Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4995/16.4T8VIS-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: EXECUÇÃO FISCAL
SUSTAÇÃO DA EXECUÇÃO COMUM
Data do Acordão: 10/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 20.º, DA CRP
ARTIGOS 794.º, 1 E 4; 806.º, 2; 849.º, E) E 850.º, 2, DO CPC
ARTIGOS 150.º, 1; 152.º, 1; 189.º, 1; 196.º E SEG.S; 198.º-A, 6 E 246.º, 1, DO CPPT
Sumário: I- Não existindo no âmbito do processo tributário norma que possibilite o impulso da execução pelos credores comuns, a penhora prévia, em sede de execução fiscal, de um imóvel, encontrando-se a execução fiscal suspensa pela apresentação de um plano de pagamento em prestações e inexistindo outros bens penhorados na execução comum, não obsta à prossecução da execução comum onde ocorreu penhora posterior, pela não verificação dos pressupostos previstos no artº 794 do C.P.C.: que ambos os processos se encontrem na mesma dinâmica processual.

II-A manutenção da extinção da instância no processo comum, num caso em que não existem outros bens penhorados (por aplicação dos artºs 794, nº 4 e 849, nº1 al. e) do C.P.C.), deixaria o exequente sem a devida tutela do seu direito à cobrança coerciva e em prazo útil do seu crédito, em violação do disposto no artº 20, nº 4 e nº5 e 65 da nossa Constituição, pela impossibilidade de se fazer pagar pelo património do seu devedor no âmbito da execução comum (sustada a execução quanto a este imóvel há quase seis anos) e pela impossibilidade de promover e fazer prosseguir a execução fiscal em causa, por inexistência de normativo idêntico ao artº 850, nº2 do C.P.C.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 4995/16.4T8VIS-B.C1- Apelação

Tribunal Recorrido: Tribunal Judicial da Comarca de Viseu - Juízo de Execução de Viseu-J….

Recorrente: Banco 1... S.A..

Recorrida: A... Unipessoal Lda.

Juiz Desembargador Relator: Cristina Neves

Juízes Desembargadores Adjuntos: Hugo Meireles

                                         Luís Miguel Caldas


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RELATÓRIO

Foi intentada execução, em 12/10/2016, por Banco 1... S.A. contra AA, BB, CC e ainda A... Unipessoal, Lda., para cobrança da quantia de 28.470,92€ acrescida de juros até integral e efetivo pagamento, tendo apresentado como título executivo um contrato de empréstimo, celebrado em 26 de agosto de 1998, no valor de Esc. 8.000.000$00, tendo como mutuários AA e BB e como fiador CC, estando o mesmo garantido por hipoteca registada pela ap. 6 de 1998/07/13, incidente sobre as frações “G” e “F”.

Em 20/10/2016 foram penhoradas as seguintes fracções:

-Fração Autónoma, designada pela letra G, destinada a habitação, tipo T3, com a área bruta privativa de 102 m2, sita no rés-do-chão em ..., ..., na freguesia ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo nº ...15, descrita na C.R.P ... sob o nº ...11..., registada a penhora pela AP. ...92 de 2016/10/20;

-Fração Autónoma, designada pela letra F, composta de garagem, situada na cave, com a área bruta privativa de 15,50 m2, sita em ..., ..., na freguesia ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo nº ...15, descrita na C.R.P ... sob o nº ...11..., tendo sido registada a penhora pela AP. ...09 de 2016/10/17.


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No âmbito do processo de Execução Fiscal nº ...94 foi penhorado pela AP. ...29 de 2014/06/20 a Fração Autónoma designada pela letra F, composta de garagem, localizada em ... – ..., na freguesia ..., inscrita na matriz sob o artigo nº ...15 e descrita na C.R.P ... sob o nº ...11....

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No processo de Execução Fiscal nº ...41 foi penhorada pela AP. ...76 de 2015/03/23, a Fração Autónoma designada pela letra G, destinada a habitação localizada em ... – ..., na freguesia ..., inscrita na matriz sob o artigo nº ...15 e descrita na C.R.P ... sob o nº ...11..., inscrita a sua aquisição pela Ap. ...31 de 2011/10/24 a favor da A... Unipessoal, Lda.

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Feitas as citações de credores, quanto à Fracção Autónoma F, a Banco 1..., S.A. reclamou ainda a quantia de € 25.767,39 referente a um contrato de mútuo com hipoteca celebrado em 1 de abril de 2010 pelo montante de € 23.000,00, garantido por hipoteca voluntária registada sobre os mesmos bens imóveis, supra referidos, pela Ap. ...44 de 2010/04/01.

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A 20 de abril de 2017, a exequente e credora Banco 1..., S.A. foi notificada pelo Senhor Agente de Execução para se pronunciar quanto ao valor base e modalidade de venda dos bens imóveis penhorados.

Em 25 de abril de 2017, a Banco 1... indicou o valor base de € 53.000,00 para a Fração “G” – verba n.º 1 e de € 4.400,00 para a Fração “F” – verba n.º 2.

A 20 de abril de 2018, o Senhor Agente de Execução proferiu decisão de venda relativamente à verba n.º 2 (Fração F), tendo fixado o valor base de venda de € 4.400,00 por leilão eletrónico.


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Em 18/05/18, foi determinada a sustação da execução pelo Agente de Execução, com fundamento no disposto no artº 794º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, por incidir penhora anterior, quanto ao seguinte bem: Fração Autónoma, designada pela letra G, destinada a habitação, tipo T3, com a área bruta privativa de 102 m2, sita no rés-do-chão em ..., ..., na freguesia ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo nº ...15, descrita na C.R.P ... sob o nº ...11..., registada a penhora pela AP. ...92 de 2016/10/20.

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A Fracção Autónoma designada pela letra F foi vendida nos autos, em 24/10/2020.

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Com data de 30/07/2020 veio a exequente requerer o prosseguimento da execução por se manter em dívida o seu crédito no valor de 32.824,74 €.

Determinado o prosseguimento da execução, procedeu-se à penhora de 1/3 dos vencimentos dos executados, pessoas singulares, os quais vieram a ser declarados insolventes no Juízo de Comércio ..., Juiz ... (Proc. 1201/23....).


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Por decisão pelo Agente de Execução proferida em 23/11/2022 foi determinada a extinção da execução nos seguintes termos:

Tendo em consideração que sobre o bem penhorado incide penhora anterior, resultando daqui a sustação integral, declara-se a extinção da execução nos termos do nº 4 do artigo 794º e da alínea e) do nº 1 do artigo 849º, ambos do Código Processo Civil, sem prejuízo da possibilidade de ser renovada a instância nos termos do nº 5 do 850º do mesmo diploma legal, pelo que não é levantada/cancelada a penhora registada nos presentes autos.nos termos do nº 4 do artigo 794º e da alínea e) do nº1 do artigo 849º, ambos do Código Processo Civil, sem prejuízo possibilidade de ser renovada a instância nos termos do nº 5 do 850º, pelo que não é levantada/cancelada a penhora registada nos presentes autos.”.


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Com data de 08/05/2023, veio o exequente requerer que seja autorizado “o levantamento da sustação prosseguimento da presente execução, com a consequente citação de credores e diligências de venda do imóvel penhorado.”.

Junta email remetido pela Repartição de Finanças ..., da qual resulta que “a executada A... Unipessoal Lda, NIPC ...50 apresentou ao balcão deste SF pedido de pagamento em prestações nos termos do art.º 196 do CPPT, pelo que, e caso não haja incumprimento do respetivo plano prestacional, não será promovida a marcação da venda.”


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Em 16/10/2023, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:

A situação exposta não constitui fundamento para afastar a regra prevista no artigo 794.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, situação que foi já apreciada, inclusivamente, pelo Tribunal Constitucional (Acórdão 281/99, D.R. n.º 51/2000. Série II, de 2000/03/01).

Na verdade, tal como vem alegado, a execução fiscal onde se realizou e registou a primeira penhora não se encontra para por inércia do ali exequente, mas por imperativos legais, atenta a possibilidade dada ao executado de pagar em prestações, retirando a dinâmica processual ao processo pendente.

Nesta medida, pese embora aquela suspensão impeça a reclamação do crédito do exequente da execução sustada, bem como a respetiva graduação com os demais reclamados, o certo é tal regime tem um limite temporal fixado por lei e o crédito que é objeto da execução sustada conservará toda a proteção resultante da penhora, que será efetivada na execução fiscal se aí o bem penhorado for vendido ou quando, cessado o pagamento das prestações em execução fiscal, recomeçar a tramitação da execução sustada. Neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 31/3/98, B.M.J., 475, p.594, de 20/10/98, B.M.J., 480, p.374, de 17/10/2002, www dgsi.pt, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 20/1/2000, C.J., ano XXV, t I, p.82.

Pelo exposto, e aderindo-se aos fundamentos do acórdão do T.C., para os quais também remetemos, indefere-se o requerido.


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Inconformado com este despacho veio a executada dele recorrer, tendo concluído da seguinte forma:

“1.O presente recurso vem interposto do Douto Despacho que indeferiu a pretensão da Exequente pelo prosseguimento da presente execução com a venda do bem imóvel penhorado nos autos, com a quebra da decisão de sustação e citação da Autoridade Tributária para reclamar os seus créditos.

2.A Banco 1..., S.A. intentou a presente ação executiva com base num contrato de empréstimo celebrado em 26 de agosto de 1998 pelo montante de Esc. 8.000.000$00, garantido por hipoteca voluntária sobre as frações autónomas designadas pelas letras “G” e “F” do prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o n.º ...11, da freguesia ....

3.A sociedade comercial “A... Unipessoal, Lda.” foi executada na qualidade de

proprietária dos bens imóveis hipotecados nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 54.º do CPC, os quais foram penhorados nos autos em 20 de outubro de 2016.

4.A Banco 1..., S.A. reclamou ainda a quantia de € 25.767,39 referente a um contrato de mútuo com hipoteca celebrado em 1 de abril de 2010 pelo montante de € 23.000,00, garantido por hipoteca voluntária registada sobre os mesmos bens imóveis.

5.A Banco 1... pronunciou-se quanto ao valor base e à modalidade de venda de ambos os bens imóveis, sendo que, quanto à Fração F, foi fixado o valor base de venda de € 4.400,00 e, quanto à Fração G, foi proferida decisão de sustação da execução, nos termos do artigo 794.º, n.º 1 do CPC, por se encontrar registada uma penhora anterior a favor da Fazenda Nacional.

6.Após a venda da Fração F, a Banco 1..., S.A. requereu a realização de pesquisas para localização de bens penhoráveis, face à insuficiência do referido produto da venda, tendo sido proferida decisão de prosseguimento da execução com a penhora de outros bens para pagamento da diferença entre a quantia exequenda e o valor patrimonial da Fração G.

7.A 23 de novembro de 2022, foi proferida decisão de extinção da execução por sustação integral, sem prejuízo de renovação da instância perante o levantamento do registo da penhora anterior sobre a Fração G.

8.A 8 de maio de 2023, a Banco 1..., S.A. requereu o levantamento da decisão de sustação da execução sobre a Fração G com fundamento de que o Serviço de Finanças ... informou que a Executada “A... Unipessoal, Lda.” havia apresentado um pedido de pagamento em prestações, razão pela qual, não existindo incumprimento, não iria ser promovida a venda do bem imóvel correspondente à Fração “G” no processo de execução fiscal.

9.O Tribunal a quo indeferiu a pretensão da Exequente Banco 1..., S.A. com fundamento de que a situação exposta não permite afastar a regra prevista no n.º 1 do artigo 794.º do CPC, uma vez que a execução fiscal não se encontra parada por inércia do ali exequenda e ainda pelo facto da aqui exequente conservar toda a proteção resultante da penhora.

10.A decisão proferida pelo Douto Tribunal a quo, porquanto vai ao desencontro com as disposições legalmente consagradas e a decisões sufragadas pelos Tribunais Superiores, para além de ofender a justiça material que ora aqui se pretende efetivar.

11.A questão que se coloca no recurso de apelação é a de saber se a presente execução, onde se encontra penhorado o bem imóvel da Executada “A... Lda.”, pode prosseguir para a respetiva venda judicial, não obstante se encontre registada uma penhora anterior a favor da Fazenda Nacional, em cujo respetivo processo de execução fiscal não se procede à venda do bem imóvel há mais de 8 anos face a um plano de pagamentos em prestações.

12.O acordo de pagamento da quantia exequenda em prestações impede a venda do bem imóvel penhorado no processo de execução fiscal, ainda que a respetiva penhora não seja cancelada enquanto perdurar o plano de pagamentos.

13.Os restantes credores comuns, incluindo o hipotecário, mantêm o direito de cobrança coerciva dos seus créditos através da venda do bem imóvel penhorado, sob pena de violação do direito de propriedade privada constitucionalmente garantido e a garantia do credor à satisfação do seu crédito (artigo 62.º, n.º 1 da CRP).

14.O Código de Processo e Procedimento Tributário não prevê a possibilidade de impulso processual da execução fiscal por parte de um credor reclamante, não existindo qualquer mecanismo de tutela do direito do credor garantido pela penhora na execução comum, sendo que o credor reclamante não pode requerer o prosseguimento da execução fiscal em circunstância alguma - cfr. Acórdão do TRC de 26/09/2017.

15.Não se realizando a venda na execução fiscal por impulso do ali Exequente, a Credora Banco 1..., S.A. não pode promover a venda do bem imóvel penhorado no processo de execução fiscal onde foi registada a primeira penhora.

16.O Serviço de Finanças ... informou a Credora Banco 1... que não ia

promover a penhora do bem imóvel face ao plano de pagamento em prestações apresentado pela Executada “A... Unipessoal, Lda.”.

17.Aúnica forma da Banco 1..., S.A. conseguir obter o pagamento do seu crédito é através do prosseguimento da presente execução comum, sob pena de estar sujeita à duração de um acordo de pagamentos em prestações que não teve qualquer intervenção, que não deu o seu consentimento e que não contempla o pagamento do seu crédito.

18.A Banco 1... desconhece o teor do referido acordo de pagamento que até pode ter uma duração de 20 anos ou mais, considerando que, até à presente data, já decorreram mais de 8 anos desde a penhora sem que se efetivasse a venda do bem.

19.O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 14 de dezembro de 2021, entendeu que a norma do art.º 794º, n.º 1 do CPC não se aplica quando a execução onde a penhora foi realizada em primeiro lugar se encontra suspensa por longo período temporal como o é um período de mais de 10 anos.

20.Pelo facto de ter duas hipotecas voluntárias registadas sobre o bem imóvel em causa, a Banco 1... está impedida de penhorar outros bens, dado que, nos termos do disposto no artigo 752.º do CPC, somente se pode penhorar outros bens quando se reconhecer a insuficiência do bem garantido por hipoteca.

21. A penhora e hipotecas registadas a favor da Banco 1... de nada valem se esta não consegue promover a venda do bem para garantia do pagamento de seu crédito ficando gravemente prejudicada nos seus direitos.

22.Em nosso entendimento, o legislador contemplou a possibilidade do levantamento da decisão de sustação, o que resulta do próprio n.º 1 do artigo 794.º do CPC, cuja ratio é evitar que, em processos distintos, se proceda à venda dos mesmos bens penhorados em diferentes execuções.

23.Se a venda do bem imóvel não pode ser efetuada na execução onde se encontra registada a primeira penhora, face ao plano de pagamentos em prestações, o artigo 794.º, n.º 1 do CPC não pode impedir que a venda se realize no processo onde se encontra registada a segunda penhora, ou seja, na execução comum.

24.O n.º 1 do artigo 794.º do CPC pressupõe uma pendência de várias execuções, sendo que, de acordo com o Tribunal da Relação de Lisboa, no processo n.º 2446/17.6T8PDL.L1-7, se o processo de execução fiscal afirmar que não vai proceder à venda do bem penhorado, considera-se que não há pendência de outra execução sobre o mesmo bem.

25.Se a Autoridade Tributária e Aduaneira não vai promover a venda do bem imóvel sobre o qual a Exequente tem hipotecas e penhora registadas a seu favor, não há o risco do mesmo bem ser vendido em dois processos distintos, situação que o n.º 1 do artigo 794.º do CPC pretende acautelar.

26. Com base nas informações prestadas aos autos, nomeadamente do não prosseguimento para venda do bem imóvel penhorado no processo de execução fiscal, a decisão de sustação deve ser levantada uma vez que não se verificam os pressupostos do n.º 1 do artigo 794.º do CPC, ou seja, a pendência de duas execuções sobre o mesmo bem, fazendo-se justiça e cumprindo-se o direito de acesso à justiça pela Exequente Banco 1..., S.A.

Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o Douto Despacho e, em consequência, ser proferido despacho que determine o prosseguimento da presente execução para a venda do bem imóvel penhorado, promovendo-se a citação da Fazenda Nacional para, querendo, reclamar os seus créditos, com todas as consequências, conforme é de JUSTIÇA.”


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Não constam interpostas contra-alegações.

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QUESTÕES A DECIDIR


Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.

Tendo este preceito em mente, o thema decidendum consiste em apurar:

-se deve ser deferido o pedido de prosseguimento da execução nestes autos de bem já penhorado previamente em sede de execução fiscal, entretanto sustada, por não se verificarem os pressupostos do artº 794, n.º 1, do Código de Processo Civil.


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MATÉRIA DE FACTO

A matéria de facto a considerar, é a que consta do relatório elaborado.


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DO DIREITO

Por via do presente recurso, pretende a exequente que seja levantada a sustação da execução quanto ao imóvel identificado pela letra “G”, prosseguindo os presentes autos de execução comum, invocando para tanto os seguintes fundamentos:
- o n.º 1 do artigo 794.º do CPC pressupõe a pendência de várias execuções;
-a Administração Fiscal não vai proceder à venda do bem, encontrando-se aquela execução parada há mais de 8 anos;
- o direito de acesso à justiça pela Exequente mostra-se violado pela decisão recorrida.

Decidindo

Conforme acima equacionado, a questão que ora se coloca à nossa reapreciação incide sobre a possibilidade do levantamento da sustação da execução nestes autos, que é integral por não penhorados quaisquer outros bens - tendo em conta a declaração de insolvência dos executados pessoas singulares - com fundamento no facto de na execução fiscal não se ir vender o aludido imóvel, uma vez que a executada, pessoa colectiva, apresentou um plano de pagamento a prestações da dívida fiscal.

Executada uma dívida em processo de execução fiscal, penhorado bem imóvel e registada essa penhora em data anterior à penhora posterior em sede de execução comum, a execução onde ocorreu a penhora posterior deve ser sustada, conforme refere o artº 794, nº1 do C.P.C., podendo o exequente reclamar o seu crédito na execução em que a penhora seja mais antiga.

No entanto, caso essa execução fiscal seja por sua vez sustada, por qualquer causa, tal não significa, como o entendeu o tribunal a quo, que o exequente terá de aguardar, seja qual for o período da sustação, que ocorra uma de duas situações: o levantamento da suspensão por incumprimento do nela executado, sendo então promovida pelas autoridades tributárias a venda do bem; a extinção da execução fiscal pelo pagamento da dívida tributária.

Com efeito, as razões para a sustação da execução, tal como o impõe o artº 794 do C.P.C., prendem-se com a necessidade de assegurar que, em caso de múltiplas execuções movidas contra o executado, sejam satisfeitos os créditos sobre este executado de acordo com a prioridade de penhora do bem e o privilégio de que gozem, independentemente da maior ou menor celeridade de qualquer das execuções e das diligências de venda.

No entanto, conforme defendido no Acórdão do STJ de 23/01/2020[1]A ratio legis da norma do artigo 794º, nº1 do Código de Processo Civil, tendo subjacente razões de certeza jurídica e de proteção tanto do devedor executado como dos credores exequentes, postula que ambas as execuções se encontrem numa relação de dinâmica processual ou, pelo menos, a possibilidade do dinamismo da execução em que primeiramente ocorreu a penhora sobre o mesmo bem e em que o credor deve fazer a reclamação do seu crédito.”

Podendo considerar-se que num caso em que a venda do imóvel é ainda possível na execução fiscal e que, nessa medida, existe a possibilidade de vir a ser dinamizada aquela execução, entendemos, no entanto, que a dinâmica que é exigida pelo artº 794, nº1 do C.P.C. não existe num caso em que a penhora do bem na execução fiscal ocorreu há mais de oito anos, sem que nesse tempo tivesse sido promovida a venda do bem, tendo sido suspensa a execução fiscal (em 2023) por acordo de pagamento apresentado pela executada.

Face a estes factos, tem de se entender que a comunicação da Autoridade Tributária, no sentido de que não irá promover a venda do bem, significa que esta execução não está “pendente”, para efeito deste preceito legal[2].

Com efeito, nos termos do artº 189, nº1 do CPPT, o pedido de pagamento em prestações pode ser requerido até à marcação da venda, de acordo com os requisitos dos arts. 196 e segs. daquele Código.

Nos termos do artº 198-A), nº 6 do CPPT, apresentado e aceite plano de pagamento “O processo de execução fiscal é suspenso e a situação tributária do contribuinte é, nos termos e para os efeitos do artigo 177.º-A, considerada regularizada a partir da data de elaboração do plano e com o cumprimento do plano prestacional.

Não existem, assim, razões para a manutenção da sustação da execução comum, devendo ser ordenado o seu levantamento, afim de a execução comum prosseguir os seus termos. É esta, aliás, a posição defendida pelas Finanças que informaram não ir diligenciar pela venda do bem na execução fiscal. Nem o poderiam legalmente fazer, tendo em conta a sustação do processo.

É esta a posição que, em nosso entender, salvaguarda o direito à tutela jurisdicional efectiva dos credores da executada[3], sem prejudicar os direitos quer destes credores quer da própria executada.

Com efeito o Código de Procedimento e Processo Tributário não prevê, em qualquer normativo, a possibilidade de os credores reclamantes impulsionarem a execução fiscal, nomeadamente para venda do imóvel ali penhorado, com vista a verem ressarcidos os seus créditos - como ocorre no processo executivo comum, por via do disposto nos artºs 794, nº 4, 849, nº1 al e) do C.P.C. e 850, nº2 do C.P.C. - tendo em conta que a apresentação de plano de pagamento a prestações, nas execuções comuns, determina a extinção da execução (cfr. artº 806, nº2 do C.P.C.) mas permite ao credor reclamante promover o seu andamento para satisfação do seu crédito, sem ter que aguardar o termo desse plano (cfr. o citado artº 850, nº2 do C.P.C.).

A ausência de qualquer norma que possibilite aos credores reclamantes diligenciarem pela venda do bem na execução fiscal, não é suprida por via da aplicação das normas de processo civil. Com efeito, pese embora o artº 246, nº 1 do CPPT mande aplicar à reclamação de créditos as disposições de processo civil, este preceito tem aplicação restrita à fase da verificação e graduação de créditos (a que se aplicam os formalismos estipulados no processo civil) e não permite considerar nem aplicar qualquer critério interpretativo em relação à fase da venda ou à possibilidade de impulso processual da execução por parte dos credores reclamantes (inexistente no âmbito do processo fiscal).[4]

Aliás, resulta expressamente do artº 152, nº1, do CPPT que a legitimidade para a execução das dívidas tributárias cabe ao órgão de execução fiscal. Por sua vez, o artº 150, nº1, do CPPT, estipula que a “instauração e os actos da execução são praticados no órgão da administração tributária designado, mediante despacho, pelo dirigente máximo do serviço.

É certo que sempre se poderá invocar o carácter temporário deste impedimento à venda do bem em processo de execução fiscal, invocando ainda que o decurso do tempo, ou seja, a “demora significativa na realização do crédito”, não obsta à aplicação do nº 1 do artº 794 do C.P.C.

No entanto, conforme refere o exequente, o direito à tutela jurisdicional efectiva pressupõe a cobrança do crédito, em prazo razoável. O direito à tutela jurisdicional efectiva constitui um direito com assento constitucional, integrado nos direitos fundamentais dos cidadãos (cfr. art. 20º da Constituição da República Portuguesa), entendido como o direito de acesso aos tribunais, direito que compreende não só o direito de acção, mas o direito de obter uma decisão judicial num prazo razoável e sem dilacções indevidas, no âmbito de um processo justo e equitativo.[5] Este direito a um processo justo e equitativo engloba a garantia da realização coerciva do direito em caso de não satisfação voluntária[6], podendo afirmar-se assim um verdadeiro direito constitucional à execução (tutela executiva), inserido no âmbito da tutela jurisdicional decorrente do art. 20º nº4 da Constituição.[7] Esta tutela jurisdicional efectiva pressupõe a cobrança do crédito, em prazo razoável e sem obstáculos que na prática o impossibilitem ou tornem anormalmente difícil a sua realização, tendo em conta o acumular de juros, a possibilidade de insolvência dos executados (ocorrida nos presentes autos em relação às pessoas singulares) e a ausência de outros bens penhoráveis, com o inerente prejuízo do credor pela demora na cobrança. Não é de admitir que ambas as execuções permaneçam paradas, uma pela inexistência de outros bens e a outra por via da existência de um plano prestacional de pagamento, pois que a norma do artº 794, nº1 do C.P.C. pressupõe, em nosso entender, que na anterior se prossiga para a fase da venda do bem. 

Por último, as razões expendidas no Ac. do Tribunal Constitucional nº 281/99, citado pela decisão a quo, não são aplicáveis à questão em preço, visando aquele Acórdão a apreciação da inconstitucionalidade da “norma do nº 1 do artigo 871º do CPC, no entendimento de que, ao referir-se à pendência de mais de uma execução sobre os mesmos bens abrange, também, nessa expressão, as execuções fiscais.”

Em causa está a interpretação do artº 794, nº1 do C.P.C., nomeadamente do que se deve entender por execução pendente. Uma interpretação de execução pendente que, na prática inviabiliza o direito de cobrança coerciva e em prazo razoável, sem que a salvaguarda dos interesses dos credores de acordo com a natureza dos seus créditos e a prioridade da penhora, o exija, viola o direito à tutela jurisdicional efectiva do exequente que, não podendo prosseguir na execução fiscal, se vê impossibilitado de prosseguir também na execução comum.

O recurso deve assim proceder, revogando-se a decisão recorrida.


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DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e revogar o despacho recorrido, ordenando o prosseguimento da execução quanto ao imóvel identificado pela letra “G”, com citação de credores e posterior fase de venda.


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Custas pela apelada (artº 527 nº1 do C.P.C.).
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                                                           Coimbra 25/10/2024


[1] Proferido no proc. nº (proc. nº 1303.17.0T8AGD.B.P1.S1, relatora Rosa Tching, disponível em www.dgsi.pt.
[2] Em sentido contrário vide o Ac. do TRC de 30/05/2023, proferido no Proc. nº 4005/04,4TBLRA-D.C1, desta mesma secção, no qual se considerou que “estando a execução em que ocorreu a penhora mais antiga em posição de poder prosseguir, ainda que não imediatamente, e sobretudo quando esse compasso de espera não se fique a dever à inércia do exequente , não se veem motivos que permitam a ultrapassagem da norma do nº 1 do art 794º. (…) Tanto mais que no pagamento em prestações se mantém a susceptibilidade de o processo de execução fiscal vir a chegar à fase da venda, bastando, para que tal aconteça, que o programa prestacional seja inteiramente cumprido ou, mais rápido ainda, que deixe de o ser, posto que o não pagamento de uma das prestações tornará exigível a totalidade da dívida e o consequente prosseguimento da execução com a venda do bem penhorado, mantendo-se, consequentemente, as razões que ditam a aplicabilidade do nº 1 do artigo 794º do CPC à situação.” 
[3] E não apenas nos casos em que existe impedimento legal à venda do bem por constituir a casa de morada de família do executado, que constitui a maioria dos casos em que a Jurisprudência, em especial do nosso Supremo Tribunal, defende o prosseguimento das execuções comuns em que o bem foi penhorado posteriormente.
[4] FERREIRA, Fernando Amâncio, Curso de Processo de Execução, Almedina, 12º edição 2010, pág. 351, defende que “Encontrando-se a execução fiscal suspensa, na sequência da autorização para pagamento da dívida em prestações, deve a mesma prosseguir se o credor reclamante o solicitar, com vista à satisfação do seu crédito, ante o estatuído no artº 885º”, o qual dispunha, na redacção da Lei nº 38/2003 de 08/03 que “1 - Fica sem efeito a sustação da execução se algum credor reclamante, cujo crédito esteja vencido, requerer o prosseguimento da execução para satisfação do seu crédito.” No entanto, não existindo norma equivalente na execução fiscal, nem sendo permitido o impulso do credor comum, a consequência será o prosseguimento da execução comum e não fiscal.

[5] Sobre o direito a um processo equitativo vide Comission Européenne pour la democratie par le droit, 2000, Conseil de l`Europe, “Le Droit à un Procés Equitable”, disponível em https://rm.coe.int/168007ff5c e ainda TEIXEIRA DE SOUSA, Miguel, “A jurisprudência constitucional portuguesa e o direito processual civil”, XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, Coimbra Editora, 2008, p. 72. Ainda a este respeito vide QUILLHERÉ- MAJZOUB, La defense du droit à un procès equitable, 1999, pág. 226 apud PINTO, Rui, A Ação Executiva, AAFDL, 2020, pág. 13. Ainda sobre a tutela jurisdicional efectiva e o direito a um processo equitativo e leal, vd. MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I, Universidade Católica Portuguesa, Fev. 2017, págs. 323 a 330.

[6] CANOTILHO, J.J. Gomes e MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, Coimbra Editora, referindo, a págs. 164/165, que esta garantia se destina a evitar que “as decisões judiciais e a garantia de direitos e interesses se reduzam a meras declarações de intenção a favor de uma das partes.”.

[7] Neste sentido, vide os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 1169/96 de 20/09/96; 444/91 de 20/11/91; 960/96 de 10/07/96 e os Acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), Guincho/Portugal (10/07/84), Guez/França (17/05/05) e Guerreiro/Portugal (31/01/02), disponíveis in http://hudoc.echr.coe.int