Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
280/19.8GABBR.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: AMNISTIA
ÂMBITO DE APLICAÇÃO
IDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 05/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DAS CALDAS DA RAINHA – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 1º E 2º, N.º 1, DA LEI N.º 38-A/2023, 13º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
Sumário: 1. Constitui jurisprudência uniforme que a amnistia e o perdão devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliação nem restrições, estando vedada quer aplicação analógica quer a interpretação extensiva, impondo-se, assim, uma interpretação declarativa.
2. A delimitação do âmbito de aplicação da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, mostra-se justificada, em termos objectivos e racionais, não sendo arbitrária nem irrazoável, estando tal delimitação dentro da margem de manobra do legislador, não ferindo de forma decisiva o princípio constitucional da igualdade.

( Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: *
Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I - RELATÓRIO
           
           1. O DESPACHO RECORRIDO

No processo comum singular nº 280/19.... do Juízo Local Criminal das caldas da Rainha (Juiz ...), em que é arguido AA, foi proferido o seguinte DESPACHO, datado de 4 de Março de 2024 (transcrição):  
«AA veio requerer a aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, à pena de prisão subsidiária em que foi condenado, alegando que a disposição que prevê a aplicação da Lei aos arguidos entre 16 e 30 anos deve ser declarada como inconstitucional.
O Ministério Público defendeu que não se verifica a inconstitucionalidade da Lei, pelo que promoveu o indeferimento do requerido pelo condenado.
Cumpre apreciar e decidir.
            Nos presentes autos, o Arguido AA foi condenado, por decisão transitada em julgado, na pena de 179 (cento e setenta e nove) dias de multa, à taxa diária de 5,00 € (cinco euros), num total de 895,00 € (oitocentos e noventa e cinco euros), convertida em 119 (cento e dezanove) dias de prisão subsidiária.
            A Lei n.º 38.º-A/2023, de 02 de agosto, estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.
            Neste sentido, para o que aqui releva, prevê o artigo 3.º do referido Diploma que:
            Perdão de penas
            1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.
            2 - São ainda perdoadas:
            a) As penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão;
            b) A prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa;
            c) A pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição; e
            d) As demais penas de substituição, exceto a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova.
            3 - O perdão previsto no n.º 1 pode ter lugar sendo revogada a suspensão da execução da pena.
            4 - Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.
            5 - O disposto no n.º 1 abrange a execução da pena em regime de permanência na habitação.
            6 - O perdão previsto no presente artigo é materialmente adicionável a perdões anteriores.
            Por outro lado, o artigo 8.º, n.º 1, da Lei citada, dispõe que o referido perdão é concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada.
            Ademais, encontra-se consagrado no artigo 2.º o âmbito temporal e subjetivo de aplicação da Lei, abrangendo os ilícitos praticados até às 00h00m do dia 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos à data da prática do facto.
            No caso sub judice, os factos foram praticados a 13-11-2019, sendo que o Arguido nasceu a ../../1972, tendo 46 anos de idade à data da prática dos factos.
            Ora, esta delimitação subjetiva do âmbito da Lei, isto é, a aplicação apenas a jovens que tenham à data dos factos entre 16 e 30 anos, é precisamente o que leva a condenada a se insurgir, considerando a sua inconstitucionalidade.
            A questão da (in)constitucionalidade da presente Lei foi amplamente debatida no processo legislativo que a antecedeu - a qual é de conhecimento público -,  porquanto, efetivamente o tratamento diferenciado entre pessoas penalmente imputáveis, ou seja, maiores de 16 anos, em função da idade à data da prática de um facto ilícito justificou a ponderação da sua conformidade com o princípio da igualdade constitucionalmente consagrado.
            Importa, desde logo, atender às figuras em causa: amnistia e perdão.
            Nos termos do artigo 128.º do Código Penal, a amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança, já o perdão genérico extingue a pena, no todo ou em parte.
            Ora, decorre do artigo 161.º da Constituição da República Portuguesa que compete à Assembleia da República «f) conceder amnistias e perdões genéricos;».
            Assim, «Como ato essencialmente político - ainda que sob a forma de lei -, a amnistia é essencialmente insindicável quanto à sua oportunidade e quanto à sua extensão, bem como quanto à determinação dos seus efeitos» - cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira Constituição da República Portuguesa anotada, volume II, Coimbra Editora, 2007. p. 292.
            No fundo, «a decisão de amnistiar assenta na pura discricionariedade política, seja qual for a sua finalidade [celebrativa de certo evento (…), etc].[1]». A decisão de conceder amnistia ou perdão genérico pode ter as mais variadas motivações ou causas e, encontrando-se no campo da política criminal, competência do legislador ordinário, «não pode deixar de se lhe reconhecer discricionariedade normativo-constitutiva na conformação do seu conteúdo» - tal como se sustentou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 488/2008, de 23 de setembro de 2008 - «Cabe na discricionariedade normativa do legislador ordinário eleger, quer a medida do perdão de penas o quantum do perdão, quer, em princípio, as espécies de crimes ou infracções a que diga respeito a pena aplicada e perdoada, quer a sujeição ou não a condições, desde que o faça de forma geral e abstracta, para todas as pessoas e situações nela enquadráveis.».
            A Lei em apreço é geral e abstrata, ainda que tenha um âmbito subjetivo delimitado, porquanto a delimitação dos factos (ilícitos criminais) amnistiados tem que ser feita segundo critérios suscetíveis de generalização, o que se verifica (abrange todas as pessoas condenadas pela prática, até uma data concreta, de crimes não concretamente excecionados na Lei, que se encontrem em determinada situação, nela definida de forma geral e abstrata).
            Importa, sobretudo, ter em conta as causas do ato ou decisão política de aplicar o perdão ou amnistia, que explicam a oportunidade do diploma legal no seu conjunto e as causas de cada norma de amnistia ou perdão.
            Foi precisamente isso que aconteceu no caso da presente Lei, em virtude da realização das Jornadas Mundiais da Juventude no nosso país, a Assembleia da República, em homenagem à deslocação do Papa Francisco a Portugal pela realização de tal evento e do público alvo do mesmo, decidiu conceder uma amnistia e perdão quanto a alguns crimes e penas, respetivamente, desde que praticados até dia 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos à data da prática do facto. Tal como se refere na exposição de motivos da proposta de lei, visou-se adotar «medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento», que «abarca jovens até aos 30 anos».
            Não se pode, pois, considerar-se que a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto viola o princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa[2].
            Nas palavras do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 444/97 de 25-07-1997, relatado por Sousa Brito, a propósito da Lei n.º 17/82, de 2 de julho, que também previa uma amnistia política, A norma de amnistia, mesmo geral, não deixa de ser uma medida política, que não põe em questão a continuada vigência da norma punitiva amnistiada, que continua a ser a regra geral incriminadora, nem dos princípios gerais do direito penal, medida relativamente à configuração da qual o legislador dispõe de uma liberdade de conformação legislativa, nomeadamente do ponto de vista do princípio da igualdade, superior à que caracteriza outras normas que exprimam regras ou princípios jurídicos.
            Neste acórdão sustentou-se ainda que o princípio da igualdade não significa proibição de normas especiais ou excecionais relativas a categorias de interessados, mesmo se já individualizáveis em concreto, como nas leis retroativas, mas sim proibição de normas diversas para situações objetivamente iguais, com o corolário de que normas diversas regulam situações objetivamente diversas do ponto de vista da razão da norma.
            O Tribunal Constitucional vem sustentado, que a ideia de igualdade, no campo das normas de amnistia ou de perdão genérico, só recusa o arbítrio, as soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis. Ora, a dita norma, de um lado, trata por igual todos os que se encontram nas mesmas condições - cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 42/95.
            Em igual sentido pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 2/2023, datado de 15-12-2022, publicado no DR I série, n.º 23 de 1.02.2023, onde se diz: no domínio das medidas de clemência, o princípio da igualdade deverá ser entendido num sentido específico: ele não impede a lei de aprovar regras especiais, dirigidas a certas categorias de ilícitos e de penas, mas sim de aprovar regras diferentes para situações objectivamente iguais. O problema consiste, pois, em avaliar as situações que poderão ser consideradas especiais (…) a proibição de discriminação nos termos do artigo 13, n.º 2, da Constituição República, não significa uma igualdade absoluta em todas as situações, mas apenas exige que as diferenciações de tratamento sejam materialmente fundadas e não tenham por base qualquer motivo constitucionalmente improprio. As diferenciações de tratamento podem ser legitimas quando se fundamentarem numa distinção objectiva e se revelem necessárias, adequadas e proporcionadas a realização da respectiva finalidade (sublinhado deste Tribunal).
            Acresce que esta Lei não é caso único de um tratamento mais benéfico concedido aos jovens (basta recordar o regime penal especial para jovens). Por outro lado, já foram concedidas amnistias e perdões genéricos, em momentos anteriores, que tiveram igualmente como destinatários os jovens (veja-se a Lei n.º 29/99, de 12 de maio, nº 15/94, de 11 de maio, e n.º 17/82, de 2 de julho) - que no caso da Lei em apreço se justifica pela comemoração da deslocação do Papa Francisco pelas Jornadas Mundiais da Juventude que tiveram lugar em Portugal.
            Em suma, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem defendido a propósito das leis anteriores de amnistia e perdão genérico que delimitam subjetivamente os seus beneficiários, seja pela idade ou outro fator, que o princípio constitucional da igualdade perante este tipo de legislação só recusa o arbítrio, as soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis - cf. Acórdão nº 42/95 – pelo que, deve entender-se que, no que respeita à apreciação da constitucionalidade deste tipo de lei, só violam o princípio da igualdade se traduzirem uma diferenciação arbitrária e incompreensível[3] - o que, como já se aludiu, não é o caso.
            A diferenciação em razão da idade encontra-se expressa e justifica-se em razão do evento comemorativo que esteve na base de tal opção legislativa. Trata-se, pois, de um critério compreensível e razoável, não podendo considerar-se inconstitucional por violadora do princípio da igualdade.
            Em consequência, não pode o condenado beneficiar do perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, uma vez que tinha 46 anos de idade à data dos factos, indeferindo-se o requerido.
            Notifique e comunique ao Tribunal de Execução de Penas».

            2. O RECURSO
Inconformado, o arguido recorreu do despacho em causa, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

«59. A jurisprudência não tem conseguido justificar a discricionariedade presente no artigo 2º nº 1 da Lei 38-A/2023, invocando o argumento do Tribunal Constitucional, não densificado, segundo o qual o limite seria o arbítrio, as soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis.
60. No entanto, fica por entender qual a racionalidade ou razoabilidade da solução que estabelece uma discriminação positiva em função da faixa etária entre os 16 e os 30 anos de idade e uma discriminação negativa relativamente a outras faixas etárias, quiçá mais necessitadas do perdão ou da clemência judicial, mormente idosos, doentes incuráveis ou pessoas em situação particularmente vulnerável.
61. A justificação do enfoque na referida faixa etária ao invocar os “jovens”, na controversa aceção do diploma em causa, não tem em conta que este grupo etário aparece, não como o público-alvo do perdão e clemência judicial, mas sim como o promotor e impulsionador de um evento destinado a “todos, todos, todos” no insistente apelo do Papa Francisco, figura-chave do evento.
62. A generalidade e abstração existem, mas apenas dentro daquela faixa etária; fora desse compartimento, o princípio constitucional da igualdade cede perante objetivos de “incentivo” à tal faixa etária sem que se perceba por que ficam as outras de fora.
63. Menos ainda se percebe a razão da fixação do limite etário com a idade de inscrição no evento quando, em boa verdade, se pretendia a participação de toda a população, nacional ou estrangeira, nem sequer havendo “lugares marcados” para os “jovens”, na aceção que lhe foi emprestada.
64. Em lugar de se situar no espírito do ato de graça de clemência e perdão que subjaz às amnistias, a opção legislativa limitadora da faixa etária assemelha-se mais a um marketing político-judicial de promoção do evento.
65. Acompanhou-se o critério do grupo etário que a organização do evento escolheu como impulsionador e dinamizador do mesmo, mas apenas isso.
66. Por estas razões, alimitaçãoetáriaconstantedoartigo2ºnº1daLei 38-A/2023, de 2 de agosto, deverá ser considerada como inconstitucional, por violação do princípio da igualdade decorrente do artigo 13º da C.R.P.
67. Nesta conformidade, não estando o crime praticado pelo Arguido, ora Recorrente, incluídos nas exceções do artigo 7º da referida Lei, o facto de ter 47 anos à data da prática dos factos não obsta a que, ainda assim, possa beneficiar do ato de clemência que esta amnistia das sanções penais veio trazer.
68. Em face do exposto, deverá ser aplicado o perdão previsto no artigo 3º nº 2 – b) da Lei 38-A/2023, de 2/08, independentemente da idade à prática dos factos, pelas razões que acima se aduziram.
69. Assim, pugna o Arguido ora Recorrente pela revogação do douto despacho recorrido e prolação de outro que defira a aplicação do perdão da pena de prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa».


            3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, opinando que o recurso não merece provimento, defendendo o decidido em 1ª instância.

4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se neles, corroborando as contra-alegações do Magistrado do Ministério Público de 1ª instância, sendo seu parecer no sentido do não provimento do recurso.

5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea b) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO
           
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso

Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [cfr. artigos 119º, nº 1, 123º, nº 2, 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242, de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271 e de 28.4.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193, explicitando-se aqui, de forma exemplificativa, os contributos doutrinários de Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335 e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113].
           Assim, é seguro que este tribunal está balizado pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso.
Também o é que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar - se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.
Assim sendo, é apenas esta a questão a decidir por este Tribunal:
· Deveriam ter sido perdoados ao arguido os 119 dias de prisão subsidiária que se encontra a cumprir, à luz da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, sendo indiferente a SUA idade?

2. Sobre a sequência de factos processuais:
· O arguido foi condenado, por decisão transitada em julgado, pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea c), por referência do artigo 132º, nº 2, alínea l), todos do CP, na pena de 179 (cento e setenta e nove) dias de multa, à taxa diária de 5,00 € (cinco euros), num total de 895,00 € (oitocentos e noventa e cinco euros), convertida em 119 (cento e dezanove) dias de prisão subsidiária.
· A vítima deste crime foi um militar da GNR a actuar no exercício das suas funções profissionais.
· Por despacho datado de 20/11/2023, transitado em julgado, foi convertida a pena de 179 dias de multa em pena de prisão subsidiária, no caso, em 119 dias de prisão subsidiária.
· Está em cumprimento dessa pena desde 19/3/2024.
· O arguido, nascido no dia ../../1972, tinha mais de 30 anos à data dos factos pelos quais veio a ser condenado nestes autos, praticados em 13 de Novembro de 2019 (tinha 46 anos).
· Recorre o arguido, entendendo que deveria ter sido perdoada pena subsidiária que cumpre entendendo que não se compreende a discriminação etária constante do artigo 2º, nº 1 da lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, a qual é desconforme ao princípio constitucional da igualdade decorrente do artigo 13º da CRP, defendendo que:
o «não estando o crime praticado pelo Arguido, ora Recorrente, incluídos nas exceções do artigo 7º da referida Lei, o facto de ter 47 anos à data da prática dos factos não obsta a que, ainda assim, possa beneficiar do ato de clemência que esta amnistia das sanções penais veio trazer».
           
3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

            3.1. Está em causa decidir se se deveria ter aplicado o perdão ínsito no artigo 3º, nº 2, alínea b) da Lei nº 38-A/2023, de 2/8 (pena de prisão subsidiária[4] resultante da conversão de uma pena de multa, no caso, 119 dias).
Temos por assente que constitui jurisprudência uniforme que a amnistia e o perdão devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliação nem restrições, estando vedada quer aplicação analógica quer a interpretação extensiva, impondo-se, assim, uma interpretação declarativa (cfr., Assento nº 2/2001, de 25/10/2001 e Acórdão da Relação de Guimarães de 6/2/2024, Pº 90/23.8PBGMR.G1).
           Está em causa a Lei da Amnistia nº 38-A/2023, de 2/8, sobre «perdão de penas e amnistia de infracções”, entrada em vigor em 1 de Setembro de 2023.
Tal diploma estabeleceu perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude (artigo 1º), estando abrangidos as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º (artigo 2º, nº 1).
Sobre a aplicação desta Lei de Clemência já foram produzidas pelos nossos tribunais superiores algumas decisões sobre questões mais polémicas por aquela suscitadas.

3.2. Uma das questões é exactamente esta que é agora discutida nestes autos - é ou não inconstitucional, por violar o princípio da igualdade, previsto no artigo 13º da CRP, a restrição etária feita por esta Lei, fazendo-a apenas aplicável a cidadãos até aos 30 anos de idade?
O tribunal entende que o não é.
A defesa discorda.
Estamos do lado do tribunal recorrido.
E torna-se fácil aderir aos vários argumentos dirimidos até agora por essas decisões superiores, das quais não nos afastamos e que aqui reiteramos, recorrendo-se agora à feliz e oportuna explanação e síntese levada a cabo pelo malogrado Juiz Desembargador José Manuel Cruz Bucho em escrito datado de 1 de Março de 2024.
Vejamos alguns desses arestos escolhidos pelo Desembargador de Guimarães, quanto à nossa questão – aplicação da lei apenas a cidadãos até aos 30 anos e não a mais idosos:
1º- Acórdão da Relação do Porto de 27-9-2023, procº nº 266/05.0IDPRT.P2, rel. Pedro Menezes:
“A restrição aos jovens até 30 anos das medidas de graça previstas na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, atendendo às razões que a justificam, não é inconstitucional por violação do princípio da igualdade” (sumário).
Aí se escreve:
«A referida restrição, contrariamente ao que defende o recorrente, encontra adequada justificação material nas razões que levaram ao decretamento das medidas de graça em questão (a «realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude», conforme esclarece o artigo 1.º da lei, evento que, precisamente, se destina (destinou) a «peregrinos de todo o mundo com idades entre os 14 e 30 anos de idade»: vd., a propósito, a informação constante da página https://www.lisboa2023.org/pt/ perguntas-frequentes, «Com que idade me posso inscrever?»), não sendo, consequentemente, contrária ao princípio da igualdade, pois que não estabelece regimes de tratamento diferenciados assentes em critérios arbitrários e/ou caprichosos, reconduzindo-se, no fundo, a princípios político-criminais que se encontram há muito firmados no nosso ordenamento jurídico (bem como nos ordenamentos jurídicos de outros países do nosso entorno), a propósito do tratamento jurídico-penal de «jovens» (aqui entendidos num sentido mais amplo do que o previsto, por exemplo, no Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro, mas ainda compatível com outros regimes legais – designadamente para concessão de apoios – dirigidos a quem, genericamente, ainda se tem por «jovem»)».
2º- Acórdão da Relação de Coimbra de 22-11-2023, procº nº 39/07.5TELSB-H.C1, rel. João Abrunhosa:
«I - O perdão de penas e a amnistia, previstos na Lei da Amnistia JMJ, só se aplicam aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19-6-2023 por pessoas que tivessem entre 16 e 30 anos de idade à data da prática dos factos, conforme resulta dos artigos 1.º, 2.º, n.º 1, 3.º e 4.º.
II – Esta lei reveste carácter geral e abstracto, pois aplica-se a todos os arguidos que se encontrem na situação por si descrita, portanto em número indeterminado, a delimitação do seu âmbito de aplicação está devidamente justificado e não se mostra arbitrária, nem irrazoável, pelo que não padece de inconstitucionalidade a limitação constante do n.º 1 do artigo 2.º».
Aí se escreve:
“…o Tribunal Constitucional já se pronunciou, por diversas vezes, no sentido da conformidade constitucional de normas que restringem o âmbito de aplicação de amnistias e perdões”, referindo-se em nota de rodapé o acórdão nº 300/00, relatado por Guilherme da Fonseca.
           3º- Relação do Porto, Decisão sumária de 27-11-2023, proc. 24/21.4PEPRT-B.P1, rel. Raul Cordeiro:
«I – Se o perdão de um determinado crime não estiver excluído do âmbito de aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 02/08, que prevê a aplicação de perdão de penas e amnistia certas infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, o benefício do perdão depende das demais condições de aplicação daquela lei, sendo relevante, desde logo, a medida da pena, a data da prática dos factos e, depois, a idade do agente nessa mesma data.
II – O texto da lei é inequívoco a tal respeito, sendo que desde há muito que a jurisprudência dos Tribunais Superiores vem sustentado que, como providências de excepção, as leis de amnistia devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações ou restrições que nelas não venham expressas, não admitindo, por isso, interpretação extensiva, restritiva ou analógica.
III – Por outro lado, dúvidas não existem de que eventuais normas legais que atentem contra preceitos ou princípios constitucionais não podem ser aplicadas pelos tribunais, sendo que tais preceitos, se respeitantes aos direitos, liberdades e garantias, são directamente aplicáveis.
IV – O que o princípio constitucional da igualdade impõe é que tenha igual tratamento o que é efectivamente igual e tratamento diferenciado o que é realmente diferente, mas o mesmo não tem uma amplitude absoluta e ilimitada, isto no sentido de que não podem existir normas que abranjam somente certos grupos de cidadãos.
V – O Tribunal Constitucional tem vindo a pronunciar-se sobre o âmbito do princípio da igualdade nesse sentido, sustentando que a constituição não veda a adopção de medidas que estabeleçam distinções, somente proibindo aquelas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objectiva e racional, sublinhando, frequentemente, que igualdade não é, porém, igualitarismo.
VI – A idade como factor de diferenciação, quer positiva, quer negativa, está constantemente presente nos mais variados aspectos da regulação da vida em sociedade.
VII – A ideia subjacente à publicação da referida lei, além de assinalar o evento histórico que constitui a realização das JMJ em Portugal, é reduzir o tempo de prisão para os mais jovens condenados, num sinal de clemência da sociedade, esperando que os mesmos aproveitem tal gesto para reflectir no mal cometido através do crime e que não voltem a delinquir.
VIII – Ora, sendo a amnistia e o perdão uma medida de excepção, o órgão legiferante goza de uma certa discricionariedade, nada exigindo que seja destinada a todo e qualquer cidadão e que abranja a multiplicidade dos crimes, sendo-lhe permitido limitar o seu campo de aplicação.
IX – A violação do princípio da igualdade somente ocorreria se, estando o recorrente dentro da faixa etária estabelecida pela norma, fosse recusada a aplicação da amnistia ou perdão em virtude de alguma das situações enunciadas no n.º 2 do artigo 13.º da CRP».
4º- Acórdão da Relação de Évora de 18-12-2023, proc.º n.º 401/12.1TAFAR-E.E1, rel. Jorge Antunes:
«I - A Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, que decretou medidas de clemência de amnistia e perdão de penas, estabeleceu uma diferenciação de tratamento entre os cidadãos que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (os beneficiários dessas medidas de clemência) e os demais (excluídos da aplicação das medidas);
II - Essa diferenciação surge ancorada, de modo razoável e materialmente fundado, na intenção de favorecer os cidadãos da faixa etária dos destinatários das Jornadas Mundiais da Juventude com as medidas que, sem o evento a eles especialmente dedicado, não seriam decretadas;
III - Cabe na discricionariedade normativa do legislador ordinário eleger a categoria geral de pessoas abrangida pelas medidas de clemência e, fazendo-o em função de critérios objetivos, que determinam a aplicação das mesmas regras nas situações objetivamente iguais, não ocorre qualquer inconstitucionalidade, designadamente por violação do princípio da igualdade e da proibição da discriminação;
IV - O artigo 2.º, nº 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, interpretado tal como o foi na decisão recorrida e em conformidade com o que supra concluímos, não viola quer o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, quer o artigo 21.º n.º 1 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia».
5º- Acórdão da Relação do Porto de 19-12-2023, proc.º n.º 1415/21.6JAPRT-F.P1, rel. Lígia Figueiredo:
«I – Ao restringir a aplicação do perdão de penas a pessoas que tenham entre 16 e 30 anos à data da prática dos factos, a Lei n.º 38-A/23, de 2 de agosto, não viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição.
II – O tratamento diferenciado por parte do legislador justifica-se devido à especificidade de uma faixa etária, em que as necessidades de ressocialização se mostram mais prementes e os efeitos da permanência em meio prisional potenciam maiores malefícios».
6º- Relação do Porto - Decisão sumária de 5-1-2024, proc.ºn.º 30/21.9SFPRT-B.P1, rel. William Themudo Gilman:
“I – Tem sido entendido, mormente pelo Tribunal Constitucional, que a amnistia ou o perdão genérico não são um mero acto de clemência, antes têm de assentar nalguma racionalidade.
II – Tratando-se da definição de direitos individuais perante o Estado, que pela amnistia, como pelo perdão, são dilatados, tal como são comprimidos pela aplicação das sanções, a delimitação dos factos abrangidos pela lei de amnistia ou perdão genérico tem de ser feita, racionalmente, segundo critérios suscetíveis de generalização, em função de circunstâncias não arbitrárias do ponto de vista do Estado de Direito, sob pena de violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição.
III – A Jornada Mundial da Juventude é um evento religioso instituído pelo Papa João Paulo II em 1985, que reúne milhões de católicos de todo o mundo, sobretudo jovens, e daí que a delimitação do âmbito de aplicação da amnistia e do perdão genérico também pela idade das pessoas abrangidas, até aos 30 anos de idade, o que tem alguma correspondência com a idade dos destinatários principais das ditas jornadas, não seja destituída de qualquer racionalidade.
IV – É certo que não se vislumbra qualquer relação da concessão desta amnistia com quaisquer das tarefas de política criminal que devem caber ao direito de graça, designadamente a intervenção como “válvula de segurança» do sistema”, evitando a severidade da lei mediante circunstâncias supervenientes nas relações comunitárias ou da situação pessoal do agraciado, mas a verdade é que tem sido “tradicional” entre nós a publicação de leis de amnistia para efeitos de comemoração de eventos festivos ou de visitas ao país de personalidades importantes.
V – A sobredita delimitação pela idade da aplicação da amnistia e perdão da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, não se afigura decisivamente irracional e arbitrária, tendo em conta o evento que se comemora destinado em primeiro lugar à juventude católica, mas também aberto a pessoas não católicas e não jovens, pelo que tal delimitação está dentro da margem de manobra do legislador, não ferindo de forma decisiva o princípio da igualdade».
7º- Acórdão da Relação de Évora de 9-1-2024, proc.º n.º 47/20.0YREVR-E.E1, rel. João Carrola:
«I. A Lei nº 38-A/2023, de 02/08, que decretou medidas de clemência de amnistia e perdão de penas, estabeleceu uma diferenciação de tratamento entre os cidadãos que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática dos factos (os beneficiários dessas medidas de clemência) e os demais (excluídos da aplicação das medidas).
II. Cabe na discricionariedade normativa do legislador ordinário eleger a categoria geral de pessoas abrangida pelas medidas de clemência, e, a partir de critérios objetivos, determinar a aplicação das mesmas regras em todas as situações iguais, pelo que não ocorre qualquer inconstitucionalidade na referida diferenciação de tratamento (em razão da idade dos cidadãos), designadamente não existindo violação do princípio da igualdade».
           8º- Acórdão da Relação de Évora de 23-1-2024, proc.º n.º 3873/20.7T9FAR.E1, rel. Nuno Garcia:
“As leis de amnistia e perdão têm caracter de clemência, não é um direito dos cidadãos.
O Estado goza de grande liberdade conformativa no conteúdo das leis de amnistia e perdão, sendo que as suas razões e objetivos não estão concretizadas em lei.
Não podendo ocorrer o arbítrio ou discriminação infundada, o Estado pode escolher o momento da entrada em vigor da amnistia/perdão, que tipos legais ou condutas serão passiveis de amnistia/perdão, qual a abrangência da amnistia/perdão (penal, contraordenacional, disciplinar …), que grupos de indivíduos amnistiar/perdoar (Lei 9/96, de 23 de Março, conhecida pela Amnistia às FP25), isto é, desde que justificada a sua restrição não existe inconstitucionalidade.
Ora, no caso em apreço não se vislumbra qualquer arbítrio ou falta de fundamento material.
Na verdade, tratou-se de assinalar a vinda do Papa às JMJ, estabelecendo-se vários limites: idade, data da prática dos factos, tipos de infracções.
Tal e qual se estabeleceu em anteriores amnistias.
A fixação da idade dos 30 anos, e não de outra qualquer, mesmo que por referência a jovens, está também bem explicitada, parecendo desrazoável a discussão acerca da idade até à qual se pode considerar uma pessoa jovem. E muito menos por referência ao conceito de jovem para muitos outros efeitos (até para jovem agricultor!).
Tratou-se apenas de equiparar com a idade considerada para participação nas JMJ.
Por outro lado, é bem compreensível que se associe à vinda do Papa e às JMJ à concessão de um “benefício” a quem sendo jovem, mais facilmente merece “incentivo” para uma melhor ressocialização.
Resulta de tudo o exposto que com a fixação do limite dos 30 anos não se vislumbra qualquer contrariedade aos preceitos constitucionais ou da carta dos direitos fundamentais dos cidadãos da união europeia” (sumário).
           9º- Acórdão da Relação de Coimbra de 24-1-2024, proc.º n.º 14/23.2GTCBR.C1, rel. Isabel Valongo:
«I – Não é concebível uma interpretação extensiva quanto ao limite de idade do perdão previsto na Lei de Amnistia de 2023.
II - O âmbito de aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2.8, diferenciando positivamente os “jovens” entre os 16 e os 30 anos de idade por ocasião da realização em Portugal das JMJ, encontra uma justificação material razoável e constitucionalmente relevante, tendo em conta, desde logo, a consagração, no artigo 70.º da CRP, da proteção especial da juventude, não sendo arbitrária, nem irrazoável, tratando de forma igual todos os que se encontram na mesma situação».
            10º- Acórdão da Relação de Guimarães de 20-2-2024, proc.º n.º 399/21.5GCVNF, rel. Isabel Cristina Gaio Ferreira de Castro:
«I- A amnistia e o perdão previstos na Lei n.º 38-A/2023 aplicam-se a todo o universo de pessoas que, à data da prática dos factos ilícitos que cometeram, no período temporal ali definido, tenham idade compreendida entre 16 e 30 anos, com ressalva de alguns tipos de crimes e outras circunstâncias ali discriminadas.
Nessa confluência, a predita lei reveste caráter geral e abstrato, pois é aplicável a todos os arguidos que reúnam as condições nela previstas, em número indeterminado.
II- Por outro lao, a delimitação do âmbito de aplicação da amnistia e do perdão genérico pela idade das pessoas abrangidas – até aos 30 anos de idade – tem alguma correspondência com a idade dos destinatários principais da dita Jornada Mundial da Juventude e é consonante com o espírito de estabelecer medidas de clemência que facilitem a reinserção social relativamente àquela faixa etária [independentemente da religião perfilhada], tal como sucedeu, de resto, em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios
A delimitação do seu âmbito de aplicação mostra-se justificada, em termos objetivos e racionais, não sendo arbitrária nem irrazoável.
III- No quadro descrito, a diferenciação em função da idade estabelecida no artigo 2º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023 está perfeitamente contida na margem de manobra de que o legislador dispõe para delimitar o campo normativo de aplicação das medidas de clemência e não fere o princípio da igualdade constitucionalmente consagrado».
11º- Acórdão da Relação de Guimarães de 20-2-2024, proc.º n.º 1420/11.0T3AVR-BT.G1, rel. António Teixeira:
«II- A circunstância de a Lei n.º 38-A/2023 apenas abranger crimes praticados por pessoas com idade compreendida entre os 16 e os 30 anos tem uma reconhecida e notória explicação relacionada com a Jornada Mundial da Juventude e os seus destinatários.
Tal diploma legal, inelutavelmente, reveste carácter geral e abstracto, pois que se aplica a todos os arguidos que se encontrem na situação ali descrita, ou seja, em número indeterminado, e a delimitação do respectivo âmbito de aplicação está devidamente justificada, não se mostrando irrazoável, arbitrária e/ou violadora de qualquer princípio constitucional, máxime do princípio da igualdade, ínsito no Artº 13º, nºs. 1 e 2, da nossa lei fundamental».
12º- Acórdão da Relação de Guimarães de 20-2-2024, proc.º n.º Processo nº 339/23.7PBBRG.G1, rel. Armando Azevedo:
«I- A razão de ser da Lei nº 38-A/2023, de 02.08, teve que ver com a presença no nosso país de sua Santidade o Papa, no âmbito das Jornadas Mundiais da Juventude. O seu propósito foi o de beneficiar com medidas de clemência os jovens a partir da maioridade penal até perfazerem 30 anos, por serem os destinatários centrais das Jornadas Mundiais da Juventude, sendo essa a idade limite do evento.  
II- Com alguma frequência, são publicados diplomas legais, acerca das mais diversas matérias, aplicáveis apenas a pessoas que se incluam num determinado escalão etário, que varia de diploma para diploma e que naturalmente tem a sua justificação ou razão de ser. São disso exemplo os diplomais legais referidos pelo recorrente nas suas alegações de recurso, ou seja, a Portaria nº 345/2006, de 11.04; Portaria 31/2015, de 12.02; o DL nº 401/82, de 23.09.  E não é por causa do âmbito pessoal restrito da sua aplicação que tais diplomas são inconstitucionais. É que o princípio da igualdade, segundo a jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, só proíbe discriminações quando estas se afiguram destituídas de fundamento racional.
III- Nesta conformidade, a delimitação do âmbito pessoal de aplicação da Lei nº 38-A/2023, de 02.08, está plenamente justificada, não sendo arbitrária, nem irracional. E sendo assim, o artigo 2º, nº 1 do referido diploma ao delimitar o âmbito da sua aplicação aos ilícitos praticados por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto” não enferma de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade previsto no artigo 13º da CRP».
13º- Acórdão da Relação de Lisboa de 20-2-2024, proc.º n.º 2033/22.7PFLSB.L1-5, rel. Sandra Oliveira Pinto:
«I - As medidas de clemência, atenta a sua natureza de providências excecionais, devem ser interpretadas nos precisos termos em que estão redigidas, sem ampliações nem restrições, não comportando aplicação analógica (cf. artigo 11º do Código Civil), embora sempre com a salvaguarda dos princípios constitucionais de igualdade e proporcionalidade.
II - Atualmente, a amnistia ou o perdão genérico não podem ser considerados um mero ato de clemência, antes têm de assentar nalguma racionalidade. Tratando-se da definição de direitos individuais perante o Estado, que pela amnistia, como pelo perdão, são dilatados tal como são comprimidos pela aplicação das sanções, a delimitação dos factos abrangidos pela lei de amnistia ou perdão genérico tem de ser feita segundo critérios suscetíveis de generalização, em função de circunstâncias não arbitrárias do ponto de vista do Estado de direito.
            III- Em face das circunstâncias que ditaram a emissão da amnistia (e perdão de penas) aqui em questão [a realização das JMJ], não podem considerar-se postos em causa os mencionados princípios constitucionais da igualdade e proporcionalidade: a norma aplica-se a todos os que se encontrem da situação visada (mostrando-se, por isso, de aplicação geral) e é, nos termos em que se deixou exposto, de considerar contida na discricionariedade constitucionalmente reconhecida ao legislador ordinário a possibilidade de restringir a aplicação das medidas de graça a um grupo ou categoria de destinatários, desde que para o efeito exista uma justificação racional atendível».

            3.3. Estamos, POIS, do lado desta jurisprudência que entende que inexiste qualquer violação do princípio da igualdade, ínsito no artigo 13º da CRP, pelo facto de o legislador ter optado por aplicar estas clemências apenas a arguidos até aos 30 anos de idade.
            A mensagem de Sua Santidade o Papa Francisco deve chegar «a todos, a todos e a todos», como bem nos lembra o recorrente.
Mas nem sempre as leis se aplicam a todos, havendo sérias e justificadas razões para esta restrição, as quais não violam os preceitos constitucionais como o afirmaram tão veementemente a totalidade das decisões jurisprudências por nós conhecidas (tendo apenas nós conhecimento de uma posição solitária no tribunal da Marinha Grande, a qual aplicou a Lei 38-A/2023 a arguido com mais de 30 anos[5]).
Também Ema Vasconcelos, em “Amnistia e perdão – Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto” (Julgar Online, Janeiro 2024), defendeu a constitucionalidade da solução legislativa em causa.
Ouçamo-la:
«Questões diversas prendem-se com: - o acerto da formulação (dúbia) do intervalo de idades que se quis abranger com a aplicação da lei – entre os 16 e 30 anos – a suscitar interpretações diversas, que nada beneficiam uma escorreita aplicação da lei; - a ausência de correspondência do conceito de “jovem” previsto no Código de Processo Penal [artigo 67.º-A, n.º 1, al. d) – menor de 18 anos] ou noutra legislação avulsa [artigo 3.º, n.º 2 do DL 401/82, de 23 de Setembro, que aprovou o Regime Penal aplicável a Jovens Delinquentes – 16-20], com a consagrada na Lei n.º 38-A/2023, de 2.8. Tais questões, contudo, não invalidam o que supra se expôs e que determina que, salvo melhor opinião, a Lei n.º 38-A/2023, de 2.8, aprovada não padeça de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade”.
E não se venha dizer que esta clemência também deveria ser estendida «à população prisional, isolada do contexto social, a outras faixas etárias, algumas de idade avançada, e com problemas de saúde».
Não foi essa a opção legislativa e não poderá agora o julgador fazer incompreensíveis leituras extensivas daquilo que pretendeu o legislador.
Uma vez que foi definido para organização da própria Jornada Mundial da Juventude que jovem era qualquer cidadão até aos 30 anos e, sendo certo que a Lei da Amnistia foi estabelecida em função deste evento, é perceptível e compreensível que este tenha sido o critério do legislador para estabelecer o limite de idade para a aplicação do regime jurídico desta específica lei de clemência.
Olhando ao histórico das amnistias em Portugal, a verdade é que tem havido amnistia de grupos específicos de pessoas e o Tribunal Constitucional nunca levantou objecções quanto a isso.
No fundo, a amnistia não é um direito, sendo antes uma medida de clemência que pode ser assumida pela Assembleia da República
Como, e muito bem defendeu o Exmº PGA nesta Relação:
«Também nós entendemos que a Lei nº 38-A/2023 de 2.8 não padece de inconstitucionalidade.
Tal diploma permite a aplicação de amnistia e de perdão a determinadas pessoas e situações, sendo uma manifestação do “direito de graça” privativo do Estado, de natureza excecional, exercido através da Assembleia da República, órgão de soberania onde, por excelência, está sedeado o poder legislativo.
S.m.o., o mesmo não enferma de qualquer inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade (artº. 13º da CRP), pois conforme resulta, desde logo, do seu artº. 1º - “A presente lei estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude” -, ficou evidente, de forma sintética, qual a sua principal razão de ser.
Razão de ser que pode ser encontrada de forma mais aprofundada na exposição de motivos da Lei:
“(...) A Jornada Mundial da Juventude (JMJ) é um evento marcante a nível mundial, instituído pelo Papa João Paulo II, em 20 de dezembro de 1985, que congrega católicos de todo o mundo. Com enfoque na vertente cultural, na presença e na unidade entre inúmeras nações e culturas diferentes, a JMJ tem como principais protagonistas os jovens.
Considerando a realização em Portugal da JMJ em agosto de 2023, que conta com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal, tomando a experiência pretérita de concessão de perdão e amnistia aquando da visita a Portugal do representante máximo da Igreja Católica Apostólica Romana justifica-se adotar medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento.
Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ. Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina”.
Tratando-se, justificadamente, de forma diferente situações diferentes – e, no caso, a idade, faz toda a diferença -, as medidas de clemência podem ser assumidas pelo poder legislativo com alguma discricionariedade, ainda de forma circunscrita, com a cabal e necessária motivação, como foi o caso, atenta a sua razão de ser, o motivo legítimo por este assumido, sem que se vislumbre um qualquer critério diferenciador arbitrário, injustificável, esse sim violador do princípio da igualdade. (…)».

3.4. Aqui chegados, só haverá que defender a lógica do despacho recorrido por duas ordens de razões:
1ª- o arguido tinha mais de 30 anos à data dos factos (tinha 46 anos);
2º- o arguido praticou um crime que consta do nº 2 do artigo 7º da Lei nº 38-A/2023, de 2/8 (trata-se de crime de ameaça agravada e de um arguido «condenado por crimes cometidos contra membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários, no exercício das respectivas funções») – ameaçou um agente da GNR no exercício das suas funções.
Logo, não há perdão a aplicar.

3.5. Em suma, improcede em toda a linha este recurso.

3.6. Diremos em sumário:
1. Constitui jurisprudência uniforme que a amnistia e o perdão devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliação nem restrições, estando vedada quer aplicação analógica quer a interpretação extensiva, impondo-se, assim, uma interpretação declarativa.
2. A delimitação do âmbito de aplicação da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, mostra-se justificada, em termos objectivos e racionais, não sendo arbitrária nem irrazoável, estando tal delimitação dentro da margem de manobra do legislador, não ferindo de forma decisiva o princípio constitucional da igualdade.

            III – DISPOSITIVO       

            Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso intentado pelo arguido AA, mantendo todo o teor da decisão recorrida.

Custas pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs [artigos 513º, no 1, do CPP e 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa].

Coimbra, 22 de Maio de 2024
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94º, n º2, do CPP -, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria 267/2018, de 20/09)
 
 Relator: Paulo Guerra
Adjunto: João Bernardo Peral Novais
Adjunto: Alcina da Costa Ribeiro


[1] Rui Medeiros e Jorge Miranda, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo II, Coimbra Editora, 2005. p. 496.
[2] Embora se entenda, como Francisco Aguilar, in Amnistia e Constituição, Almedina, 2004, p. 114 a 116, que «as leis de amnistia configuram necessariamente uma derrogação ao princípio da igualdade. É que, por força da amnistia, apenas alguns dos factos que correspondam à previsão normativa da lei incriminadora irão ser efetivamente punidos.».
[3] Assim, veja-se o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 152/95.
[4] Não é esta a questão a discutir nos autos mas diremos que, na linha do decidido pela Relação de Guimarães de 6/2/2024 (Pº 555/15.5GAEPS-B.G1), que:
«I- Nos termos do artigo 3.º, n.º 2 alínea b) da Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, é perdoada a prisão subsidiária resultante da conversão de penas de multa, sem qualquer limite.
II- É certo que a pena de multa aplicada a título principal superior a 120 dias está excluída do perdão das penas estabelecido pela Lei n.º 38-A/20023, nos termos do seu artigo 3.º, nº 2, al. a).
A conversão da multa não paga em prisão subsidiária constitui, porém, uma verdadeira modificação do conteúdo decisório da sentença.
Após a conversão não pode continuar-se a considerar a duração da pena de multa aplicada a título principal para, à revelia do legislador, limitar o perdão da pena de prisão subsidiária à resultante da conversão da pena de multa até 120 dias».
No nosso caso, o quantum dessa pena é inferior a 120 dias.

[5] Para tal foro:
Quando o legislador definiu a faixa etária abrangida pela Lei da Amnistia, teve em consideração o limite máximo de idade para as inscrições nas Jornadas Mundiais da Juventude.
Porém, é importante referir que cada Conferência Episcopal de cada país poderia definir outra idade e permitir inscrições de pessoas com idades diferentes, sob certas condições. No entanto, como foi analisado no Acórdão, os limites de idade e o conceito de juventude são utilizados em diversos contextos, pelo que podemos encontrar diversas definições do mesmo. Por exemplo, no programa de mobilidade e intercâmbio para jovens, é-se considerado jovem até os 30 anos de idade, isto de acordo com a Portaria n.º 345/2006, de 11 de Abril. Por outro lado, para a Assembleia Geral das Nações Unidas, entende-se que a juventude termina aos 24 anos,
conforme dispõe a Resolução n.º 36/28 de 1981. Além disso, no contexto de “Jovens Agricultores” são considerados jovens até os 40 anos, de acordo com o artigo 3.º, alínea d), da Portaria n.º 31/2015, de 12 de Fevereiro. Dessa forma, o Tribunal conclui que, dependendo do Diploma Legal em análise, o fim da juventude varia entre os 24 e os 40 anos, o que impede a definição de um limite universal para o conceito de juventude.
Assim, o Tribunal da Marinha Grande, considerando que o termo “juventude” é vago e não possui definição jurídica, e que o legislador não estabeleceu critérios específicos para o limite de até 30 anos, sendo esse limite, em concreto, 31 anos menos um dia para a aplicação da Amnistia, descrita na norma do artigo 2.º, n.º 1 da Lei n.º 38-A/2023, de 2/8, é materialmente inconstitucional, por ofensa à norma do artigo 13.º, n.º 2 da CRP. Com base na referida inconstitucionalidade parcial quantitativa, declarou extinto o procedimento criminal, relativo ao crime de condução em estado de embrieguez, por aplicação da Lei da Amnistia (cf. artigo 4.º).