Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1088/23.1T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HUGO MEIRELES
Descritores: FACTOS CONCLUSIVOS
CONTRATO A FAVOR DE TERCEIRO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
INTERPRETAÇÃO DO CLAUSULADO
Data do Acordão: 09/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 607.º, N.ºS 3 E 4, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 236.º, N.º 1, 406.º, N.º 1, E 443.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Os factos conclusivos não podem integrar a matéria de facto quando, por si, são suscetíveis de ditar a solução jurídica do caso, normalmente através da formulação de um juízo de valor.

II – Essencial ao contrato a favor de terceiro, como figura típica autónoma, é que os contraentes procedam com a intenção de atribuir, através dele, um direito (de crédito ou real) a terceiro.

III – A qualificação de um contrato como contrato a favor de terceiro depende da interpretação casuística das cláusulas estipuladas pelas partes a fim de averiguar se estas estipularam cláusulas com efeitos jurídicos positivos de terceiro.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Autor/Recorrente: AA;

Réus/recorridos: «A...., L.da,» e BB;


I. Relatório

AA instaurou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra «A...., L.da,» e BB, pedindo que estes sejam condenados a pagar-lhe a quantia de €240.000,00 (duzentos e quarenta mil euros), acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, desde a data da citação.

Para além disso, pede que os réus sejam condenados a “libertar totalmente o autor das garantias prestadas junto da Banco 1..., CRL, Banco 2..., SA, Banco 3...), CRL e B..., SA, entregando-lhe, consequentemente, as respetivas declarações de exoneração”.

Para tanto, alega, em síntese, que foi sócio e vogal do conselho de administração da sociedade comercial denominada «C..., SA», cujo objeto social consiste na exploração e comercialização de águas de mesa.

Mediante contrato-promessa, celebrado no dia 19 de julho de 2016, a acionista «D..., SA», titular de ações representativas de 74% do capital social da sociedade comercial «C..., SA», prometeu vender à ré «A...., Lda,», que lhe prometeu comprar, 67% das ações que detinha naquela sociedade, pelo preço global de €634.000,00.

De acordo com o estipulado na cláusula sétima do referido contrato-promessa, os réus assumiram a obrigação de liquidar o empréstimo feito pelo autor àquela sociedade, no total de €240.000,00.

Apesar de tal cláusula consubstanciar “a assunção de uma obrigação a favor do autor”, o capital pelo mesmo mutuado à sociedade comercial denominada «C..., SA» não lhe foi restituído, o que configura um incumprimento, pelos réus, do contrato-promessa celebrado a 19 de julho de 2016.

Ademais, através do aditamento ao contrato definitivo de compra e venda de ações celebrado pelos réus e pela sociedade «D..., SA», no dia 29 de junho de 2017, a Ré «A...., L.da» obrigou-se “a obter a exoneração total e absoluta de todos os garantes, que a título pessoal, prestaram garantias, de qualquer natureza ou espécie a favor da C..., SA, em toda e qualquer obrigação ou operação de natureza bancária ou financeira, perante qualquer instituição ou entidade”.

No entanto, à data da instauração da presente ação declarativa, o autor ainda não foi desonerado das obrigações decorrentes das garantias por si prestadas junto da «B..., SA», da «Banco 2..., SA», da «Banco 3...), CRL» e da «Banco 1..., CRL».

Em conclusão, por considerar que, no contrato-promessa celebrado a 19 de julho de 2016, foi estipulada, a seu favor, uma obrigação de pagamento de uma quantia pecuniária, enquanto no aditamento ao contrato de compra e venda de ações celebrado a 29 de junho de 2017 foi estipulada, a seu favor, uma obrigação de prestação de facto, conclui o autor que lhe assiste o direito de exigir o cumprimento das mesmas pelos réus.


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Devidamente citada para os termos da presente ação declarativa, a ré «A...., Lda» não apresentou contestação.

Não tendo sido possível concretizar a citação pessoal do réu BB, foi determinada a respetiva citação edital.

Em conformidade com o disposto no artigo 21º, n.º 1, do Código de Processo Civil, foi citado o Digno Magistrado do Ministério Público, que juntou aos autos o articulado de contestação.


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Em sede de audiência final o autor desistiu do pedido formulado contra os réus quanto à desoneração das obrigações decorrentes das garantias por si prestadas junto da «Banco 1..., CRL», da «Banco 2..., SA», da «Banco 3...), CRL» e da «B..., SA».

Por sentença proferida no início da audiência final, foi homologada a desistência (parcial) do pedido apresentada pelo autor, tendo os réus sido absolvidos do pedido a que se aludiu e “prosseguindo os autos para conhecimento do pedido de condenação dos Réus no pagamento da quantia de € 240.000,00”.


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Realizada a audiência de julgamento, a final, proferida sentença que termina com o seguinte dispositivo:

Em face do exposto, nos termos e com os fundamentos já indicados, decido julgar a presente ação improcedente e, em consequência, absolver os Réus A...., L.da e BB do pedido contra si formulado pelo Autor.

Custas a cargo do Autor (cfr. artigo 527º, n.º 1 e 2, do CPC).


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Não se conformando com esta decisão, dela veio interpor recurso o autor, concluindo as suas alegações da forma seguinte:

(…).


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O Digno Magistrado do Ministério Público apresentou contra-alegações que conclui nos termos que, de seguida, se transcrevem:

(…).


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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II. Delimitação do objeto do recurso.
O âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil – ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado.

No seguimento desta orientação, são as seguintes as questões que importa apreciar no presente recurso:
a) Impugnação da matéria de facto;
b) Da procedência do pedido de condenação dos réus no pagamento ao autor da quantia de €240.000,00, acrescida de juros de mora;


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III. Fundamentação de facto

A tribunal de primeira instância considerou provados os seguintes factos:
1) O Autor foi, até ao ano de 2017, sócio e vogal do Conselho de Administração da sociedade comercial denominada C..., SA, com sede em ..., ..., ...;
2) A sociedade comercial identificada em 1. tem por objeto a exploração e comercialização de águas de mesa;
3) Mediante escrito intitulado Acordo Global de Negócio Societário, datado de 18 de novembro de 2013, a sociedade comercial com a firma D..., SA, representada pelo seu administrador CC, na qualidade de Primeira Outorgante, o Autor AA, na qualidade de Segundo Outorgante, e a sociedade comercial denominada C..., SA, representada pelo seu administrador CC, na qualidade de Terceira Outorgante, acordaram, para além do mais, o seguinte:

“Considerandos:

A) Que no dia 16 de maio de 2013 foi celebrado um contrato entre os sócios da sociedade comercial C..., SA, (…) e a D..., SA, (…), e que todos os Outorgantes bem conhecem por nele terem sido intervenientes.

B) Que nos termos do sobredito acordo, resultou entre outras matérias naquele decididas, acordar em transformar a C... em sociedade anónima de forma que a composição do capital social resultasse na seguinte proporção:

i) 74% a favor da D..., SA.

ii) 15% a favor dos familiares do segundo Outorgante (Família DD).

iii) 11% a favor do aqui segundo outorgante AA. (…).


Cláusula 1ª

1) A primeira outorgante comprometeu-se através do contrato já acima mencionado à realização de um investimento de capital na atual sociedade C..., SA com o objetivo de proceder à sua recapitalização e reestruturação e que culminou na transformação da sociedade por quotas que era em sociedade anónima e com a detenção atual por parte da aqui Primeira Outorgante de 74% das participações sociais e o Segundo Outorgante 11%.

2) A primeira e terceira outorgantes obrigam-se a no prazo de um ano a contar do dia 7 de novembro de 2013, a proceder ao pagamento e regularização de todos os ónus, encargos e responsabilidades diretas ou subsidiárias que pendam ou vierem a recair sobre o segundo outorgante enquanto sócio e gerente e agora vogal da administração (AA), avalista e ou fiador na sociedade C..., SA.


Cláusula 2ª

Promessa de cessão de transmissão de ações:

Após a regularização e cumprimento ou desobrigação de todos os encargos e responsabilidades acima discriminados ou outros que existam ou ainda se vierem a constituir na vigência deste contrato e enquanto sócio e vogal da administração, o segundo outorgante por força do presente acordo promete ceder as participações correspondentes atualmente a 11% (…) do capital social da C..., SA, e a primeira promete adquiri-las pelo valor global 1,00€ (…), ficando e por estipulação das partes outorgantes, a promessa de cedência, sujeita ao regime da execução específica previsto no art. 830º do C. Civil. (…).”.
4) Por deliberação datada de 7 de novembro de 2013, o capital social da sociedade comercial denominada C..., SA foi reduzido de €3.000.000,00 para €150.100,00;
5) Na mesma data, o capital social da sociedade comercial denominada C..., SA foi aumentado para € 849.900,00, por entradas em dinheiro subscritas e realizadas pela sócia D..., SA, no montante de €739.900,00, e pelo Autor AA, no montante de €110.000,00, para reforço do valor nominal das respetivas quotas;
6) Na sequência desse aumento, a sociedade comercial denominada C..., SA passou a ter o capital social de € 1.000.000,00, representado por participações sociais no valor de €740.000,00 tituladas pela sociedade comercial com a firma D..., SA e por participações sociais no valor de €119.868,50 tituladas pelo Autor, sendo as restantes participações sociais tituladas por várias pessoas;
7) A Ré A...., L.da tem por objeto a compra e venda de bens imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim. Arrendamento de imóveis. Gestão e administração de condomínios. Prestação de serviços de documentação, que não envolva atos próprios de Advogados, Solicitadores ou de outras entidades previstas em legislação própria. Atividades hoteleiras. Exploração de unidades hoteleiras e turísticas. Organização de eventos. Importação e exportação. Exploração e comercialização de mármores, granitos e rochas ornamentais. Prestação de serviços de formação. Prestação de serviços de apoio ao intercâmbio cultural e de ensino para jovens nacionais e estrangeiros. Exploração e gestão de estabelecimentos de ensino. Atividades agropecuárias, florestais e piscatórias. Comercialização dos respetivos produtos;
8) O Réu BB foi sócio e é gerente da Ré A...., L.da.;
9) Mediante escrito intitulado Contrato-Promessa de Transmissão de Ações, datado de 19 de julho de 2016, CC, por si e na qualidade de Administrador Único da sociedade comercial com a firma D..., SA, detentora de 74% da empresa C..., SA, designado por Primeiro Contratante e Promitente Transmitente, e o Réu BB, na qualidade de gerente e em representação da Ré A...., L.da, designada por Segunda Contratante e Promitente Transmissária, acordaram, para além do mais, o seguinte:


“(…) Quarta

1. O Primeiro Outorgante, por si, em seu nome, e em nome da sua representada D..., promete transmitir à representada do Segundo Contratante, pelo preço global de 634.000,00 € (…) 67% (…) das ações nominativas de que a D... é titular, descritas na cláusula Primeira deste Contrato. (…).

Quinta

O preço estipulado na cláusula Quarta será pago da seguinte forma:

a) Até dia 07 de julho de 2017 – a quantia de 300.000,00 € (…);

b) Até dia 05 de dezembro de 2017 – a quantia de 334.000,00 € (…); (…).


Sétima

1. O Segundo Outorgante por si e em nome da sua representada A..., assumem pessoal e solidariamente as seguintes obrigações e direitos, sem prejuízo dos demais que resultam deste Contrato:

a) Na presente data, com a assinatura deste Contrato, a representada do segundo outorgante integra no património da C... a quantia de 100.000,00€ (…), e fica autorizada a indicar uma pessoa para acompanhar a gestão diária da empresa, que desde já se acorda que será o Sr. EE, o Sr. BB ou outra pessoa que por este vier a ser indicada a qualquer momento.

b) Até 15 de setembro de 2016 obriga-se a integrar no património da C... a quantia de 100.000,00€ (…).

c) Até ao dia 28 de outubro de 2016, obriga-se a integrar no património da C... a quantia de € 300.000,00 (…);

d) Concomitantemente com o investimento efetuado na alínea c), ocorrerá a transmissão para o segundo contratante e sua representada dos 67% (…) das ações detidas pela representada do primeiro outorgante.

e) Até ao dia 20 de dezembro de 2016, obriga-se a facultar mais a quantia de 400.000,00€ (…), para fazer face aos pagamentos, infra, mencionados, caso tal seja viável e não colida com o regular funcionamento da C....

2. As quantias atrás referidas nas alíneas c) e d) terão o seguinte destino:

a) Os 300.000,00€ (…) serão utilizados para Regularização dos suprimentos aos sócios minoritários.

b) Os 100.000,00€ (…) serão utilizados para pagamento por conta dos empréstimos do Sr. CC, que é de 427.225,00€ e do Sr. AA de 240.000,00€, que fizeram à C..., valores estes que têm de ser confirmados com a Contabilidade da empresa;

c) O restante valor será utilizado para o normal funcionamento da empresa.

d) Os 400.000,00€ (…) serão utilizados para pagamento dos empréstimos atrás referidos do Sr. CC e Sr. AA.

e) O restante valor dos empréstimos do Sr. CC e do Sr. AA será pago até dia 30 de março de dois mil e dezassete, caso a empresa tenha disponibilidade contabilística para satisfazer estes montantes, sem prejudicar o seu regular funcionamento, entendendo-se por regular funcionamento, pagamentos a trabalhadores, credores, fornecedores e entidades públicas.

f) Os valores acima referidos estão retratados na escrita contabilística da C.... (…).


Décima

A partir da data da assinatura do contrato qualquer aumento de capital ou investimentos efetuados na empresa C... que devessem ser pagos pelos acionistas D... ou Sr. AA e ou outro por si designado, serão sempre suportados pelo segundo Outorgante ou sua representada aqui promitente compradora.

Décima Primeira

Para a concretização deste negócio o segundo outorgante terá que assumir todos os compromissos de pagamentos de qualquer natureza referentes a C... SA, que tenham sido assumidos pela atual administração, até à presente data. (…).”.
10) Mediante escrito intitulado Contrato de Compra e Venda de Ações, datado de 29 de junho de 2017, CC, na qualidade de Administrador Único da sociedade comercial com a firma D..., SA, designada por Vendedora, e o Réu BB, na qualidade de gerente e em representação da Ré A...., L.da, designada por Compradora, acordaram, para além do mais, o seguinte:

“Pressuposto Primeiro: A Vendedora, a sociedade, é titular de 74.000.000 (…) de ações, representativas de 74% (…) do capital social da sociedade C... SA, (…), com o capital social de 1.000.000,00€, (…). (…).

Nestes termos é celebrado o seguinte contrato de Compra e Venda de 74.000.000 Ações da sociedade C..., SA, pertencentes à sociedade D..., SA:

Cláusulas:


Cláusula Primeira – Objeto

1) – Pelo presente contrato a Vendedora vende à Compradora, esta compra, pelo preço de € 500.000,00 (…), as ações nominativas e tituladas inscritas nos títulos representativos de ações da C... SA com os seguintes números e valores: (…).

Cláusula Segunda – Preço

1 – Na presente data, a Vendedora recebe a quantia de 500.000,00€ (…), entregues pela Compradora a título de pagamento do preço das ações acima indicadas, do qual a Vendedora declara ter recebido e que dá a competente quitação, procedendo à entrega dos títulos das ações, devidamente endossados, à Compradora.

2 – Após a assinatura do presente contrato, a Compradora passa, por efeito da compra, a ter uma participação de 74% (…) sobre a empresa C..., SA.

3 – O capital social correspondente às ações encontra-se integralmente realizado, sendo as mesmas livres de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades e são vendidas com todos os direitos inerentes às mesmas, designadamente relativos a eventuais dividendos não distribuídos.

4 – O preço da compra e venda das ações indicado no n.º 1 supra compreende todos os bens, direitos e demais ativos que lhes pertençam ou a elas sejam relativos e, bem assim, todos os créditos e/ou outras posições ativas e passivas – seja qual for o seu fundamento e natureza – de que a Vendedora seja titular em relação à C..., SA, à exceção do crédito da dita Vendedora sobre a C... SA que se encontra refletido na sua contabilidade, direito esse que se ressalva expressamente do objeto do presente negócio e que se mantém na sua titularidade.

5 – O referido preço de compra e venda das ações foi negociado e fixado tendo como pressuposto a situação líquida da C..., SA, evidenciada pela sua escrituração mercantil e elementos contabilísticos, dos quais a Compradora declara ter tomado integral conhecimento e ter recebido toda a informação solicitada. (…).


Cláusula Quarta – Conclusão

1. Na data da celebração do presente Contrato, e sem dependência de qualquer outro ato posterior, CC, na qualidade de Administrador Único, com poderes para celebrar este contrato, da sociedade comercial anónima com a firma D..., SA:

a) Vende e entrega à Compradora as ações representadas por títulos definitivos devida e regularmente emitidos pela C..., SA e, bem assim, os formulários legais necessários para efetivar a sua transmissão, nos termos da legislação portuguesa aplicável;

b) Obriga-se a obter a imediata renúncia ao cargo de Administrador de CC e FF, que vêm exercendo na sociedade C..., SA.

2. Na data de celebração do presente Contrato, a Compradora assume todos os direitos e obrigações inerentes a titularidade das ações. (…).

11) Mediante escrito intitulado Contrato de Venda de Ações, datado de 9 de fevereiro de 2017, o Autor AA e a sua esposa GG declararam transmitir a HH metade das ações por si detidas na sociedade comercial denominada C..., SA, “ou sejam, seis milhões, setecentos e trinta e nove mil, quinhentas e quinze ações, com todos os direitos e obrigações inerentes, com o valor global nominal de sessenta e sete mil, trezentos e noventa e cinco euros e quinze cêntimos, pelo valor atribuído cinquenta e quatro mil e quinhentos euros, que já receberam, no capital social da sociedade atrás identificada”;

12) Mediante escrito intitulado Contrato de Venda de Ações, datado de 9 de outubro de 2017, o Autor AA e a sua esposa GG declararam vender a HH “as ações de que são titulares e detentores, com todos os direitos e obrigações inerentes, na sociedade comercial com a firma C..., SA, (…), de 605,985 (…) e de 6,055,315 (…), num total de 6,661,300 (…) ações”, pelo valor global de € 40.000,00.

13) O Autor cessou as suas funções, como vogal do Conselho de Administração da sociedade comercial denominada C..., SA, por renúncia, no dia 31 de outubro de 2017.

14) No final do ano de 2018 a sociedade comercial denominada C..., SA impulsionou um Processo Especial de Revitalização que correu termos no Juízo de Comércio do Fundão sob o número 751/18.....

15) Mediante despacho proferido a 3 de dezembro de 2018 no âmbito do Processo Especial de Revitalização identificado em 14. foi nomeado Administrador Judicial Provisório à sociedade comercial denominada C..., SA.

16) O Autor apresentou reclamação de créditos no âmbito do Processo Especial de Revitalização identificado em 14., tendo-lhe sido reconhecidos créditos no valor total de € 142.195,88.

17) O Autor não obteve o pagamento desses créditos no âmbito do Processo Especial de Revitalização identificado em 14.

18) Mediante cartas registadas com aviso de receção, datadas de 14 de junho de 2022 e de 4 de julho de 2022, o Autor, por intermédio das suas Ilustres Mandatárias, concedeu aos Réus “um prazo de dez dias úteis a contar da data da receção desta carta para nos demonstrarem ter cumprido as obrigações previstas nas cláusulas sétima e décima primeira do contrato-promessa, sob pena de incumprimento definitivo”.

19) No dia 28 de setembro de 2022 o Autor requereu a notificação judicial de ambos os Réus “para que cumpram as obrigações assumidas nas cláusulas sétima e décima primeira do contrato-promessa que constitui o documento n.º 3 em anexo e que façam prova de tal cumprimento perante o requerente, no prazo de dez dias úteis a contar da data da efetivação da notificação ora requerida, sob pena de recurso à via judicial”.

20) No dia 4 de outubro de 2022 o Ex.mo Senhor Agente de Execução designado para o efeito informou não ter logrado notificar os Réus, em virtude de não terem sido localizados na morada situada na Rua ..., Quinta ..., ....

21) Por sentença proferida a 18 de janeiro 2023, no âmbito da ação de insolvência que correu termos no Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia sob o número 433/23...., a sociedade comercial com a firma D..., SA foi declarada insolvente.

22) No âmbito da ação de insolvência identificada em 21. foi reconhecido ao Autor um crédito no valor de € 139.132,11.

23) Por decisão proferida a 15 de maio de 2023, o processo de insolvência identificado em 21. foi declarado encerrado, por insuficiência da massa insolvente.


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E considerou como não provados os seguintes factos:
1) O Autor desenvolve profissionalmente a atividade de administrador de empresas;
2) Quando a sociedade comercial denominada C..., SA foi constituída, o Autor e os seus familiares detinham 54% das respetivas participações sociais;
3) As comunicações a que se alude em 18. dos factos considerados provados vieram devolvidas.

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IV. Do mérito do recurso
A) Impugnação da matéria de facto
Ainda que, de forma não perfeitamente expressa, descortinamos, nas conclusões das alegações de recurso, a intenção do recorrente impugnar a matéria de facto assente, visando que passe a constar do elenco dos factos provados que, “pelo contrato promessa de transmissão de ações outorgado em 19 de julho de 2006, os réus obrigaram-se perante o autor pagar-lhe a quantia de €240.000,00, a título de ressarcimento dos empréstimos por este realizados à sociedade «C..., SA»”
Como se sabe, a impugnação da matéria de facto – provada e não provada – obedece ao disposto no art.º 640.º do Código de Processo Civil, que indica os ónus a cumprir pelo impugnante.
Nos termos da referida norma:
«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
2. No caso da al. b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena da imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder á transcrição dos excertos que considere relevantes”
Ainda que não tal constitua uma impugnação de matéria de facto, no sentido típico, poderá o recorrente entender que a matéria de facto provada e não provada não está completa, para a boa decisão da causa, invocando essa desconformidade em recurso, tanto mais que o art.º 662º do Código de Processo Civil prevê que, nessa hipótese, poderá o Tribunal da Relação, mesmo oficiosamente, anular a decisão do tribunal de primeira instância para ampliação do julgamento da matéria de facto.
É esse, indiscutivelmente, o caso da impugnação em análise, uma vez que a recorrente não visou propriamente atacar os factos que o tribunal a quo considerou provados e não provados, pretendendo antes que se adite ao elenco dos factos provados a supra aludida matéria.
A particularidade desta sua pretensão, naturalmente, não o dispensa de observar os mencionados ónus previstos no art.º 640º
E parece-nos que, no caso, ao indicar qual o facto a aditar, e porquê, e quais os meios de prova que sustentam o visado aditamento (o teor do contrato promessa de transmissão de ações junto com a petição inicial), tais ónus foram suficientemente observados pelo recorrente.
Contudo, o cumprimento dos ónus de impugnação não se confunde com o mérito da decisão da matéria de facto em si. Apenas permite que a substância da impugnação seja apreciada, o que, de imediato, se fará.
Como é sabido, na seleção dos factos em sede decisão da matéria de facto (art.º 607.º, n.º 4 do Código de Processo Civil) deve o Juiz atender à distinção entre factos, direito e conclusão, e acolher apenas o facto simples e afastar de tal decisão os conceitos de direito e as conclusões que mais não são que a lógica ilação de premissas, atendendo a todos os factos relevantes, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.
Como se decidiu no Ac. do STJ de 28/09/2017[1], “Muito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos”.
Releva também aqui o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães 11/11/2021[2], segundo o qual: “Não obstante subscrevermos uma maior liberdade introduzida pelo legislador no novo (atual) Código de Processo Civil, entendemos que não constituem factos a considerar provados na sentença nos termos do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil os que contenham apenas formulações absolutamente genéricas e conclusivas, não devendo também constituir «factos provados» para esse efeito as afirmações que «numa pura petição de princípio assimile a causa de pedir e o pedido».
Afigura-se-nos, assim, que os factos conclusivos não devem relevar (não podem integrar a matéria de facto) quando, porque estão diretamente relacionados com o thema decidendum, impedem ou dificultam de modo relevante a perceção da realidade concreta, seja ela externa ou interna, ditando simultaneamente a solução jurídica, normalmente através da formulação de um juízo de valor[3]
No caso vertente, com a impugnação da matéria de facto, pretende o recorrente, essencialmente, seja dada como provada a existência de uma obrigação pecuniária a seu favor, emergente de um contrato-promessa de transmissão de ações celebrado em 19 de julho de 2016, mais concretamente a obrigação de pagamento da quantia de €240.000,00, correspondente a empréstimos que efetuou à sociedade «C..., SA».
Significa isto, como bem nota o Digno Magistrado do Ministério Público nas suas contra-alegações, que o recorrente pretende que seja aditada ao elenco dos factos provados matéria de direito e não matéria de facto, uma vez que afirmar a existência daquela concreta obrigação pecuniária constitui o thema decidendum da presente ação.
De resto, como decorre claramente das alegações de recurso (designadamente dos pontos 14, 16, 17 e 18 e conclusão VII), o recorrente fundamenta a impugnação da matéria de facto exclusivamente na interpretação das cláusulas do mencionado contrato-promessa, transcritas no elenco dos factos provados.
Ora, como nos diz o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23 de janeiro de 2025[4], “(c)onstitui matéria de facto a celebração do negócio jurídico e o seu concreto conteúdo, ou seja, o que foi efectivamente acordado entre as partes; constitui matéria de direito apurar, através da interpretação e integração desse negócio – tarefa subordinada às regras jurídicas que constam dos art.ºs 236º a 239º do CC – quais os efeitos jurídicos dele decorrentes, ou seja, os direitos e deveres que dele emergem para as partes (ou para terceiros, nos casos em que a lei o admita).
Dessa forma, por integrar matéria conclusiva e de direito, o “facto” acima referido não pode ser aditado ao elenco dos factos provados.
Improcede, assim, a impugnação da matéria de facto que é objeto do presente recurso.

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B) O Direito

A única questão que se coloca no presente recurso é saber se, com fundamento no clausulado do contrato promessa de compra e venda de ações, outorgado em 19 de julho de 2017, por CC, na qualidade legal representante sociedade «D..., SA», promitente vendedora, e o Réu BB, na qualidade legal representante da Ré «A...., L.da», promitente compradora, o autor/recorrente tem direito a exigir dos réus/recorridos, a quantia de €240.000,00..

Defende o recorrente que de tal contrato, que não foi por ele outorgado, emerge para os aqui réus a obrigação – por eles incumprida - de lhe pagarem a sobredita quantia de €240.000,00, correspondente ao reembolso do empréstimo por ele realizado à sociedade «C..., SA».

Conforme é sabido, como regra, vigora entre nós o princípio geral da relatividade das convenções, princípio plasmado no art.º 406.º, n.º 1, que assim determina: “em relação a terceiros, o contrato só produz efeitos nos casos e termos especialmente previstos na lei”.

O princípio da relatividade, ou da eficácia externa do contrato, exige contenção dos efeitos da relação jurídicas ás partes, isto por respeito ao princípio clássico de que entendido o “contrato como produto da vontade humana, seria inimaginável que pudesse ser beneficiado ou prejudicado alguém cuja vontade não tivesse intervindo no contrato considerado”[5]

Esta regra, no entanto, conhece exceções, sendo uma delas, formalmente reconhecida e consagrada na lei, o chamado contrato a favor de terceiro, figura prevista no art.º 443.º do Código Civil que, de acordo com o Prof. Antunes Varela, se define como “o contrato em que um dos contraentes (promitente) atribui, por conta e à ordem do outro (o promissário), uma vantagem a um terceiro beneficiário estranho à relação contratual”[6].

Conforme chama a atenção o mesmo Autor, “essencial ao contrato a favor de terceiro, como figura típica autónoma, é que os contraentes procedam com a intenção de atribuir, através dele, um direito (de crédito ou real) a terceiro ou que dele resulte, pelo menos, uma atribuição patrimonial imediata para o beneficiário”[7]

Noutra formulação, diz-nos o Professor Mário Júlio Almeida Costa[8] o “que se exige é que o promitente e o promissário actuem com intenção de o contrato produzir os efeitos de uma atribuição imediata e não apenas reflexa, a terceiro”.

É, pois, inerente à idiossincrasia do contrato a favor de terceiro que o efeito seja jurídico (não apenas económico) e se produza diretamente na esfera do terceiro.

Por isso, não existirá contrato a favor de terceiro na hipótese em que, apesar de prestação principal se destinar a terceiro, este não adquira, segundo a intenção dos contraentes e o próprio conteúdo do contrato, qualquer direito de crédito à prestação (o denominado contrato de terceiro impróprio).

O autor, ora recorrente, defende que o aludido contrato promessa, face à sua natureza, objeto e conteúdo (e em particular as obrigações que decorrem das cláusulas 7ª, 10ª e 11ª), quando corretamente interpretado, configura em relação a si um contrato a favor de terceiro, concluindo que tem direito a exigir dos réus o mencionado valor de €240.000,00

Neste sentido, sustenta ter a sentença da 1.ª instância decidido de forma errada, quando interpretou restritivamente as referidas cláusulas contratuais e concluiu que as mesmas não permitem fundamentar a constituição, na sua esfera jurídica, de qualquer direito e crédito, mormente o reclamado nos autos.

Na sentença recorrida, o tribunal a quo, após realizar o correto enquadramento jurídico da situação sub iudice, concluiu, face aos elementos de interpretação contratual, não ter ficado demonstrado haver intenção dos contratantes em atribuir, por via direta e imediata do contrato, um direito de natureza creditícia ao ora recorrente e, por conseguinte, conclui que o contrato promessa de compra e venda de ações não configura, pelo menos em relação ao recorrente, um verdadeiro contrato a favor de terceiros, nos termos do art.º 443.º do Código Civil.

Vejamos, pois.

Diz-nos Margarida Lima Rego[9] que “(a) qualificação de um contrato como a favor de terceiro é o resultado de uma resposta afirmativa à questão de saber se nele foram estipulados efeitos jurídicos positivos de terceiro.”.

Daí que a qualificação de um contrato como contrato a favor de terceiro dependa sempre da interpretação casuística das cláusulas estipuladas pelas partes a fim de averiguar se estas estipularam cláusulas com efeitos jurídicos positivos de terceiro.

Ora, são as seguintes as cláusulas do contrato promessa de compra e venda de ações de cuja interpretação resulta, na opinião do recorrente, lhe assiste o direito a exigir dos réus o pagamento do valor que emprestou à sociedade «C..., SA»


Sétima

1. O Segundo Outorgante por si e em nome da sua representada A..., assumem pessoal e solidariamente as seguintes obrigações e direitos, sem prejuízo dos demais que resultam deste Contrato:

a) Na presente data, com a assinatura deste Contrato, a representada do segundo outorgante integra no património da C... a quantia de 100.000,00€ (…), e fica autorizada a indicar uma pessoa para acompanhar a gestão diária da empresa, que desde já se acorda que será o Sr. EE, o Sr. BB ou outra pessoa que por este vier a ser indicada a qualquer momento.

b) Até 15 de setembro de 2016 obriga-se a integrar no património da C... a quantia de 100.000,00€ (…).

c) Até ao dia 28 de outubro de 2016, obriga-se a integrar no património da C... a quantia de € 300.000,00 (…);

d) Concomitantemente com o investimento efetuado na alínea c), ocorrerá a transmissão para o segundo contratante e sua representada dos 67% (…) das ações detidas pela representada do primeiro outorgante.

e) Até ao dia 20 de dezembro de 2016, obriga-se a facultar mais a quantia de 400.000,00€ (…), para fazer face aos pagamentos, infra, mencionados, caso tal seja viável e não colida com o regular funcionamento da C....

2. As quantias atrás referidas nas alíneas c) e d) terão o seguinte destino:

a) Os 300.000,00€ (…) serão utilizados para Regularização dos suprimentos aos sócios minoritários.

b) Os 100.000,00€ (…) serão utilizados para pagamento por conta dos empréstimos do Sr. CC, que é de 427.225,00€ e do Sr. AA de 240.000,00€, que fizeram à C..., valores estes que têm de ser confirmados com a Contabilidade da empresa;

c) O restante valor será utilizado para o normal funcionamento da empresa.

d) Os 400.000,00€ (…) serão utilizados para pagamento dos empréstimos atrás referidos do Sr. CC e Sr. AA.

e) O restante valor dos empréstimos do Sr. CC e do Sr. AA será pago até dia 30 de março de dois mil e dezassete, caso a empresa tenha disponibilidade contabilística para satisfazer estes montantes, sem prejudicar o seu regular funcionamento, entendendo-se por regular funcionamento, pagamentos a trabalhadores, credores, fornecedores e entidades públicas.

f) Os valores acima referidos estão retratados na escrita contabilística da C.... (…).


Décima

A partir da data da assinatura do contrato qualquer aumento de capital ou investimentos efetuados na empresa C... que devessem ser pagos pelos acionistas D... ou Sr. AA e ou outro por si designado, serão sempre suportados pelo segundo Outorgante ou sua representada aqui promitente compradora.

Décima Primeira

Para a concretização deste negócio o segundo outorgante terá que assumir todos os compromissos de pagamentos de qualquer natureza referentes a C... SA, que tenham sido assumidos pela atual administração, até à presente data. (…).”.
*
O sentido e alcance destas cláusulas terão de ser aferidos, o mesmo é dizer, interpretados, à luz das regras contidas nos artigos 236.º e segs. do Código Civil.

A interpretação de um negócio jurídico, enquanto atividade destinada a fixar o sentido e alcance decisivo desse negócio, segundo as respetivas declarações integradoras não pode ser abandonada ao senso empírico de cada intérprete, antes deve pautar-se por regras cuja formulação constitui o objeto de hermenêutica negocial[10].

Neste domínio, o Código Civil acolheu a chamada teoria da impressão do destinatário, dispondo no n.º 1 do art.º 236º que a declaração negocial deve ser interpretada com o sentido que um declaratário normal, colocado em posição do tal declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não poder razoavelmente contar com ele.

Em conformidade com a máxima "falsa demonstratio non nocet", o n.º 2, daquele preceito estatui que, sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida, ainda que essa vontade real não coincida com o sentido correspondente à impressão do destinatário; as razões de justiça e de conveniência que justificam a relevância do sentido objetivo não relevam nesta hipótese[11].

Não estando em causa esta última hipótese, a interpretação das referidas cláusulas deve ser feita segundo o critério normativo previsto no n.º 1 do art.º 236 do Código Civil.

Como refere Calvão da Silva[12], «o alcance decisivo da declaração será aquele que em abstracto lhe atribuiria um declaratário razoável, medianamente inteligente, diligente e sagaz, colocado na posição concreta do declaratário real, em face das circunstâncias que este efectivamente conheceu e das outras que podia ter conhecido, maxime dos termos da declaração, dos interesses em jogo e seu mais razoável tratamento, da finalidade prosseguida pelo declarante, das circunstâncias concomitantes, dos usos da prática e da lei».

Isto posto, pese embora a referência expressa, nas referidas cláusulas, ao destino que as partes outorgantes acordaram dever ser dado aos valores monetários a pagar pela sociedade ré – mormente, a liquidação dos empréstimos realizados pelo recorrente à sociedade «C..., SA»,  no valor de global de €240.000,00 - entendemos, tal como a bem fundamentada decisão recorrida, que as mesmas não podem ser interpretadas no sentido de que aquelas partes quiseram atribuir qualquer direito ao autor, ora recorrente, obrigando-se os réus a realizarem o pagamento daquele empréstimo.

De facto, o sentido que qualquer declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, atribuiria à cláusula 7ª é de que os réus se obrigaram a “integrar no património” da sociedade «C..., SA» os valores indicados nas alíneas a) a c) e c), com vista à capitalização da empresa e, por conseguinte, que o beneficiário das prestações acordadas seria a referida sociedade e não o aqui autor.

É verdade que, na al. e) do n.º 1 da cláusula sétima, se menciona que o valor de €400.000,00 a facultar pelos aqui réus se destina a fazer face aos pagamentos inframencionados” (entre os quais, se inclui, de facto, o empréstimo do aqui autor à sociedade «C..., SA» – cf. al. d), do n.º 2 da mesma cláusula).

Contudo, também ali de diz que tal sucederá “caso seja viável e não colida com o regular funcionamento da C...”, o que não pode deixar de ser entendido como referência a que o pagamento do valor dos empréstimo do recorrente ficará na disponibilidade da referida sociedade - recetora dos valores devidos pelos aqui réus, promitentes compradores) - não constituindo, pois, uma obrigação destes, a satisfazer diretamente ao aqui recorrente.

Por idênticas razões, a menção, na al. e) do n.º 2 da aludida cláusula sétima, a que “o valor dos €100.000,00 [que, de acordo com a al. b) do n.º 1 da mesma cláusula, os aqui réus se obrigam a integrar no património da «C...»] serão utilizados para pagamento por conta dos empréstimos de FF (…) e do Sr. II de  €240.000,00, que fizeram à C..., valores esses que têm de ser confirmados pela contabilidade da empresa (sublinhado nosso), não pode ser entendido como a assunção, pelos réus, da obrigação de procederem eles próprios ao pagamento do valor daquele empréstimo diretamente ao ora recorrente.

E a mesma conclusão se extrai teor literal da al. e) do n.º 2 da dita cláusula 7ª do contrato promessa, na medida em condiciona o pagamento do remanescente do empréstimo do aqui recorrente à «C..., SA» à disponibilidade contabilística (desta empresa) para satisfazer esses montantes, sem prejudicar o seu regular funcionamento (…).

Por outro lado, ao contrário do que defende o recorrente nas suas alegações, não nos parece que a interpretação da supra transcrita cláusula 10ª do contrato promessa permita concluir que a vontade dos outorgantes foi atribuir ao recorrente o direito a obter diretamente dos réus o pagamento do valor do aludido empréstimo, uma vez que do seu teor literal não consta qualquer referência ao valor do empréstimo feito pelo recorrente à sociedade «E..., SA», ou sequer a dívidas desta sociedade.

Tudo isto ponderado, entendemos também, como se refere na sentença recorrida, que a suposta obrigação dos réus perante o autor/recorrente não pode emergir, isoladamente, da interpretação da cláusula décima primeira do contrato promessa, que alude apenas de forma vaga aos compromissos e pagamentos de qualquer natureza, referentes a C..., SA, que tenham sido assumidos pela atual administração, até á presente data”, desconhecendo-se, em concreto, que compromissos poderiam estar em causa. Tanto mais que a interpretação de tal cláusula contratual não pode deixar de levar em consideração a interpretação que fizemos da cláusula 7ª acima transcrita.

 Destarte, temos por correta a conclusão da sentença recorrida, quando nela se escreve que, “Da interpretação das cláusulas agora transcritas resulta, sem prejuízo do respeito devido por entendimento diverso, que o pagamento da quantia de € 240.000,00 correspondente ao valor dos empréstimos efetuados pelo Autor não seria da responsabilidade dos Réus, mas antes da sociedade comercial denominada C..., SA que, para tanto, deveria recorrer às entradas em dinheiro discriminadas no contrato-promessa celebrado a 19 de julho de 2016.

Quer isto dizer que do contrato-promessa a que se tem vindo a aludir não resulta, diretamente, a atribuição de qualquer direito ao Autor, mas apenas a previsão de que, na sequência do cumprimento das prestações devidas pelos Réus, a sociedade comercial denominada C..., SA, que também não é parte nesse contrato e, portanto, não poderia, por via do mesmo, ficar vinculada ao cumprimento de qualquer obrigação, pagaria ao Autor a quantia de € 240.000,00, caso fosse viável e não colidisse com o regular funcionamento dessa sociedade, sendo certo que o valor em causa ainda teria que ser confirmado “com a Contabilidade da empresa”.

           Em conclusão, nenhuma censura há a fazer à decisão recorrida improcedendo, desta forma, a apelação


*
Sumário (ao abrigo do disposto no art.º 663º, n.º 7 do CPC):
(…).

*

V. Decisão

Assim, face a tudo o que se deixa dito, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, em consequência, manter a sentença recorrida nos seus precisos termos.

Custas do recurso pelo recorrente.


*

Coimbra, 30 de setembro de 2025

Assinado eletronicamente por:

Hugo Meireles

Luís Miguel Caldas

Francisco Costeira da Rocha

(O presente acórdão segue na sua redação as regras do novo acordo ortográfico, com exceção das citações/transcrições efetuadas que não o sigam).



[1] Proc. nº809/10.7TBLMG.C1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[2] Proc. nº671/20.1T8BGC.G1 (Relatora Raquel Baptista Tavares, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[3] Ac. do STJ de 23/09/2009 (Relator Bravo Serra), proc. nº238/06.7TTBGR.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[4] Processo n.º 1971/22.1T8PRT.G1, in www.dgsi.pt.
[5] Prof. Menezes Cordeiro, in Direito das Obrigações, 1º Vol. ed. da AAFDL, 1990, a págs. 536.
[6] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7ª Edição, Vol. I, pag. 393.
[7] Antunes Varela, Op. cit, pag. 393
[8] Mário Júlio de Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 9.ª edição, págs. 316 e 317
[9] Código Civil Anotado, Ana Prata (Coord.), 2ª Edição Revista e Actualizada, 2019, pág. 608.

[10] Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª Edição, 1986, pags. 444 e 445).
[11] Neste sentido, Mota Pinto, op. ct. pag. 449.
[12] Estudos de Direito Comercial, 1996, págs. 102 e seguintes