Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | LUÍS CRAVO | ||
| Descritores: | PROCESSO DE INVENTÁRIO OCULTAÇÃO DE BENS | ||
| Data do Acordão: | 11/11/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – PINHEL – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Legislação Nacional: | ARTIGO 2096º, Nº 1 DO CÓDIGO CIVIL ARTIGOS 292º A 295º, 1091º, Nº 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL | ||
| Sumário: | Manifestando-se a ocultação de bens a que alude o artigo 2096º, nº 1 do Código Civil, necessariamente numa omissão de declaração quando haja o dever de a produzir, daí decorre que só haverá omissão de declaração quando se impunha o dever de declarar os bens da herança. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
| Decisão Texto Integral: | *
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1] * 1 – RELATÓRIO Em autos de Inventário para cessação de comunhão hereditária e partilha de bens das heranças abertas por morte de AA e BB, sendo interessados CC e DD, tendo o Inventário sido requerida pela interessada EE (ulteriormente nomeada cabeça de casal), esta logo deduziu no requerimento inicial o incidente de sonegação de bens contra o outro interessado, DD. Para tanto, alegou, em síntese, que o mesmo, de forma deliberada e intencional, decidiu sonegar bens das heranças objeto de partilha, mormente os certificados de aforro da inventariada AA, tendo procedido ao seu levantamento, através de procuração com poderes especiais para o ato, ocultando-lhe, assim, a existência daqueles valores. Concomitantemente, alega que o cabeça de casal, juntamente com a também inventariada BB e em conluio, procederam, após a morte da inventariada AA, à movimentação das quantias que se encontravam depositada na conta bancária que relacionou sob a verba 1, transferindo-as para a conta bancária sob a verba 2, o que sucedeu igualmente quanto a outras aplicações financeiras em outras contas bancárias, tendo os valores que se encontravam aí depositados em contas também tituladas pela inventariada AA sido utilizadas pela outra inventariada, BB, e pelo interessado DD, em conluio, usando e gastando parte daquele dinheiro. * Devidamente notificado, veio o requerido DD alegar, em síntese, não ter ocultado quaisquer bens pertencente às heranças objeto de partilha, ademais, o dinheiro depositados nas contas bancárias e investido nos certificados de aforro sempre foi considerado pelas inventariadas como pertencente a ambas e podendo ser, nessa medida, por cada uma delas utilizado e movimentado, o que aconteceu efetivamente, mormente após o óbito da primeira inventariada, tendo sido utilizado dinheiro por parte da inventariada BB para pagamento de despesas pessoais (por exemplo, de saúde). No que aos certificados de aforro diz respeito, alega desconhecer quem procedeu ao seu levantamento. * A Requerente e cabeça de casal EE apresentou ainda um articulado de “Resposta à reclamação”, o qual finaliza no sentido de que deve ser julgada improcedente a reclamação apresentada pelo interessado DD, sem prejuízo das diligências de prova que requer. * Foi realizada audiência prévia com vista à tentativa de obtenção de acordo quanto à matéria da reclamação contra a relação de bens e incidente de sonegação, tendo sido alcançado um acordo quanto à primeira matéria, no qual os interessados acordaram em manter a verba relacionada pela cabeça de casal relativa aos certificados de aforro, alegadamente sonegada pelo interessado DD, assim como na correção das verbas 2 e 25, passando as mesmas a ser descritas como 2/3, tal como pugnado pelo interessado na reclamação apresentada. Ainda que em sede dessa audiência prévia a cabeça de casal tenha declarado não desistir do incidente de sonegação, o Exmo. Juiz de 1ª instância entendeu que quanto a esse incidente restava apenas por apreciar a questão atinente aos certificados de aforro alegadamente levantados pelo interessado DD, a cuja apreciação e decisão procedeu na sequência, consignando os factos que considerava “provados” e “não provados”, após o que sustentou o entendimento de que «(…) não resultou que o interessado DD tivesse procedido ao levantamento das quantias a que respeitavam os certificados de aforro titulados pelas inventariadas, nem se alegou e provou qualquer outro acto do qual se pudesse concluir pela conduta activa ou omissiva, mas sempre e necessariamente dolosa, no sentido de que aquelas quantias fosse afastadas/ocultadas do acervo patrimonial a partilhar neste autos», termos em que se julgou o incidente totalmente improcedente. * Inconformada com um tal despacho, apresentou a Requerente e cabeça de casal EE recurso de apelação contra o mesmo, cujas alegações finalizou com a apresentação das seguintes conclusões: «1. Tendo sido requerida prova que poderia demonstrar a sonegação de bens pelo, o interessado DD, não poderia ter sido proferida decisão a indeferir o incidente de sonegação sem a produção dessa prova; 2. A prova indicada em sede de resposta à reclamação de bens poderia e deveria ter sido admitida e, sendo pertinente para a descoberta da verdade, poderia também ter sido oficiosamente determinada pelo Tribunal; 3. O facto de esse interessado ter negado a existência da verba de €258.758,06, na sua reclamação à relação de bens, negando também estar na sua posse ou ter procedido ao seu levantamento e ter depois, na audiência prévia, aceitado o seu relacionamento e indicado estar em condições de a trazer à herança, são indícios seguros da sua sonegação por esse interessado, como é indício dos mesmos factos constar a sua morada como morada principal da inventariada BB (Doc. 9 do requerimento inicial); 4. Esses indícios são reforçados pelo facto de mesmo sendo interpelado, processual e extra-processualmente para fazer a entrega desses bens à cabeça-de-casal, continuar a mantê-los na sua posse; 5. Atendendo a toda a matéria provada ou indiciada, deveria o tribunal considerar provada a sonegação e a matéria constante das alíneas a) e b) dos factos não provados, considerando provada a respectiva matéria “a) O valor referido em 5 foi resgatado na Loja CTT ..., pelo interessado DD, através de procuração com poderes específicos para o ato, no dia 28.03.2022, no montante € 258.758,06, tudo com o intuito de ocultar a existência daquelas quantias e de, consequentemente, prejudicar o quinhão hereditário da aqui cabeça de casal EE. b) O aqui interessado DD, nos momentos referidos em 1 a 4, agiu juntamente com a inventariada BB, tudo com o intuito de ocultar a existência daquelas quantias e de, consequentemente, prejudicar o quinhão hereditário da aqui cabeça de casal EE.” 6. A douta decisão recorrida viola o princípio do inquisitório e o disposto nos artigos 986.º, 2, 1105.º, 3 e 1109 do Código de Processo Civil. Termos em que na procedência do presente recurso se deverá considerar provada a matéria da alínea a) dos factos não provados, sendo julgado procedente o incidente de sonegação; caso assim se não entenda, deverá ser ordenada a produção da prova requerida pela cabeça-de-casal na resposta à reclamação à relação de bens.» * Por sua vez, apresentou o interessado DD as suas contra-alegações, as quais finalizou pugnando pela confirmação da decisão recorrida. * Cumprida a formalidade dos vistos nesta instância de recurso e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir. * 2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte: - violação do princípio do inquisitório, ao não ter sido ordenada a produção da prova requerida pela cabeça-de-casal na resposta à reclamação à relação de bens; - deveria o tribunal considerar provada a matéria constante das alíneas a) e b) dos factos “não provados”; - desacerto da decisão de improcedência do incidente de sonegação. * 3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO A matéria de facto a ter em conta para a decisão do presente recurso é a que foi alinhada na decisão recorrida, sem olvidar que tal enunciação terá um carácter “provisório”, na medida em que o recurso tem em vista a alteração parcial dessa factualidade. Tendo presente esta circunstância, são os seguintes os factos que se consideraram provados no tribunal a quo: «1. No dia 18.11.2010, dois dias após o falecimento da inventariada, AA, na Loja CTT de ..., foram resgatados vários Certificados de Aforro por BB, no valor € 191.699,27€. 2. No mesmo dia, a aqui também inventariada BB, efetuou novo investimento no valor € 191.700,00, nomeadamente no produto Postal Platina IV (Apólice ...82), tendo este produto terminado o prazo em 18.11.2013. 3. Uma vez que não foi levantado, transitou automaticamente para o produto Postal Liquidez (Apólice ...50). 4. Esta apólice iria terminar em 19.11.2018, mas BB efetuou resgate antecipado em 22.01.2014, no valor de € 205.614,64 (Postal Liquidez) e investiu noutro produto financeiro - Postal Valor Crescente, no montante € 205.615,00. 5. O produto financeiro Postal Valor Crescente terminou o prazo em 23.01.2022, mas como não foi levantado, transitou o valor para o produto Postal Liquidez. 6. O valor referido foi resgatado na Loja CTT ..., através de alguém munido de procuração com poderes específicos para o ato, no dia 28.03.2022, no montante € 258.758,06.» ¨¨ E o seguinte em termos de “FACTOS NÃO PROVADOS”: «a) O valor referido em 5 foi resgatado na Loja CTT ..., pelo interessado DD, através de procuração com poderes específicos para o ato, no dia 28.03.2022, no montante € 258.758,06, tudo com o intuito de ocultar a existência daquelas quantias e de, consequentemente, prejudicar o quinhão hereditário da aqui cabeça de casal EE. b) O aqui interessado DD, nos momentos referidos em 1 a 4, agiu juntamente com a inventariada BB, tudo com o intuito de ocultar a existência daquelas quantias e de, consequentemente, prejudicar o quinhão hereditário da aqui cabeça de casal EE. c) aquando do falecimento da última tia, BB, o mesmo informou a irmã que apenas existiam uns certificados de aforro desta última tia, e cerca de € 3.000,00 mil euros em contas bancárias.» * 4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO 4.1 – A primeira ordem de questões que com precedência lógica importa solucionar é a que se traduz na alegada violação do princípio do inquisitório, ao não ter sido ordenada a produção da prova requerida pela cabeça-de-casal na resposta à reclamação à relação de bens. De referir que o Exmo. Juiz de 1ª instância justificou essa sua opção na decisão recorrida nos seguintes expressos termos: «Não se produziu qualquer prova no presente incidente de sonegação, para além dos documentos juntos pela cabeça de casal, uma vez que, competindo a esta a prova dos factos passíveis levar à procedência do seu pedido (art. 342.º, n.º 1, do Código Civil), a mesma não apresentou ou requereu a produção de qualquer outro meio de prova, o que devia ter sido efectuado aquando da apresentação do incidente, nos termos do art. 293.º, n.º 1, ex vi art. 1091.º, n.º 1, do CPC.» Que dizer? Quanto a nós – e releve-se o juízo antecipatório1 – não existiu qualquer desacerto por parte do Exmo. Juiz de 1ª instância, designadamente por violação do princípio do inquisitório. Na verdade, se bem confrontarmos o regime legal nesta matéria, logo sobressai a norma que manda aplicar aos incidentes do processo de inventário o disposto nas normas gerais dos incidentes da instância [cf. arts. 292º a 295º, aplicáveis ex vi do art. 1091º, nº1, todos do n.C.P.Civil]. Ora, precisamente no art. 293º, nº 1 do n.C.P.Civil, preceitua-se que «[N]o requerimento em que suscite o incidente e na oposição que lhe for deduzida, devem as partes oferecer o rol de testemunhas e requerer os outros meios de prova.» [com destaques da nossa autoria] Face à clareza da injunção que resulta deste normativo, é pacífico o entendimento de que não sendo apresentada/requerida a prova nesse momento inicial, está precludida a possibilidade de o ser posteriormente. Reconhecendo que não os requereu ab initio, sustenta a Requerente e cabeça de casal EE que os meios de prova que requereu no seu articulado de “Resposta” [in casu, i) pedido de notificação ao Balcão CTT (...) para enviar documentação sobre os investimentos aí feitos pela inventariada BB e sobre o resgate em causa; ii) pedido de notificação do interessado DD para prestar esclarecimentos sobre a situação nos termos que discrimina], deviam ter sido ordenados/produzidos e que, não o tendo sido, porque subsistiam dúvidas por esclarecer, devia ter sido então ordenada a produção oficiosa desses meios de prova, sob pena de violação do princípio do inquisitório. Na medida em que nesta matéria/“incidente” apenas era possível a apresentação do requerimento e oposição, ao não existir o direito por parte da Requerente e cabeça de casal EE de apresentar qualquer “Resposta” sobre o incidente de sonegação de bens, obviamente que as “diligências de prova” que apresentou nesse seu requerimento, porque “espúrio”, não podiam nem tinham que ser consideradas. E quanto à argumentação da sua produção oficiosa? A essa luz também não lhe assiste qualquer razão. Face à determinação clara e expressa do legislador sobre qual o (único) momento válido para apresentação de requerimentos de prova, não existe nenhuma lacuna legal que tenha de ou possa ser suprida nesta matéria, designadamente por imposição do princípio do inquisitório. É certo que de acordo com o princípio do inquisitório, consagrado na lei processual civil, o juiz tem a iniciativa da prova, podendo realizar e ordenar oficiosamente todas as diligências necessárias para o apuramento da verdade. A esta luz, o juiz tem a iniciativa da prova, podendo realizar e ordenar oficiosamente “todas as diligências” necessárias para o apuramento da verdade. Sendo certo que quando se refere “todas as diligências”, quer-se mesmo significar que o juiz pode e deve determinar a produção de qualquer meio de prova em direito permitido, desde que o mesmo tenha aptidão para fazer corresponder a realidade processual à extraprocessual. Não obstante o vindo de dizer, importa não olvidar o que já foi sublinhado em douto aresto, a saber: «IV - O Código de Processo Civil contém diversos preceitos legais que permitem “equilibrar” o regime consagrado no art. 423.º do CPC, em que assume preponderância a consagração do princípio do inquisitório, no art. 411.º do CPC, assim ficando assegurado o direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efetiva e a um processo equitativo (artigos 20.º da CRP e 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem). V - Mas o referido princípio não pode servir para colmatar toda e qualquer “falta” das partes a respeito da apresentação dos meios de prova, pois se assim fosse estaria a fazer-se do mesmo uma interpretação normativa e aplicação prática em colisão com outros importantes princípios, do processo civil e até constitucionais, mormente o dispositivo, a igualdade das partes, a independência do tribunal e a imparcialidade do juiz (20.º e 62.º da CRP).»[2] Dito de outra forma: a amplitude de poderes/deveres, não significa que o juiz tenha a exclusiva responsabilidade pelo desfecho da causa, pois que, associada a ela está também a responsabilidade das partes, sobre as quais a lei faz recair alguns ónus, mormente no domínio probatório e decorrentes consequências vantajosas ou desvantajosas[3], e bem assim assinalando prazos e limites para as partes apresentarem e produzirem os respetivos meios de prova, conferindo àqueles prazos um caráter preclusivo (princípio da preclusão da prova). Assim bem se compreende que já tenha sido sublinhado a este respeito o seguinte: - «O exercício dos poderes de investigação oficiosa do tribunal pressupõe que as partes cumpriram minimamente o ónus que sobre elas prioritariamente recai de indicarem tempestivamente as provas de que pretendem socorrer-se para demonstrarem os factos cujo ónus probatório lhes assiste - não podendo naturalmente configurar-se como uma forma de suprimento oficioso de comportamentos grosseira ou indesculpavelmente negligentes das partes.»[4]; - Se a necessidade de promoção de diligências probatórias pelo juiz «não for patentemente justificada pelos elementos constantes dos autos, a promoção de qualquer outra diligência resultará, apenas, da vontade da parte nesse sentido, a qual, não se tendo traduzido pela forma e no momento processualmente adequados, não deverá agora ser substituída pela vontade do juiz, como se de um seu sucedâneo se tratasse.»[5] Estes considerandos aplicam-se paradigmaticamente a um caso como o ajuizado, pelo que, permitir agora à luz do princípio do inquisitório, que, por iniciativa do tribunal, pudesse ou devesse ser deferida as pretendidas diligências de prova, seria postergar que a Requerente e cabeça de casal EE ora recorrente pretendeu com esta invocação apenas contornar a preclusão processual decorrente da sua inércia. E nem se diga – como igualmente sustenta a Requerente e cabeça de casal EE nas suas alegações recursivas! – que na medida em que o processo de inventário é um processo de “jurisdição voluntária”, devia prevalecer o princípio do inquisitório. É que o processo de inventário para a partilha de bens não é um processo de “jurisdição voluntária”, embora uma ou outra decisão peregrina tenham tido tal entendimento, e, como tal, não está sujeito à possibilidade de afastamento da legalidade estrita que caracteriza este tipo de processos (cf. art. 1410º do n.C.P.Civil): o processo de inventário é apenas um processo especial, com uma tramitação própria e gizada de acordo com o figurino legal. Atente-se que isso decorre, desde logo, da inserção sistemática do processo de inventário no título XVI do Livro V do Código de Processo Civil, enquanto que os processos de jurisdição voluntária (ou graciosa) estão regulados no título XV desse mesmo compêndio legal adjetivo. Improcede, assim, sem necessidade de maiores considerações, esta questão recursiva. * 4.2 – A segunda ordem de questões respeita diretamente à invocação de que deveria o tribunal considerar provada a matéria constante das alíneas a) e b) dos factos “não provados”. Para tanto argumenta, em síntese, a Requerente e cabeça de casal EE que o interessado DD sabia e tinha acesso aos movimentos da aplicação financeira (no produto financeiro Postal Valor Crescente e no produto Postal Liquidez, nos termos que constam no ponto de facto “provado” sob “5.”), porque a morada correspondente a essas aplicações, que resulta da documentação, era a sua morada de Lisboa (onde foi citado no início do processo). Salvo o devido respeito, uma coisa não permite inferir necessariamente a outra. Mas ainda que o permitisse, o seguinte “salto dedutivo” feito pela Requerente e cabeça de casal EE nas suas alegações recursivas não é de todo possível, qual seja, o de que «(…) tudo indicando que o interessado DD está na posse dessas quantias, de que tem a disponibilidade e conhece o percurso, continua a não as entregar às heranças, o que deveria fazer na pessoa da cabeça-de-casal enquanto administradora destas (art.º 2079.º do Código Civil), tendo ainda a obrigação de a informar sobre os factos relativos a essas aplicações financeiras de que ele próprio tinha o domínio. De resto, tinha e tem a cabeça-de-casal legitimidade para exigir do outro interessado ou de terceiros a entrega desses bens (art.º 2088.º do Código Civil). O silêncio do interessado a esse respeito e retenção por ele desses valores são indícios mais do que seguros da sonegação em causa nos autos. O facto de ter aceitado o seu relacionamento na audiência prévia e de mostrar estar em condições de os trazer à herança, reforçam essa convicção.» Com efeito, basta atentar nas concretas circunstâncias de facto que estão em causa nas alíneas a) e b) dos factos “não provados”, que para o efeito se impõe rememorar, a saber, respetivamente: «a) O valor referido em 5 foi resgatado na Loja CTT ..., pelo interessado DD, através de procuração com poderes específicos para o ato, no dia 28.03.2022, no montante € 258.758,06, tudo com o intuito de ocultar a existência daquelas quantias e de, consequentemente, prejudicar o quinhão hereditário da aqui cabeça de casal EE.»; «b) O aqui interessado DD, nos momentos referidos em 1 a 4, agiu juntamente com a inventariada BB, tudo com o intuito de ocultar a existência daquelas quantias e de, consequentemente, prejudicar o quinhão hereditário da aqui cabeça de casal EE.» Como é bom de ver, uma convicção positiva sobre o que está direta e especificamente alegado e em causa nessas duas alíneas dos factos “não provados” demandaria necessariamente uma consistência e concludência probatória que não existe minimamente na circunstância. Acrescendo que quanto à “procuração com poderes específicos” aludida na al.a), só a junção do documento escrito em causa permitiria a sua prova (prova tarifada), e que quanto à intenção/“intuito” referenciado na al. b), mesmo admitindo-se que poderia resultar de prova instrumental e por via indireta, também tal não se mostra existir nos autos (ou aí ter sido produzido). Improcede assim esta pretensão recursiva. * 4.3 – A derradeira ordem de questões consiste no alegado desacerto da decisão de improcedência do incidente de sonegação. Será assim? Se bem captamos o sentido do alegado pela Requerente e cabeça de casal EE ora recorrente, o por ela suscitado nesta sede recursiva só podia ter acolhimento a resultar provada outra e diversa factualidade, decisivamente que o interessado/requerido/recorrido DD tem os bens/valores em causa na sua disponibilidade desde pelo menos 2022, tendo procedido dolosamente no sentido de ocultar tal situação e assim prejudicar o quinhão da Requerente. O que não ocorreu, como flui do que antecede. Pelo que entendemos estar só por aí fatalmente votado ao insucesso o sustentado neste enquadramento. Com efeito, «[A] prova por presunções judiciais, que os arts. 349º e 351º C. Civil permitem, tem como limites o respeito pela factualidade provada e a respectiva correspondência a deduções lógicas e racionalmente fundamentadas naquela; - As presunções ou ilações, como meios de prova, não podem eliminar o ónus da prova nem modificar o resultado da respectiva repartição entre as partes;»[6] Sendo que foi neste conspecto que na decisão recorrida, em sede de “subsunção ao direito”, se aduziu fundamentadamente o seguinte: «O regime da sonegação de bens encontra-se previsto no art. 2096.º, do Código Civil, prevendo-se no seu n.º 1 que “O herdeiro que sonegar bens da herança, ocultando dolosamente a sua existência, seja ou não cabeça-de-casal, perde em benefício dos co-herdeiros o direito que possa ter a qualquer parte dos bens sonegados, além de incorrer nas mais sanções que forem aplicáveis”. Tal como decorre deste normativo, a sonegação de bens retrata um fenómeno de ocultação de bens, que pressupõe um facto negativo (omissão de declaração) cumulado com um facto positivo (o dever de declarar por parte do omitente), exigindo-se ainda que essa ocultação seja dolosa. A propósito do dolo, escrevem P. Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, p. 156 e ss., que seguimos de perto: “Observe-se, no entanto, que sob o invólucro civilístico do dolo (art. 253.º) cabem tanto as manobras activas (sugestões ou artifícios) tendentes a induzir ou a manter em erro os destinatários da relação de bens, quanto à existência de certos bens hereditários (…). Por outro lado, interessa ter presente que, de acordo com a escala valorativa das condutas humanas próprias do direito, à figura do dolo directo (violação directa, consciente ou intencional da norma) se equiparam as situações afins do dolo indirecto e do chamado dolo eventual. (…)”. Ou seja, a ocultação dos bens tem de ser dolosa e não negligente, visando o apossamento ilícito e fraudulento dos bens em prejuízo dos demais herdeiros. Assim, descendo desde já ao caso sob apreciação, não poderá deixar o presente incidente de ser julgado improcedente, na medida em que, no confronto entre a factualidade dada como provada e não provada, não resultou que o interessado DD tivesse procedido ao levantamento das quantias a que respeitavam os certificados de aforro titulados pelas inventariadas, nem se alegou e provou qualquer outro acto do qual se pudesse concluir pela conduta activa ou omissiva, mas sempre e necessariamente dolosa, no sentido de que aquelas quantias fosse afastadas/ocultadas do acervo patrimonial a partilhar neste autos. Pelo que, assim sendo, não resta senão julgar o presente incidente totalmente improcedente.» Subscrevemos inteiramente uma tal asserção, mormente face ao conjunto da factualidade que resultou dada como “provada” e supra alinhada, e que não vislumbramos como fundadamente questionar. Assim, subsistem todos os fundamentos de facto e de direito para a decisão de improcedência do incidente que teve lugar: os fundamentos, de facto e de direito, encontram-se devidamente expostos, sendo certo que face aos primeiros a decisão perfilhou entendimento perfeitamente respaldado na melhor doutrina e jurisprudência sobre as temáticas em causa. Ademais, salvo o devido respeito, desde logo falecia na circunstância da situação ajuizada um requisito prévio a uma qualquer imputação de atuação ilícita e dolosa ao interessado DD: era ele o de manifestando-se a ocultação de bens a que alude o art. 2096º, nº 1 do Código Civil, necessariamente numa omissão de declaração quando haja o dever de a produzir[7], é em função do ato que impõe esse dever que cumpre atentar. Ora, o interessado DD, antes da instauração do presente inventário, nunca teve o dever legal de declarar a existência dos certificados de aforro e do seu montante – não resulta que tivesse o cabecelato de qualquer das heranças, sendo certo que enquanto “herdeiro” não tinha uma tal obrigação. Por outro lado, o que a situação dos autos verdadeiramente revela é que a Requerente e cabeça de casal ao instaurar o inventário logo demonstrou estar ciente da existência dos certificados de aforro e do seu montante, mas requerendo do interessado DD que lhe fosse conferida a posse dos valores correspondentes. Sendo que o interessado DD, confrontado com essa situação, apesar de não aderir inicialmente a explicar a situação, admitiu na audiência prévia que teve lugar nos autos que os ditos certificados fossem relacionados no inventário. Neste quadro, com paralelismo, já foi doutamente sustentado em aresto jurisprudencial o seguinte: «(…) parece evidente que a mera existência de divergências entre os interessados acerca da integração ou não de determinados bens na herança indivisa, seguida da sua resolução jurisdicional num determinado sentido, não pode implicar automaticamente para o interessado vencido a aplicação dos efeitos gravosos que a lei prescreve para os casos de sonegação de bens da herança.»[8] Efetivamente, não se enunciam ou apresentam quaisquer manobras ativas (sugestões ou artifícios) por parte do dito interessado tendente a induzir ou a manter em erro a cabeça de casal quanto à existência daqueles bens hereditários. Assim sendo, soçobra inapelavelmente a argumentação recursiva apresentada enquanto assente em pressupostos de sinal contrário ao vindo de explicitar. Com efeito, não vislumbramos como questionar a decisão proferida em termos de mérito da causa. Donde, “brevitatis causa”, improcede fatalmente o presente recurso. * 5 - SÍNTESE CONCLUSIVA (…) * 6 - DISPOSITIVO Pelo exposto, decide-se a final, pela total improcedência da apelação, mantendo a decisão recorrida nos seus precisos termos. Custas nesta instância pela Requerente/recorrente. Coimbra, 11de Novembro de 2025 Luís Filipe Cravo
Vítor Amaral Fernando Monteiro
[1] Relator: Des. Luís Cravo 1º Adjunto: Des. Vítor Amaral 2º Adjunto: Des. Fernando Monteiro [2] Trata-se do acórdão do TRL de 06.06.2019, proferido no proc. nº 18561/17.3T8LSB-A.L1-2, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jtrl. [3] Veja-se a ingente regra de que a dúvida sobre a realidade de um facto se resolve contra a parte a quem o mesmo aproveita (cf. art. 414º do n.C.P.Civil). [4] Citámos LOPES DO REGO in “Comentários ao Código de Processo Civil”, Livª Almedina, 1999, a págs. 425. [5] Cf. NUNO LEMOS JORGE in “Os poderes Instrutórios do Juiz: Alguns Problemas”, na revista “Julgar”, nº 3, a págs. 70. [6] Citámos o acórdão do STJ de 20.06.2006, proferido no proc. nº 06A1647, acessível em www.dgsi.pt/jstj. [7] Neste sentido, cf. o acórdão do STJ de 13.09.2011, proferido no proc. nº 4526/06.4TBMAI.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj [8] Trata-se do acórdão do STJ de 28.04.2016, proferido no proc. nº 155/11.9TBPVZ.P1.S1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jstj. |