente alunos estrangeiros acolhidos ao abrigo do programa Erasmus, foi dado conhecimento desta situação à Universidade de Coimbra, a qual logrou reportar a situação às entidades competentes na matéria. O tipo de uso que é dado ao dito prédio rompe, com estrondo e de rompante, a calmaria típica desta rua (pelo menos na parte onde se encontra implantado o prédio dos Autores), reservada que é, como se disse, à habitação permanente (e civilizada). Há uma violação ostensiva do Regulamento Geral do Ruído, designadamente quanto ao cumprimento dos valores limites de exposição previstos no seu artº 11º. A vida familiar dos Autores e dos seus filhos menores tem sido séria e veemente afectada, já que se têm visto privados de toda a tranquilidade, serenidade e reserva de intimidade que por tanto lutaram e esperavam alcançar com a aquisição do seu imóvel, que constitui a sua casa de morada de família. Tanto assim é que a Autora, que é médica pediatra, se encontra proibida, desde Julho de 2018, por indicação médica em consequência da apresentação de um quadro clínico de enxaqueca violenta crónica - que, bem se entenda, tudo deve à falta de descanso provocada pelas sobreditas perturbações e, bem assim, ao stress que toda a situação provoca -, de prestar serviço nocturno, o que não só comporta a possibilidade de uma desvalorização profissional, como comporta uma significativa redução dos rendimentos que costumava auferir e que iria continuar a auferir, não fosse dar-se a situação em causa nos autos - cerca de 1000 € mensais. O Autor AA, que é engenheiro civil e que, no âmbito dessa actividade, prepara e leva a efeito revisões projectistas de grandes infraestruturas e onde, naturalmente, um erro poderá ser pago com o preço mais alto: a vida - o estado acentuado de nervosismo em que este Autor se encontra e que é motivado pelo clima de falta de descanso e repouso a que é totalmente alheio, aumenta, de modo exponencial, a possibilidade de erro humano e, por consequência, de catástrofe. Isto, sem esquecer as perturbações causadas aos filhos menores dos Autores, que têm sido também privados de um normal desenvolvimento da personalidade e do seu bem-estar, que não só não conseguem descansar e repousar como padecem de problemas ao nível de concentração, o que os cerceia do normal decurso dos seus planos académicos e que motiva frequentes (e compreensíveis) queixas aos Autores, seus pais. Em consequência de todas estas perturbações, os filhos menores dos Autores não podem convidar amigos a frequentar a sua casa e, muito em particular, a nela pernoitarem, uma vez que o descanso, como já se disse, é materialmente impossível - a música aos “altos berros” e desconsoladamente alta afasta qualquer esperança de sossego e tranquilidade. Como resulta dos autos de participação e demais relatórios, as festas/eventos prolongam-se, pelo menos, até às 2 horas, tendo mesmo uma delas decorrido até às 7 horas. São graves e várias as perpetuações a que têm sido sujeitos os Autores e os seus dois filhos menores e que afrontam, directa e inusitadamente, os seus direitos de personalidade corporizados no direito ao sono, à tranquilidade, ao descanso, à saúde ou, ainda, à habitação, não permitindo a sua vida familiar quotidiana e, muito particularmente, o normal desenvolvimento e aproveitamento da juventude e infância dos filhos dos autores. Requerem os Autores que sejam impostas aos Réus as injunções tidas por pertinentes, tais como a proibição de serem realizadas festas, convívios e outros eventos ruidosos no período nocturno compreendido entre as 22 horas e as 7 horas, de forma a que possam voltar a ter o mínimo de normalidade no seu quotidiano familiar, com o descanso, repouso, sono, tranquilidade e reserva que deve ser garantido a todas as famílias. Juntam procuração e documentos. 
 

2)
Os Réus contestaram.
Invocaram a excepção de ilegitimidade passiva. Alegaram que não são proprietários de qualquer estabelecimento comercial.
Não fazem qualquer exploração ilegal do prédio sito no nº ...5 da Rua ..., na cidade ..., descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...19 da freguesia ... (...) e inscrito na matriz sob o nº ...79 da referida União de Freguesias .... Não têm qualquer alojamento local, nem exploram o referido edifício como alojamento local. O imóvel em causa nos autos é a residência da Ré EE e do Réu/proprietário CC.
Todavia, considerando que o mesmo é constituído por divisões susceptíveis de utilização independente, aqueles arrendam o restante espaço a pessoas singulares, maiores, que estejam interessadas em habitar o local, independentemente da nacionalidade, sexo, etnia e/ou profissão.
Como tal, tanto residem e/ou residiram no prédio arrendatários portugueses, como estrangeiros, como homens, como mulheres, como estudantes e/ou como trabalhadores. Todos os contratos de arrendamento celebrados são comunicados às entidades competentes, nomeadamente às finanças, cumprindo os réus todas as suas obrigações legais. Neste conspecto, nos termos do nº 3 do artº 4º do Decreto-Lei nº 128/2014, de 29 de Agosto, republicado pela Lei nº 62/2018, de 22 de Agosto, que prova o regime jurídico da exploração dos estabelecimentos de alojamento local, a existência de contratos de arrendamento devidamente registados - como é o caso - consubstancia precisamente a excepção à existência de um estabelecimento de alojamento local. Pelo que não existe no apontado prédio qualquer estabelecimento de alojamento local, nem os Réus exploram qualquer estabelecimento de alojamento local. De facto, a partir da data de celebração dos contratos de arrendamento, os Réus estão obrigados a ceder aos arrendatários o gozo do imóvel, o que fazem. Não é alegado qualquer facto que impute aos Réus a produção dos alegados barulhos/ruídos que fundamentam o recurso à presente acção. Não existem factos imputados a qualquer pessoa concreta, mas apenas e tão só a estudantes de Erasmus.
CC e a Herança Aberta e Indivisa por óbito de DD, são donos e legítimos proprietários do prédio sito no nº ...5 da Rua ..., na cidade ... e descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...19 da freguesia ... (..., ..., ... e ...) e inscrito na matriz predial urbana sob o nº ...79 da União de Freguesias ... (..., ..., ... e ...). Os Autores habitam no prédio vizinho, sito no nº ...9 e ...1 da referida Rua ..., na cidade .... Sobretudo desde 2020, o Autor injustificadamente tem intentado uma verdadeira perseguição aos Réus, em especial ao Réu CC, perseguição que este Réu tem tentado evitar, não obstante sentir-se constantemente prejudicado, inseguro, desassossegado e perturbado, além do mais e sobretudo, no seu sossego e no seu bem-estar físico e intelectual, e bem assim do sossego e bem-estar do seu agregado familiar. Perturbação, desassossego e insegurança que surgem, sobretudo por via do conhecimento que teve da acção intentada no Julgado de Paz ..., em 11/05/2021, que correu termos sob o processo nº 74/20..., na qual o Requerente peticionava contra dois dos Réus o encerramento de um estabelecimento inexistente, indemnizações por danos não patrimoniais e que os Réus fossem impedidos de propagar ruídos do inexistente estabelecimento - acção da qual o Autor acabou por desistir após ser notificado da contestação.
Também decorrente do facto de o Réu CC, no pretérito dia 04/06/2021, ter visto entrar na sua casa, de rompante, em acção concertada, diversos elementos da Câmara Municipal, da PSP - Polícia de Segurança Pública, do SEF - Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e da Autoridade Tributária e Aduaneira, que foram inspeccionar o local, por via de denúncia infundada do Autor. Ainda decorrentes do facto de ver a sua esposa HH ameaçada na rua pelo Autor que lhe disse "tenho muito dinheiro, conheço pessoal da máfia, um dia destes pego fogo a isto tudo", dando origem ao inquérito que corre os seus termos no DIAP sob o nº 240/22.... E, sobretudo decorrentes de no dia 26/03/2022, o próprio Réu CC se ter visto perseguido e agredido na rua pelo Autor e de ter sido obrigado a apresentar queixa-crime e a realizar exame pericial no IML, processo que corre termos no DIAP sob o processo nº 544/22..... Há largos meses que o Réu é obrigado a conviver, não com o barulho de estudantes de Erasmus, mas com a perseguição do Réu, que não obstante todas as respostas das entidades a quem já fez denúncias e queixas, continua a não deixar os Réus terem o sossego que também mereciam na própria casa, no caso dos Réus CC e EE, também ela na Rua ..., em .... Nem o Réu CC nem a referida EE ouvem o barulho ensurdecedor ou o "inferno acústico" referido pelo Autor. Não sentem constantemente o seu descanso e/ou repouso afectados. Nunca sentiram necessidade de chamar a polícia, nem qualquer outra autoridade para fazer cessar festas ou ruídos. Não ouvem reiteradamente um barulho incomodativo. Não vivem em constante sobressalto com festas permanentes e actividades extremamente ruidosas. O Réu CC, tal como a sua esposa, é enfermeiro e trabalha por turnos, portanto, também se sentiria afectado se correspondesse à verdade a alegada existência de constantes ruídos incomodativos do descanso dos habitantes e/ou vizinhos. Os Autores não identificam quem, em concreto, emite os ruídos e/ou faz festas que alegadamente impedem o seu descanso, sendo certo que não pode advir da conduta de terceiros, maiores, qualquer consequência para os Réus, sobretudo, quando se desconhecem quem são os terceiros e, por consequência, desconhece-se qualquer relação de dependência com os aqui Réus. Acresce que os Autores não alegam a concreta frequência com que existem ruídos. Não alegam de que ruídos concretos se trata. Não alegam qual o grau de intensidade dos ruídos, dizendo apenas conclusivamente que existe uma violação ostensiva do Regulamento Geral do Ruído. Nem sequer qual a concreta origem dos mesmos, com identificação de quem o faz, o que sempre seria essencial para verificar a existência de facto ilícito. Não alegam factos susceptíveis de comprovar a existência de quaisquer ruídos e ou barulhos que sejam susceptíveis de afectar o seu direito ao repouso ou ao descanso. Acresce que mesmo que se entendesse que existiam barulhos susceptíveis de perturbar reiteradamente o descanso dos Autores, nunca poderia existir discricionariedade na limitação do direito de propriedade dos Réus. O direito à propriedade é um direito fundamental previsto no artº 61º da Constituição da República Portuguesa, pelo que, qualquer limitação ao mesmo tem que ser adequada e proporcional.
 
Concluem pela improcedência da acção com a absolvição dos Réus. Juntam documentos e procurações. 
 

3)-
Na audiência de discussão e julgamento foi decidido improceder a excepção da ilegitimidade passiva.
 
O processo foi saneado.
 
Foi atribuído valor à causa.
 
Procedeu-se a audiência final com gravação da prova.
 

4)-
Foi prolatada douta sentença. 
 
Nela dão-se como provados, motivadamente, os seguintes factos
 
1
Os réus CC e a Herança Aberta e Indivisa por óbito de DD, são donos e legítimos proprietários do prédio sito no nº ...5 da Rua ..., na cidade ... e descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...19 da freguesia ... (..., ..., ... e ...) e inscrito na matriz predial urbana sob o nº ...79 da União de Freguesias ... (..., ..., ... e ...).
2
Os autores são, pelo menos desde 2016, legítimos proprietários e possuidores do imóvel sito na Rua ..., ... ..., que é composto por uma habitação unifamiliar, com rés-do-chão, primeiro e segundo andar, e logradouro. Nele habitam, quotidianamente, os autores e os seus dois filhos menores, com idades de 15 e 13 anos.
3
Esta é a única habitação dos autores, constituindo a casa de morada de família do seu agregado familiar.
4
Pelo menos desde há cerca de seis anos são vários, sucessivos e reiterados os constrangimentos e condicionamentos que sofrem ao uso e fruição do mesmo, nomeadamente como consequência de ruídos e perturbações sonoras que são constantemente promanadas do referido edifício propriedade dos requeridos.
5
Neste edifício vizinho, conhecido como A..., afastado apenas cerca de 5 metros do prédio dos autores, constituído por uma casa de habitação com cave, rés-do-chão, primeiro e segundo andar, garagem, pátio e quintal, residem vários arrendatários dos requeridos - nem sempre os mesmos - em média, em cada ano lectivo, cerca de 25 arrendatários, na sua maioria estudantes do Programa Erasmus. Os arrendatários que por este prédio vão passando e amigos ou conhecidos destes, realizam frequentemente - cerca de duas ou três vezes por semana - convívios, festas e outras actividades no exterior e interior do dito prédio. Nesses convívios, que ocorrem em regra pela tarde e noite, põem música excessivamente alta, há gritos e gargalhadas estridentes, palavrões estridentes em diversos idiomas, garrafas a partirem-se - barulhos motivados, além do mais, pelo consumo sistemático de álcool. Tais convívios prolongam-se frequentemente até cerca das 2 horas.
6
Em consequência desses barulhos, a vida familiar dos autores e dos seus filhos tem sido afectada, dado que se têm visto privados de tranquilidade, serenidade e reserva de intimidade que esperavam alcançar com a aquisição do seu imóvel, que constitui a sua casa de morada de família.
7
A autora BB, que é médica pediatra, encontra-se proibida, desde Julho de 2018, por indicação médica em consequência da apresentação de um quadro clínico de enxaqueca violenta crónica - devido à falta de descanso provocada pelas sobreditas perturbações e, bem assim, ao stress que toda a situação provoca -, de prestar serviço noturno. Tal implica a possibilidade de uma desvalorização profissional, bem como uma redução dos rendimentos que costumava auferir e que iria continuar a auferir, não fosse dar-se a referida situação.
8
O autor AA, que é engenheiro civil e que, no âmbito dessa actividade, prepara e leva a efeito revisões projectistas de grandes infraestruturas, também é afectado por tal falta de descanso e repouso, que também motiva um estado acentuado de nervosismo em que se encontra.
9
Os filhos menores dos autores também têm sido privados de descanso e bemestar, dado que não conseguem dormir normalmente, padecem de problemas ao nível de concentração, o que afecta o seu rendimento escolar.
10
Acresce que os filhos menores dos autores não podem convidar amigos a frequentar a sua casa e, muito em particular, a nela pernoitarem, uma vez que o descanso não é possível com música em “altos berros”.
11
Os autores já apresentaram diversas denúncias junto da Polícia de Segurança Pública, que frequentemente intervém no sentido de pôr termo a tais actividades. Todavia, se é certo que em alguns casos a actividade ruidosa apenas se volta a verificar passados escassos dias, outros há, em que imediatamente após as autoridades policiais se ausentarem, há um imediato regresso daquela actividade ruidosa, que se prolonga “noite dentro” perturbando o descanso e tranquilidade dos autores e dos seus filhos menores.
12
Dado que na sua maioria os ditos arrendatários são alunos do ensino superior, mais propriamente alunos estrangeiros acolhidos ao abrigo do programa Erasmus, foi dado conhecimento desta situação à Universidade de Coimbra, a qual reportou a situação às entidades que entendeu serem competentes na matéria.
13  
Os réus CC e a sua esposa, bem como a ré EE também residem no dito edifício conhecido como A.... Nunca chamaram a polícia, nem qualquer outra autoridade para fazer cessar festas ou ruídos.
14
O réu CC, tal como a sua esposa, é enfermeiro e trabalha por turnos.
15
Os autores intentaram uma acção no Julgado de Paz ..., que correu termos sob o processo nº 74/20..., na qual os demandantes peticionavam contra os réus o encerramento de um estabelecimento, indemnizações por danos não patrimoniais e que os réus fossem impedidos de propagar ruídos do estabelecimento.
16
Os demandantes desistiram da instância após a contestação.
17
A esposa do réu CC, HH apresentou queixa crime contra o autor, alegando ter sido por este ameaçada na rua dizendo “tenho muito dinheiro, conheço pessoal da máfia, um dia destes pego fogo a isto tudo", dando origem ao inquérito que corre os seus termos no DIAP sob o n.º 240/22....
18
O réu CC apresentou queixa crime contra o autor alegando que no dia 26/03/2022, o autor o agrediu, processo que corre termos no DIAP sob o processo n.º 544/22.....
 
Nela dão-se como não provados, motivadamente, os seguintes factos
 

A - No prédio sito no nº ...5 da Rua ..., na cidade ... e descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...19 da freguesia ... (..., ..., ... e ...) e inscrito na matriz predial urbana sob o nº ...79 da União de Freguesias ... (..., ..., ... e ...) funciona uma unidade ilegal de alojamento local;

B - Nem o réu CC nem a referida EE ouvem o barulho acima referido.
 
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Proferiu-se decisão de mérito que, a final, julgou procedente a acção e se  - Condenou os Requeridos a não emitirem nem permitirem a emissão, a partir do prédio sito na Rua ..., de que são proprietários, de ruídos que perturbem o sono, a tranquilidade e o descanso, designadamente ruídos decorrentes de festas e/ou outros eventos ocorridos no período compreendido entre as 22 horas e as 7 horas;
- Condenou os Requeridos, nos termos do nº 4, in fine, do artº 879º do CPC, no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória no valor de 1.500 € (mil e quinhentos euros), por cada dia de infracção ao supra determinado.
 
As custas ficaram pelos Requeridos.
 

5)-
Inconformados, recorrem os Requeridos, recurso admitido como de apelação a subir imediatamente, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
 
Alegam os Apelantes, e a final concluem:
 

1) Por sentença final proferida nos presentes autos, o tribunal a quo julgou procedente a presente ação, condenando os requeridos a não emitirem nem permitirem a emissão, a partir do prédio sito na Rua ..., de que são proprietários, de ruídos que perturbem o sono, a tranquilidade e o descanso, designadamente ruídos decorrentes de festas e/ou outros eventos ocorridos no período compreendido entre as 22 horas e as 7 horas, bem como no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória no valor de 1500 €, por cada dia de infração ao determinado.

2) Sucede, porém, que a sentença sub judice é manifestamente nula por omissão de pronúncia, nos termos da alínea d) do n.º 1 do art. 615.º do CPC. Nulidade que expressamente se invoca para todos os devidos e legais efeitos, considerando que não se pronuncia sobre a invocada ilegitimidade substancial decorrente do facto de os Réus não serem reconhecidamente os Autores do ruído, objeto dos autos, mas antes os arrendatários do seu prédio.

3) Ilegitimidade essa invocada em sede de contestação e sobre a qual o tribunal a quo decidiu expressamente, conforme consta da ata de audiência de discussão e julgamento de 09/11/2022 e da gravação da mesma sob o ficheiro n.º "Diligencia_3677-22.2T8CBR_2022-11-09_10-10-21.mp3", entre os minutos 05:05 a 05:11, que se pronunciaria em sede de sentença final.

 

4) Acresce que padece ainda a sentença sub judice de nulidade por falta de fundamentação, nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 615.º do CPC. Nulidade que expressamente se invoca para todos os devidos e legais efeitos.

5) Porquanto, incumbia ao julgador fundamentar expressamente por que razões foram valorados ou não os depoimentos e os documentos existentes no processo, concretamente quanto aos factos dados como provados e não provados, com vista a poder ser percecionado o raciocínio do julgador o que manifestamente não aconteceu.

6) Sem prejuízo do exposto, a prova impunha decisão diversa, porquanto resultou da matéria dada por provada que: "Pelo menos desde há cerca de seis anos são vários, sucessivos e reiterados os constrangimentos e condicionamentos que sofrem ao uso e fruição do mesmo, nomeadamente como consequência de ruídos e perturbações sonoras que são constantemente promanadas do referido edifício propriedade dos requeridos. Os arrendatários que por este prédio vão passando e amigos ou conhecidos destes, realizam frequentemente - cerca de duas ou três vezes por semana - convívios, festas e outras actividades no exterior e interior do dito prédio. Nesses convívios, que ocorrem em regra pela tarde e noite, põem música excessivamente alta, há gritos e gargalhadas estridentes, palavrões estridentes em diversos idiomas, garrafas a partirem-se - barulhos motivados, além do mais, pelo consumo sistemático de álcool. Tais convívios prolongam-se frequentemente até cerca das 2 horas.", mas os depoimentos testemunhais são manifestamente contraditórios, não coincidindo sequer na frequência dos alegados ruídos.

7) Apesar de o Autor referir que os ruídos ocorrem às terças, quintas e sábados, a Autora refere que "Com o processo em tribunal foi três vezes ", a testemunha II, refere que a mãe queixa-se às vezes, a testemunha JJ refere "uma ou duas vezes por semana", a testemunha KK, residente na mesma rua da testemunha JJ, só viu uma vez, a testemunha LL refere duas a três vezes por mês e o Réu refere uma vez desde a proposição da ação, como se constata dos depoimentos …

8) Acresce que também a prova testemunhal não foi cabal no que concerne ao tipo de ruído, sendo genéricos ao referir que existe agitação, música e "bruado" de pessoas a falarem, conforme depoimento da testemunha JJ, sob a gravação …, da testemunha II, …;

9) E muito menos o foi quanto ao período horário em que as mesmas decorrem, frisando a testemunha JJ, … que costuma ser à tarde e às vezes à noite e a testemunha II, … que desconhece quando acabam.

10) E nem quanto ao início destas inquietações, que na versão apresentada pelo Autor, começaram a ocorrer depois de a testemunha JJ ser sua vizinha, … o que atento o que consta da sentença e das declarações da referida testemunha ocorreu em 2018, depois desta se mudar para a Rua ..., sendo que a testemunha acrescenta que só passados meses é que viu que residiam estudantes na Rua ....

11) Pelo que, não resultando sequer da prova testemunhal, como não resulta da restante prova, que as perturbações se dão duas a três vezes por semana, até às 2h00 da manhã, música excessivamente alta, há gritos e gargalhadas estridentes, palavrões estridentes em diversos idiomas, garrafas a partirem-se, a matéria supra transcrita deverá passar a constar da matéria de facto dada por não provada.

12) Acresce que o tribunal a quo deu ainda por provado que: "Em consequência desses barulhos, a vida familiar dos autores e dos seus filhos tem sido afectada, dado que se têm visto privados de tranquilidade, serenidade e reserva de intimidade que esperavam alcançar com a aquisição do seu imóvel, que constitui a sua casa de morada de família. A autora BB, que é médica pediatra, encontra-se proibida, desde Julho de 2018, por indicação médica em consequência da apresentação de um quadro clínico de enxaqueca violenta crónica - devido à falta de descanso provocada pelas sobreditas perturbações e, bem assim, ao stress que toda a situação provoca -, de prestar serviço noturno. Tal implica a possibilidade de uma desvalorização profissional, bem como uma redução dos rendimentos que costumava auferir e que iria continuar a auferir, não fosse dar-se a referida situação. O autor AA, que é engenheiro civil e que, no âmbito dessa actividade, prepara e leva a efeito revisões projectistas de grandes infraestruturas, também é afectado por tal falta de descanso e repouso, que também motiva um estado acentuado de nervosismo em que se encontra. Os filhos menores dos autores também têm sido privados de descanso e bem-estar, dado que não conseguem dormir normalmente, padecem de problemas ao nível de concentração, o que afecta o seu rendimento escolar. Acresce que os filhos menores dos autores não podem convidar amigos a frequentar a sua casa e, muito em particular, a nela pernoitarem, uma vez que o descanso não é possível com música em “altos berros”.

13) Sucede que a Autora BB, na gravação … não refere que a enxaqueca se deve à falta de descanso, mas apenas que a falta de descanso se agrava com as perturbações do sono, o que é manifestamente contraditório, considerando que as alegadas festas até ocorrem sobretudo no período da tarde, pelo que se desconhece em que medida o descanso desta, e nesta sequência, também do seu marido e dos seus filhos poderá ser afetado.

 

14) Sobre as consequências provocadas aos filhos, refere na gravação n.º … que o barulho os perturba e desconcentra, salvo melhor opinião, sem qualquer referência ao rendimento escolar, sendo que o marido refere que o filho sofre de défice de atenção - depoimento gravado sob … - o que sempre justificaria a desconcentração.

15) Pelo que, também aquele segmento decisório da matéria de facto, deve passar a constar da matéria dada por não provada.

16) Acresce que a sentença sub judice não analisou criticamente a referida prova testemunhal com os documentos, constantes dos autos, não tendo considerado, nomeadamente os autos de participação emitidos pela PSP, que se cingiram a 6 (seis) participações,- às 19h00, 15h50, 23h40, 00h15, 23h20 e
00h50 - das quais só duas referem a existência de ruído (uma delas que não incomoda a testemunha) audível pela PSP, sendo certo que nas restantes a entidade policial refere que não percecionou a existência de ruído.

17) Tais documentos são relevantes, sobretudo considerando que dos mesmos resulta que não existem festas constantes, nem sucessivas, nem frequentes, nem com duração até às 2h da manhã, nem incomodativas da população em geral.

18) Pelo que, atenta a prova testemunhal e documental laborou a sentença em manifesto erro nos pressupostos de facto.
19) Acresce que, também em matéria de direito a decisão proferida laborou em manifesto erro, tendo equiparado a situação em apreço, na qual existem contratos de arrendamento em vigor, aos ruídos provenientes de estabelecimentos comerciais, tratando igual o que é diferente, pelo que violou o principio da igualdade ínsito no art. 13.º da CRP.
20) De facto, considerando que os Autores imputam a emissão de ruídos aos arrendatários dos Réus e nunca aos Réus, o tribunal a quo não pode olvidar e não aplicar o regime do arrendamento urbano.
21) Pelo contrato de arrendamento, os Réus entregaram os locados aos arrendatários, passando estes a serem equiparados a verdadeiros possuidores do imóvel, cabendo-lhe o direito de defender essa "posse" perante terceiros e até mesmo perante o senhorio (vide remessa para o art. 1276.º e seguintes), pelo que se o arrendatário passa a ter que se defender perante terceiros dos atos que perturbem os seus direitos, também será este arrendatário responsável pelos seus próprios atos perante terceiros.
22) Não incumbe ao senhorio qualquer dever de vigiar os arrendatários.
23) Como tal, a sentença sub judice laborou em manifesto erro nos pressupostos de direito, devendo ter analisado a questão levantada e declarado os Réus parte ilegítima na presente ação, considerando que não podem ser responsabilizados por atos de terceiros, no caso seus arrendatários. Ilegitimidade que nesta sede se invoca para todos os devidos e legais efeitos e que sempre deverá desaguar na absolvição dos Réus do pedido.
24) Acresce que as providências emergentes da presente ação de tutela de direitos de personalidade pressupõe que exista da parte, no caso, dos Réus, uma atuação ilícita e voluntária, nos termos do n.º 1 do art. 70.º do CC.
25) Ora, a decisão sub judice não imputado aos Réus qualquer facto ilícito nem voluntário, sobretudo porque os Autores também não lhes imputam a emissão de ruído, nem invocam que os Réus obrigam os seus arrendatários a emitir qualquer tipo de ruído - o que sempre seria falso e se coloca por mera hipótese académica -, pelo que incorre a sentença sub judice em manifesto erro na aplicação do direito, violando expressamente do n.º 1 do art. 70.º do CC.
26) Ademais, os mesmos não podem sequer atuar contra o alegado ruído existente, tanto porque não seria a resolução dos contratos de arrendamento que resolveria o problema dos Autores - note-se que estes até dizem, e resulta da sentença como provado, que o problema são "os arrendatários que pelo prédio vão passando e os amigos destes"-, como porque, no caso concreto, a resolução não seria sequer viável, uma vez que se desconhece quem em concreto emite o ruído - sendo que os contratos em vigor à data da proposição da ação já cessaram - e/ou o grau e consequências do mesmo.
27) Sendo certo até que a resolução não é um dever do Réu, nem este tem qualquer poder de autoridade para fazer cessar o ruído e a resolução dos contratos de arrendamento, mesmo que possível - o que não se concede - não teria a virtualidade nem de evitar a consumação da ameaça aos direitos dos Autores, nem atenuaria os efeitos da alegada ofensa já cometida.
28) Pelo que também, neste conspecto, não existiria qualquer ilicitude, sendo a sentença sub judice nula e ilegal por violação do n.º 2 do art. 70.º do CC.
29) Sem prescindir, no que concerne à determinação da sanção, nos termos do n.º 2 do art. 829.º-A do Código Civil, é expressamente determinado que a mesma deve ser fixada segundo critérios de razoabilidade.
30) Ora, na sentença em dissídio não existe qualquer fundamento ou justificação para a aplicação de sanção, sendo a mesma totalmente omissa nos fundamentos para a determinação da sanção, quer no que concerne ao valor, quer no que concerne à fixação de sanção aplicável aos Réus por atos de terceiros, pelo que a mesmo é nula por falta de fundamentação, violando o art. 154.º do CPC e a alínea c) do n.º 1 do art. do art.º 615.º do CPC, nulidade que expressamente se invoca para todos os devidos e legais efeitos.
31) Acresce que o montante fixado é claramente exagerado, desproporcionado e injustificado, excedendo o dobro do salário mínimo nacional, e atendendo até aos acórdãos citados na sentença, que além do mais, até se referem a atividades comerciais, que não é sequer o caso dos Réus.
32) Pelo que, neste conspecto, a sentença é manifestamente ilegal por violadora, além do mais, do n.º 2 do art. 829.º-A do Código Civil, violando ainda o princípio da proporcionalidade, na modalidade de proibição do excesso, ínsito no n.º 2 do art. 18.º da Constituição da República Portuguesa. Ilegalidade e inconstitucionalidade que se invocam para todos os devidos e legais efeitos. 33) Além do mais, considerando que a aplicação da sanção determinada na decisão sub judice pode advir da conduta de terceiros - que os Réus não têm autoridade nem mecanismos para controlar -, sempre a mesma se mostra a totalmente irrazoável, não sendo esse o escopo do n.º 1 do art. 829.º-A do Código Civil, que expressamente se refere que a sanção é aplicável ao devedor, no caso concreto, quem alegadamente provoca o ruído.
34) Assim sendo, também por este fundamento sempre a sentença seria manifestamente ilegal por violadora, além do mais, do n.º 2 do art. 829.º-A do Código Civil e da alínea c) do n.º 1 do art. do art.º 615.º do CPC.
 
Pugam a final - nestes termos e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, assim, deve ser julgada procedente a exceção de ilegitimidade e os Réus absolvidos do pedido, ou quando assim não se entenda, deve a sentença ser revogada, além do mais, por ser nula e violadora de garantias constitucionais, com todas as consequências legais.
 
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Não se contra-motiva.
 
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Na 1ª instância sustenta-se não padecer a sentença proferida dos vícios apontados.
 
Conforme se transcreve: 
 
Os recorrentes imputam à sentença as nulidades previstas no artº 615º, nº 1 b) e d) do CPC.
Cumpre apreciar (artº 617º, nº 1 do CPC).
Alegam os recorrentes que invocaram expressamente na contestação a excepção de ilegitimidade passiva, fundada no facto de não ser imputável aos réus a emissão de qualquer ruído ou barulho, dado que os autores sustentam que o tal alegado ruído e ou barulho que os incomoda é emitido por pessoas não concretamente identificadas, a quem os autores se referem como "estudantes de Erasmus", arrendatários do imóvel, propriedade dos réus, e, portanto, maiores, a quem os réus, em face do contratualizado cedem o gozo do imóvel. E que a sentença é totalmente omissa no que concerne à ilegitimidade substantiva, que provém da inexistência de qualquer facto imputado aos réus - mas quando muito apenas e tão só aos seus arrendatários - como aliás, resulta da matéria dada por provada.
Parece-nos, salvo o devido respeito, que a sentença não enferma de tais vícios.
Consta da sentença que os réus CC e a Herança Aberta e Indivisa por óbito de DD, são donos e legítimos proprietários do prédio sito no nº ...5 da Rua ..., na cidade ... e descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...19 da freguesia ... (..., ..., ... e ...) e inscrito na matriz predial urbana sob o nº ...79 da União de Freguesias ... (..., ..., ... e ...). Mais consta que nesse edifício residem vários arrendatários dos requeridos - nem sempre os mesmos – em média, em cada ano lectivo, cerca de 25 arrendatários, na sua maioria estudantes do Programa Erasmus. Os arrendatários que por este prédio vão passando e amigos ou conhecidos destes, realizam frequentemente - cerca de duas ou três vezes por semana - convívios, festas e outras actividades no exterior e interior do dito prédio. Nesses convívios, que ocorrem em regra pela tarde e noite, põem música excessivamente alta, há gritos e gargalhadas estridentes, palavrões estridentes em diversos idiomas, garrafas a partirem-se - barulhos motivados, além do mais, pelo consumo sistemático de álcool. Tais convívios prolongam-se frequentemente até cerca das 2 horas. Está provado que os ruídos em questão perturbam o sossego, tranquilidade e repouso dos autores e seus filhos. Na sentença são referidos vários acórdãos e doutrina onde, em breve síntese, se manifesta o entendimento de que o direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade de uma parte - no caso dos requerentes - prevalece sobre o direito à actividade económica, iniciativa económica ou actividade empresarial da outra - no caso dos requeridos. Ou seja, os requeridos são parte legítima porque são eles que exercem a actividade ou iniciativa económica - no caso os contratos de arrendamentos, pelos quais cedem a terceiros o gozo do imóvel. Da mesma forma que muitas das decisões referidas referem como partes legítimas quem explora estabelecimentos comerciais (gerentes, administradores, por exemplo) em que os clientes fazem barulho - vozes de clientes, arrastamento de cadeiras, etc… Mais consta da sentença que “Alegaram os réus que nunca poderia existir discricionariedade na limitação do seu direito de propriedade e que o direito à propriedade é um direito fundamental previsto no artº 61º da Constituição da República Portuguesa, pelo que, qualquer limitação ao mesmo tem que ser adequada e proporcional. Efectivamente assim é, mas devem os réus acautelar problemas como o que está em causa nos autos, designadamente na celebração dos contratos de arrendamento… E se não conseguem “controlar" este tipo de situações, então terão de deixar de arrendar as fracções…”.
Por outro lado, decidiu-se na sentença:
“- Condeno os requeridos a não emitirem nem permitirem a emissão, a partir do prédio sito na Rua ..., de que são proprietários, de ruídos que perturbem o sono, a tranquilidade e o descanso, designadamente ruídos decorrentes de festas e/ou outros eventos ocorridos no período compreendido entre as 22 horas e as 7 horas;
- Condeno os requeridos, nos termos do nº 4, in fine, do artº 879º do CPC, no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória no valor de 1500 €, por cada dia de infracção ao supra determinado...”.
Assim, da decisão resulta que a condenação dos requeridos está relacionada com os contratos de arrendamento que celebram com os inquilinos que dão origem ao ruído… Sendo, pois, inequívoca a sentença quanto à legitimidade substantiva dos requeridos.
Os recorrentes imputam também à sentença a nulidade por falta de fundamentação. Parece-nos, salvo o devido respeito, que a sentença se mostra suficientemente  fundamentada. Entendemos que a motivação da sentença respeita os requisitos do artº 607º nº 4 do CPC. Diga-se também que “é entendimento praticamente unânime que a nulidade prevista na al. b) do nº 1 do art. 615º [antes prevista na al. b) do nº 1 do art. 668º do CPC revogado] só se verifica em caso de absoluta falta de fundamentação e não também em caso de insuficiência desta [por todos, vejam-se: Prof. Lebre de Freitas (e outros), in Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 2001, pg. 669-670, anotação 3; Prof. Castro Mendes, in Direito Processual Civil, vol. III, 1980, pg. 308, nota 1; e Prof. Alberto dos Reis, in Código do Processo Civil Anotado, vol. V, 1984, pág. 140, que ensinava que “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade]” – acórdão do TRP de 24.02.2015, proferido no processo n.º 28627/14.6YIPRT.P1, na base de dados da DGSI. Ora, em suma, os factos estão fixados e fundamentados. O acerto da fixação ou da fundamentação é já matéria de mérito do recurso, não de insuficiência formal geradora de nulidade.
Em face do exposto, entendemos não existir nulidade da sentença.
 
*
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
 
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II- ENQUADRAMENTO JURÍDICO
 
Pelas conclusões das alegações do recurso se afere e delimita o objecto e o âmbito do mesmo. 
 
III – OBJECTO DO RECURSO 
 
As questões que se colocam ao julgador através da presente apelação são:
 

 
I- decidir da verificação ou não da excepção peremptória da ilegitimidade passiva substantiva e das nulidades invocadas; II – saber quais os factos a ter em conta; III- decidir do mérito da causa.
 
IV- mérito do recurso 
 

1ª questão
 
*
 
Os Apelantes arguem a nulidade de falta de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.
Apontam-na como prevista no artigo 615º, 1, b) do CPC.
Referem que a forma como se expôs a decisão sobre a matéria de facto não permite averiguar qual o raciocínio que a primeira instância utilizou para julgar a matéria de facto nos termos em que o fez.
 
Vejamos.
 
O vício a que se refere a alínea b) do nº 1 do artigo 615º do CPC corresponde à omissão do dever de cumprimento do dever de fundamentação – artigo 205º, 1 da CRP – que impende sobre o juiz de indicar  as razões de facto e de direito que sustentam a sua decisão, pois só assim as partes ficam cientes das razões factuais e jurídicas que conduziram ao sucesso ou fracasso das suas pretensões, e a decisão constitui a concretização abstracta da vontade da lei no caso concreto.  Só a falta absoluta de fundamentação – quer de facto, quer de direito – é que leva à verificação de tal nulidade. 
O 1º grau especificou os factos – dos relevantes - que considerou provados e bem assim os que considerou não provados. De seguida analisou de direito, pronunciando-se a final sobre todas as pretensões formuladas.  Não se verifica tal nulidade no caso dos autos. 
 
Os Apelantes pretendem, certamente, referir-se ao comando do artigo 607º, 4 do CPC.
 
No 1º grau o Senhor Juiz indicou as provas onde foi beber a convicção que adquiriu sobre a factualidade controvertida.

 
Assim escreveu:
 
O tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada com base nos documentos juntos aos autos, conjugados com a prova testemunhal ouvida, declarações de parte dos autores e do réu CC.
Fez depois uma elencagem exaustiva dos documentos juntos.
 
Já relativamente ao restante do comando do nº 4 do referido artigo, o Senhor Juiz, sobre cada pessoa ouvida na audiência final, elaborou um circunstanciado e sequenciado resumo do que foi por ela dito, tudo em termos rigorosos e respeitadores das gravações da prova efectuada.
 
Assim escreveu: 
 
O autor declarou que 
 
vive com a família naquela moradia há cerca de cinco anos. Queria ter  uma moradia unifamiliar para ter sossego. Pensava que aquela era uma zona sossegada. A casa é antiga. Quando a comprou estava muito degradada. Reabilitaram-na. Quando a sua família foi para lá viver aquilo era calmo - era Verão. Passados meses começaram os problemas. Há festas no pátio do prédio vizinho, ruídos, “asneiredo”, fumam charros… No prédio ao lado - prédio dos réus - há uma cave onde vivem dois irmãos. No 1º e no 2º pisos há duas fracções (direito e esquerdo) e no 3º piso vivem os proprietários. As fachadas dos dois prédios (dos autores e dos réus) distam 4 metros. Há lá (no
prédio do lado) entre 20 e 25 estudantes, nas ditas quatro fracções. Fazem festas no logradouro do prédio - chegou a haver 150 pessoas numa festa no logradouro. Às terçasfeiras, quintas-feiras e sábados há sempre festas. Os estudantes “picam-no” - dizem, por exemplo “tens uma mulher muito boa”… Uma vez queriam bater-lhe… Fazem e tomam refeições no exterior. Quando há festas põem o som muito alto. Ele, autor, para minimizar o problema do barulho ergueu uma barreira acústica e de incêndio, mas não resulta. O barulho incomoda-o a à sua família. Uma vez “mediu” o ruído e “acusou” 75 decibéis, que é o barulho que existe numa fábrica. A mulher é pediatra, fazia noites e deixou de fazer. O filho mais velho anda a ser medicado para défice de atenção. No que lhe diz respeito, com o tipo de obras (e volume) que tem, precisa de ter a cabeça limpa, precisa de dormir 8 horas. Ora, tem perturbações do sono. Deitava-se às 10 (22) horas, mas agora deita-se à meia noite e acorda às 5 da manhã. Anda a dormir 5 horas por noite. No prédio ao lado há festas todas as terças feiras, quintas feiras e sábados. Estão sempre em Queima das Fitas - porque depois vêm pessoas de fora. Na internet até está “fazer festas até vir a Polícia”. Já tiveram reuniões com o Comandante da Polícia e o Vice-Reitor da Universidade, mas estes dizem que nada podem fazer… Mais declarou que na mesma rua há outras casas com estudantes, mas estes comportam-se de outra forma, não fazem festas várias vezes por semana. A Rua ... é muito movimentada de dia, até lá existe um Conservatório e uma creche, mas não os incomodam.
 
A autora BB declarou 
 
que é médica pediatra. Ela sempre morou naquela zona e tem consultório na ..., no Edifício .... A Rua ... era uma zona calma, segura. Durante o dia há alguma agitação, mas à noite não havia… O marido queria uma casa unifamiliar. Escolheram a casa onde moram há anos. O facto de a casa ter logradouro teve importância. Mas presentemente não usam o logradouro por causa do ruído. Quando mudaram para aquela casa o “A...” não tinha grande actividade. Mas depois passou a ter “uma Queima das Fitas permanente”. Fazem lá festas frequentemente, sobretudo às quintas feiras e fins de semana.
Há lá consumo de substâncias ilícitas, pessoas alcoolizadas, com atitudes provocatórias, que até já ameaçaram o marido. Fazem muito barulho. Há períodos em que a música está muito alta, dizem palavrões, falam muito alto. Há cerca de um mês até tinham uma coluna (de som) com rodinhas. Atiram com garrafas para o chão. Ela dorme pouco e está sempre a acordar, anda stressada, tem enxaquecas - que agravam com a privação do sono -, toma medicação. Os filhos têm falta de concentração.
 
O réu CC declarou 
 
reside no “A...”, no 2º esquerdo. No prédio residem ele e a esposa HH, bem como a ré EE. No rés do chão vivem arrendatários. Estes têm contratos de arrendamento. Nenhum deles tem menos de 18 anos. Os arrendatários fazem festas esporadicamente - menos de uma vez por semana. Ele e a esposa são enfermeiros, fazem turnos e não têm dificuldade em dormir. A rua onde moram nem sempre é sossegada. Passam muitas pessoas na rua, mesmo à noite. Ao lado há uma escola de música e uma creche. Noutras casas também há estudantes que também fazem barulho. Desde que surgiu esta acção teve de pedir aos arrendatários que fizessem menos barulho. Um dia, cerca das 21 horas, deram conta de que o barulho era excessivo e disseram-lhes que desligassem a música e falassem baixo - o que eles acataram. Os arrendatários são na sua maioria estrangeiros (cerca de 70%), mas não são todos estudantes de Erasmus. Até já tiveram arrendatários que eram professores a fazer doutoramentos. No logradouro do prédio havia um “local de convívio”, mas depois ele “mudou-o” para um local mais longínquo do prédio vizinho - pôs um relvado… O autor persegue-o, ameaça-o e ofende-o. Chamou-lhe cabrão e filho da puta e deu-lhe quatro joelhadas. Tem receio dele. Até teve de instalar um sistema de videovigilância. Já lá foram várias vezes várias polícias. Mais declarou que ouve música com auscultadores, mesmo dentro de casa.
 
A testemunha II declarou que 
 
residiu na Rua ... e a sua mãe ainda lá vive. Ele vai a casa da mãe todos os dias. Faz lá grande parte das refeições. Durante o dia “é complicado”, nomeadamente para estacionar. Há casas de habitação, uma creche, já houve uma escola de música. Mas à noite a rua era sossegada. Mas agora a mãe queixa-se de barulho à noite. Conhece o A.... O barulho de que a mãe se queixa vem do A.... Há uma casa de permeio. O quarto da mãe dele é virado para as traseiras. No A... fazem barulho.
Há festas - por regra às terças e quintas feiras -, música, vozes, risos… Já assistiu a confusão, viu vomitado ao pé da porta, copos no chão, garrafas nos muros. Pensa que as pessoas estão alcoolizadas. Ele assiste ao início das festas - por volta das 22 horas - mas não assiste ao final das festas. Também há estudantes a residir na Rua ....
 
A testemunha JJ declarou 
 
que reside na Rua ... em 2018. Passados meses viu que havia estudantes na casa vermelha (A...).
Começou a ver, com alguma frequência, as festas. Até teve de mudar de quarto por causa dos barulhos das festas da casa vermelha. Conheceu o autor por causa desta situação. Vê bem o logradouro e as varandas da casa vermelha - até consegue ver as caras das pessoas. O barulho depende da quantidade de pessoas que estão no logradouro. Já lá viu mais de 100 pessoas. O barulho incomoda-a - daí ter mudado de quarto. Mas ainda assim ouve barulho. Às vezes vê o réu CC, no último andar, na varanda, com fones. Até pensava
“coitado” e tinha pena… Soube mais tarde que ele era proprietário do prédio. Durante a pandemia estava tudo mais calmo, mas depois ressurgiu o problema. Há festas pelo menos duas vezes por semana, à tarde e à noite. Ouve falar espanhol, italiano… O logradouro da casa vermelha tem um desnível. Ultimamente o convívio é feito mais do lado da casa dela e mais afastado da casa do autor. Durante os meses de férias é mais calmo. Nos convívios nunca viu o réu CC. No prédio onde ela habita também há estudantes, mas usufruem dos apartamentos de forma normal, não fazem festas.
 
A testemunha KK declarou que 
 
vive na Rua ... e conhece a casa (A...). Passeia o cão quase todos os dias e passa ao pé da casa.
Um dia, à tarde, passou lá e ouviu barulho que parecia de uma festa. O engº AA estava em sua casa e foi “mostrar-lhe” a festa. Há um logradouro nas traseiras. Estariam lá cerca de 20/30 pessoas. Um homem tirou as calças e mostrou o rabo, numa atitude provocatória. Havia música excessivamente alta, altos berros, vozes a conversar muito alto… O autor chamou a polícia. O autor queixa-se de que não dorme… Mais declarou que há uma residência de estudantes na rua onde ele, testemunha, reside, próximo da casa dele e não fazem barulho…
 
A testemunha LL declarou que 
 
conhece o réu CC e a esposa e que viveu desde Agosto de 2019 a Outubro de 2022 na casa (A...), onde o réu CC e a esposa vivem. Trabalha desde Abril de 2021. É farmacêutico. Muito pontualmente - talvez duas ou três vezes por mês, até à 1 hora da manhã - sentia-se incomodado com o ruído. Ele por vezes também participava nas festas. Habitam lá estudantes - pensa que menos de 20.
Tinha dificuldade em adormecer. Mas como o barulho acabava à 1 hora, não afectava o trabalho.
Nunca viu necessidade de chamar a polícia. Nunca viu os réus nas festas. Na vizinhança, por exemplo na rua paralela, também há residências com estudantes. Ouviu dizer que o autor tinha uma atitude provocatória, que abordava os estudantes. Acabou por admitir que algumas festas iam para além da 1 hora da manhã. Por vezes havia pessoas alcoolizadas, bem como música alta demais e conversas altas demais. Uma vez viu lá a Polícia.
 
O dever de fundamentação da decisão de facto exige actualmente a indicação do processo lógico-racional que conduziu à formação da convicção do julgador e, relativamente aos factos que considera provados ou não provados. 
Mas a violação deste dever de fundamentação não se confunde com a nulidade prevista no artigo 615º, 1, b) do CPC.
A deficiente fundamentação apenas poderá afectar o valor doutrinal da sentença e acarretar a menor robustez da decisão, aumentando o risco de vir a ser revogada. Cfr- Ac. TRL de 22-2-2018, p. 332/15/3T8MTJ.L1-8, acessível no site da dgsi.net. 
 
Improcede, face a estes considerandos, a arguição da nulidade.
 
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Os Apelante apodam padecer a sentença recorrida da nulidade de omissão de pronúncia prevista no artigo 615º, 1, d), 1ªparte, do CPC.
Este vício acontece quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar.
 
Ora, os Réus invocaram expressamente na contestação a excepção de ilegitimidade passiva, fundada no facto de lhes não ser imputável a emissão de qualquer ruído ou barulho, dado que os Autores sustentam que o tal alegado ruído e ou barulho que os incomoda é emitido por pessoas não concretamente identificadas, a quem os Autores se referem como "estudantes de Erasmus", arrendatários do imóvel, propriedade dos Réus, e, portanto, maiores, a quem os Réus, em face do contratualizado cedem o gozo do imóvel. 
Alegam os Apelantes ser a sentença totalmente omissa no que concerne à ilegitimidade substantiva, que provém da inexistência de qualquer facto
imputado aos Réus - mas quando muito apenas e tão só aos seus arrendatários - como aliás, resulta da matéria dada por provada.
 
Já vimos que foi julgada improcedente a excepção da ilegitimidade processual passiva, que levaria à absolvição dos réus da instância e à não apreciação do mérito da causa.
A ilegitimidade substantiva foi relegada para a sentença a proferir.
 
Postos eles elementos, vejamos. 
 
É sabido:
 
I - Ao apuramento da legitimidade processual - pressuposto processual que se reporta à relação de interesse das partes com o objeto da ação e que, a verificar-se, conduz à absolvição da instância - releva, apenas, a consideração do concreto pedido e da respetiva causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram a última e do mérito da causa. A legitimidade processual afere-se pela titularidade da relação material controvertida tal como é configurada pelo Autor, na petição inicial, e é nestes termos que tem de ser apreciada.
II - A legitimidade substancial ou substantiva respeita à efetividade da relação material. Prende-se com o concreto pedido e a causa de pedir que o fundamenta e, por isso, com o mérito da causa, sendo requisito da procedência do pedido. A verificação da ilegitimidade substantiva leva à absolvição do pedido. Cfr. Ac. TRP de 4-10-2021 prolatado no p. nº 1910/20.4T8PNF.P1 (Eugénia Cunha), acessível no site já aludido.
 
Os Réus vêm demandados, ao abrigo do definido no n.º 2 do art. 70.º do CC, e, bem assim, do art. 878.º do CPC, na presente acção especial para tutela da personalidade.
 
Olhemos a lição de Alexandra Filipa da Silva Duarte, in O Processo Especial de Tutela da Personalidade, Algumas questões Pertinentes, FDUC, 2014, p. 9 e ss, acessível na net, para perceber que nele tem legitimidade passiva.    
 
O processo especial de tutela da personalidade revela-se o meio idóneo para requerer as providências adequadas a evitar a consumação de ameaça ou atenuar os efeitos de ofensa já cometida aos direitos de personalidade.
 
 
No que diz respeito à legitimidade processual passiva comecemos por olhar esta questão tal como se encontrava prevista no CPC revogado.
Ora, … o processo especial em análise encontrava-se consagrado no CPC revogado como processo especial de tutela da personalidade, do nome e da correspondência confidencial. Por assim ser, o art. 1474º do CPC revogado previa em cada um dos seus números uma regra relativa à legitimidade processual passiva. De acordo com Pedro Pais de Vasconcelos seria uma regra geral e duas (cfr- PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Direito de Personalidade op. cit. p. 132.) especiais: a regra geral prevista no nº 1 estabelecia que o pedido deveria ser formulado contra o autor da ameaça ou da ofensa (e estaria em causa a tutela da personalidade de uma maneira geral); a regra especial consagrada no nº 2, prevista para aquelas situações em que se pretendia evitar o uso prejudicial de nome idêntico ao do requerente, estabelecia que o pedido deveria ser dirigido contra quem usou ou pretendesse usar o nome; já a regra especial do nº 3 estabelecia, para os casos em que se pretendia a restituição ou destruição de carta missiva confidencial cujo destinatário tivesse falecido, que o pedido deveria ser dirigido contra o detentor da carta. Eram estas as regras no que à legitimidade passiva diz respeito durante a vigência do CPC revogado. Isto levantava um problema. É que sendo aquelas as regras sobre legitimidade passiva, o regime plasmado no CPC revogado era mais restrito que o regime previsto no nº 2 do art. 70º do CC que não estabelece qualquer tipo de limite. O nº 2 do art. 70º apenas refere que a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, não estabelecendo qualquer tipo de limitação quanto a contra quem se podem requerer tais providências. Nestes moldes, o CPC revogado impedia o decretamento de providências de tutela da personalidade que tivessem de ser decretadas contra quem não fosse o autor da ameaça ou ofensa, não tivesse ou pretendesse usar o nome ou não fosse detentor da carta. Estas regras previstas no CPC revogado poderiam vir a deixar de fora situações igualmente merecedoras de tutela pelo processo especial. Pedro Pais de Vasconcelos avança com alguns exemplos dos quais aqui daremos conta de apenas um para ilustrar a situação mencionada: «Imaginemos o caso em que alguém, de identidade desconhecida, procede à pintura na parede exterior de um edifício murado, a vários metros de altura, de uma inscrição muito visível cujo conteúdo é gravemente ofensivo da honra de certa pessoa» (cfr- PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Direito de Personalidade op. cit. p. 133.). Apenas com recurso à regra (mais ampla) prevista no nº 2 do art. 70º do CC seria possível contornar esta situação, uma vez que o único limite que estabelece é o da adequação às circunstâncias do caso, pelo que seria possível requerer o decretamento de uma providência contra o proprietário do edifício (…), uma vez que este seria o único capaz de efectivar uma eventual providência que viesse a ser decretada.
A verdade é que, já durante a vigência do CPC revogado, Pedro Pais de Vasconcelos defendia que a redacção do art. 1474º do CPC revogado não impedia que fossem requeridas providências contra um terceiro que não fosse qualquer dos sujeitos mencionados no referido artigo. De acordo com a sua opinião «C...] o nº 1 do art. 1474º do Código de Processo Civil, confrontado com o nº 2 do art. 70º do Código Civil, não impede o requerimento e o decretamento de providências de tutela da personalidade contra terceiro inocente, sempre que tal seja necessário para assegurar a adequação e eficiência da providência». Cremos que só uma interpretação no sentido acabado de referir permitiria uma cabal aplicação do processo especial de tutela da personalidade, caso contrário situações igualmente merecedoras de tutela por parte deste processo ficariam desprotegidas, pois sempre se poderia invocar a ilegitimidade processual passiva.
Parece, contudo, que o NCPC, com a redacção dada ao art. 878º, veio resolver esta questão. O art. 878º prevê que pode ser requerido o decretamento das providências concretamente adequadas a evitar a consumação de qualquer ameaça ilícita e directa à personalidade fisica ou moral de ser humano ou a atenuar, ou a fazer cessar, os efeitos da ofensa já cometida. Deste modo, o novo art. 878º não prevê qualquer regra quanto ao que à legitimidade passiva diz respeito, pelo que a redacção deste artigo se aproximou muito mais, sendo mesmo semelhante, da redacção do nº 2 do art. 70º do CC. Nestes termos, a interpretação anteriormente já defendida por Pedro Pais de Vasconcelos parece ter agora consagração legal. Assim, hoje, é possível requerer o decretamento de providências tuteladoras da personalidade contra qualquer pessoa, desde que tal se mostre adequado a evitar a consumação de qualquer ameaça ou a
atenuar, ou fazer cessar, os efeitos da ofensa já cometida. Destarte, o único limite hoje existente é o da adequação da providência cautelar requerida à situação concreta.
Esteve bem o legislador ao pôr termo a esta controvérsia que afectava o processo especial de tutela da personalidade. Cremos também que a forma pela qual pôs termo à questão foi também a mais adequada, sendo que agora, sem quaisquer margens para dúvidas, se alargou o âmbito de aplicação do processo especial de tutela da personalidade.
 
 
Assim sendo, nada impede que sejam pedidas contra os ora Réus, medidas provisórias ou definitivas, contra a emissão de ruído e ou barulho, incomodativos dos ora Autores, emitidos por pessoas não concretamente identificadas, arrendatários do imóvel, propriedade dos Réus, desde que as providências sejam as adequadas a evitar a consumação de ameaça ou atenuar os efeitos de ofensa já cometida aos direitos de personalidade dos Autores.
 
Por outro, a decretação das medidas peticionadas, no dispositivo final da decisão proferida, só demonstra que a questão da eventual ilegitimidade passiva substantiva foi implicitamente decidida improcedente. 
 
Daí improceder a arguição dos Apelantes. 
 

2ª questão
 
Os Apelantes pretendem se dê como não provados os seguintes factos, vindos como provados: 
4
Pelo menos desde há cerca de seis anos são vários, sucessivos e reiterados os constrangimentos e condicionamentos que sofrem ao uso e fruição do mesmo, nomeadamente como consequência de ruídos e perturbações sonoras que são constantemente promanadas do referido edifício propriedade dos requeridos.
5
Os arrendatários que por este prédio vão passando e amigos ou conhecidos destes, realizam frequentemente - cerca de duas ou três vezes por semana - convívios, festas e outras actividades no exterior e interior do dito prédio. Nesses convívios, que ocorrem em regra pela tarde e noite, põem música excessivamente alta, há gritos e gargalhadas estridentes, palavrões estridentes em diversos idiomas, garrafas a partirem-se - barulhos motivados, além do mais, pelo consumo sistemático de álcool. Tais convívios prolongam-se frequentemente até cerca das 2 horas.
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Em consequência desses barulhos, a vida familiar dos autores e dos seus filhos tem sido afectada, dado que se têm visto privados de tranquilidade, serenidade e reserva de intimidade que esperavam alcançar com a aquisição do seu imóvel, que constitui a sua casa de morada de família.
7
A autora BB, que é médica pediatra, encontra-se proibida, desde Julho de 2018, por indicação médica em consequência da apresentação de um quadro clínico de enxaqueca violenta crónica - devido à falta de descanso provocada pelas sobreditas perturbações e, bem assim, ao stress que toda a situação provoca -, de prestar serviço noturno. Tal implica a possibilidade de uma desvalorização profissional, bem como uma redução dos rendimentos que costumava auferir e que iria continuar a auferir, não fosse dar-se a referida situação.
8
O autor AA, que é engenheiro civil e que, no âmbito dessa actividade, prepara e leva a efeito revisões projectistas de grandes infraestruturas, também é afectado por tal falta de descanso e repouso, que também motiva um estado acentuado de nervosismo em que se encontra.
9
Os filhos menores dos autores também têm sido privados de descanso e bemestar, dado que não conseguem dormir normalmente, padecem de problemas ao nível de concentração, o que afecta o seu rendimento escolar.
10
Acresce que os filhos menores dos autores não podem convidar amigos a frequentar a sua casa e, muito em particular, a nela pernoitarem, uma vez que o descanso não é possível com música em “altos berros”.
 
Os Apelantes invocam falta de prova e invocam existir ainda, conjugada a prova oral e documental, prova do concreto ruído, da frequência do ruído e das consequências do ruído. 
 
*
 
Consultámos assim a prova oral produzida constante das gravações, de acordo com as actas da audiência final. 
 
Foram ouvidas as pessoas nos termos da ordem seguinte: 
 
 
O Autor – AA prestou depoimento em sede de declarações de parte. 
Reside na Rua ..., ..., há 5 anos. Trata-se de uma moradia centenária. Estava devoluta. Era uma das casas mais antigas de Coimbra- data de 1905. Procurou ali sossego. Sabia por outros residentes ali, que o lugar era sossegado.

 
Reabilitaram a casa. 
 
O edifício dos Réus não está no regime de propriedade horizontal. Tem vários andares e vários fogos. Na cave vivem lá dois irmãos. No 1º e 2º pisos há dois fogos por piso e no 3º piso vivem os Réus pessoas singulares. 
 
Com a cedência dos 1º e 2º pisos do edifício dos Réus, por estes, a estudantes, surgiram os barulhos. 
 
O Depoente edificou uma barreira acústica e de corta-fogo entre o seu prédio e o dos Réus, mas não se consegue evitar o ruído.
 
O Depoente elenca várias diligências que fez junto dos Réus no sentido de evitar a emissão do barulho, mas estes não se mostraram compreensivos nem sensibilizados para intervir. 
 
Descreve os barulhos, a intensidade dos mesmos, a frequência dos mesmos.
 
Descreve os comportamentos dos utentes dos dois referidos pisos do edifício dos Réus, para além das festas contínuas, do “asneiredo”, de palavrões, de comportamentos desviantes … 
 
Fala da última festa (há 4 dias atrás): começou às 3 da tarde. Um filho tinha exame na segunda-feira teve de ir estudar para outro lado. O outro filho teve de ir estudar para o consultório da esposa. A festa prolongou-se pela noite. O Depoente e uma vizinha chamaram a polícia.
Anteriormente ( a esta última festa) o padrão de comportamentos é o mesmo. 
 
No logradouro da habitação dos Réus há um espaço para estar, conviver. Já depois de intentada a acção houve ali uma festa com pelo menos 150 pessoas. 
 
Já entrou no edifício dos Réus, o mesmo não tem requisitos de habitação para convivência.
 
O Depoente tem os comportamentos gravosos dos utentes do prédio dos Réus, gravados em vídeos. 
 
Tais utentes tomam as refeições no tal logradouro. 
 
 
O edifício dos Autores e dos Réus dista entre si 4 metros. 
 
O edifício dos Réus está sobrelotado. Tem falta de casas de banho. Tem as janelas abertas. Os utentes estão convencidos de que estão numa “residência de estudantes”. Os comportamentos e posturas no interior são descontraídos, indiferentes aos vizinhos. 
 
O som da música está alto, atiram pedras para o logradouro do prédio dos Autores; a polícia diz não poder fazer nada; já chamou a polícia mais de 30 vezes; as festas chegam a acontecer até às 3 da manhã. Já fez medições ao ruído que deram de resultado o equivalente ao ruído de uma fábrica.
 
Sobre as consequências… fala. A mulher (médica) deixou de fazer noites, anda com crises. O filho mais velho está a ser medicado.  Tem obras muito importantes, com projectos muito exigentes a nível de concentração e “cabeça limpa”. Estas ofensas/confusões estão a “degradar-lhe a vida”. Está sempre preocupado com a mulher, com os filhos, com a saúde, segurança e tranquilidade  da família. Não quer desgraçar a vida. Apenas quer que se faça justiça. 
 
Vive inseguro, desassossegado.
Vive com stress.
 
A frequência das altercações e festas no edifício dos Réus, que ocorre nos quartos e no logradouro:– às 3ª, 5ª e sábados. 
 
Na net pode ler-se os comentários dos utentes do edifício dos Réus: “festas até vir a polícia”.  
 
A Rua tem um Conservatório .... O barulho deste não chega à sua casa. Há uma creche. Mas o barulho desta não o incomoda. O barulho dos outros estudantes universitários, quer na rua, quer de outros locais onde estão alojados nas redondezas, mesmo quando há festas de “Queima das Fitas”, não o incomoda, porque cessa às horas de dormir. 
 
O barulho do prédio dos Réus é incomodativo. Está a falar de 22 horas até às uma ou duas horas da manhã. 
 
 
- Trata-se de um depoimento - de livre apreciação – artigo 466º, 3 do CPC – muito circunstanciado, algo que evidencia alguma descompressão de momento, mas emocionado e rigoroso. 
 
A defesa procura, descontextualizadamente, ver nestas declarações a diabolização “dos estudantes do ERASMUS”, hipersensibilidade do utente urbano face ao utente estudante ao abrigo de planos que visam o intercâmbio  entre nacionalidades.
 
As declarações são a ter em conta. 
 
*
 
A Autora BB presta igualmente o seu depoimento. 
 
O depoimento segue na mesma senda do produzido antes. 
 
Fala de comportamentos inadequados dos utentes dos 1º e 2º pisos do prédio dos Réus para quem pretende viver numa comunidade urbana; de horários desadequados; de pessoas alcoolizadas às 8 da manhã a tocar à campainha; de barulhos, música e convívios; insegurança quer à frente da sua porta, quer na confrontação dos dois prédios. 
O barulho ocorre a várias horas. Pode ocorrer ao fim-de-semana. Dá um exemplo  do barulho: 20 ou 30 pessoas a falar espanhol, em grupo. Há música, com frequência alta. Ouve-se mesmo com as janelas da sua casa fechadas.    
A Depoente tem filhos menores. Mas tem de pedir à empregada que feche as janelas que dão para o prédio vizinho, pois ali podem ver-se facilmente raparigas a arranjarem-se, etc.  
Chega a haver grupos de 100 pessoas com comportamentos provocatórios, trazendo para a rua uma aparelhagem musical/altifalante com rodinhas. Chegam a urinar numa garrafa à frente da porta da casa da Depoente. Admite que podem ser pessoas que os utentes do edifício vizinho levam para lá. 
Há residências de estudantes ali perto, onde há regras. Onde até há piscinas, mas com porteiro, etc.. Mas a UC não tem jurisdição sobre estes alunos externos à Universidade. 
Todos os anos, em Setembro, recomeçamos um processo novo, com provocações e ofensas novas, com novos protagonistas.  
 
 
Fala da frequência das “festas” – festas grandes são às 5ª, 6ª e sábado. Depois há outras. É variável. Durante o dia são poucos, mas à noite dá para perceber que há muito mais gente. São amigos. Não os conhece.
 
Fala das consequências das “festas” dos “vizinhos” – provocam stress na Declarante; o marido tem sido provocado; os utentes não chamam nomes à Depoente, mas exprimem-se como um boçal provocador de rua. A Declarante verbaliza grande dificuldade em dormir, de ter necessidade de se medicar, de gerir emocionalmente a situação com o marido e filhos, o que lhe provoca desequilíbrios familiares.
O filho mais velho está no 12º ano. Tem de se esforçar com os estudos. O outro igualmente. Os filhos têm de ir estudar para os lugares de trabalho dos pais.  Por causa do barulho insuportável e irritante dos vizinhos, a Depoente não utiliza o logradouro do seu prédio – uma moradia. 
 
A Defesa limita-se a querer saber a que horas a Depoente chegou a casa no último sábado. 
 
- Declarações muito seguras, na mesma senda das proferidas pelo seu marido. Revelam sensibilidade, equilíbrio e razoabilidade.
 
A ter em conta.
 
Foi ouvido o Requerido CC.
 
Evidencia dificuldade auditiva.
 
No prédio dos Réus moram o depoente e a esposa HH – no 2º esq. -, uma senhora e os netos, no 2º direito. No restante são arrendatários. Todos são maiores. Todos têm contrato de arrendamento.
 
Vive bem na sua habitação.
Os arrendatários fazem esporadicamente festas. Podem ser almoços. 
O Depoente e esposa são enfermeiros. Trabalham por turnos. Não têm dificuldades em dormir. É um barulho normal de um prédio. Dorme bem, dorme várias horas. Dorme quando tem de dormir. 
 
A rua onde vive nem sempre é sossegada. Há pessoas na rua, à noite. Há carros do lixo. Há estudantes na rua, fazem festas. Há barulho préoprio deles. Nunca chamou a polícia.
 
Barulho produzido pelos seus arrendatários - já chegou a pedir aos arrendatários que não fizessem barulho. Desde que a acção foi intentada, isto já aconteceu uma vez. Acataram.
Dessa vez pediu para desligarem a música e para se calarem. Estava “um barulho excessivo” no logradouro- reconhece. 
 
Reconhece que o Autor o abordou sobre o assunto. 
 
É raro o Depoente intervir junto dos arrendatários. 
 
Nem todos os arrendatários são alunos do ERASMUS. 
 
... o presente processo ao ruído excessivo de que os Autores se queixam. 
 
Colocou um relvado no logradouro e a zona dos convívios ficou localizada mais ao fundo. 
O vizinho colocou entre os prédios uma barreira acústica.
 
Sente-se intimidado pelo Autor. 
 
O Declarante ouve música com auscultadores, mesmo dentro de casa. É comum andar de auscultadores mesmo na rua. Ainda é em FM.
 
Pede para falar mais alto... (dificuldades auditivas)
 
A instâncias, o depoimento mostra-se menos consistente. Por exemplo- diz que teve arrendatários a fazer doutoramento (pessoas que previsivelmente precisam de estudar e não pactuam com estas “festas”), mas depois esclarece que isso foi há 3-4 anos.
 
Diz que chega a estar 14 horas fora de casa. Faz turnos.
A maior parte das vezes os arrendatários estão a conversar normalmente.
 
 
Os arrendatários fazem festas menos que uma vez por semana. 
 
- O Declarante que é demandado não se pronuncia sobre os protestos e queixas dos Autores, seus vizinhos, relativamente ao ruído de “festas” e convívios, ajuntamentos e circulação de arrendatários e amigos, quer no logradouro e no interior do seu prédio, quer na rua frente ao mesmo. Não os nega.
O que diz é: admite esses ruídos, mas a frequência e a intensidade dos mesmos não o incomodam nem afectam no dia-a-dia. Reconhece que às vezes são excessivos. 
 
Não está sensibilizado para a possibilidade de estar a prejudicar terceiros, Autores e outros. 
 
Mas não explica porque afastou o espaço de convívios ( mesas e cadeiras ) mais para o fundo do logradouro. O som fica confinado no espaço dos quintais…
 
Pessoaliza o litígio na pessoa do Autor. 
 
Trata-se de pessoa que é visto por vezes à varanda do piso onde habita, de auscultadores nos ouvidos. 
 
Pragmático, conveniente.
 
Depoimento parcial que não colhe convencimento.
 
II, testemunha.
 
Descreve a realidade da Rua .... Vive ali há 17 anos. O “A...” é uma casa de cor bordeau duas ou três casas acima da da testemunha. 
 
Refere que a mãe se queixa do barulho dos convívios com origem no prédio e logradouro dos Réus. A mãe vive perto (uma casa de permeio). Houve-se música e agitação. Festejos. 
 
À 5ª e à 6ª feira os estudantes da cidade fazem festas com os do Erasmus.
Já chegou a ver vomitado à porta da sua casa. 
Pessoas que sóbrias não estão de certeza.   
 
Assiste ao início das festas no “A...”. Normalmente é a partir das 10 da noite. É alegria, festa, música, comemorações, vozes altas. Não assiste ao fim da festa, que sabe se prolonga depois da meia noite. 
 
Explica como a mãe da testemunha identifica os ruídos que ouve como partindo do prédio dos Réus. 
 
A Defesa insiste para a testemunha identificar a pessoa que vê alcoolizada, que deixa a garrafa à porta dos Autores …
 
- Mas o depoimento resulta descontraído, muito fundamentado, seguro e convincente.
Depoimento que credibiliza a versão dos Autores.
 
JJ, testemunha.
 
É antropóloga. É vizinha das partes. Vive na Rua ..., desde 2018, num “andar”. Em “frente” à sua habitação situa-se o prédio dos Réus. 
 
Diz que o Autor está mais “exposto” ao ruído e às altercações provocadas pelos arrendatários do prédio dos Réus do que a testemunha. 
 
Concretiza os “barulhos” – um bruado de multidão, depende da quantidade de pessoas no logradouro. 
Já aconteceu olhar e ver mais de 100 pessoas na festa, ouvem música, falma, bebem. Os logradouros estão ladeados de prédios. O som fecha. O som incomoda. 
A testemunha tem de fechar as janelas, muda de quarto. Mas ouve-se sempre, uma festa, uma discoteca. 
Mas ali é um espaço habitacional. As pessoas têm família, têm de dormir. Têm de descansar para ir trabalhar no dia seguinte.  
 
Conhece o Réu CC, localiza-o no prédio mas mais longe do local dos barulhos. Vê o senhor a fumar e de fones na varanda. “Até tinha pena dele”, pensava que o aparelho servia para anular o incómodo do ruído dos utentes do prédio... Afinal é o senhorio, responsável pelos arrendamentos no local... diz. 
 
 
Pelo menos há festa uma, duas vezes por semana. 
Costuma ser à tarde, à noite, … vê um “churrasco”, uma “festa”.
 
Conhece a tipologia do edifício dos Réus. Reconhece que há outras ocupações mais familiares no edifício dos Réus. Sabe dos “estudantes” por os ouvir falar em várias línguas. Descreve o logradouro do prédio dos Réus. 
 
Identifica os barulhos que ouve como provindos do logradouro dos Réus. Fundamenta. Fala de uma árvore, uma zona relvada recente. Descreve o logradouro. Fornece elementos para localizar no espaço físico outros depoimentos, de forma a que a Senhora Juiz que preside aos trabalhos possa aferir a respectiva razão de ciência. Refere que durante os meses de férias a situação é mais calma, durante a pandemia foi uma fase mais serena. Recentemente são convívios, festa, lanche. Não identifica ali outras festas que não sejam as com origem no logradouro e prédio dos Réus. 
 
- Depoimento calmo, seguro, pausado. Muito meticuloso e fundamentado. Muito convincente e fiável
  
KK, testemunha
 
Conhece os Autores.
É arquitecto.
 
Vive na Rua ..., em frente à Igreja .... 
Passeia o cão.
Uma vez passou pela rua onde ficam a casa dos Autores e dos Réus. Viu a
“festa”. 
Foi estudante na Inglaterra. Longe de pensar em fazer naquele País uma coisa daquelas, expulsavam-no.
 
Aqui (Portugal) não. Aconteceu que a testemunha estava ali a perceber o que acontecia e apareceu um morador da casa que lhe “mostrou o rabo de forma provocatória para criar -na pessoa da testemunha- algum sentimento de raiva”. A testemunha saiu dali… Explica assim.
 
Estas pessoas estão em Portugal e sabem que nada lhes acontece. 
 
Compreende e lamenta a sorte do Autor que tem de vir para Tribunal com “uma coisa destas”.
 
Os Autores andam nervosos, dormem mal. Eles e os filhos. 
 
Frequência das “festas” - duas ou três vezes por semana.
 
São coisas que vão para lá do normal. O que viu envolvia vinte pessoas. Fazem um forrobodó intenso e constante. Diz expressamente.
 
A maior parte destas pessoas não são nacionais. 
 
Da vez em que assistiu ao barulho: música alta. Do outro lado da Rua (em frente à maternidade Dr. Bissaya Barreto) já se percebia a festa. Altos berros. Era final da tarde. Uma série de pessoas que iam a passar, viram, presenciaram e ficaram a ver. Foi chamada a polícia. 
 
Refere que o Autor se queixa de “festas” pela noite fora, mas a essas horas a testemunha não passeia o cão, e não vê.
 
O que viu foi, na rua dos prédios dos Autores e dos Réus, uma “festa” ao fim da tarde. 
 
O edifício dos Réus está pintado com cor vermelha, vê-se sair de lá muitos estudantes, tem ligação a estudantes.    
 
- Depoimento que credibiliza a versão dos Autores. 
Apreciação cuidada dos factos, mas não condescendente.
A ter em conta.
 
MM, testemunha
 
É farmacêutico.
 
Barulho na parte exterior da casa sita na Rua ....
Habitou lá cerca de 3 anos, desde Agosto de 2019 a final de Outubro do presente ano – 2022.
 
Trabalha por turnos. 
Muito pontualmente sentiu-se incomodado pelo barulho. 
Esporadicamente, uma, duas três vezes por mês. Até à uma da manhã. Era pontual e limitado. Viviam lá várias pessoas. 
Quando estas coisas aconteciam tinha dificuldade em adormecer. 
Não vivia num “inferno acústico”. Conseguia trabalhar e estudar. Viviam lá o Sr. CC e a esposa.
Nunca teve a necessidade de chamar a polícia. Eram coisas que se podiam resolver internamente, dentro da casa.
O Sr. CC e a esposa não participavam nessas “festas”. 
 
Nas imediações há outras casas de estudantes, e ouve-se festas, barulho. Por exemplo, na rua paralela. Uma rua que vem do ... à .... 
 
Número de pessoas a viver no prédio – 20. 
 
Não conhece o Autor. Contacto, só de vista. 
 
Os estudantes comentavam que o Autor tinha uma posição provocatória, incitava à confusão. Os estudantes diziam que, sem provocação por parte deles, eram abordados na rua pelo ora Autor, AA. 
 
Os estudantes que habitam hoje, não são os daquele tempo. 
 
Por vezes participava nas festas – uma vez por mês, até à uma da manhã. 
 
A testemunha vem para casa às vezes tarde, e verifica que há grupos a circular naquela rua (meia-noite /uma da manhã).
 
Há, no prédio dos Réus, estudantes, é variável. Há pessoas de 19 a 26 anos.  
 
Admite que algumas vezes as “festas” se prolongavam para lá da uma da manhã. Admite que haveria consumo de álcool, música alta de mais, agitação, o normal dentro de uma festa.
As “festas” eram algumas lá fora, mas outras dentro do prédio, no Inverno. 
 
Admite que saia de manhã e voltava às 20 horas. Tem outras actividades – por exemplo música. Chegou a ver lá a polícia pelas 20 horas.
 
- Depoimento mais condescendente com o ruído provocado dentro e fora do prédio dos Réus, mas que não coloca em causa o fundamento das queixas dos Autores – as ofensas ao seu sossego, à tranquilidade da sua habitação e dos seus filhos. 
 
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Dos autos constam outros elementos de prova.
 
Designadamente:
 
Dos autos constam documentos de conteúdos retirados da net relativamente ao “A...” instalado pelos Réus no prédio em apreço, que é dos Réus. Cfr- fls. 17 a 24.
Neles podemos ver a oferta dos Réus para este tipo de arrendamento. Os preços.
Há notícia de “casa de banho partilhada”, de “varanda grande” e de “pátio exterior”, tudo funcionalidades referidas na prova oral produzida. 
 
A fls. 24 verso está cópia de apelo de intervenção datado de 6 de Maio de 2022 dirigido pela Autora ao Senhor Vice-Reitor da UC.
Este documento corrobora as declarações dos Autores produzidas em audiência de discussão e julgamento. 
 
De fls. 25 a 27 constam documentos médicos relativos ao acompanhamento médico da Autora, o que corrobora as declarações dos Autores produzidas em audiência de discussão e julgamento. 
 
De fls. 26 verso a 29 constam documentos comprovativos de diligências efectuadas por via do ruído nocivo e incomodativo com origem no prédio dos Réus a várias entidades públicas, o que corrobora as declarações dos Autores e os depoimentos das testemunhas II, JJ e KK produzidos em audiência de discussão e julgamento. 
 
 
Estão juntos aos autos ficheiros multimédia – cfr- fls. 44 e ss. 
 
Está junta cópia da douta sentença proferida no Julgado de Paz no âmbito de uma acção que os Autores intentaram contra os Réus e que homologou a desistência da instância dos primeiros, cujos efeitos foram os de cessar o processo que se havia instaurado – p. nº 74/20.... Cfr- fls. 61.
 
A fls. 60 verso constam nomes de vários arrendatários dos Réus, com acesso aos contratos com estes celebrados, a que se referiram o Réu CC e a testemunha MM.
 
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Apreciando a prova produzida, quer documental, quer oral:
 
- Os comportamentos dos utentes dos 1º e 2º pisos do prédio dos Réus, - festas e convívios, vários dias na semana e aos sábados depois do jantar e pela madrugada, à hora em que as pessoas precisam de descansar porque têm os seus afazeres profissionais e escolares; música alta; vozeirão; expressões exacerbadas; comportamentos ofensivos e provocatórios; comportamentos de grupo desenquadrados de qualquer entidade responsável / caracterizados por ineficácia das intervenções solicitadas junto dos Réus pessoas singulares, da Reitoria da UC, da CMC e das forças policiais da urbe / - são, para os Autores e filhos, persistentemente incomodativos do sossego e equilíbrio emocional e familiar, que cimentam o que procuram na habitação onde vivem. Cfr. Neste sentido a esmagadora maioria dos depoimentos – dos Autores, das testemunhas II, JJ, KK.
Nocivos para o equilíbrio emocional dos Autores e Família, pelo stress e instabilidade que provocam, e degradantes da sua qualidade de vida. Mesma prova oral e documentação médica relativa à Autora.
 
Só o Réu CC e a testemunha LL – o primeiro por razões que se prenderão por ser um dos demandados, e o segundo por já ter sido arrendatário do local, ser especialmente calmo como referiu em audiência e gostar de música -, embora não contestem as queixas dos Autores, porém, relativizam o número de festas, o ruído que provocam e o incómodo que – admitem – é pontual.
 
A Senhora Juiz que presidiu aos trabalhos da audiência final foi muito cuidadosa e a certa altura procurou ter elementos sobre o que cada testemunha/depoente podia ver, atento a posição de observação que declarou possuir, para aquilatar da veracidade e consequente fiabilidade do respectivo depoimento. 
 
A prova, toda ela, é favorável á versão dos Autores. 
 
Foi essa a convicção manifestada na decisão proferida sobre a matéria de facto proferida no 1º grau. 
 
É essa a convicção alcançada na Relação, sem dúvidas. 
 
Os Apelantes insistem em que os vários depoimentos não são coincidentes quanto aos dias da semana em que os convívios, festas ou ruídos incomodativos e nocivos ocorrem.
 
Mas não se pode exigir a quem depôs que mantenha, nesta parte, um depoimento a químico. 
É que uma testemunha tem conhecimento porque a certa hora passeia o cão num certo lugar e num certo dia; outra testemunha/depoente só verifica a factualidade que traz a tribunal porque chega a casa todos os dias as 17H e se deita à meia noite; outra trabalha por turnos e chega a estar ausente durante quase todo o dia, etc.. As horas e os dias em que os depoentes dizem presenciar os factos sobre que depõem não coincidem, o que desde logo impede que os depoimentos coincidam nesses pontos. 
Estranho é que os depoimentos coincidissem, neste circunstancialismo.
 
Os Apelantes insistem sobre não estar concretizado o tipo de ruído, o valor em decibéis do mesmo, e as horas em que esses níveis se verificam.
 
Ora este tipo de observação não tem qualquer interesse nem importância no caso dos autos.
 
Por várias razões: 
 
- Essa factualidade não vem alegada, não podendo reclamar-se a sua competente prova;
- Essa factualidade não é essencial para a constituição da causa de pedir da acção; 
- Esta acção não visa saber se os Réus têm, dever ter ou deixam de ter “licença especial de ruído” para as emissões provadas;
- A causa de pedir da acção não exige uma avaliação acústica ao prédio dos
Réus, indicando as horas de maior produção de ruído e os seus níveis;
- Nem todo o ruído ilícito fica dependente da medição da sua intensidade, de se saber a sua fonte, de se averiguar a hora a que se verifica, os dias a que se verifica, a sua duração, persistência e natureza; Por exemplo o caso do “ruído de vizinhança”. O Regulamento Geral do Ruído – RGR – aprovado pelo DecretoLei n.º 9/2007, de 17-1, no seu artigo 3º, r) define-o assim: “Ruído de vizinhança”- o ruído associado ao uso habitacional e às actividades que lhe são inerentes, produzido directamente por alguém ou por intermédio de outrem, por coisa à sua guarda ou animal colocado sob a sua responsabilidade, que, pela sua duração, repetição ou intensidade, seja susceptível de afectar a saúde pública ou a tranquilidade da vizinhança; A ele se refere o artigo 24.º do mesmo diploma que estatui:
1 - As autoridades policiais podem ordenar ao produtor de ruído de vizinhança, produzido entre as 23 e as 7 horas, a adopção das medidas adequadas para fazer cessar imediatamente a incomodidade.
2 - As autoridades policiais podem fixar ao produtor de ruído de vizinhança produzido entre as 7 e as 23 horas um prazo para fazer cessar a incomodidade. Sobre ele, a APA – Agência Portuguesa para o Ambiente, no seu site, explica:  o ruído de vizinhança é uma fonte de ruído não sujeita a requisitos acústicos estabelecidos legalmente. Contudo, os responsáveis pela produção de ruído de vizinhança devem ter o cuidado de não afetar a saúde pública ou a tranquilidade da vizinhança.
- Decidiu-se no Ac. TRG de 29-10-2003 prolatado no p. nº 1620/03 (Relator Manso Raínho), acessionável no site da dgsi. Net: Condição necessária mas também suficiente para que se possa tomar medida judicial cautelar destinada a salvaguardar o direito ao descanso e ao sono ameaçado pelo ruído causado, é que o descanso e o sono estejam a ser prejudicados e não já que o ruído ofenda os limites máximos impostos por lei.
 
Não se reconhece existir erro grave na decisão sobre a matéria de facto impugnada. 
 
 
Posto o que vai dito, há prova quanto aos factos que vêm impugnados, sendo certo que os mesmos não podiam deixar de serem considerados como provados. 
 
Improcede a arguição de impugnação sobre a decisão da matéria de facto.
 
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A ter em conta a factualidade vinda como provada, já transcrita supra, que não padece de contradição ou ambiguidade, a qual também não carece de ser oficiosamente alterada. 
 

3ª questão
 
Os Autores deduzem contra os Réus a presente acção com processo especial previsto nos artigos 878.º a 880.º do CPC.
 
Voltemos à lição de Alexandra Filipa da Silva Duarte, in O Processo Especial de Tutela da Personalidade, Algumas Questões Pertinentes, FDUC, 2014, p. 9 e ss, acessível na net, agora seguida de perto, para perceber a natureza e a funcionalidade do presente expediente adjectivo.    
 
O processo especial de tutela da personalidade revela-se o meio idóneo para requerer as providências adequadas a evitar a consumação de ameaça ou atenuar os efeitos de ofensa já cometida aos direitos de personalidade
 
O processo especial de tutela da personalidade surge ainda como concretização da imposição constitucional prevista no n.º 5 do art. 20.º da CRP. 
De facto, a lei deve assegurar aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo que lhes seja possível obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou mesmo violações dos direitos, liberdades e garantias pessoais. Tendo em conta tal exigência o legislador ordinário consagrou no CPC revogado e mantém no NCPC o processo especial de tutela da personalidade. 
 
O processo em causa não é uma inovação da reforma operada em 2012/2013 no CPC. Na realidade, este processo especial já se encontrava consagrado no Código de Processo Civil de 1961, nos arts. 1474.º e 1475.º. De facto, o processo especial de tutela da personalidade foi introduzido no nosso Código de
Processo Civil pelo Decreto-Lei n.º 47690, de 11 de Maio de 1967. A reforma agora operada no processo especial de tutela da personalidade visou conferir-lhe maior celeridade e eficácia no que concerne à tutela da personalidade dos entes singulares. Para tanto operaram-se profundas modificações na caracterização e nos trâmites processuais a que obedecia este processo especial. A mais visível, que facilmente se constata apenas com uma análise superficial do NCPC, é a alteração da sua inserção sistemática: o processo especial de tutela da personalidade não é mais um processo de jurisdição voluntária. 
 
Encontra-se consagrado nos arts. 878.º a 880.º do NCPC. É o primeiro dos processos especiais que este NCPC prevê. Foi assim excluído do leque de processos de jurisdição voluntária, tornando-se num processo especial autónomo, auto-suficiente e com características de tramitação próprias que o afastam do regime da jurisdição voluntária a que anteriormente se encontrava submetido.
 
Agora a fls. 24 e 25.
 
No que diz respeito aos pressupostos para o decretamento de tais providências, não se confundem com os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual previstos no art. 483.º do CC. 
As providências do n.º 2 do art. 70.º do CC não serão de decretar nos casos de responsabilidade pelo risco ou de responsabilidade por factos lícitos, precisamente pela ausência de ilicitude na actuação do agente
Quanto à ilicitude não restam dúvidas: exige-se que a actuação seja ilícita. É o próprio n.º 1 do art. 70.º do CC que o estabelece, exigindo que seja ilícita quer a ofensa quer a própria ameaça de ofensa à personalidade física ou moral.  Por sua vez, a ilicitude encontra-se relacionada com uma acção. Assim, exige-se a verificação de um facto humano, voluntário e ilícito, ou seja, «um facto dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou forma de conduta humana – pois só quanto a factos dessa índole têm cabimento a ideia da ilicitude». 
Todavia, não é mister que se verifique a culpa na actuação por parte daquele que lesa ou ameaça lesar o direito de personalidade de outrem para que seja decretada uma providência ao abrigo do processo especial de tutela da personalidade. Ao invés do que sucede na responsabilidade civil, onde para que exista obrigação de indemnizar se exige que o lesante tenha actuado com dolo ou mera culpa. 
Também não se exige que da ofensa ou da simples ameaça tenham resultado danos para que seja possível o decretamento de uma providência. Já não será assim na responsabilidade civil extracontratual onde a obrigação de indemnizar resulta dos danos causados. 
Em síntese, para que seja decretada uma providência (preventiva ou atenuante) no âmbito do processo especial de tutela da personalidade, exige-se que o facto seja voluntário e ilícito, mas não se exige que seja culposo ou sequer danoso, uma vez que o legislador não incluiu estes dois pressupostos nem no art. 70.º do CC nem nas disposições do CPC dedicadas a este processo especial. 
No tocante à concreta providência a adoptar, estabelece o art. 878.º do CPC que deve ser decretada a providência concretamente adequada a evitar a consumação de qualquer ameaça ou a fazer cessar os efeitos da ofensa já cometida. Destarte, e apesar de já não estarmos perante um processo de jurisdição voluntária, é deixada ao julgador uma larga margem de discricionariedade que lhe permite decretar a providência que considere mais adequada para o caso sub judice, mas nunca ultrapassando o necessário para acautelar o direito de personalidade em questão, lesando o menos possível terceiros. É a própria letra da lei que estabelece que deve ser decretada a providência adequada, excluindo, assim, o excesso. De acordo com Pedro Pais de Vasconcelos, in Direito de Personalidade, p.127. «há que encontrar, caso a caso, um equilíbrio entre o mínimo possível de lesão ou incómodo a terceiros e a eficácia necessária». 
 
O decretamento das providências no âmbito deste processo especial não é cumulável com a tutela indemnizatória.
 
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Voltando ao caso dos autos. 
 
Vem provado 
 
- Autores e Réus pessoas singulares vivem na mesma Rua, mas em edifícios independentes, separados entre si por 4/5 metros, de que são respectivamente proprietários. 
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Pelo menos desde há cerca de seis anos são vários, sucessivos e reiterados os constrangimentos e condicionamentos que os Autores sofrem ao uso e fruição do mesmo, nomeadamente como consequência de ruídos e perturbações sonoras que são constantemente promanadas do referido edifício propriedade dos requeridos.
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Neste edifício vizinho, conhecido como A..., afastado apenas cerca de 5 metros do prédio dos autores, constituído por uma casa de habitação com cave, rés-do-chão, primeiro e segundo andar, garagem, pátio e quintal, residem vários arrendatários dos requeridos - nem sempre os mesmos - em média, em cada ano lectivo, cerca de 25 arrendatários, na sua maioria estudantes do Programa Erasmus. Os arrendatários que por este prédio vão passando e amigos ou conhecidos destes, realizam frequentemente - cerca de duas ou três vezes por semana - convívios, festas e outras actividades no exterior e interior do dito prédio. Nesses convívios, que ocorrem em regra pela tarde e noite, põem música excessivamente alta, há gritos e gargalhadas estridentes, palavrões estridentes em diversos idiomas, garrafas a partirem-se - barulhos motivados, além do mais, pelo consumo sistemático de álcool. Tais convívios prolongam-se frequentemente até cerca das 2 horas.
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Em consequência desses barulhos, a vida familiar dos autores e dos seus filhos tem sido afectada, dado que se têm visto privados de tranquilidade, serenidade e reserva de intimidade que esperavam alcançar com a aquisição do seu imóvel, que constitui a sua casa de morada de família.
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A autora BB, que é médica pediatra, encontra-se proibida, desde Julho de 2018, por indicação médica em consequência da apresentação de um quadro clínico de enxaqueca violenta crónica - devido à falta de descanso provocada pelas sobreditas perturbações e, bem assim, ao stress que toda a situação provoca -, de prestar serviço noturno. Tal implica a possibilidade de uma desvalorização profissional, bem como uma redução dos rendimentos que costumava auferir e que iria continuar a auferir, não fosse dar-se a referida situação. 8
O autor AA, que é engenheiro civil e que, no âmbito dessa actividade, prepara e leva a efeito revisões projectistas de grandes infraestruturas, também é afectado por tal falta de descanso e repouso, que também motiva um estado acentuado de nervosismo em que se encontra.
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Os filhos menores dos autores também têm sido privados de descanso e bem-

 
estar, dado que não conseguem dormir normalmente, padecem de problemas ao nível de concentração, o que afecta o seu rendimento escolar.
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Acresce que os filhos menores dos autores não podem convidar amigos a frequentar a sua casa e, muito em particular, a nela pernoitarem, uma vez que o descanso não é possível com música em “altos berros”.
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Os autores já apresentaram diversas denúncias junto da Polícia de Segurança Pública, que frequentemente intervém no sentido de pôr termo a tais actividades. Todavia, se é certo que em alguns casos a actividade ruidosa apenas se volta a verificar passados escassos dias, outros há, em que imediatamente após as autoridades policiais se ausentarem, há um imediato regresso daquela actividade ruidosa, que se prolonga “noite dentro” perturbando o descanso e tranquilidade dos autores e dos seus filhos menores.
 
O ruído proveniente da casa dos Réus e do seu logradouro, provocado pelas “festas” e “convívios” dos arrendatários e amigos destes que os frequentam, está provado ser incomodativo para os Autores e filhos, e até nocivo para a qualidade de vida e saúde do agregado que constituem.
 
Os Autores e filhos vivem desassossegados e com dificuldade em dormir.
 
Os barulhos são produzidos por arrendatários dos Réus pessoas singulares, e amigos destes arrendatários.  
 
Os Réus permitem que os barulhos se produzam.
 
Os factos estão provados, o nexo de causalidade entre os comportamentos ruidosos, o concreto ruído provocado, e o desconforto sentido pelos Autores e filhos, está verificado, em termos de causa adequada para a produção de tais efeitos.
 
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Ensina Pinto Furtado no Manual de Arrendamento Urbano, vol. II, 4ª ed. actualizada, Almedina, pág. 1035:
 
A má vizinhança, e em geral, a perturbação da tranquilidade das pessoas, é objecto de uma tríplice tutela:
A- A de natureza pública exercida mediante regulamentos administrativos;
B- A que se estabelece no seio da propriedade horizontal;
C- A respeitante ao arrendamento urbano através do artigo 1083º, 2, a) do CC que permite a resolução pelo senhorio do contrato de arrendamento urbano por violação reiterada e grave, pelo arrendatário, das regras de higiene, de sossego e de boa vizinhança; 
Acrescenta-lhes a protecção permitida pelo direito de personalidade consagrado no artigo 70º do CC.
 
E é nesta última protecção que nos situamos. 
 
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Continuando.
 
Há várias normas no direito infra-constitucional que vedam a emissão de ruídos de uma propriedade sobre outra, quer provenham de coisas, animais ou de actividades. 
São exemplos os artigos 1346º, 1422º e 493º do CC.
 
É exemplo o regime do ruído de vizinhança, já referido. Cfr- artigo 24º do  Regulamento Geral do Ruído – RGR – aprovado pelo Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17-1.
 
Mas independentemente disso e mesmo – como dissemos - para além disso, existe um núcleo de direitos fundamentais com assento constitucionais e cujas normas são de aplicação imediata e directa, não carecendo da mediação de direito substantivo de natureza infra-constitucional.
É a situação em que o presente litígio se insere. 
 
Em causa o direito à saúde, ao repouso, com tutela constitucional.
 
Como é referido por Carlos Mota Pinto (in Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 3.ª edição), toda a pessoa jurídica é titular de alguns direitos e obrigações, sendo titular de um certo número de direitos absolutos que se impõem ao respeito de todos os outros, incidindo sobre os vários modos de ser físicos ou morais da personalidade, são os chamados direitos de personalidade, os quais são gerais, extra-patrimoniais e absolutos. Tais direitos incidem sobre a vida da pessoa, a sua saúde física, a sua integridade física, a sua honra, a sua liberdade física e psicológica, o seu nome, a sua imagem, a reserva da intimidade e da vida privada.
Todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover (art. 64.º, n.º 1 da CRP).
Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar (art. 65.º da CRP).
Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender (art. 66.º da CRP).
O descanso, a tranquilidade e o sono são direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, que se inserem no direito à integridade física, preceituado no art. 25º, nº 1, da CRP.
Este núcleo de direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas, nos termos do art. 18.º da CRP. No campo da lei ordinária, o direito ao repouso é, ainda, um direito de personalidade que beneficia da tutela do art. 70º, nºs 1 e 2, do Código Civil.
 
Em causa, portanto, o comportamento permissivo dos Réus perante as emissões dos ruídos.
 
Não se está perante um caso de conflito de relações pessoais de vizinhança a dirimir nos termos do art.º 335º do CC, uma vez que os Réus/Requeridos podem manter os arrendamentos que entenderem, desde que desta actividade lucrativa não emanem os ruídos perniciosos que se constatam. Se o exercício dessa actividade locatícia se contiver nos moldes normais e aceitáveis de comportamento humano, não produzirá os ruídos de vizinhança incomodativos e nocivos para os Autores e família.
 
Porém, como se vê pela prova, a ilicitude da emissão destes ruídos ultrapassa o patamar do conflito das relações pessoais de vizinhança, envolvendo a tutela dos direitos de personalidade.
 
Como a protecção destes direitos – direito ao descanso, à tranquilidade, ao sono, ao ambiente e à qualidade de vida – é constitucional e intangível – cfr. artigos 25º, 1 e 66º da CRP -, se acontecer estar em causa a ofensa a estes direitos, então não interessa saber se se respeita o nível de ruído permitido, ou se se respeita a lei do ruído, porque  respeitar a lei do ruído e as leis fiscais do arrendamento, etc., não quer dizer seja permitido afectar os direitos ao repouso e à saúde de terceiros.
 
Os Réus podem exigir aos arrendatários comportamentos segundo padrões de decoro, criando condições para tal.
Os Réus podem exigir o cumprimento de regras de respeito mútuo nos espaços comuns do espaço locativo, criar um regulamento para a utilização do logradouro e vedar o acesso a este a estranhos ou a um número de pessoas superior a certo limite.
O arrendamento é um contrato intuitu personae. Celebrado em atenção à pessoa do arrendatário.
 
Os Réus podem aliviar o peso dos utentes na exploração locatícia que desenvolvem.
 
Os Réus podem, eventualmente, vir a ter de alterar o modelo da actividade que desenvolvem.
 
Nem o direito de propriedade é um direito absoluto, nem o direito ao estabelecimento é absoluto. 
 
Por isso que a medida necessária com vista a evitar ou atenuar os efeitos da ofensa aos Autores e Filhos passa por deferir à solução pedida. 
 
Mostram-se verificados os pressupostos para a aplicação de tal medida.
 
 
Na sentença recorrida foi aplicada uma sanção pecuniária compulsória, ao abrigo do disposto no artigo 879º, 4 do CPC, de cujo montante discordam os Apelantes.    
 
O regime da sanção pecuniária compulsória está previsto no art. 829.º-A do CC.
A lei permite aplicá-la no campo dos direitos de personalidade.
Os Autores peticionaram-na.
É equilibrada.
Serve para desincentivar o obrigado de incumprir a obrigação de prestação de facto, positivo ou negativo, infungível a que está adstrito. 
 
É de manter a mesma, na medida em que foi aplicada.
 
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Não vem aplicada qualquer norma com um sentido que viole o comando constitucional do Princípio da Igualdade – artigo 13º da CRP.
 
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Improcede a apelação.
 
V-DECISÃO:
 
Pelo que fica exposto, acorda-se neste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
 
Custas pelos Apelantes. 
 
Valor da causa: € 30.000,01.
 
Coimbra, 10 de Setembro de 2024.
 
(Rui António Correia Moura)                                 
 
(Carlos Moreira)        
 
(João Moreira do Carmo)