Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
589/20.8T9GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: CRIMES CONTRA A AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
AGRAVAÇÃO
RELAÇÃO DE COABITAÇÃO
Data do Acordão: 03/17/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (JUÍZO CENTRAL CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA, PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS. 171.º, N.ºS 1 E 2, E 177.º, N.º 1, ALÍNEA B), DO CP
Sumário: I – Não basta a mera coabitação da vítima com o agente do crime (no caso, crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do CP), para que tenha lugar a agravação prevista no artigo 177.º, n.º 1, alínea b), do mesmo diploma legal (redacção da Lei n.º 103/2015, de 24-08), exigindo a lei que o ilícito penal seja praticado com aproveitamento da relação de coabitação.

II – Decorrendo da matéria de facto provada que tanto os arguidos como a vítima, esta com 11 anos de idade, residiam numa “Casa de Acolhimento”, onde coabitavam, e que os primeiros praticaram na pessoa da segunda actos de cariz sexual, valendo-se do ascendente que sobre ela tinham, da sua superioridade física e do receio que lhe inspiravam, acrescendo ainda a circunstância de todos circularem com à-vontade no espaço da instituição em que se encontravam e valendo-se os arguidos dessa circunstância para lograrem os seus propósitos, está verificada a tipicidade do crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea b), do CP.

Decisão Texto Integral:






Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO:

 

Nos autos de processo comum (tribunal colectivo) supra referenciados, que correram termos pelo Juízo Central Cível e Criminal ... – Juiz ..., após julgamento com documentação da prova produzida em audiência foi proferido acórdão em que se decidiu nos seguintes termos:

(...)

Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem este Tribunal Coletivo em julgar parcialmente procedente a acusação pública e em consequência decidem:

a) – Condenar o arguido AA pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art.º 171º, n.ºs 1 e 2 Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Suspender a pena de 2 anos e 6 meses de prisão por igual período, com sujeição a regime de prova, a definir pela equipa da Direção Geral de Reinserção Social e dos Serviços Prisionais.

b)- Condenar o arguido AA, nos termos do art. º 69º-B, nº2 do Código Penal na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores por um período de 5 (cinco) anos; e nos termos do art.º 69º-C, nº2 do Código Penal na pena acessória de proibição de o arguido assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de 5 (cinco) anos;

c)- Absolver o arguido AA pela agravação prevista no art.º 177º, n.º 1, al b), Código Penal.

d)- Absolver o arguido AA pela prática de um crime de coação p. e p. pelo art 154.º, nº1 do Código Penal.

e – Condenar o arguido BB pela prática de 1 (um) crime de coação p. e p. pelo art 154º/1 do C.Penal na pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de € 5,00 (cinco euros) [por reporte aos factos acima dados como provados em 15-; 30- e 31].

f) – Absolver o arguido BB pela prática de dois crimes de coação p. e p. pelo art 154º/1 do C.Penal.

g)- Condenar o arguido CC:

- pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art.º 171º, n.ºs 1 e 2 Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão [por reporte aos factos dados como provados de 17 a 20];

- pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art.º 171º, n.ºs 1 e 2 Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão [por reporte aos factos dados como provados de 21 a 24];

- operando o cúmulo jurídico, condenar o arguido CC na pena única de 4 (quatro) anos de prisão;

- Suspender a pena de 4 anos de prisão na sua execução, por igual período, com sujeição a regime de prova, a definir pela equipa da Direção Geral de Reinserção Social e dos Serviços Prisionais.

h)- Condenar o arguido CC nos termos do art. º 69º-B, nº2 do Código Penal na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores por um período de 5 (cinco) anos; e nos termos do art.º 69º-C, nº2 do Código Penal na pena acessória de proibição de o arguido assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de 5 (cinco) anos e operando o cúmulo das penas acessórias assim fixadas e lançando mão dos critérios antes convocados para este efeito fixa-se a medida da pena acessória única prevista pelo n.º 2 do artigo 69.º-B do Código Penal em 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses e a pena acessória única prevista pelo n.º 2 do artigo 69.º-C do Código Penal em 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses.

i) Absolver os coarguidos DD, EE da prática, em coautoria material e na forma consumada de dois crimes de favorecimento pessoal, p. e p. pelo art.º 367 n.º 1, do Código Penal.

j) Condenar os arguidos AA, BB e CC, nas custas do processo, incluindo o valor dos encargos a que deu causa, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (cfr. artigos 513º/1, 2 e 3, 514º/1 e 524º do Código Processo Penal e artigos 1º, 2º, 3º/1, 5º, 8º/9, 16º e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais);

k) Determinar que se comunique à equipa da Direção-Geral de Reinserção Social e dos Serviços Prisionais informação, solicitando oportunamente, a elaboração do plano de reinserção social do arguido.

l) Declarar nos termos dos artigos 213º/1-b) e 214º/2, ambos do Código de Processo Penal, extinta de imediato a medida de coação de prisão preventiva e ordenar a restituição imediata do arguido CC à liberdade (a não ser que interesse a sua privação da liberdade à ordem de outro processo), por o arguido ter agora sido condenado em pena de prisão que foi substituída por suspensão da pena na sua execução;

m) Determinar que, oportunamente, se proceda à recolha de amostras de células humanas dos condenados para inserção na base de dados de perfis de ADN, solicitando ao Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses que nos indique instituição, dia e hora para recolha das amostras, após o que deve notificar-se o arguido para comparência e colheita – cfr. artigos 1º, 5º/1, 8º/2 e 14º e ss. da Lei n.º 5/2008, de 12/2;

n) Determinar que se proceda à recolha das impressões digitais dos arguidos e da sua assinatura, com vista à organização do respetivo ficheiro datiloscópico, e que, oportunamente, com as mesmas, se remeta boletim ao registo criminal – cfr. Lei n.º 37/2015, de 5/5).

(…)

           

Inconformado com o acórdão do tribunal colectivo recorre o Ministério Público, retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões:

1º - Os factos praticados pelos arguidos AA e CC integram a prática do crime de abuso sexual agravado, p. e p. pelo art. 171.º n.º 1 e 2 e 177.º n.º 1 al. b) do C. Penal, pelo qual deveriam ter sido condenados, e o que se terá que reflectir na medida da pena a aplicar aos arguidos.

2.º - Com efeito, os arguidos AA, CC e a vítima FF residiam todos na instituição Instituto de (…), sita na (…), onde coabitavam, tendo praticados os factos com aproveitamento desta relação de coabitação.

3.º - Consideramos que o tipo agravado prevê apenas um requisito complementar, comparativamente ao tipo base, relativo à ilicitude, quando entre o agente e a vítima interceda uma relação familiar, uma relação de tutela ou curatela ou uma relação de coabitação, sendo o requisito complementar referente à culpa (o agente pratique o facto com aproveitamento dessa relação) apenas exigível quando em causa esteja uma relação de dependência económica, hierárquica ou de trabalho.

4.º Desde logo porque a introdução do critério da coabitação como factor de agravação da pena visou transpor para a ordem jurídica portuguesa a previsão do art. 9.º al. b) da Diretiva 2011/93/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, segundo o qual “(…) os Estados-Membros tomam as medidas necessárias para garantir que as mesmas possam, (…) ser consideradas circunstâncias agravantes dos crimes referidos nos artigos 3.º a 7.º: b) O crime foi cometido por um membro da família da criança, por uma pessoa que coabita com a criança ou por uma pessoa que abusou de posição manifesta de confiança ou de autoridade”.

5.º - O legislador Português, ao efectuar a transposição da citada norma da Directiva, mantendo o trecho já constante da anterior redacção do art. 177.º al. b) do C. Penal (“que a vítima se encontre numa relação de dependência hierárquica, económica ou de trabalho com o agente e o crime seja praticado com aproveitamento desta relação”) passou a incluir na alínea b) do art. 177.º “a relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela que separou do anterior excerto da norma com uma vírgula e pela conjunção “ou”, pelo que, da análise meramente gramatical e histórica da norma em apreço, afigura-se-nos desde logo que a exigência de que “o crime seja praticado com aproveitamento desta relação” se reporta exclusivamente “à relação de dependência hierárquica, económica ou de trabalho” e já não à relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela.

6.º - Do mesmo modo, efectuando a interpretação lógica, teleológica e axiológica do art. 177.º n.º 1 al. b) do C. Penal, temos que concluir que a exigência de que “o crime seja praticado com aproveitamento desta relação” se reporta apenas à dependência hierárquica, económica ou de trabalho”, sendo certo que o legislador comunitário estabeleceu que os Estados Membros deveriam punir de forma agravada as condutas praticadas por membro da família da criança ou por uma pessoa que coabita com a criança, sem que a isso associe qualquer outro critério ao nível da culpa ou da ilicitude, de que dependa a punição agravada.

7.º- O sentido da agravação reside na própria relação familiar ou na proximidade resultante da vivência em comum, sendo os factos praticados nestas circunstâncias merecedores de uma censura penal agravada, que consubstancia, só por si, um aproveitamento da relação existente entre o agente e a vítima para a prática dos factos.

8.º - No entanto, ainda que assim não se entenda, sempre se dirá que a conduta dos arguidos resultante dos factos dados como provados de 1 a 29, constitui não só uma relação de coabitação, mas também que os factos foram praticados com aproveitamento dessa relação de coabitação.

9.º - Com efeito, os factos dados como provados em 1, 5, 17, 18 e 21 são reveladores de que os arguidos actuaram com a consciência – e vontade – de se aproveitar do menor, com quem coabitavam por força de todos integrarem a mesma instituição de acolhimento, abusando da sua superioridade resultante da idade e do poder de influência que detinham sobre os mais novos (cfr. factos dados como provados em 7, 9, 12, 22, 24), mas sobretudo da facilidade com que permaneciam nos espaços daquela instituição (ginásio e camaratas) sozinhos com o menor ofendido, sem qualquer vigilância dos responsáveis daquela instituição.

10.º - Não fora a circunstância dos arguidos coabitarem com o menor FF, e de essa coabitação permitir que todos permanecessem nos mesmos espaços desacompanhados, inclusivamente nas camaratas, os factos não teriam ocorrido, sendo inequívoco que os arguidos se aproveitaram destas circunstâncias para abusar sexualmente da vítima.

11.º - Assim, não há dúvida que os factos praticados pelos arguidos CC e AA integram a prática do crime de abuso sexual de crianças agravado, nos termos do disposto nos artigos 171 n.ºs 1 e 2 e 177.º n.º 1 al. b) do C. Penal, pelo qual ambos devem ser punidos.

12.º - Considerando os factores de determinação da pena e as exigências de prevenção geral e especial, o Ministério Público entende que deve ser aplicada:

- Ao arguido AA a pena de 4 anos de prisão, pela prática do crime de abuso sexual de crianças agravado, especialmente atenuado, nos termos do disposto nos artigos 171º n.ºs 1 e 2 e 177.º n.º 1 al. b) do C. Penal, art. 4.º do DL n.º 401/82, 73.º e 74.º do C. Penal, a qual entendemos poder ainda ser suspensa na sua execução, mediante regime de prova;

- Ao arguido CC, a pena de 5 anos de prisão por cada um dos crimes de abuso sexual de crianças agravado, nos termos do disposto nos artigos 171 n.ºs 1 e 2 e 177.º n.º 1 al. b) do C. Penal e, operando o cúmulo jurídico das penas aplicadas, na pena única de 7 anos de prisão.

13º - Ainda que se entenda, como o fez o Tribunal “a quo” que os factos praticados pelos arguidos integram apenas a prática do crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art. 171.º n.º 1 e 2 do C. Penal, sempre se dirá que a moldura penal abstracta aplicável ao ilícito se situa entre os três e os dez anos de prisão (ou entre 7 meses e 10 dias e 6 anos e 8 meses, no caso da moldura especialmente atenuada por força da aplicação do regime especial para jovens ao arguido AA) – e não a que se fez constar no douto Acórdão recorrido, motivo pelo qual se considera que a pena a aplicar aos arguidos, neste caso, sempre se deveria situar acima da fixada pelo Tribunal “ a quo”.

Também o arguido AA interpôs recurso, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1. Nos presentes autos o aqui recorrente foi condenado nos seguintes termos:

“a) – Condenar o arguido AA pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art.o 171º, n.os 1 e 2 Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Suspender a pena de 2 anos e 6 meses de prisão por igual período, com sujeição a regime de prova, a definir pela equipa da Direção Geral de Reinserção Social e dos Serviços Prisionais.

b)- Condenar o arguido AA, nos termos do art. o 69º-B, nº 2 do Código Penal na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores por um período de 5 (cinco) anos; e nos termos do art.o 69º-C, nº 2 do Código Penal na pena acessória de proibição de o arguido assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de 5 (cinco) anos;

c)- Absolver o arguido AA pela agravação prevista no art.º 177º, n.º 1, al b), Código Penal.

d)- Absolver o arguido AA pela prática de um crime de coação p. e p. pelo art 154.º, nº1 do Código Penal.

(…)”

2. Contudo, não se pode conformar com tal condenação, por entender não estarem suficientemente provados os elementos constitutivos do crime pelo qual vem condenado;

(…).

84. Pelo que, requer-se a esse Venerando Tribunal que altere a matéria de fato dos pontos 26; 27; 28; e 29 para “não provado”, no que concerne ao arguido AA;

85. Como consequência da alteração da matéria de fato, supra descrita, resultará não se encontrarem preenchidos os elementos de fato essenciais para o preenchimento do tipo de crime pelo qual o arguido AA vem condenado, devendo esse Venerando Tribunal determinar a substituição do acórdão recorrido, na parte em que condena o Recorrente, por outro em que o mesmo seja absolvido;

Em decidindo em conformidade com o exposto e substituindo a douta sentença recorrida por outra que altere a decisão sobre a matéria de facto nos termos peticionados e revogue a condenação do arguido AA, substituindo-a por outra em que seja absolvido do crime e sansões acessórios em que veio condenado, estará esse Venerando Tribunal a fazer a costumeira justiça.

O Ministério Público respondeu ao recurso interposto pelo arguido AA, pugnando pela sua improcedência.

Nesta instância, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pronunciando-se também pela improcedência do recurso.

O arguido CC respondeu ao recurso interposto pelo MP, pronunciando-se pela manutenção do acórdão recorrido nos seus precisos termos.

Por seu turno, o arguido AA respondeu, pronunciando-se no sentido de não merecer reparo o acórdão recorrido no que toca à absolvição dos arguidos da agravação prevista no nº 1, al b), do art. 177º do CP, devendo improceder integralmente o recurso interposto pelo Ministério Público.

Foram colhidos os vistos legais.

O âmbito do recurso, segundo jurisprudência constante, afere-se e delimita-se pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo do que deva ser oficiosamente conhecido, donde se segue que no caso vertente há que conhecer do seguinte:

Recurso do arguido AA:

- Impugnação da matéria de facto no que tange ao que se teve como assente sob os nºs 5, 8, 9, 10, 12, 13, 14, 15, 26, 27, 28 e 29;

- Violação do princípio in dubio pro reo.

Recurso do Ministério Público:

- Enquadramento das actuações dos arguidos AA e CC no crime de abuso sexual agravado, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 e 2, e 177.º, n.º 1, al. b), do C. Penal.

- Agravamento das penas impostas a esses dois arguidos.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

           

            O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:

            1- Os arguidos AA, BB e CC e bem assim a vítima FF [este nascido no dia .../.../2007 e, à data dos factos com 11 anos], pelo menos durante o ano letivo de 2019-2020, residiam todos na instituição Instituto de (…), sita na (…), onde coabitavam, competindo à coarguida EE as funções de direção e ao coarguido DD as funções de membro da Comissão Diretiva daquele Instituto.

            2- O menor FF foi admitido na Casa de Acolhimento (…), no dia ..- ..-2019, a pedido da CPCJ de (…), em execução de medida de promoção e proteção.

            3- A Casa de Acolhimento (...) é uma instituição de solidariedade e segurança social, com acordo de cooperação e protocolo no âmbito do Plano SERE+ com o Instituto da Segurança Social da (…).

            4- Em data não concretamente apurada, mas que se situa no fim-de-semana de 23 e 24 de maio de 2020, na parte da tarde, depois do lanche, quando o menor FF regressava à camarata após ter feito exercício à volta do pátio, ao reparar que se tinha esquecido dos seus óculos, voltou atrás.

            5- Ao passar em frente do ginásio, o menor FF foi chamado pelo arguido BB que lhe disse para entrar no ginásio, numa altura em que, além dele próprio, apenas lá se encontrava, no seu interior, o arguido AA.

            6- Nessas circunstâncias, tendo o menor entrado no ginásio, o arguido BB disse-lhe: “faz aí uns pesos”.

            7- Após, o arguido BB cuspiu para o chão do ginásio e obrigou o menor a limpar o chão, o que o FF fez.

            8- Entretanto o arguido AA chamou o menor FF para um canto do ginásio, mandou-o ajoelhar-se, baixou os calções e os bóxeres que usava e, colocando o pénis em frente da cara do FF, disse-lhe: “faz-me um bóbó”.

            9- Por receio o menor obedeceu-lhe, acabando por permitir que o AA lhe introduzisse o seu pénis na sua boca.

            10- Este ato durou pelo menos 5 minutos, durante os quais o arguido AA dizia ao menor “cuidado com os dentes”.

            11- Enquanto isso, o arguido BB encontrava-se numa máquina de remo a cerca de 5 metros de distância.

            12- Após o que, o arguido AA disse que já chegava passando a fazer exercício nas máquinas do ginásio por mais algum tempo, durante o qual, tanto o AA como o BB cuspiam para o chão e obrigavam o menor FF a limpar o cuspo deles.

            13- Entretanto, entrou no ginásio o arguido CC, a quem o BB contou que o FF esteve a fazer um “bóbó” ao AA, começando os três a rir.

            14- De seguida, os arguidos disseram ao menor FF que já podia ir embora, mas se alguém lhe perguntasse alguma coisa, era para dizer que apenas esteve a treinar com eles.

            15- Nessa altura, o arguido BB, dirigindo-se ao menor FF, e repetindo-o por três vezes, intimidou-o dizendo-lhe: “se disseres a alguém parto-te a boca toda”.

            16- Após, o menor FF foi buscar os seus óculos, conseguindo refugiar-se no seu quarto.

            17- Em data não concretamente apurada, mas seguramente no dia 26 ou 27 de maio de 2020, de manhã, após o pequeno-almoço, quando regressavam às camaratas o arguido CC pediu ao menor FF para o ir ao seu quarto ajudá-lo a fazer a cama.

            18- O menor foi com o arguido CC e, quando estavam os dois sozinhos, o CC disse-lhe: “faz-me o mesmo que fizeste ao AA”, referindo-se a sexo oral.

            19- A porta do quarto estava encostada, tendo o arguido CC baixado os respetivos calções e bóxeres, deitou-se em cima da cama, ficando o menor FF em pé junto dele, e, por medo, obedeceu-lhe, permitindo que o arguido CC introduzisse o seu pénis na boca do menor.

            20- O ato sexual durou cerca de um minuto, após o qual o CC disse que já chegava, pedindo ao menor para não contar o ocorrido a ninguém.

            21- Dois dias depois, cerca das 22 horas, quando o menor FF já se encontrava na cama, o arguido CC entrou no quarto dele e pediu-lhe para lhe contar bem o que se tinha passado no ginásio com o AA.

            22- Com medo do arguido, o menor contou-lhe o sucedido.

            23- Depois, o CC disse ao menor FF: “faz-me outro bóbó”.

            24- O menor FF, por medo, voltou a permitir que o arguido CC introduzisse o pénis na sua boca, praticando coito oral por cerca de um minuto.

            25- O arguido voltou a recordar ao menor que não devia contar o sucedido a ninguém.

            26- Os arguidos AA e CC, tinham plena consciência que a vítima FF era menor de 14 anos e, apesar disso, não se coibiram de, nas descritas circunstâncias, praticar os referidos atos sexuais na pessoa do menor FF, ofendendo assim o sentimento de criança, de inocência e de vergonha do menor, bem como a integridade psicológica daquele, aproveitando-se da incapacidade do mesmo para compreender plenamente o cariz sexual dos atos praticados.

            27- Sabiam os arguidos AA e CC que, ao atuarem das formas descritas, sempre livre, voluntária e conscientemente, sobre o menor FF, perturbavam e estavam a prejudicar, de forma séria, o desenvolvimento da sua personalidade em termos de autodeterminação sexual, sujeitando-o, prematuramente, a contactos de cariz sexual.

            28- Ao agirem das formas descritas, os arguidos AA e CC atuaram, sempre, com intenções concretizadas de dar satisfação aos seus instintos de natureza sexual, utilizando, para tanto, aquele menor de 14 anos de idade, mostrando-se indiferentes às consequências de tais atuações sobre a personalidade em formação do mesmo.

            29- Os arguidos tinham pleno conhecimento de que as suas descritas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

            30- O arguido BB, na situação descrita em 15- usou de pressão psicológica sobre o menor FF, dando-lhe a entender que poderia atentar contra a sua integridade física de modo a que não contasse a terceiros que havia sido vítima de abusos sexuais.

            31- O arguido BB (na situação descrita em 15- e 30-) agiu consciente e livremente, com intenção e vontade concretizada de atemorizar o menor FF, constrangendo-o na sua liberdade pessoal de modo a obter determinada vantagem, bem sabendo ser a conduta que assumiu proibida e punível por lei penal;

            Em matéria de contestação:

(…).


*

Mais se provou:

(…).

Foram considerados não provados os seguintes factos:

(…).

A decisão de facto foi motivada nos seguintes termos:

(…).


Vejamos num primeiro momento o recurso interposto pelo arguido AA, que impugna a matéria de facto por recurso à prova gravada. Insurge-se, nomeadamente, quanto ao que se teve como provado sob o nº 5 no que tange à sua presença na ocasião a que aquele facto se reporta; e ainda aos factos nºs 8, 9, 10, 12, 13, 14, 15, 26, 27, 28 e 29, estes últimos quatro apenas no que a si respeita.
(…).

            Analisemos agora o recurso interposto pelo Ministério Público, que entende que os arguidos AA e CC, condenados pelo crime de abuso sexual de crianças p. p. pelo art. 171º, nºs 1 e 2, deveriam ter sido condenados pelo crime de abuso sexual agravado, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 e 2, e 177.º, n.º 1, al. b), do C. Penal.

            O tribunal recorrido considerou que a agravação decorrente da existência de relação de coabitação pressupõe que o crime seja cometido com aproveitamento dessa relação, concluindo que «(…) no contexto da coabitação destes jovens no seio da Instituição de Acolhimento, não vislumbramos da matéria de facto elementos bastantes para afirmar que os crimes de abuso sexual de crianças tenham sido praticados com aproveitamento dessa relação de coabitação».

            Já o recorrente entende que «(…) a introdução do critério da coabitação como factor de agravação da pena visou transpor para a ordem jurídica portuguesa a previsão do art. 9.º al. b) da Diretiva 2011/93/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011 (…).  O legislador Português, ao efectuar a transposição da citada norma da Directiva, mantendo o trecho já constante da anterior redacção do art. 177.º al. b) do C. Penal (“que a vítima se encontre numa relação de dependência hierárquica, económica ou de trabalho com o agente e o crime seja praticado com aproveitamento desta relação”) passou a incluir na alínea b) do art. 177.º “a relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela que separou do anterior excerto da norma com uma vírgula e pela conjunção “ou”, pelo que, da análise meramente gramatical e histórica da norma em apreço, afigura-se-nos desde logo que a exigência de que “o crime seja praticado com aproveitamento desta relação” se reporta exclusivamente “à relação de dependência hierárquica, económica ou de trabalho” e já não à relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela».

            Vejamos então como evoluiu o regime legal no que tange à agravação do crime de abuso sexual de crianças, restringindo essa análise ao caso relevante para os autos:

            Sob a epígrafe abuso sexual de crianças prevê o art. 171º, nº 1, do Código Penal que quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos. Acrescenta o nº 2 que se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.

            O art. 177º do mesmo diploma, prevê diversos tipos agravados.

            A versão original das alíneas a que nos reportamos (a do DL nº 48/95, de 15 de Março), tinha o seguinte teor:

            (…)

             a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente, ou se encontrar sob a sua tutela ou curatela; ou

            b) Se encontrar numa relação de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente, e o crime for praticado com aproveitamento desta relação.

            Previam-se então dois tipos de situações, separadas por recurso a uma técnica de autonomização de alíneas, apontando a lei com clareza a dependência hierárquica, económica ou de trabalho como situações em que o funcionamento da agravação exigia que o crime fosse praticado com o aproveitamento da relação existente. Na vigência deste quadro legislativo fazia todo o sentido a interpretação que, partindo da constatação de que o tipo agravado previa requisitos complementares relativamente ao tipo base, ora relativos à ilicitude, ora concernentes à culpa, entendia que a relação familiar, de coabitação, de tutela, ou de curatela, podendo condicionar o comportamento sexual da vítima e, simultaneamente, favorecer a actuação do agente, implicavam um mais acentuado desvalor do tipo de ilícito, fundamentando por essa via a agravação da pena. Já nas situações em que a vítima se encontrasse perante o agente numa relação de dependência hierárquica, económica ou de trabalho, a existência dessa relação, só por si, não justificaria a agravação, sendo imperioso para o seu funcionamento que o crime fosse praticado com o aproveitamento dessa relação, pois só em tais situações estará em causa uma efectiva restrição à liberdade e autodeterminação sexual da vítima, evidenciando simultaneamente uma maior culpa do agente [1].

            Aqueles preceitos sofreram, no entanto, alterações de pormenor, mas de grande relevo interpretativo. Assim, a versão introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, tinha a seguinte redacção:

            a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente; ou

             b) Se encontrar numa relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação.

            Como se vê, a relação familiar, de tutela ou curatela, anteriormente previstas na al. a), foi deslocada para a alínea b), não se vislumbrando nessa alteração outro efeito útil senão o de submeter a agravação do crime nos casos que transitaram para a alínea b) ao requisito que esta alínea já previa para as demais situações nela contempladas, a saber, que o crime fosse praticado com aproveitamento da relação existente.

            A Lei nº 103/2015, de 24 de agosto, veio alterar uma vez mais a alínea b), acrescentando a relação de coabitação, ficando essa alínea com a seguinte redacção:

             b) Se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação.

            Por fim, a Lei nº 101/2019, de 6 de Setembro, introduziu a actual configuração do nº 1 do art. 177º, mantendo a redacção das alíneas a) e b) e acrescentando uma alínea c), donde resultou o seguinte regime de agravação do crime:

            1 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima:

            a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente; ou

            b) Se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação.

            c) For pessoa particularmente vulnerável, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez.

            (…)

            Ora, sabido que o intérprete deve procurar no texto da lei a melhor interpretação consentida no âmbito da harmonia do sistema legal e que a letra da lei se impõe ao intérprete como limite da actividade interpretativa, a primeira consideração de ordem prática que a actual conformação do nº 1 do art. 177º sugere é a seguinte:

            - A alínea a) agrava o crime de abuso sexual cometido contra pessoa ligada ao agente pelo parentesco previsto na norma, a saber, ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau. Sendo de esperar dos parentes com maior grau de proximidade um comportamento de solidariedade, apoio e protecção, em linha, aliás, com os deveres decorrentes da lei, daí resulta um especial dever de abstenção do comportamento tutelado pela norma incriminadora, cuja violação evidencia uma acrescida ilicitude.

            - A alínea b) prevê as situações em que a vítima se encontre numa relação familiar, (que não uma das previstas na alínea anterior, que funcionam automaticamente como agravantes), de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação. A particular relação estabelecida por uma das vias previstas nesta alínea, podendo propiciar o abuso sexual, pode, no entanto, não ser determinante desse abuso, nomeadamente, naquelas situações em que se deva admitir que este teria ocorrido ainda que a especial relação prevista na norma não existisse. Registe-se, já agora, como elemento literal coadjuvante desta interpretação, que o termo relação utilizado na alínea b) se reporta a todas e a cada uma das situações ali previstas: relação familiar; relação de coabitação; relação de tutela ou curatela; relação de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente. A conjunção ou utilizada entre as situações previstas é uma conjunção coordenada disjuntiva, servindo para ligar palavras ou orações e que tanto pode indicar alternância como exclusão. Na lógica da alínea b) a que nos reportamos, sugerida, aliás, pela evolução do preceito, a utilização da conjunção ou teve em vista separar dois grupos de situações, uma constituída por relações de ordem familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, outra abrangendo relações de dependência hierárquica, económica ou de trabalho, nada impondo que apenas a estas últimas se aplique o requisito final crime praticado com aproveitamento dessa relação. Se o legislador tivesse querido operar uma tal restrição tê-lo-ia feito, certamente, por referência ao termo dependência, que apenas utilizou relativamente ao segundo grupo de situações, e não por referência à relação, que se reporta a todas as situações previstas na alínea.

            - Por fim, a alínea c) prevê a agravação no caso de o crime ter como vitima pessoa afectada por uma especial fragilidade e, portanto, particularmente vulnerável, seja em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez.

            O argumento sistemático, implicando a análise de conjunto do quadro jurídico de que se deu conta, nomeadamente, no que concerne à distribuição das situações-tipo pelas várias alíneas do preceito, reforça esta interpretação.

            Não vemos, por outro lado, que o argumento histórico desminta as conclusões alcançadas. A interpretação apontada é a que melhor se coaduna com o actual texto da lei; é também a que é sugerida pela evolução do preceituado nas alíneas do nº 1 do art. 177º nos termos de que demos conta; e é ainda plenamente conforme com o texto da Directiva 2011/93UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Dezembro de 2011, transposta pela Lei nº 103/2015, de 24 de Agosto.

            Esta Directiva impõe que os Estados-Membros tomem as medidas necessárias para garantir que na medida em que as circunstâncias que aponta não sejam já elementos constitutivos dos crimes de exploração sexual de crianças, de abuso sexual de crianças e de pornografia infantil, possam, em conformidade com as disposições aplicáveis da legislação nacional, ser consideradas circunstâncias agravantes dos referidos crimes. Indica, depois, diversas circunstâncias agravantes (art. 9º), distribuídas por alíneas, nomeadamente, o cometimento do crime por um membro da família da criança, por uma pessoa que coabita com a criança ou por uma pessoa que abusou de posição manifesta de confiança ou de autoridade (al. b). Não impondo a Directiva uma formulação ou conteúdo preciso da norma, o legislador nacional incluiu a coabitação no ordenamento já existente, aditando-a ao elenco de situações já previstas na al. b) do nº 1 do art. 177º que, de resto, enquanto circunstância agravante, não se restringe aos crimes sexuais que tenham crianças como vítimas, sendo o seu campo de aplicação constituído pelos crimes previstos nos artigos 163ª a 165º e 167º a 176º do Código Penal.

            Não vemos, assim, que por esta via assista razão ao recorrente, antes devendo concluir-se que não basta a mera coabitação para que haja lugar à agravação do crime, devendo exigir-se que este tenha lugar com aproveitamento da relação de coabitação, como decidiu o tribunal recorrido.

            Prossegue o recorrente alegando que mesmo que se não entenda pela forma que sustentou, ainda assim, a conduta dos arguidos resultante dos factos 1 a 29 não só evidencia uma relação de coabitação como também que os factos foram praticados com aproveitamento dessa relação de coabitação.

            O tribunal recorrido consignou não vislumbrar na matéria de facto elementos bastantes para a firmar que os crimes de abuso sexual de crianças imputados aos arguidos AA e CC tenham sido praticados com aproveitamento dessa relação de coabitação, razão pela qual afastou a aplicação da agravante do nº 1, al. b), do art. 177º do Código Penal. Não vemos, no entanto, razão para o afastamento da agravante em causa, que o tribunal a quo verdadeiramente não fundamenta. Da matéria de facto resulta inequivocamente que tanto os arguidos AA e CC como a vítima FF, este, nascido em .../.../2007, contando à data dos factos com 11 anos de idade, pelo menos durante o ano letivo de 2019/2020, residiam todos na instituição Instituto de (…), sita na (…), onde coabitavam. Os factos nºs 4 a 15, bem como os factos nºs 17 a 25, para os quais remetemos por comodidade de exposição, evidenciam a prática de actos sexuais de relevo, consubstanciados em coito oral, com menor de 14 anos. Deles resulta também, sem margem para dúvida, que os arguidos impuseram tais actos ao menor FF valendo-se do ascendente que sobre ele tinham, da sua superioridade física e do receio que lhe inspiraram.

            Por outro lado, os factos criminosos foram praticados nas instalações do Instituto de (…), onde todos coabitavam, aproveitando-se os arguidos da circunstância de todos viverem naquela instituição, circulando com à-vontade no respectivo espaço, valendo-se da disponibilidade dessas instituições para lograrem os seus propósitos. Sendo assim, está indiscutivelmente verificada a tipicidade do crime de abuso sexual agravado, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 e 2, e 177.º, n.º 1, al. b), do C. Penal, pelo qual os arguidos AA e CC deverão ser condenados.

            Impõe-se, pois, determinar as penas aplicáveis aos arguidos AA e CC de acordo com a incriminação ajustada.

            A moldura legal aplicável ao crime de abuso sexual agravado, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 e 2, e 177.º, n.º 1, al. b), do C. Penal, implicando um agravamento de 1/3 nos limites mínimo e máximo do tipo base, é a de prisão de 4 anos a 13 anos, 4 meses e 10 dias.

            O arguido AA, nascido em .../.../2002, ainda não tinha completado 18 anos de idade à data da prática dos factos, o que impõe que se considere a possibilidade de aplicação do regime penal aplicável a jovens delinquentes (DL nº 401/82, de 23 de Setembro), nomeadamente, a atenuação especial prevista no art. 4º desse diploma, em cujos termos, «se for aplicável pena de prisão, deve o juiz atenuar especialmente a pena nos termos dos artigos 73.º e 74.º do Código Penal, quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado».

            Considerou o tribunal recorrido que, tendo por referência os factos praticados parece existir base para defender a ideia de que, no caso do arguido AA, pese embora a existência de antecedentes criminais, a sua inserção social será uma melhor e mais óbvia realidade se lançarmos mão do dito regime especial para jovens. Não vemos razões para afastar a aplicação deste regime, a que preside o intuito de garantir uma efetiva reinserção social, como bem se assinalou no acórdão recorrido.

            Consequentemente, e por força do disposto no art. 73º, nº 1, als. a) e b) do CP, aplicável por remissão do art. 4º do DL 401/82, o limite máximo da pena será reduzido de 1/3 enquanto que o seu limite mínimo será reduzido a 1/5. Obtém-se assim uma moldura legal compreendida entre um mínimo de 9 meses e 18 dias e um máximo de 8 anos, 11 meses e 6 dias.

            Na determinação da medida da pena o elemento fundamental a ponderar como ponto de partida é a culpa, que consiste essencialmente num juízo de censura dum facto típico por referência à pessoa do seu agente por não ter actuado de forma diversa, podendo e devendo tê-lo feito. A culpa, que determina o limite máximo e intransponível da pena, avalia-se pela ponderação de todos os elementos que nela se reflectem. Há assim que ponderar, desde logo, o grau de ilicitude do facto, indissociavelmente ligado à culpa e que se afere pelo resultado da acção ou pelas suas consequências, tal como resultam da matéria de facto assente. De realçar, no caso vertente, como notou o acórdão recorrido, a forma “desinibida” com que os arguidos CC e AA abordaram a vítima em diferentes situações, praticando o primeiro, por duas vezes o crime de abuso sexual em questão, não sendo de desconsiderar terem as consequências para o menor sido minimizadas graças à pronta intervenção da equipa pluridisciplinar da instituição que, através da sua equipa técnica protegeu a vitima, que parece agora ter saído desta situação, com espírito crítico mais reforçado e com uma personalidade mais fortalecida.

            A actuação dos arguidos nos termos descritos na matéria de facto foi dolosa, evidenciando um dolo directo, posto que os arguidos agiram com a consciência e com a vontade de se aproveitarem da vítima, cuja idade conheciam, o que se vem a traduzir num significativo grau de violação dos deveres impostos pela ordem jurídica, tanto mais que a vítima já estaria sinalizada por ter sofrido abusos sexuais, ainda que se admita que tal facto não seria certamente do conhecimento dos arguidos AA e CC.

            Por seu turno, o mínimo de pena admissível para o caso deverá ser encontrado através das exigências da prevenção geral, que tem como destinatários todos os membros da comunidade jurídica (excluído o arguido, objecto da prevenção especial), na sua vertente de prevenção geral positiva. Está em causa a garantia da manutenção da confiança da comunidade na validade da norma   e a dissuasão de potenciais infractores, o que exige um mínimo de punição, variável em função do contexto e do momento histórico, capaz de satisfazer aquela dupla função. Quanto a este aspecto, a prática judiciária vem revelando um aumento deste tipo de crime e, em consonância, o Relatório Anual de Segurança Interna referente ao ano de 2020 revela, na rúbrica dos crimes sexuais, que o crime de abuso sexual de crianças é o que maior relevo assume, com 119 detidos por crime desta natureza, número que sobe para 124 se adicionados os casos específicos de abuso de menor dependente.

            A graduação final das penas resultará das exigências de prevenção especial, que intervém funcionando entre o mínimo imposto pela prevenção geral e o máximo consentido pela culpa, como factor de determinação do quantum de pena necessário à ressocialização (entendida como adesão do agente aos valores comunitariamente postergados) e à prevenção da reincidência (que se atinge através duma pena doseada em moldes de representar um sacrifício de tal forma penoso que o agente não quererá repetir), coadjuvadas pelas demais circunstâncias do caso, avultando a personalidade do arguido e o seu posicionamento ante o facto, tudo isto a permitir ao julgador um afinamento da medida em ordem à fixação da pena ajustada. Neste particular há que notar, relativamente ao arguido AA, a anterior condenação que lhe foi imposta, condenação já com significativa gravidade, ainda que em pena não detentiva e por crime de diversa natureza, enquanto que o arguido CC não conta com antecedentes criminais.

            Tudo visto, apresentam-se como ajustadas as penas de 2 anos e 10 meses de prisão para o crime cometido pelo arguido AA e a pena de 4 anos e 4 meses de prisão para cada um dos dois crimes cometidos pelo arguido CC.

            Relativamente a este último arguido haverá que proceder ao cúmulo jurídico das penas dentro do limite penal compreendido entre a mais alta das penas parcelares (no caso, são penas de igual duração) e a soma das penas concretamente aplicadas, ou seja, entre 4 anos e 4 meses e 8 anos e 8 meses de prisão.

            A determinação da pena única pressupõe uma visão de conjunto relativamente aos factos praticados, no seu ordenamento histórico e cronológico, em interacção com a personalidade do agente, assumindo-se que a pena do concurso é ainda uma pena limitada pela culpa, ainda que culpa pelos factos no seu conjunto.

            Na aplicação prática desta perspectiva é-nos dado verificar que os factos praticados em ambas as ocasiões descritas têm natureza similar, ocorreram em condições idênticas e têm proximidade temporal, evidenciando a prevalência de factores exógenos. Atenta a idade do arguido CC, que contava então com 23 anos de idade, aliada à ausência de antecedentes criminais, não é ainda possível concluir por uma inequívoca tendência para a prática de delitos sexuais, evidenciando-se apenas a pluriocasionalidade.

            No caso concreto, a visão de conjunto dos factos praticados, em sintonia com as conclusões retiradas em sede de matéria de facto sobre a personalidade do agente, vista ainda a gravidade global do ilícito e sopesado o modo de interligação dos factos em concurso, a pena única deverá ser concretizada em cinco anos de prisão, medida que pela sua gravidade e à luz das demais circunstâncias do caso, satisfaz as exigências de prevenção que ao caso cabem, afigurando-se como suficiente para o afastar do cometimento de novos ilícitos.

            Haverá de seguida que equacionar a possibilidade de suspensão das penas impostas aos arguidos, o que pressupõe a indagação dos elementos que no caso consentem o juízo de que a simples censura e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. A formulação desse juízo obriga a atender, nos termos do art. 50º, nº 1, do Código Penal, à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.

            Revertendo ao caso concreto, a personalidade dos arguidos AA e CC, tal como flui da matéria de facto assente, não é de molde a que se abdique desde já de um juízo de suficiência da ameaça da pena de prisão para lograr o afastamento dos arguidos da prática de novos ilícitos. Se o primeiro já sofreu uma condenação penal em pena suspensa, ainda assim, a diversa natureza dos factos praticados, aliada à sua idade, permite ainda ter esperança num amadurecimento da personalidade que lhe permita aderir aos valores socialmente postergados, pautando a sua conduta futura com respeito pelos ditames da ordem jurídica. Uma boa parte do que acabou de afirmar-se quanto ao arguido AA vale também para o arguido te, visto tratar-se de um jovem adulto que não conta ainda com qualquer condenação penal. Há, pois, que concluir pela possibilidade de formulação do juízo de prognose favorável pressuposto pela suspensão da execução da pena relativamente a ambos os arguidos.

            Conforme dispõe o nº 5 do art. 50º do Código Penal, o prazo da suspensão é fixado entre um e cinco anos (por lapso evidente, o tribunal recorrido citou uma versão desactualizada desta norma).

            Visto tudo o que consta dos autos, afigura-se como ajustado fixar o período de suspensão da execução da pena em 3 (três) anos no que concerne ao arguido AA e em 5 (cinco) anos relativamente ao arguido CC, sujeitando essas suspensões ao regime de prova, nos termos previstos na decisão recorrida.

III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, acordam os juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Em julgar improcedente o recurso do arguido AA, ainda que eliminando o facto nº 11 do provado, acrescentando à descrição da matéria não provada facto com a mesma redacção, determinando-se a correspondente anotação no acórdão recorrido.

II – Em julgar procedente o recurso do Ministério Público, revogando o acórdão do tribunal colectivo no que concerne à incriminação imputada aos arguidos AA e CC, convolando-a para o crime de abuso sexual agravado, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 e 2, e 177.º, n.º 1, al. b), do C. Penal. Consequentemente,

            1. a) Em condenar o arguido AA pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual agravado, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 e 2, e 177.º, n.º 1, al. b), do C. Penal, na pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão.

            1. b) Em suspender esta pena pelo período de 3 anos, com sujeição a regime de prova, a definir pela equipa da Direção Geral de Reinserção Social e dos Serviços Prisionais.

            2. a) Em condenar o arguido CC pela prática de cada um de dois crimes de abuso sexual agravado, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 e 2, e 177.º, n.º 1, al. b), do C. Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses de prisão.

            2. b) Em condenar o arguido CC, em cúmulo jurídico de penas, na pena única de 5 (cinco) anos de prisão.

            2. c) Em suspender a execução desta pena pelo período de cinco anos, com sujeição a regime de prova, a definir pela equipa da Direção Geral de Reinserção Social e dos Serviços Prisionais.

            3. Em confirmar, em tudo o mais, o acórdão recorrido.

            Condena-se o arguido AA na taxa de justiça de 3UC.

                                                      Coimbra, 17 de Março de 2022

             (texto processado pelo relator, revisto por ambos os signatários e assinado electronicamente)

(Jorge Miranda Jacob - relator)

(Maria Pilar Oliveira - adjunta)


[1] - Nesse sentido se pronunciava então Maria João Antunes, no Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, anot. ao art. 177º, Ed. de 1999.