Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3330/13.8TBLRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
CREDORES
DIREITO DE VOTO
PLANO DE RECUPERAÇÃO
CREDOR
HIPOTECA
Data do Acordão: 04/01/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA – 5º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 17º-F DO CIRE.
Sumário: I – No processo especial de revitalização, o credor cujo crédito seja assegurado por hipoteca encontra-se numa situação objectivamente diferente relativamente aos credores comuns, pelo que um tratamento diferenciado, pelo plano de recuperação, do crédito garantido, não viola o princípio da igualdade dos credores.

II - Os credores cujos créditos, constantes designadamente da lista definitiva, não sejam modificados pela parte dispositiva do plano de recuperação não têm direito de voto.

III - Se para a deliberação de aprovação do plano de recuperação foi decisivo o voto do credor relativamente ao qual se verifica o impedimento de voto, a violação procedimental correspondente, por não ser negligenciável, constitui fundamento de recusa de homologação daquele plano.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

J… e cônjuge, M…, instauraram, no 5º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, processo especial de revitalização com a finalidade de estabelecer negociações com os seus credores e concluir, com estes, um acordo conducente à sua revitalização.

Os requerentes relacionaram, como únicos bens, a casa de habitação e um veículo automóvel, com reserva de propriedade, cujo valor estimaram em € 70.000,00 e € 7.500,00, respectivamente.

Na lista – definitiva – de créditos, foram reconhecidos, entre outros, como comuns, os créditos de A…, de B…, de C… e, como garantidos por hipotecas, proveniente da concessão de crédito para aquisição de habitação, o do Banco D…, nos valores de € 19.787,90, € 2.846,43, € 2.500,00 e € 84.425,23 correspondentes a 15,8%, 2,3%, 2% e 67,6% dos votos, respectivamente.

O plano de recuperação propôs o pagamento de 30% dos créditos comuns em 96 prestações mensais e no tocante ao único crédito garantido – o do Banco D… – o pagamento de 100% do montante reclamado, com a manutenção do prazo e condições contratadas (spread + Euribor) e a capitalização dos montantes em mora, com manutenção do prazo e condições contratadas (spread + Euribor).

O plano foi votado, por escrito, a favor, pelos credores Banco D…, SA e C…, e contra, por A… , tendo obtido 83,69% de votos favoráveis e 16,31% de votos desfavoráveis.

O plano foi homologado por decisão de 9 de Dezembro de 2013.

É justamente esta decisão que o credor A…, impugna através do recurso ordinário de apelação – a que o credor B…aderiu – no qual pede a sua revogação.

O recorrente rematou a sua alegação com estas conclusões:

Não foi oferecida resposta.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

Os factos que relevam para o conhecimento do objecto – relativos à votação e ao conteúdo do plano de recuperação – são os que o relatório documenta.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso

                Como o âmbito objectivo do recurso é recortado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, pelo requerimento de interposição pelas conclusões e pelas conclusões que o impugnante extrai da sua alegação, a questão controversa que esta Relação é chamada a resolver – tendo em conta o conteúdo da decisão impugnada e da alegação do recorrente - é a de saber se a decisão que homologou o plano de recuperação dos devedores deve ser revogada e, consequentemente, se deve recusar-se a homologação desse mesmo plano (artºs 635 nºs 2, 1ª parte, 3 e 4 do NCPC).

                A resolução deste problema vincula à ponderação, leve mas minimamente estruturada, do princípio da igualdade dos credores e das normas reguladoras da deliberação dos credores de aprovação do plano de recuperação.

                3.2. Princípio da igualdade dos credores.

O processo de insolvência é uma execução colectiva ou universal (artº 1 nº 1 do CIRE).

                Na acção executiva promove-se, em geral, a realização coactiva de uma única prestação contra um único devedor e, em observância de um princípio de proporcionalidade, apenas são penhorados e excutidos os bens do devedor que sejam suficientes para liquidar a dívida exequenda (artºs 828 nº 5, 833 nº 1 e 832 nº 1 a) do CPC de 1961 e 735 nº 3 e 813 nº 1 do NCPC). Esta execução distingue-se do processo de insolvência que é uma execução universal, tanto porque nela intervêm todos os credores do insolvente, como porque nele é atingido, em princípio, todo o património deste devedor (artºs 1, 47 nºs 1 a 3, 128 nºs 1 e 3 e 149 nºs 1 e 2 do CIRE).

                Como o devedor se encontra em situação de insolvência, quer dizer, impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, todos os credores, podem reclamar os seus créditos e todo o património do devedor responde pelas suas dívidas (artº 3 nº 1 do CIRE).

                Na execução singular, um credor pretende ver satisfeito o seu direito a uma prestação; esse credor necessita de uma legitimação formal, que é um título executivo e se o devedor for solvente obtém na acção executiva a satisfação do seu crédito (artºs 45 nº 1 e 55 nº 1 do CPC de 1961 e 53 nº 1 do NCPC).

                No processo de insolvência podem apresentar-se todos os credores do insolvente, ainda que não possuam qualquer título executivo, porque todos eles podem concorrer ao pagamento rateado do seu crédito, através do produto apurado na venda de todos os bens arrolados para a massa insolvente.

                O processo de insolvência baseia-se na impossibilidade de o devedor saldar todas as suas dívidas e, portanto, orienta-se por um princípio de distribuição de perdas entre os credores.

Admite-se, por isso, a par das reclamações preferenciais, a reclamação dos créditos comuns.

Abstraindo de soluções intermédias, a posição relativa recíproca dos credores em processos concursais, pode organizar-se de harmonia com dois sistemas: um deles fundamenta-se no princípio da prioridade e expressa-se na máxima prior tempore, prior iure, dado que atribui ao credor que primeiro obteve a penhora ou acto equivalente de bens do devedor uma preferência em relação aos demais credores que não sejam titulares de quaisquer garantias reais sobre esses mesmos bens; outro sistema possível é o da igualdade ou da par conditio (omnium) creditorum, que não concede ao exequente qualquer preferência resultante da penhora em relação aos demais credores comuns do executado[1].

Todavia, a diferença entre o sistema da par conditio creditorum e o sistema da prioridade não corresponde, verdadeiramente, a qualquer contraposição entre igualdade e a desigualdade dos credores. Qualquer dos sistemas baseia-se num pressuposto de igualdade entre os credores: o que é diferente è a igualdade que está subjacente a qualquer dos sistemas. No sistema da par conditio, a igualdade manifesta-se na possibilidade de qualquer credor impedir a satisfação integral dos créditos dos outros credores; no sistema da prioridade, a igualdade manifesta-se na possibilidade de qualquer credor conseguir a satisfação integral do seu crédito. Um sistema prejudica, de forma igual, todos os credores; o outro pode beneficiar, também de forma igual, qualquer credor[2].

Seja como for, à igualdade dos credores na admissão ao concurso não o corresponde necessariamente uma igualdade na satisfação dos créditos reclamados, em razão de uma diferente ponderação pelo legislador dos interesses da generalidade dos credores e, designadamente, dos titulares de direitos preferenciais de pagamento.

Os créditos sobre a insolvência separam-se em três classes: os créditos garantidos e privilegiados – que são os que beneficiam, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente; os créditos subordinados; os créditos comuns, que são nitidamente a categoria residual (artº 47 nºs 1, 2 e 4 a) a c) do CIRE).

A esta tríade de créditos sobre a insolvência corresponde, naturalmente, uma homótropa tríade de credores sobre a insolvência.

Os créditos subordinados – categoria inovatoriamente introduzida pelo CIRE – recebem da lei um nítido tratamento de desfavor, de que o exemplo mais acabado é a circunstância de independentemente da sua fonte, serem graduados e, portanto, satisfeitos, depois de todos os restantes créditos sobre a insolvência (artº 48, corpo, 2ª parte, e 177 nº 1 do CIRE).

Outro ponto é que é visível o tratamento de desfavor dos créditos subordinados diz respeito ao direito de voto: os créditos subordinados não conferem direito de voto, excepto se a deliberação tiver por objecto a aprovação de um plano de insolvência (artº 77 nº 3 do CIRE). A solução compreende-se em vista do drástico efeito que, na ausência de estatuição expressa constante do plano de insolvência, decorre para os créditos subordinados da sua aprovação: o perdão total dos créditos dessa classe (artº 197 b) do CIRE).

Na insolvência, os créditos são satisfeitos de harmonia com o princípio da satisfação integral sucessiva, i.e., segundo a ordem da sua graduação, regra de que decorre esta consequência: um crédito só pode ser pago depois de o crédito anteriormente graduado se encontrar totalmente solvido (artº 173 do CIRE e 604 nº 1, 1ª parte, do Código Civil). Assim, mesmo que o produto obtido com a venda dos bens apreendidos para a massa seja insuficiente para satisfazer todos os créditos graduados, isso não obsta à satisfação daqueles que, segundo a sua graduação, puderem ser integralmente pagos (artº 174 nº 1 e 175 nº 1 do CIRE). Apesar dessa insuficiência, não há qualquer pagamento proporcional de todos os créditos graduados, ou seja, não se realiza qualquer rateio entre eles.

O problema do rateio apenas se coloca no tocante ao pagamento dos créditos que gozem da mesma garantia e tenham sido graduados a par e, naturalmente, quanto aos créditos comuns, quando a massa insolvente se mostrar insuficiente para a respectiva satisfação integral (artºs 175 nº 1 e 176 do CIRE e 604 nº 1, 2ª parte, do Código Civil). Quando isso suceda, o pagamento da pluralidade de créditos faz-se por rateio, segundo o princípio da proporcionalidade, assegurando-se o princípio da igualdade entre os créditos da mesma espécie, ou melhor, distribuindo por todos os credores da mesma categoria, proporcionalmente, as respectivas perdas.

É a esta luz que deve ser lido o princípio da igualdade dos credores que o plano de insolvência deve acatar, princípio que a norma que proclama, de resto, logo admite a sua restrição, desde que a diferenciação se justifique por razões objectivas (artº 194 nºs 1 e 2 do CIRE). Os credores da insolvência são tratados de forma igual – mas segundo a qualidade dos seus créditos.

Nestas condições, em vez de par conditio creditorium talvez de devesse falar, com maior propriedade, de par aut conditio credito.

Seja como for, o princípio da igualdade dos credores não proíbe ao plano de insolvência que faça distinções entre eles – proíbe apenas diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios objectivos relevantes. O princípio da igualdade dos credores tolera, pois, a previsão de diferenciações no tratamento jurídico de situações que se afigurem, sob um ou mais pontos de vista, idênticas, desde que, por outro lado, apoiadas numa justificação ou fundamento razoável, sob um ponto de vista que possa ser considerado relevante.

                O plano deve, pois, tratar de forma igual o que é igual e desigualmente o que é desigual. O princípio da igualdade dos credores supõe, assim, uma comparação de situações, a realizar a partir de determinado ponto de vista. E, justamente, a perspectiva pela qual se fundamenta essa desigualdade e, consequentemente, a justificação para o tratamento desigual que não podem ser arbitrárias. Antes tem de se poder considerar tal justificação para o distinguo dos credores como razoável e relevante: perante o espaço de conformação do plano, o tribunal deve limitar-se a analisar se a regulação desigual da situação dos credores é manifestamente desadequada, por inexistência de fundamento razoável e relevante.

                Um fundamento objectivo – porventura o mais claro – de diferenciação dos credores é precisamente a distinta classificação dos créditos da insolvência, designadamente a que os separa em comuns e privilegiados[3]. Outra razão objectiva, razoável, susceptível de justificar diferença tratamento, é, por exemplo, a fonte dos diversos créditos ou a finalidade visada com a contracção de um e de outros. Realmente parece razoável tratar de forma diferente o crédito contraído para aquisição de habitação e o crédito assumido para aquisição de bens de consumo.

Originariamente, a finalidade única e última do processo de insolvência era a satisfação dos interesses dos credores (artº 1 do CIRE, na redacção anterior àquela que lhe foi impressa pelo artº 2 da Lei nº 16/2012, de 20 de Abril). Este objectivo podia, todavia, ser prosseguido por dois modos diferenciados: através da liquidação universal do património do devedor e a partilha ou a repartição do respectivo produto pelos credores, de acordo com o esquema supletivo disposto na lei; através da satisfação dos credores pela forma regulada num plano de insolvência aprovado pelos credores, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente (artºs 1 e 192 nº 1 do CIRE).

O plano de insolvência constitui, por isso, na lógica do CIRE um meio alternativo à liquidação universal dos bens do devedor, que decorre segundo o modelo supletivo traçado na lei. Com o plano de insolvência, procura-se dar ao problema da insolvência do devedor uma resposta diferente da pura e simples liquidação, universal e colectiva, do seu património, segundo o modelo supletivo desenhado no CIRE.

A letra da lei permite, sem esforço, identificar quatro modalidades de plano de insolvência: o plano de liquidação da massa insolvente; o plano de recuperação; o plano de transmissão da empresa; o plano misto (artº 195 nº 2 b) do CIRE)[4].

Todavia, seja qual for a modalidade de plano considerada, na fixação do seu conteúdo, rege o princípio da liberdade e da autonomia dos credores, por força do qual estes gozam de liberdade latitudinária, mas não ilimitada, na conformação jurídica dos seus interesses (artº 195 nº 2, in fine, e 196 nº 1 do CIRE)[5]. Limite relevante dessa liberdade e autonomia é – como já se apontou - o representado pelo princípio da igualdade dos credores (artº 194 nºs 1 e 2 do CIRE).

3.3. Procedimento da deliberação dos credores de aprovação do plano.

Como o nome logo inculca, a assembleia de credores é órgão deliberativo – de, resto, prevalente – da insolvência, no qual se forma e se expressa a vontade do universo dos credores (artº 72 nº 1 e 80 do CIRE).

No tocante à sua composição, rege o princípio da universalidade e, portanto, a regra é a de que têm assento na assembleia todos os credores da insolvência, embora o juiz possa limitar a participação nela de alguns deles, tendo em conta o valor do seu crédito (artº 72 nº 1 do CIRE).

O direito de participar na assembleia importa para o credor, quatro faculdades principais: assistir, discutir, propor e votar[6].

No tocante aos créditos subordinados, a lei, além de excluir o direito de voto, exige, como condição de participação dos respectivos titulares na assembleia, o reconhecimento da sua qualidade de credores (artº 72 nº 2 do CIRE).

Ao contrário do que se verifica com outros órgãos da insolvência, a lei não define, de forma geral, a competência funcional da assembleia, antes indica, de forma casuística, os actos para que tem competência decisória. Assim, entre outros actos, compete à assembleia de credores aprovar o plano de insolvência (artºs 156 nº 3 e 206 nº 2 do CIRE).

No tocante ao seu funcionamento, deve distinguir-se o quórum de funcionamento e quórum de deliberação. A lei não fixa um quórum de funcionamento. Esta conclusão é imposta pela regra que fixa a maioria deliberativa ao estatuir que esta é fixada, seja qual for o número de credores presentes ou representados, ou a percentagem de créditos de que sejam titulares (artº 77, in fine, do CIRE).

Para que as deliberações sejam validamente tomadas exige-se, porém, um quórum deliberativo: como regra, as deliberações da assembleia de credores são tomadas por maioria dos votos emitidos, não se considerando como tal as abstenções (artº 77 do CIRE).

O CIRE não disponibiliza um regime geral de invalidade das deliberações dos credores – mas apenas previsões avulsas de invalidade.

Uma, que assenta num vício relativo à formação da maioria deliberativa, estatuindo que não é motivo de invalidade das deliberações da assembleia a comprovação ulterior de a algum credor competia um número de votos diferente daquele que lhe foi conferido (artº 73 nº 6 do CIRE); outra, que tem por objecto a contrariedade das deliberações tomadas pela assembleia de credores no tocante ao interesse comum destes, e que, simultaneamente, estabelece o procedimento da sua impugnação (artº 78 do CIRE).

Estas duas previsões estão, porém, longe de esgotar todos os possíveis vícios das deliberações da assembleia de credores e, portanto, aquelas deliberações podem-se encontrar-se feridas por outras causas de invalidade, provocadas por vícios de forma ou de substância. Mas esta conclusão coloca este problema: o regime da sua impugnação. Face à ausência de regulação, uma proposta de solução que se tem por exacta, ao menos no tocante aos vícios de forma ou de procedimento, é a do preenchimento da lacuna pelo recurso ao regime geral da invalidade dos actos de processo, o que reclama um juízo sobre a sua relevância na tomada da deliberação (artºs 201 nº 1 do CPC de 1961 e 195 do NCPC)[7].

Como já se notou, alguns credores, embora tenham o direito de participar na assembleia, não têm direito de voto. É o que ocorre, precisamente, com os credores titulares de créditos subordinados: esta espécie de créditos não confere direito de voto, excepto quanto à deliberação que incida sobre a aprovação de um plano de insolvência (artº 73 nº 3 do CIRE).

Mas é igualmente o que sucede com os créditos que não sejam modificados pela parte dispositiva do plano.

No contexto do CPEREF discutia-se a razoabilidade do reconhecimento do direito de voto aos credores cujos créditos não sofressem qualquer afectação ou compressão pelas medidas de recuperação sujeitas a deliberação. Vincava-se, a esse propósito, que a atribuição do direito de voto redundava na atribuição de um especial privilégio ao credor que justamente menos carecia da tutela que o direito de voto disponibiliza, permitindo-lhe obstar à recuperação do devedor mesmo quando o seu crédito em nada era afectado por ela.

Sensível ao argumento, o CIRE é agora terminante na exclusão do direito de voto aos credores cujos créditos não sejam modificados pelo plano (artº 212 nº 2, a)). E dada a sua ratio, a exclusão do direito de voto deve ocorrer não apenas nos casos de total indemnidade do crédito, mas igualmente nas hipóteses em que a sua afectação pela parte dispositiva do plano é irrelevante ou desprezável. Doutro modo, reconhecer-se-ia ao credor o direito de voto, mesmo nos casos de afectação mínima, irrelevante, do seu crédito, ordenada justamente para lhe garantir o direito de votar o plano.

Relativamente aos créditos que atribuem o direito a voto, a regra no tocante à determinação do número de votos obtêm-se pela conversão dos euros em votos: um voto por cada euro ou fracção (artº 73 nº 1 do CIRE).

                A proposta de plano de insolvência considera-se aprovada se na assembleia, convocada com essa finalidade, estiverem presentes credores cujos créditos constituam, ao menos, um terço do total dos créditos com direito de voto, e obtiver mais de dois terços dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções (artº 212 nº 1 do CIRE).

                Este regime inculca que o plano de insolvência é um verdadeiro negócio jurídico processual e mesmo uma transacção[8] e, portanto, um verdadeiro contrato. A única especialidade, deveras notável, deste negócio processual conformador da decisão da causa consiste em não exigir, para que se tenha por validamente concluído, o consentimento de todos os intervenientes, sendo suficiente, o consentimento de um simples maioria deles: não é, realmente, necessário para que o plano seja aprovado, a unanimidade de votos dos credores, incluindo, por exemplo, os afectados pela supressão ou alteração do valor dos seus créditos, ou das suas garantias, no caso dos credores privilegiados[9] – basta, por um lado, que obtenha o voto favorável de mais de dois terços de todos os votos emitidos, trate-se de credores comuns, garantidos ou privilegiados e, por outro, que mais de metade dos votos correspondam a créditos não subordinados.

                Todavia, para que produza os efeitos jurídicos para que se mostra ordenado, o plano deve ser objecto de homologação judicial: embora a sentença homologatória limite o seu controlo à legalidade do plano - e não, note-se, ao seu mérito - aquele acto decisório do tribunal constitui, porém, uma verdadeira condição de eficácia do plano[10] (artº 217 nº 1 do CIRE).

                O juiz da insolvência está, portanto, vinculado ao dever de controlar a legalidade do plano de insolvência, devendo recusar, ex-offício, a sua homologação, designadamente, caso o seu exame o leve a concluir que se verificou uma violação, não negligenciável, de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo (artº 215 do CIRE). Note-se que, quer se trate de normas de procedimento quer de normas de conteúdo, em causa estão sempre normas processuais, i.e., normas que definem uma consequência processual, ou, mais concretamente, aquelas cuja previsão desencadeia um efeito processual.

                À vista do plano, com a finalidade última de o homologar ou de recusar a sua homologação, o juiz deve, portanto, proceder a um duplo exame: exame do acto sob o ponto de vista do procedimento; exame sob o ponto de vista do seu conteúdo. No primeiro caso, o exame terá por objecto as normas de tramitação, i.e., de normas que regulam a sequência de actos que constituem o processo relativo à apresentação e aprovação do plano; no segundo, esse objecto é constituído pela normas de conteúdo, i.e., pelas normas processuais que permitem determinar o conteúdo desse mesmo plano. No exame do ponto de vista do procedimento, o magistrado procurará averiguar se o plano acatou as normais processuais integrantes do iter, marcado na lei, conducente à sua aprovação; no exame do conteúdo, o juiz indagará se o plano observou as normas que conformam a respectiva substância, designadamente, as que definem um conteúdo vinculado desse mesmo plano.

                Numa palavra: o juiz deve examinar se se verifica, quer no plano do procedimento relativo à aprovação do plano de insolvência, quer no plano atinente ao seu conteúdo, uma qualquer nulidade processual, i.e. se se praticou um acto que não é permitido ou foi omitido um acto imposto ou uma formalidade essencial (artºs 201 do CPC de 1961 e 195 do NCPC, ex-vi artº 17 do CIRE).

Todavia, para recusar, oficiosamente, a homologação do plano não é suficiente a constatação de que houve violação tanto de normas de tramitação como de normas relativas ao conteúdo do plano. A ofensa de normas de qualquer destas espécies só autoriza a recusa da homologação se for não negligenciável, exigência que vincula, evidentemente, à distinção entre infracções relevantes e infracções irrelevantes e que traz, naturalmente, implicada a concessão ao juiz de um largo poder de apreciação. Essa apreciação deve nortear-se pelos princípios orientadores, em geral, da nulidade processual, entre os quais se conta o da essencialidade, de harmonia com o qual a nulidade não se verifica se a prática ou a omissão do acto ou da formalidade não influir no exame e na decisão da causa (artºs 201 nº 1, in fine, do CPC de 1961 e 195, in fine, do NCPC, ex-vi artº 17 do CIRE).

Numa palavra: só releva a violação que seja susceptível de influir no exame e na decisão da causa[11], que comprometa, irremediavelmente, o fim que a lei se propunha atingir; quando a ofensa da lei não tenha este efeito patológico, a violação é negligenciável ou desprezível, e o juiz fica autorizado a declarar irrelevante a nulidade correspondente. Neste contexto, a violação do princípio da igualdade dos credores deve ter-se, em regra, por não negligenciável, com a consequente recusa de homologação do plano[12].

                Como se notou, o plano de insolvência, é susceptível de impor aos credores uma compressão generalizada e grave das suas faculdades típicas: pode afectar a esfera jurídica dos interessados e interferir com os direitos de terceiros independentemente do seu consentimento – desde que a lei o autorize expressamente (artº 192 nº 2 do CIRE). Pode, por isso, por exemplo, sujeitar um credor a um tratamento mais desfavorável sem necessidade de consentimento expresso – dado que é suficiente o consentimento tácito (artº 194 nº 2 do CIRE).

Pode mesmo afectar créditos públicos – créditos do Estado, das Instituições de Segurança Social e de outras públicas, sujeitos a regimes especiais (artº 196 nº 2, a silentio). O regime compreende-se: o plano é uma convenção, um negócio jurídico processual – mas um negócio jurídico outro, específico do Direito de Insolvência, a qual a lei atribui uma força jurídica especial de afectação de direitos.

Consabidamente, o CIRE suprimiu a dicotomia recuperação/falência em que assentava o direito anterior e construiu o processo de insolvência como um processo de liquidação: o único instrumento a que pode assinalar-se uma finalidade de recuperação da empresa insolvente é o representado pelo plano de insolvência (artºs 1 nº 1 e 195 nº 2 b). Maneira que a recuperação foi reduzida a simples condição de finalidade possível do processo de insolvência: nitidamente – numa visão notoriamente liberal – privilegiou-se os interesses de ordem económicos dos credores, com prevalência de mecanismos próprios de regulação de mercado – subalternizando interesses públicos tão eminentes como os da expansão da economia e a estabilidade de emprego.

                Todavia, uma das obrigações a que o Estado Português se vinculou no quadro do programa de auxílio ou assistência financeira que concluiu com Banco Central Europeu (BCE), O Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Comissão Europeia (CE) foi a de alterar o Código de Insolvência, a fim de facilitar o resgate efectivo de empresas viáveis e apoiar a reabilitação de indivíduos financeiramente responsáveis.

É neste contexto que é instituído - através da Lei nº 16/2012, de 20 de Abril, que modificou, pela sexta vez o CIRE- o processo especial de revitalização (PER).

De forma deliberadamente simplificadora pode, sem erro, dizer-se que o PER é um processo pré-insolvencial que tem por vantagem mais proeminente a possibilidade de o devedor – qualquer devedor e não apenas o devedor que seja uma empresa – obter um acordo de recuperação, sem que seja declarado insolvente.

                O PER é facultado ao devedor que se encontre em situação económica difícil – definida como a situação em que o devedor enfrenta dificuldade séria para cumprir as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito – ou de insolvência eminente – conceito que a lei não define, mas que pode ser entendido como a probabilidade séria da impossibilidade de cumprimento, pelo devedor, num futuro próximo, das suas obrigações vincendas[13] (artºs 1 nº 1, 17-A nº 1 e 17-B do CIRE). A particularidade relevante do PER é a probabilidade da homologação do plano de recuperação, desde que aprovado por uma maioria qualificada o tornar vinculativo para todos os credores, mesmo aqueles que não hajam participado nas negociações (artº 212 nº 1, ex-vi artº 17-F nº 6 do CIRE). Ao plano de recuperação são aplicáveis, por extensão de regime, com as necessárias adaptações, no tocante tanto às maiorias exigíveis para a sua aprovação como aos fundamentos da recusa da sua homologação, as regras dispostas na lei para o plano de insolvência (artºs 212 nº 1, 215 e 216, ex-vi artº 17-F, nºs 3 e 5, do CIRE).

                Problema de solução duvidosa é o de saber se aos credores cujos créditos não sejam modificados pelo segmento dispositivo do plano de recuperação deve ou não reconhecer-se o direito de voto. A dúvida resulta do facto de a norma reguladora das maiorias e do quórum deliberativo exigíveis para a aprovação do plano de recuperação se limitar a remeter para o nº 1 do artº 212 do CIRE, omitindo qualquer referência ao nº 2 do mesmo preceito, na qual se contém a apontada exclusão do direito de voto.

                Em face disso, alguma doutrina conclui que o quórum deliberativo é calculado sobre a totalidade dos créditos constantes da lista definitiva - ou se esta ainda não existir, dos créditos não impugnados, acrescidos daqueles que, apesar de o terem sido, tenha sido atribuído direito de voto – não havendo, por isso, lugar à aplicação do nº 2 do artº 212[14]. Outra, porém, sustenta que as limitações do direito de voto são de aplicar ao PER, dado que, não obstante a remissão operada ser apenas para o nº do artº 212, o que são considerados créditos com direito a voto, está explicitado nos nºs 2 a 4 do citado preceito[15].

                Sem prejuízo da unção devida a que advogue posição diversa, a razão está do lado do último dos entendimentos expostos.

                O quórum deliberativo exigível para a aprovação do plano de recuperação é calculado com base nos créditos relacionados contidos na lista definitiva de créditos, sem prejuízo de o juiz computar os créditos impugnados, se considerar que há probabilidade séria do seu reconhecimento (artº 17-F nº 3 do CIRE). Todavia, do facto de o quórum deliberativo ter por base os créditos relacionados pelo administrador provisório, não implica, como corolário que não possa ser recusado, que todos os credores constantes da lista de créditos tenham direito de voto.

                A lei é terminante em mandar aplicar, à decisão de homologação do plano de recuperação ou de recusa da homologação, com algumas ressalvas, as regras dispostas para aprovação do plano de insolvência no título IX do CIRE (artº 17-F nº 3, in fine, deste mesmo Código). Por força dessa extensão de regime, exige-se, para a aprovação do plano de recuperação, a participação de credores que representem pelo menos um terço do total dos créditos com direito de voto, e mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos, e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções (artº 212 nº 1, ex-vi artº 17-F nº 3, in fine, do CIRE).

                Esta previsão supõe, logicamente, que se saiba que créditos é que dispõem de direito de voto. E essa determinação é dada pelo nº 2 do artº 212 do CIRE, que assim delimita, negativamente, aquela previsão.

                De resto, a ratio que levou o legislador a impedir, no tocante ao plano de insolvência, o voto do credor cujo crédito não é afectado por esse mesmo plano vale, por inteiro, para o plano de recuperação: desde que plano deixa incólume ou indemne o seu crédito, a esse credor não deve ser concedida a tutela do direito de voto.

                A conclusão a tirar é, portanto, a de que os credores cujos créditos não sejam afectados pela parte dispositiva do plano de recuperação não dispõem de direito de voto[16].

Este viaticum habilita, com suficiência, à resolução da questão objecto da impugnação.

3.4. Concretização.

Uma leitura do plano de recuperação aprovado mostra uma afectação grave dos créditos comuns reconhecidos, quer em termos do seu valor quer do prazo da sua satisfação: o plano amputa em 70% aquele valor e fragmenta a sua satisfação em 96 prestações mensais. Por evidente contraste, um dos créditos – o único garantido e de maior valor, titulado pelo Banco D… - permanece inteiramente incólume, não sofrendo pelo plano qualquer compressão, quer quanto ao seu valor, quer quanto ao prazo da sua satisfação. A desigualdade de tratamento deste credor e dos demais é conspícua, patente. Nitidamente, o plano não se orienta por um princípio de distribuição de perdas entre todos credores – antes faz recair essas perdas, em exclusivo, sobre uma classe específica de credores – os credores comuns.

Já se adquiriu, porém, à certeza que o princípio da igualdade dos credores não vincula a que o plano trate tudo e todos da mesma forma, antes se limita a proibir diferenciações arbitrárias. Quer dizer: aquele princípio não impede que o plano possa – e deva – estabelecer diferenças de tratamento dos credores, razoáveis, racionais e objectivamente fundadas. O que princípio proíbe é o arbítrio do plano, i.e., desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer justificação razoável, objectiva e racional.

Ora, o crédito do Banco D… encontra-se assegurado por hipoteca.

A hipoteca – que confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certa coisa, imóvel ou equiparada, do devedor ou de terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo – traduz a mais sólida garantia das obrigações (artº 686 do Código Civil)[17].

Nestas condições, tendo em conta que o bem mais revelante do património dos devedores é constituído pela casa de habitação onerado por aquela garantia real, aquele credor encontrar-se-á sempre numa situação privilegiada no tocante a todos os demais credores, dado que estes são simples credores comuns e os devedores não são titulares de outros de valor relevante. Por esse motivo, aquele credor sempre será pago com preferência sobre todos os outros. É, portanto, possível identificar um fundamento racional e objectivo justificador da distinção entre os credores, patente no plano de recuperação homologado[18].

Neste sentido, o plano de recuperação não viola o princípio da igualdade dos credores, entendido como limite objectivo da discricionariedade ou da liberdade de conformação desse mesmo plano, dado que é possível encontrar, para a diferenciação acusada, um fundamento razoável, objectivo e racional.

Este fundamento da impugnação não deve, por isso, ter-se por procedente.

Todavia, como oportunamente se fez notar, a lei não confere direito de voto do plano de insolvência - e por extensão de regime, do plano de recuperação – ao credor cujo crédito não seja afectado pela parte dispositiva desse mesmo plano.

Ora, no caso, o crédito do Banco D… é intocado pelo plano de recuperação – mas aquele credor votou-o e o seu voto foi decisivo para a aprovação dele, dado que, sem esse sufrágio, o plano não poderia considerar-se aprovado.

Por este lado, o recorrente – e o aderente ao recurso – têm, efectivamente, razão. Realmente, uma de duas: ou o credor hipotecário aceita partilhar, em menor ou maior grau, com os demais credores, as perdas e, nesse caso, assiste-lhe o direito de votar o plano; ou recusa a compressão ou a amputação do seu crédito pelo plano, e, em tal hipótese, não lhe assiste o direito de o votar.

Importa, por isso, dar ao recorrente e ao aderente a satisfação a que têm direito, através da revogação da decisão impugnada e da substituição por outra que recuse a homologação do plano de recuperação.

Síntese recapitulativa:

a) No processo especial de revitalização, o credor cujo crédito seja assegurado por hipoteca encontra-se numa situação objectivamente diferente relativamente aos credores comuns, pelo que um tratamento diferenciado, pelo plano de recuperação, do crédito garantido, não viola o princípio da igualdade dos credores;

b) Os credores cujos créditos, constantes designadamente da lista definitiva, não sejam modificados pela parte dispositiva do plano de recuperação não têm direito de voto;

c) Se para a deliberação de aprovação do plano de recuperação foi decisivo o voto do credor relativamente ao qual se verifica o impedimento de voto, a violação procedimental correspondente, por não ser negligenciável, constitui fundamento de recusa de homologação daquele plano.

As custas do recurso serão satisfeitas pela parte que nele sucumbe: os devedores apelados (artº 527 nºs 1 e 2 do CPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso, revoga-se a decisão impugnada e consequentemente, recusa-se a homologação do plano de recuperação dos devedores, J… e M…, aprovado.

                Custas pelos devedores apelados.

                                                                                                                             14.04.01

                                                                                                                             Henrique Antunes (Relator)

                                                                                                                             José Avelino Gonçalves

                                                                                                                             Regina Rosa

                                                                                                                            


[1] Catarina Serra, A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, págs. 150 e ss.
[2] Miguel Teixeira de Sousa, A Reforma da Acção Executiva, Lisboa, Lex, 2004, págs. 40 e 41.
[3] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Iuris, Lisboa, 2013, pág. 753, e Acs. da RL de 12.07.07, CJ, XXXII, III, pág. 110, e de 23.01.14 e da RG de 04.03.13.
[4] António Menezes Cordeiro, “Introdução ao Direito da Insolvência”, O Direito, 137/III, (2005), pág. 503, e Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 99.
[5] Eduardo Santos Júnior, “O plano de insolvência: Algumas Notas”, in Estudos em Memória do Professor Doutor José Dias Marques, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 587.
[6] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, volume I, Quid Iuris, Lisboa, 2006, pág. 72.
[7] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Colectânea de Estudos sobre a Insolvência, Órgãos da insolvência, Quid Iuris, Lisboa, 2009, pág. 177. A igual resultado se chega através da chamada prova de resistência. Se alguém for ilegalmente admitido a emitir voto, e o emitiu, a deliberação deve, em princípio, ser anulada: há um vício que não consiste na falta de maioria – mas sim na emissão ilegal de um voto. Mas para se determinar a exacta repercussão do vício do voto sobre a validade da deliberação, há sempre que recorrer à chamada prova de resistência. Quando o voto é nulo, por violação dalguma disposição legal, o problema que se põe é o da influência que o voto nulo tenha tido para a maioria que aprovou a proposta e, por isso, ditou a deliberação, pois bem pode suceder que, descontados os votos nulos, ainda assim se mantenha a maioria necessária para a tomada da deliberação. A resposta exacta a este problema é esta: o vício do voto é relevante – mas só põe em causa a deliberação se o voto for determinante para essa mesma deliberação, segundo a regra da maioria aplicável. Esta é a comummente chamada prova de resistência, que no nosso ordenamento surge disposta na lei civil geral para os votos em situação de conflito e, na lei societária, para os denominados votos abusivos (artº 176 nº 2 do Código Civil e 58 nº 1 a), in fine, do CSC). Um tal regime é, patentemente, simples emanação do princípio geral de aproveitamento do acto jurídico, traduzido pela regra utile per inutile non vitiatur. É de elementar bom senso – sublinha-se – não invalidar uma deliberação por serem nulos os votos inúteis para a deliberação a tomar.
[8] Gisela Teixeira Jorge Fonseca, “a natureza jurídica do plano de insolvência”, in Direito da Insolvência, Estudos, Coordenação Rui Pinto, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, pág. 122.
[9] Ac. da RL de 06.07.09, www.dgsi.pt.
[10] Eduardo Santos Júnior, “O plano de insolvência: Algumas notas”, cit. pág. 590.
[11] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Vol. II, Lisboa, Quid Iuris, 2006 pág. 119.
[12] Ac. da RP de 17.11.13, www.dgsi.pt.
[13] Luís M. Martins, Recuperação de Pessoas Singulares, Volume I, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2012, pág. 20.
[14] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Colectânea de Estudos sobre a Insolvência, Órgãos da insolvência, Quid Iuris, Lisboa, 2009, pág. 110.
[15] Luís M. Martins, Recuperação de Pessoas Singulares, cit., págs. 62 e 63.
[16] Ac. da RL de 23.01.14, www.dgsi.pt.
[17] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pág. 515.
[18] Ac. da RL de 23.01.14, www.dgsi.pt.