Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
58796/22.5YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: INJUNÇÃO
RELAÇÕES COMERCIAIS COMPLEXAS E DURADOURAS
EXCEPÇÃO DILATÓRIA INOMINADA
MÚTUO BANCÁRIO
CESSÃO DE CRÉDITOS
Data do Acordão: 05/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 7.º DO DL269/98, DE 1/9
ARTIGO 762.º, 1, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 30.º, 1 A 3 E 193.º, 3, DO CPC
Sumário: 1. - Os procedimentos especiais a que se reporta o DLei n.º 269/98, de 01/09, mormente de injunção, traduzem mecanismos marcados pela simplicidade e celeridade, vocacionados para a cobrança simples de dívidas, de molde a aliviar os tribunais da massificação decorrente de um exponencial aumento de ações de pequena cobrança de dívidas.

2. - O procedimento de injunção, direcionado para exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, tal como a decorrente ação declarativa especial transmutada (procedimento/ação de cumprimento), com o figurino processual que o legislador quis manter até ao presente (mesmo após a entrada em vigor do NCPCiv., com a filosofia e soluções incorporadas por este), não constituem meio processualmente adequado para dirimir litígios referentes a relações contratuais de natureza complexa/duradoura, com múltiplas atribuições patrimoniais reciprocas e decorrentes deveres contratuais e legais.

3. - Não sendo o procedimento adotado pela parte o meio adequado, existe um obstáculo processual impeditivo do conhecimento de meritis, ocasionando exceção dilatória inominada, a determinar a absolvição da instância.

4. - Tal, porém, não é o caso se o procedimento/ação de cumprimento se reporta a um contrato de mútuo bancário, em que é pedida a restituição a que alude o art.º 1142.º do CCiv., com juros de mora, por os mutuários terem sido interpelados, de acordo com o convencionado, a pagar/restituir e não o fizeram.

5. - A existência de cessão do crédito (pelo banco/mutuante ao requerente do procedimento de cumprimento) em nada contende com a fonte da obrigação, a subsistência e a substância desta e o dever de prestar, apenas se reportando à legitimidade (processual e substantiva) da parte demandante, não aportando, por isso, qualquer complexidade adicional ao litígio nem dificultando a defesa dos demandados, tanto mais que estes nada objetaram à cessão na sua peça processual de defesa/oposição.

6. - Como entendido pela jurisprudência, a cessão de créditos é um contrato pelo qual o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou uma parte do seu crédito, traduzindo-se na substituição do credor originário por outra pessoa, mas sem produzir a substituição da obrigação antiga por uma nova, mantendo-se inalterados todos os demais elementos da relação obrigacional.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:



***

I – Relatório

A... Limited”, com os sinais dos autos,

intentou procedimento de injunção, junto do Balcão Nacional de Injunções, que, por via de oposição, foi depois transmutado em ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, contra

AA e BB, também com os sinais dos autos,

pedindo a condenação dos RR., por referência a contrato de mútuo, celebrado em 26/05/2011, no pagamento à A. da quantia de € 5.791,70, sendo € 4.549,35 a título de capital, € 1.089,35 de juros de mora e € 153,00 de taxa de justiça paga.

Para tanto, alegou assim:

“QUESTÃO PRÉVIA - DA CESSÃO DE CRÉDITOS

1. Em virtude do contrato de cessão de créditos, celebrado a 28 de junho de 2016, o BANCO SANTANDER TOTTA, S. A. cedeu à B... LIMITED um conjunto de créditos (…) vencidos do qual era titular e entre os quais constam os créditos detidos sobre os ora Requeridos.

2. Tal cessão foi notificada aos Requeridos.

3. A referida cessão incluiu a transmissão à Requerente, relativamente a este crédito, de todos os direitos, garantias e direitos acessórios a ele inerentes, nos termos do disposto no artigo 582.º do Código Civil, tendo esta o direito de receber, exigir e recuperar quaisquer montantes, principais ou acessórios, bem como o direito de exercer todos os poderes do cedente em relação aos créditos objeto de cessão, na qualidade de atual titular do crédito ora em causa.

DO VALOR DA DÍVIDA

4. No âmbito da sua atividade bancária, foi celebrado entre o Banco Santander Totta, S. A. e os ora Requeridos o contrato de empréstimo com o nº ...96.

5. Contudo, os ora Requeridos deixaram de cumprir com o pagamento das prestações do empréstimo a que estavam obrigados, em virtude do aludido contrato, apesar das interpelações do Banco cedente e da aqui Requerente, ficando, na data da cessão de créditos, em dívida o valor de € 4.549,35 (quatro mil, quinhentos e quarenta e nove euros e trinta e cinco cêntimos).

6. A este valor acrescem:

- juros de mora, calculados à taxa legal de 4% no valor de € 1089,35 (mil e oitenta e nove euros e trinta e cinco cêntimos) desde a data da cessão, a 28 de Junho de 2016, até à entrada do presente requerimento;

- taxa de justiça paga quanto ao presente requerimento de injunção;

- juros de mora que se vençam desde a data do requerimento de injunção até integral e efetivo pagamento.”.

Na oposição à injunção, os RR., concluindo pela sua total absolvição, alegaram, no essencial, que:

- a data do incumprimento definitivo ocorreu em 2013, e não em junho de 2016 (como a A. quer fazer parecer), pelo que, tendo decorrido, pelo menos, nove anos desde o incumprimento, «o presente procedimento encontra-se prescrito» (prescrição de cinco anos do art.º 310.º do CCiv.), termos em que procede a exceção perentória da prescrição;

- no seu requerimento de injunção, a A./Requerente não alegou ter acionado o disposto no art.º 781.º do CCiv., faltando a necessária interpelação dos Requeridos para vencimento imediato de toda a dívida, o que obsta à conclusão de que a Requerente é titular do crédito resultante do incumprimento do contrato;

- em 15/06/2020, o Requerido foi declarado insolvente, com citação dos respetivos credores para reclamarem créditos, razão pela qual, visto o disposto no art.º 90.º do CIRE, se a dívida em causa for exigível judicialmente, a mesma já deveria ter sido reclamada no âmbito do processo de insolvência.

Considerando que o crédito invocado no requerimento de injunção não resulta de qualquer relação obrigacional estabelecida entre a A. e os RR., mas de uma alegada cessão de créditos à A. pelo “Banco Santander Totta, S. A.”, por contrato de cessão de créditos de 23/06/2016, que este detinha sobre os RR., o Tribunal de 1.ª instância entendeu poder estar-se perante a utilização indevida de um meio processual, que obsta ao conhecimento do mérito da causa, consubstanciando exceção dilatória inominada do conhecimento oficioso, pelo que determinou a notificação das partes para se pronunciarem (no âmbito do disposto no art.º 3.º, n.º 3 do NCPCiv.).

Os RR. pronunciaram-se no sentido da verificação da referida exceção dilatória, com as legais consequências.

A A., por seu lado, veio pronunciar-se em sentido contrário, invocando que no processo está apenas em causa o incumprimento de uma obrigação pecuniária por parte dos RR., ou seja, o incumprimento do contrato de empréstimo celebrado entre os RR. e o dito banco, tendo o contrato de cessão de créditos apenas sido mencionado para justificar a legitimidade da A. para cobrança da dívida, esta oriunda exclusivamente daquele contrato de empréstimo. Por isso, concluiu pelo prosseguimento dos autos.

Seguidamente, foi proferida decisão (a aqui recorrida), datada de 24/11/2022, pela qual os RR. foram absolvidos da instância, por via da procedência de exceção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, da inadequação – ou indevida utilização – do meio processual adotado (o procedimento injuntivo).

Inconformada, recorre a A., apresentando alegação e oferecendo as seguintes

Conclusões ([1]):

«A- Os ora Recorridos celebraram um contrato de empréstimo com o nº ...96 com o Banco Santander Totta, S.A., os quais, através do contrato de cessão de créditos, celebrado a 28 de junho de 2016, foi cedido à ora Recorrente.

B- A Recorrente interpôs injunção diante do incumprimento do referido contrato.

C- A injunção foi remetida à distribuição por oposição.

D- Foi a Recorrente notificada, em 12-10-2022, para se pronunciar sobre a eventual verificação de (…) utilização de forma processual inadequada.

E- Sendo, portanto, junto aos autos pela Recorrente, requerimento a esclarecer que a dívida em causa nos presentes autos tem origem no contrato de empréstimo com o nº ...96, celebrado pelos Réus com o Banco Santander Totta, S.A.

F – Neste mesmo requerimento, foi esclarecido que este referido contrato de empréstimo, foi objeto de cessão de créditos entre o Banco Santander Totta, S.A. e a ora Autora, sendo, portanto, esta a atual credora dos Réus relativamente ao contrato supra mencionado.

G- Isto porque, o contrato de cessão de créditos não está em causa nos autos, apenas foi mencionado no requerimento de injunção por forma a justificar a legitimidade da Autora para a cobrança da dívida oriunda do contrato de empréstimo com o nº ...96, celebrado pelos Réus com o Banco Santander Totta, S.A.

H - Pelo que, não há que se falar em utilização da forma processual inadequada, uma vez que o objeto da presente ação é, apenas e tão somente, o incumprimento de uma obrigação pecuniária por parte dos Réus, ou seja, o incumprimento do contrato de empréstimo com o nº ...96, celebrado pelos Réus com o Banco Santander Totta, S.A., o qual foi cedido à Autora.

I- A cessão de créditos foi devidamente comunicada aos Réus, considerando que o único elemento constitutivo da eficácia da cessão é o conhecimento do devedor, não exigindo a lei a sua autorização.

J – Ainda que a Autora não tivesse comunicado os Réus da cessão de créditos, a citação para a presente ação serviria para dar conhecimento da mesma.

K- Ou seja, na cessão de créditos, a notificação do devedor não é facto constitutivo do direito do cessionário nem condição necessária para assegurar a sua legitimidade ativa, sendo mera condição de eficácia, a qual pode ser conseguida através da citação do devedor para a acção declarativa ou executiva.

L- O fato do crédito anteriormente detido pelo Banco Santander Totta, S.A., o qual foi incumprido pelos Réus, ter sido cedido à Autora, ora Recorrente, não altera a obrigação da sua origem e nem altera a sua natureza.

M - Portanto, a cessão de créditos apenas legitima a Autora, ora recorrente, a apresentar a competente ação com o fim de exigir o cumprimento da obrigação pecuniária em causa, que mantém a sua natureza de obrigação pecuniária emergente de contrato.

N - Desta forma, A autora utilizou a forma processual adequada para exigir o cumprimento da obrigação pecuniária em causa e, para tanto, peticionou quantias pecuniárias diretamente relacionadas com a obrigação, ou seja, o próprio objeto da prestação incumprida.

O - Pelo que não há que se falar em excepção dilatória inominada de conhecimento oficioso.

Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis que V. Exas. Doutamente suprirão, deve julgar-se procedente o presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, substituindo-a por acórdão que julgue a excepção dilatória de ineptidão da petição inicial totalmente improcedente, com as legais consequências, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!» ([2]).

Os RR. contra-alegaram, concluindo pela total improcedência da apelação.


***

O recurso interposto foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido o regime fixado.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.


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II – Questão prévia

Da junção de prova documental na fase de recurso

Após convite do Relator ao esclarecimento quanto à junção de prova documental na fase de recurso pela Recorrente, esta tomou posição, reconhecendo que foi «por mero e manifesto lapso» que procedeu a tal junção (documento de fls. 53 v.º e 54 do processo físico) e, assim, pedindo fosse relevado o lapso, ficando sem efeito a junção, com o decorrente desentranhamento.

Assim sendo, atento o lapso ocorrido, tem-se o mesmo por relevado, ficando, consequentemente, sem efeito a aludida junção, com o decorrente desentranhamento, a levar a efeito oportunamente.

III – Âmbito recursivo

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([3]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, cabe decidir se o procedimento injuntivo era o meio processual adequado/devido perante o fim visado pela Requerente (interpretado à luz de pedido e causa de pedir oferecidos), traduzido na cobrança de invocada dívida emergente de contrato de empréstimo bancário, apresentando-se como demandante, não o banco mutuante, mas a sociedade requerente, por força de contrato de cessão do crédito; ou se, ao invés, a conjugação dos dois contratos (mútuo e cessão do crédito) imprime ao caso uma complexidade tal que não se coaduna com a simplicidade caraterística do procedimento injuntivo (e decorrente ação transmutada para cobrança de dívidas emergentes de contrato).


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IV – Fundamentação

          A) Materialidade e dinâmica processual dos autos

A materialidade fáctica e a dinâmica processual a considerar são as descritas no antecedente relatório, cujo teor aqui se dá como reproduzido.

B) Aspeto jurídico do recurso

Da (in)adequação do meio processual adotado (originariamente, procedimento injuntivo) e decorrente fundamento para absolvição da instância

Consta da fundamentação jurídica da decisão recorrida:

«O regime da injunção visa exigir tão só o cumprimento de obrigações pecuniárias diretamente resultantes do contrato. Ora, no caso dos autos não estamos apenas perante um mero incumprimento de uma obrigação pecuniária por parte do Réu, resultante do alegado contrato de mútuo, mas ainda perante outro contrato de cessão de créditos, o que manifestamente vai para além “do processo simplificado que o legislador teve em vista com o regime especial da injunção, com vista a facultar ao credor de forma célere a obtenção de um título executivo, em ações que normalmente se revestem de grande simplicidade”, como é dito no Ac. R.L., de 21/04/2016, proc. 184887/14.1YIPRT.L1-8, in www.dgsi.pt.

Pelo exposto importa concluir que há utilização de forma processual inadmissível, não havendo que aproveitar a injunção que deu lugar à presente ação especial nos termos do disposto no artigo 193º, nº3 do CPC, uma vez que não se está perante erro na forma do processo, nos termos previstos em tal normativo, mas sim perante a utilização indevida de um meio processual que obsta ao conhecimento do mérito da causa, que consubstancia exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso (…)» (itálico aditado).

Vejamos.

É certo que a injunção, tendo por fim “conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular” – as obrigações pecuniárias emergentes de contrato – “ou ainda das obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro” (art.º 7.º do DLei n.º 269/98, de 01-09, na redação aplicável), só seria admissível in casu se estivesse em discussão, por nela se fundar o pedido da A. – e a isso se reconduzir, pois, a causa de pedir apresentada –, uma verdadeira obrigação pecuniária emergente de contrato que, invocado, houvesse sido celebrado.

Ora, também é fora de toda a dúvida que a A. sempre invocou nestes autos – enquanto procedimento injuntivo e, depois, ação transmutada –, como causa de pedir, uma situação de relacionamento contratual de «mútuo», emergindo a alegada dívida de um contrato de empréstimo (bancário), celebrado entre o “Banco Santander Totta, S. A.” e os RR., em que tais mutuários teriam deixado de cumprir quanto ao pagamento das prestações acordadas do mútuo (restituição/reembolso), não obstante as interpelações ocorridas para o efeito (quer pelo banco, quer pela aqui A.).

Daí, pois, a existência da dívida que se pretende cobrar, por não pagamento das prestações contratualmente estabelecidas, dívida essa no montante peticionado, sendo de capital o valor de € 4.549,35, mas que com juros moratórios e taxa de justiça paga ascende ao total de € 5.791,70.

Isto é, a dívida a cobrar – no âmbito de procedimento, e decorrente ação transmutada, de cumprimento – deriva/emerge, inequivocamente, daquele contrato de empréstimo bancário (e não doutro).

Tratar-se-á, pois, sem dúvida, de uma prestação contratual, emergente de contrato de mútuo celebrado, mormente em sede de obrigação de prestação principal.

É sabido, quanto às obrigações (civis ou comerciais), que existem, desde logo, deveres principais ([4]) de prestação ([5]), no caso, para além da realização da prestação a cargo do banco – vista no quadro de contrato de mútuo bancário, vinculando aquele à entrega do capital mutuado –, o reembolso/«restituição», correspetivo, do montante mutuado (e juros convencionados) pela contraparte (aqui RR./Recorridos/mutuários).

Tais deveres, ao contrário, por exemplo, dos deveres acessórios de conduta, dão lugar à ação judicial de cumprimento ([6]).

O procedimento injuntivo mencionado, tal como a decorrente ação transmutada, constituem providências direcionadas para o cumprimento de obrigações contratuais, de natureza pecuniária, podendo dizer-se, quanto a esta última, que estamos, de pleno, no campo da ação judicial de cumprimento, mecanismo que, perante situação em que a obrigação contratual não é voluntariamente cumprida, abre ao credor a forma (e o direito) de exigir (e obter) judicialmente o cumprimento em falta.

Assim, pode concluir-se que, tanto a injunção, como a decorrente ação transmutada, se podem catalogar como procedimentos de cumprimento, destinados, pois, a obter o cumprimento – com posterior direito de executar o património do devedor – de obrigações contratuais, mormente quanto aos ditos deveres principais de prestação, quando se exprimam/traduzam em obrigações pecuniárias [como o é, por exemplo, o pagamento do preço, a cargo do dono da obra, no contrato de empreitada, ou do comprador, no contrato de compra e venda, ou ainda a restituição/reembolso das quantias mutuadas, pelo mutuário, no contrato de mútuo ([7]), bancário ou civil].

Ora, o problema dos autos coloca-se com referência a tal “restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”, nos moldes previstos no contrato de mútuo/empréstimo bancário (quantia mutuada e juros de mora respetivos), para exigir, assim, o cumprimento do correspondente dever de prestar (obrigação dos mutuários), apresentando-se como credor o lado mutuante (originariamente o banco e, agora, por cessão do crédito, a A.) e como devedor os mutuários (RR.).

Por isso, a obrigação contratual – estipulada no contrato de mútuo firmado, por se tratar de um dever principal de prestação – era a do pagamento/restituição integral (e nos moldes acordados) do montante do empréstimo.

Só com tal pagamento/restituição integral, esgotadas se mostravam as prestações contratuais das partes, quanto a deveres principais de prestação, pelo que, realizado, nesse âmbito, o programa contratual, ficava extinta a obrigação pela via do cumprimento (cfr. art.º 762.º, n.º 1, do CCiv.).

Como vem invocado no requerimento de injunção que o pagamento/restituição integral não ocorreu, apesar das interpelações efetuadas, colhe sentido o recurso à ação de cumprimento.

Note-se que, na oposição dos RR. (à injunção), nenhuma questão é colocada quanto ao contrato de cessão do crédito: toda a defesa/oposição passa pela exceção da prescrição, do (não) vencimento/interpelação e do processo de insolvência de um dos mutuários, em termos de se concluir – como concluiu – pela procedência daquela exceção da prescrição, com a decorrente absolvição dos RR./Requeridos da totalidade do pedido.

Quer dizer, tal defesa é assim deduzida independentemente de ter havido cessão do crédito, pois poderia ter sido oferecida, nos mesmo moldes, se fosse o banco mutuante (na ausência de cessão) a lançar mão do procedimento de injunção.

Como refere a Recorrente, a invocação do contrato – subsequente – de cessão do crédito tem uma função apenas legitimadora. Visa mostrar, por um lado, que a Requerente tem legitimidade processual ativa – por ser quem tem atualmente interesse direto em demandar e ser titular da relação creditória controvertida (cfr. art.º 30.º, n.ºs 1 a 3, do NCPCiv.) – e, por outo lado, que lhe assiste também a legitimidade substantiva, por ser a atual titular do crédito, que lhe foi cedido pelo credor originário, assim alegando por forma a demonstrar assistir-lhe o direito ao reembolso/restituição.

Nesta perspetiva, sendo certo que foram invocados dois contratos, apenas de um deles (mútuo) emerge a invocada dívida, razão pela qual está no centro da ação de cumprimento. O outro contrato (cessão) visa apenas assegurar a legitimidade (processual e substantiva), sem contender com a substância da relação creditória e decorrente ação de cumprimento.

Pode, pois, dizer-se – salvo sempre o devido respeito – que a dívida continua a emergir do contrato de empréstimo bancário – aquele que lhe serve de causa –, e apenas deste, sendo-lhe o contrato de cessão, por seu lado, meramente lateral, por dele decorrer uma mera substituição de sujeitos do lado ativo da relação contratual de mútuo, sem contender com a substância/conteúdo da obrigação de prestar (que permanece a mesma, fosse perante o banco cedente ou seja, agora, perante a cessionária).

Não será por haver um segundo contrato – de cessão do crédito, com a consequência da simples mudança de sujeito titular (credor) –, sem bulir com o próprio crédito, enquanto tal, e sua fonte (o contrato causa), que as perspetivas da defesa dos RR. vão mudar ou se vão complicar (como dito, na oposição dos demandados, estes nada objetam quanto à cessão e suas repercussões no processado da ação de cumprimento).

A obrigação em causa mantém-se como dívida emergente de contrato (o de empréstimo bancário), sendo que a cessão em nada complica ou dificulta a posição dos devedores. E, se estes não são prejudicados na sua defesa, então não será a cessão que impede o meio processual adotado, por também não aportar qualquer complexidade acrescida ao objeto do processo.

Como defendido pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ):

«I - A cessão de créditos define-se como um contrato pelo qual o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou uma parte do seu crédito, traduzindo-se na substituição do credor originário por outra pessoa, mas sem produzir a substituição da obrigação antiga por uma nova, mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação obrigacional, com a única modificação subjetiva que consiste na transferência do lado ativo da relação obrigacional.

II - A notificação da cessão ao devedor pode ser feita por qualquer meio, inclusivamente pela citação do devedor cedido para a ação executiva ou para o incidente de habilitação enxertado nessa ação.

III - O único elemento constitutivo da eficácia da cessão é o conhecimento do devedor, não exigindo a lei a sua autorização (artigo 577.º, n.º 1, do Código Civil).

IV - Para proteção do devedor cedido, a lei faculta-lhe a possibilidade de na contestação impugnar a validade do ato ou alegar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo, nos termos do artigo 356.º, n.º 1, al. a), do CPC.

V - A jurisprudência reconhece ao devedor cedido o direito de “(…) invocar como meio de defesa geral contra o cessionário, a ineficácia em sentido amplo do negócio-acto de cessão de créditos (causa próxima) convencionado com a cedente, em adição à oponibilidade das vicissitudes (excepções) do negócio subjacente ao crédito cedido (causa remota), licitamente invocáveis contra o cedente nos termos do art. 585.º do CC.” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10-05-2021, proc. n.º 348/14.7T8STS-AV.P1.S1).

VI – Não vê, portanto, o devedor, os seus meios de proteção diminuídos, em virtude de ter conhecido a cessão através da citação.» ([8]).

Em suma, a cessão do crédito em nada dificulta a posição dos devedores, não lhes diminuindo os meios de defesa – aliás, os demandados nada questionaram sobre a validade e operância da cessão na sua defesa/oposição, oportunamente deduzida, ao procedimento de injunção –, nem aporta complexidade à presente ação de cumprimento (ou ao inicial procedimento de injunção), visto apenas se reportar à afirmação da legitimidade (processual e substantiva) da A./Requerente, nisso se esgotando a sua finalidade, em nada interferindo, pois, no conteúdo do vínculo obrigacional em que se fundamenta a obrigação de prestar e a decorrente ação de cumprimento.

Não se duvida de que o procedimento de injunção é um mecanismo marcado pela simplicidade e celeridade, vocacionado para a cobrança simples de dívidas, de molde a aliviar os tribunais da massificação decorrente de um exponencial aumento de ações de pequena cobrança de dívidas.

Como, nesta senda, vem entendendo a jurisprudência, “Importa acentuar qual a realidade subjacente à criação do regime em apreço: o crescimento exponencial das acções de cobrança de dívidas por parte dos grandes utilizadores que invadindo os tribunais ameaçavam convertê-los, sobretudo nos grandes centros urbanos, em meras extensões dessas empresas, pondo em causa a decisão em tempo útil de outras questões que interessam aos cidadãos. Não esqueceu também o legislador que “a par de um aumento explosivo da litigiosidade, esta se torna repetitiva, rotineira, indutora da «funcionalização» dos magistrados que gastam o seu tempo e as suas aptidões técnicas na prolação mecânica de despachos e sentenças”.

Foi confrontado com a necessidade de melhorar um sistema que estava a permitir uma instrumentalização do poder soberano dos tribunais, transformando-os em agências de cobranças de dívidas, que o legislador criou o procedimento da injunção.

Resulta do exposto que o objectivo do legislador foi aplicar este procedimento às situações em que está em causa apenas a cobrança de uma dívida emergente de um contrato, de valor não superior a € 15.000,00.” ([9]).

Quer dizer, neste tipo de processos simplificados, não é fácil enquadrar, a bem da Justiça pretendida, situações factuais e jurídicas em que como causa de pedir emerge, além dos valores reportados às obrigações pecuniárias e juros em dívida, situações de contornos complexos, seja pela complexidade/multiplicidade de deveres contratuais, designadamente de caráter duradouro, seja por referentes, por exemplo, a responsabilidade civil obrigacional, ou a enriquecimento sem causa, cujos pressupostos não são de fácil e liminar verificação, antes exigindo, as mais das vezes, aturada discussão e trabalhosa decisão, mormente quando os próprios contratos em discussão se revestem de natureza e dimensão complexa, pelos feixes de direitos e deveres recíprocos que movimentam.

Assim se compreende que “o processo simplificado que o legislador pretendeu com a criação do regime especial da injunção, com vista a facultar ao credor de forma célere obtenção de um título executivo, em acções que geralmente apresentam grande simplicidade, não é adequado a decidir litígios decorrentes de contratos que revestem alguma complexidade (…)” ([10]).

E também é pacífico na jurisprudência que, “não sendo o procedimento adequado, existe um obstáculo que impede o tribunal de conhecer do mérito da causa, o que se configura como uma excepção dilatória, dando lugar à absolvição da instância” ([11]), em vez de se partir para adaptações processuais, que poderiam ser vistas como excessivas ([12]), de molde a permitir enquadrar/acolher o litígio.

Tal, porém, como visto, não ocorre no caso dos autos, pelo que não pode subsistir, com todo o respeito devido, a decisão recorrida, que haverá, por isso, de ser revogada, para que os autos possam prosseguir a sua normal tramitação, se a tal nada mais obstar.

***

(…)


***

VI – Decisão

Pelo exposto, julgando-se procedente a apelação, revoga-se a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir a sua normal tramitação, se a tal nada mais obstar.

Custas da apelação pelos RR./Apelados, ante o seu decaimento (art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.).

                                                 ***

Coimbra, 30/05/2023

Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.


Vítor Amaral (relator)

Luís Cravo

                                      
Fernando Monteiro



([1]) Cujo teor se deixa transcrito, com destaques retirados.
([2]) Em conclusão autónoma, após convite do Relator ao aperfeiçoamento do acervo conclusivo (cfr. despacho datado de 18/04/2023), a Recorrente expressou/esclareceu assim: «P - Portanto, o D. Tribunal recorrido efetuou uma incorreta interpretação do Direito, violando o disposto nos artigos 577.º, n.º 1, 583.º e art.º 356º, nº 2, ambos do Código de Processo Civil, na sua atual redação.».
([3]) Excetuando, logicamente, questões de conhecimento oficioso, desde que não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([4]) Como refere Antunes Varela – Das Obrigações em Geral, vol. I, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, 2008, ps. 121 e seg. –, “Nas relações obrigacionais derivadas dos contratos nominados (…), há as prestações principais que definem o tipo ou o módulo da relação: a entrega da coisa vendida, por parte do vendedor, e a entrega do preço, pelo lado do comprador (…); a realização da obra a cargo do empreiteiro (art. 1207.º). (…). Ao lado destes deveres principais, primários ou típicos, podem surgir, porém, na vida da relação obrigacional, outros a que, por contraste, podemos chamar deveres secundários (ou acidentais) de prestação. Dentro desta categoria cabem não só os deveres acessórios da prestação principal (destinados a preparar o cumprimento ou a assegurar a perfeita execução da prestação), mas principalmente os deveres relativos às prestações substitutivas ou complementares da prestação principal (o dever de indemnizar os danos moratórios ou o prejuízo resultante do cumprimento defeituoso da obrigação) e ainda os deveres compreendidos nas operações de liquidação (…) das relações obrigacionais duradouras”.  
([5]) Ao lado dos deveres de prestar, no caso deveres principais de prestação, surgem, na eclosão e no desenvolvimento da relação contratual – logo desde a fase pré-contratual –, vista como relação obrigacional complexa, diversos deveres laterais ou deveres de conduta, que no caso não relevam.
([6]) Cfr. art.º 817.º do CCiv. e  Antunes Varela, op. cit., p. 127.
([7]) Cfr. art.º 1142.º do CCiv., vincando que o mutuário fica obrigado «a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade».
([8]) Cfr. Ac. STJ de 07/09/2021, Proc. 348/16.2T8BJA-A.E1.S1 (Cons. Maria Clara Sottomayor), disponível em www.dgsi.pt, cujo sumário se citou (com destaque aditado).
([9]) Assim, por todos, o Ac. TRP de 31/05/2010, Proc. 385702/08.8YIPRT.P1 (Rel. Maria de Deus Correia), em www.dgsi.pt, com itálico aditado.
([10]) Assim o sumário do Ac. Rel. Lisboa, de 27/11/2014, Proc. 1946/13.3TJLSB.L1-8 (Rel. Octávia Viegas), em www.dgsi.pt.
([11]) Cfr., por todos, o Ac. por último citado.
([12]) Cfr. art.ºs 6.º e 547.º do NCPCiv., não podendo o Tribunal subverter, a pretexto de poderes legalmente concedidos (os poderes/deveres de gestão processual e de adequação formal), a forma de processo legalmente estabelecida, antes havendo de mover-se «dentro dos limites da lei» para «promover todas as diligências que julgue necessárias» e evitar/indeferir o que seja «impertinente» ou «dilatório», procedendo à «agilização do processo» (cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, ps. 44 e segs.). Acresce que o «acionamento do princípio da adequação formal pressupõe, na sua vertente de tramitação processual, a deteção da ineficiência e/ou da ineficácia da forma processual predisposta segundo o princípio da legalidade, cabendo ao juiz decidir qual a resposta mais ajustada em face da natureza do ato, do circunstancialismo do processo ou da necessidade de ajustamento a duas ou mais pretensões que, separadamente, seguiriam formas processuais distintas» – assim, Abrantes Geraldes e outros, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, ps. 598 e seg.. Em suma, a «adequação formal tem sempre como limite as normas imperativas e os princípios fundamentais do processo civil» (cfr. Lebre de Freitas e outro, op. cit., vol. 2.º, 4.ª ed., 2019, p. 472).