Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | JORGE JACOB | ||
Descritores: | RECURSO DESPACHO DE PRONÚNCIA FACTOS ACUSAÇÃO | ||
Data do Acordão: | 02/09/2011 | ||
Votação: | DECISÃO SUMÁRIA | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE ALMEIDA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 310º CPP | ||
Sumário: | 1. O legislador na revisão operada pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto adoptou no que respeita à admissibilidade do recurso do despacho de pronúncia , uma solução que presume o bem fundado da decisão instrutória de submeter o arguido a julgamento havendo identidade dos factos em que assentam a acusação e a pronúncia, procurando assim potenciar a celeridade processual e obstar a uma reconhecida tendência para o abuso dos recursos sem que daí resulte prejuízo para as garantias de defesa do arguido, visto não estar em causa uma decisão sobre a sua culpabilidade ou inocência, mas tão-só o prosseguimento dos autos para julgamento, subsistindo a presunção de inocência de que o arguido beneficia até ao trânsito em julgado de eventual sentença condenatória. 2. A referência aos factos constantes da acusação do Ministério Público constante do art. 310º, nº 1, do CPP, tem em vista os factos na acepção de conduta naturalística, ou seja, enquanto modificação do mundo exterior, independentemente do modo de imputação subjectiva desses mesmos factos ao seu autor | ||
Decisão Texto Integral: | Recursos próprios, tempestivamente interpostos por sujeito processual dotado de legitimidade e recebidos com o efeito adequado.
Ocorre, contudo, causa de rejeição relativamente ao recurso do despacho de pronúncia, enquanto que o recurso do despacho que conheceu da arguição de nulidade se oferece como manifestamente improcedente, pelo que, nos termos do disposto no art. 417º, nº 6, als. b) e d), do CPP, se profere
DECISÃO SUMÁRIA
Nos presentes autos, findo o inquérito, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido JM... imputando-lhe a autoria de um crime de atentado à segurança de transporte rodoviário, p. p. pelo art. 290º, nº 1, als. b) e d) e arts. 14º, nº 3 e 26º, todos do Código Penal. Inconformado com essa acusação, o arguido requereu a abertura de instrução, pugnando pela prolação de despacho de não pronúncia. Teve lugar a instrução e finda esta veio a ser proferido decisão instrutória de pronúncia pelo crime de atentado à segurança de transporte rodoviário p. p. pelos art.s 290º, nº 1, al. d) e 4º, 15º e 10º do Código Penal. O arguido suscitou a nulidade da decisão instrutória com fundamento em alteração substancial dos factos; e antes ainda da apreciação da arguição de nulidade, interpôs recurso da decisão instrutória, de cuja motivação extraiu as seguintes conclusões: A) A matéria de facto provada, ou, no caso, os indícios recolhidos, são manifestamente insuficientes para a decisão adoptada, padecendo a decisão instrutória de erro notório na apreciação da prova, e de erro na aplicação do direito. B) Como a própria decisão instrutória esclarece, "A primeira constatação a efectuar é a de que inexistem testemunhas presenciais dos factos relacionados com a saída dos animais do espaço correspondente à Quinta do PJ... para o exterior, isto é, para a via de circulação" (fls.11 da decisão instrutória). C) Dos testemunhos dos senhores militares da GNR (cf fls. 7 e 8 dos presentes autos), e ao contrário daquilo que a decisão instrutória sustenta: i. nada permite extrair que o acidente ocorreu "praticamente no momento da sua chegada ao local; ii. pode-se concluir que o acidente aparentemente ocorreu quando os senhores militares da GNR se encontravam a retirar as vacas para a exploração onde alegadamente o Arguido se encontrava; iii. pode-se concluir que os mesmos não assistiram à saída dos animais da propriedade da sociedade C. N…, Lda .. D) Nada nos autos - nem sequer a circunstância de ser sócio (com uma participação muito reduzida) - permite a conclusão sustentada na decisão instrutória de que o Arguido é responsável pela exploração agro-pecuária da sociedade C. N…, Lda . E) Além do mais, em momento algum, nem em sede de inquérito nem em sede de instrução, o Arguido foi confrontado com a relevância desta alegação para a imputação do crime, pelo que não pôde apresentar defesa sobre a mesma o que contraria os seus mais basilares direitos de defesa constitucionalmente consagradas (vide artigo 32.°, da Constituição da República Portuguesa) e gera a inconstitucionalidade da decisão instrutória. F) A prova produzida em sede de instrução comprova que é claro e evidente que as vacas saíram pelo local onde a vedação se encontrava caída e não pela cancela. G) Ainda que assim não se entendesse - o que apenas por cautela de patrocínio se admite - sempre dos meios de prova produzidos e apreciados em sede de instrução resulta que o Arguido não deixou a cancela da quinta aberta e que (no limite, por aplicação do principio do in dubio pro reo) a vedação pode ter sido derrubada e os animais saído por aquele local -- factos dos quais se tem, em cumprimento do princípio constitucionalmente consagrado do in dubio pro reo, de excluir a punição do Arguido pelo crime do qual o mesmo vem pronunciado. H) O acidente ao ter ocorrido quando aparentemente os animais se encontravam a ser direccionados por terceiros para a propriedade da sociedade C. N…, Lda. (o que parece resultar dos depoimentos dos senhores militares da GNR constantes de fls. 7 e 8 dos presentes autos), mesmo admitindo, apenas por cautela de patrocínio, que os restantes factos ocorreram como a decisão instrutória pressupõe, determina a inexistência do nexo de causalidade entre a actuação do Arguido e a conduta final, pelo que o Arguido não poderá ser punido pelo crime de que foi pronunciado. I) Acresce que a decisão instrutória não apresenta o fundamento legal ou jurisprudencial do "dever de fiscalização das fontes de perigo no âmbito do domínio próprio" que imputa ao Arguido, pelo que o Tribunal a quo interpretou erradamente o artigo 10.°, do CP (o que se deixa alegado para efeitos do artigo 412.°, n.º 2, als. a) e b), do CPP). De facto, o mencionado preceito pressupõe a existência de uma previsão legal ou de Jurisprudência da qual se retire o dever que recaía sobre o Arguido. Inexistindo a menção a tal previsão, a decisão instrutória é ilegal, por errada interpretação do artigo 10.° do Código Penal, devendo, ao invés, excluir-se a aplicação do mencionado preceito por o dever que recai sobre o Arguido não se encontrar condensado na lei ou na jurisprudência. J) Nestes termos, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra de não pronúncia do Arguido.
O tribunal a quo conheceu entretanto da arguida nulidade, indeferindo-a (cfr. despacho exarado a fls. 315/317). O M.P. respondeu ao recurso, pronunciando-se pela sua inadmissibilidade. O recurso do despacho de pronúncia veio a ser admitido com fundamento no facto de a pronúncia ter incidido sobre factos não exactamente correspondentes aos que constavam da acusação. Já depois de admitido o recurso que incidiu sobre o despacho de pronúncia, veio o arguido interpor recurso também do despacho de indeferimento de arguição da nulidade da decisão instrutória, retirando da motivação deste as conclusões seguintes: A) O Despacho de Pronúncia procede a uma alteração substancial dos factos descritos na Acusação pelo que, o despacho do Tribunal a quo que indefere o requerimento de nulidade da Decisão Instrutória padece de errada aplicação do art. 309.° do CPP, nos termos e com os fundamentos que veremos infra. B) Enquanto na Acusação, o Arguido era acusado de ter deixado a cancela aberta e com isso ter provocado um acidente; na Decisão Instrutória, é pronunciado por não ter fechado a cancela o que, ao ser uma imputação da prática de um crime por omissão, pressupõe a existência de um dever jurídico de ter fechado a cancela. Dessa forma, ao, no Despacho de Pronúncia, se proceder a uma alteração da imputação de um crime por acção para um crime por omissão e ao se dar como certo a existência de um dever jurídico que obriga o Arguido que não é objecto da Acusação, estamos perante uma óbvia alteração substancial dos factos que inquina de nulidade a Decisão Instrutória. C) Na Acusação, o Arguido era acusado de ter agido dolosamente; na Decisão Instrutória, o Arguido foi pronunciado por ter actuado negligentemente. Conforme é jurisprudência dos tribunais superiores, "Não constando da acusação do MP factos atinentes à culpa e, não existindo indícios de dolo, não podem os arguidos ser pronunciados por crime, a título de negligência, já que isso implicaria alteração substancial dos factos (imputação de crime diverso) - o que acarretaria a nulidade prevista no art. 309 CPP" (Tribunal da Relação de Lisboa já decidiu no seu acórdão de 23 de Junho de 1994). Ao entender em sentido contrário, o despacho recorrido padece de errada aplicação do artigo 309.° do CPP. D) Ainda que se considere que os factos individualmente expostos não consubstanciam uma alteração substancial dos factos - o que apenas se admite por mera cautela de patrocínio -, parece evidente que a junção dos dois factos implica a assunção de um crime manifestamente diferente: ser acusado de dolosamente, por acção, ter deixado a cancela aberta tendo em vista a ocorrência do acidente e ser pronunciado por, negligentemente, não ter cumprido um dever jurídico que sobre o Arguido recaía de manter a cancela fechada não é, objectivamente a mesma coisa. E) Por tudo quanto ficou dito, deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que declare a nulidade da Decisão Instrutória. Ao entender em sentido contrário, o despacho recorrido padece de errada aplicação do artigo 309.°, do CPP.
Remetidos os autos a esta Relação, na vista a que alude o art. 416º, nº 1, do CPP o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer sustentando não ser admissível o recurso do despacho de pronúncia, que assim deveria ser rejeitado, ficando consequentemente prejudicado o 2º recurso interposto; subsidiariamente, pronuncia-se pela negação de provimento a ambos os recursos. O recorrente respondeu, mantendo as posições já anteriormente assumidas.
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso. No caso vertente e vistas as conclusões dos recursos interpostos, conclui-se pela inadmissibilidade do recurso atinente ao despacho de pronúncia e pela manifesta improcedência do recurso que conheceu da nulidade arguida, impondo-se a rejeição dos recursos por força do disposto no art. 420º, respectivamente, als. a) e b), do CPP.
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A primeira questão que se coloca, questão prévia relativamente às que foram suscitadas nos recursos interpostos, prende-se com a própria admissibilidade do recurso do despacho de pronúncia. Na verdade, dispõe o art. 310º, nº 1, do Código de Processo Penal (diploma a que se reportam todas as disposições legais seguidamente citadas sem menção de origem) que “a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do art. 283º ou do nº 4 do art. 285º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento”. O legislador adoptou neste particular, na revisão operada pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, uma solução que presume o bem fundado da decisão instrutória de submeter o arguido a julgamento havendo identidade dos factos em que assentam a acusação e a pronúncia, procurando assim potenciar a celeridade processual e obstar a uma reconhecida tendência para o abuso dos recursos sem que daí resulte prejuízo para as garantias de defesa do arguido, visto não estar em causa uma decisão sobre a sua culpabilidade ou inocência, mas tão-só o prosseguimento dos autos para julgamento, subsistindo a presunção de inocência de que o arguido beneficia até ao trânsito em julgado de eventual sentença condenatória. Importa, pois, averiguar em que consiste essa identidade de factos e se ela se verifica no caso vertente. A acusação deduzida pelo M.P. tem o seguinte teor: 1 - No dia 12 de Dezembro de 2007, pelas 18 horas ocorreu um acidente na E.N 332 ao Km 42.950, junto da Vacaria C N…, Lda., sita …, área do Conselho de Figueira de Castelo Rodrigo. 2 - No dia, hora c local descrito, circulava o veículo de matrícula…, conduzido por JÁ…, no sentido Almeida/Reigada. 3 - O acidente traduziu-se no embate entre o veículo acima descrito com uma vaca que se encontrava a atravessar a faixa de rodagem em direcção à vacaria, juntamente com outras duas vacas. 4 - No mesmo dia, e momentos antes, foi chamada ao local a GNR de Almeida, por andarem a circular na estradas vacas pertencentes à Sociedade C. N…, Lda, e que estavam a causar perigo para os utentes da via. 5 - Ao chegaram ao local os Guardas da GNR puderam constatar que se encontravam 5 vacas na berma da E.N. 332, em frente à referida propriedade da vacaria da sociedade C. N…, Lda. 6 - Dentro da propriedade encontrava-se o ora arguido a circular num tractor agrícola e estava a cancela da entrada principal totalmente aberta, o que permitia que as vacas se deslocassem da propriedade para a estrada E.N. 332. 7 - Foi devido à cancela da entrada principal estar totalmente aberta que os animais saíram da propriedade e foram para a estrada, o que foi causa directa e necessária para o acidente de viação que ocorreu. 8 - Enquanto a GNR permaneceu no local até à faixa de rodagem estar em condições de ser transitada, devido à lavagem de óleo e para que fosse rebocado o veículo, atravessaram a estrada em direcção â propriedade da sociedade C N…, Lda., mais concretamente em direcção à vacaria, mais de 50 vacas que o arguido juntara com o tractor agrícola e que estavam espalhadas pelos terrenos vizinhos. 9 - O arguido é o sócio da sociedade C N…, Lda. e é o responsável pelos animais e pela exploração agro-pecuária, apesar de não ser o gerente da sociedade. '10 -, No entanto é o arguido o único dos sócios que trata, efectivamente, dos animais c da exploração, sendo que os outros sócios e gerentes da sociedade deslocam-se muito raramente a exploração sita na Reigada. 11 - O arguido, com a sua conduta em 6 e 7 desta acusação, isto é, de deixar a cancela da entrada principal da exploração aberta, deu causa a que os animais saíssem da dita exploração c invadissem a EN. 332, desse modo obstaculizando o normal funcionamento da referida Estrada e o regular fluir de trânsito rodoviário nessa via. 12 - Praticou ainda o arguido, ao deixar a cancela aberta, permitindo que os animais invadissem a estrada, actos dos quais resultou um acidente de viação. 13 - O arguido agiu, livre, consciente e voluntariamente e bem sabia que ao deixar a cancela aberta os animais deslocar-se-iam para a estrada c mesmo assim quis deixar a canela aberta, causando deste modo, como efectivamente causou, um acidente de viação descrito em 3 desta acusação. 14 - o arguido agiu, livre, consciente e voluntariamente e bem sabia que ao deixar a cancela aberta os animais deslocar-se-iam para a estrada e mesmo assim o arguido não se inibiu de deixar a cancela aberta, ciente de que, ao proceder como se descreve obstaculizava ao normal funcionamento da E.N. 332, no local referido em 3 desta acusação e o regular fluir do trânsito rodoviário nessa via, representando o arguido como consequência possível da sua descrita conduta, que pudesse ocorrer como ocorreu o acidente de viação descrito em 3, conformando-se o arguido com a sua verificação. 15 - Bem sabia o arguido que a sua conduta era punida e proibida por lei. Pelo exposto, cometeu o arguido JM…, em autoria material e na forma consumada: - um crime de atentado à segurança de transporte rodoviário, previsto e punido pelo artigo 290º, nº 1, al. b) e d) e art. 14º, nº 3 e art. 26º do Código Penal.
Por seu turno, o despacho de pronúncia, na parte respeitante aos factos imputados ao arguido, foi conformado nos seguintes termos:
Constitui-se o arguido como autor material e na forma consumada, de um crime de atentado à segurança de transporte rodoviário, p. e p. pelos artigos 290.º, n.ºs 1, alínea d) e 4, 15.º e 10.º, do Código Penal.
A identidade da matéria de facto não se prende, obviamente, com a identidade dos textos descritivos, mas com a circunstância de os factos imputados ao arguido serem objectivamente os mesmos. E, bem vistas as coisas, não oferece dúvida que os factos descritos numa e noutra daquelas peças processuais relativos à actuação do arguido são objectivamente idênticos, traduzindo uma mesma descrição da conduta apontada como criminosa. Apenas não existe coincidência no que concerne à imputação subjectiva dos factos. Como é sabido, a imputação do facto criminoso ao agente pode fazer-se a título de dolo ou de negligência. Porém, ainda que tanto aquele como esta sejam elementos constitutivos do tipo (subjectivo) de ilícito [1], a respectiva integralidade conceptual não se esgota aí, já que o que essencialmente distingue as duas formas de comportamento – doloso ou negligente – é, ou é também, uma diferença de culpa [2]. O aspecto que neste momento interessa reter é que o tipo de ilícito, seja ele doloso ou negligente, é essencialmente, ainda segundo as palavras de Figueiredo Dias, “a figura sistemática (…) de que a doutrina penal se serve para exprimir um sentido de ilicitude, individualizando uma espécie de delito e cumprindo, deste modo, a função de dar a conhecer ao destinatário que tal espécie de comportamento é proibida pelo ordenamento jurídico” [3]. Constatação facilmente verificável é a de que na maior parte dos casos o tipo negligente é gizado por simples remissão para o tipo doloso que tutela o mesmo bem jurídico, prescindindo a lei de lhe aditar qualquer elemento identificador, antes se bastando com a mera indicação de que a conduta ou o perigo criado são puníveis a título de negligência (assim sucede no caso do crime a que se reportam os presentes autos – cfr. o art. 290º, nºs 3 e 4, do Código Penal). Mas nem sempre assim sucede. Por vezes, a descrição do tipo negligente é feita por recurso a elementos próprios que lhe conferem maior autonomia descritiva relativamente ao tipo doloso, ou é integralmente descrita por recurso a elementos próprios. É exemplo daquela primeira modalidade o caso da negligência nas intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários, prevista no art. 156º, nº 3, do Código Penal [“Se, por negligência grosseira, o agente representar falsamente os pressupostos do consentimento (…)”] e exemplo da segunda a insolvência negligente prevista no art. 228º, nº 1, do Código Penal, norma que descreve exaustiva e autonomamente os elementos do tipo [“1 - O devedor que: Vem tudo isto a propósito da questão da admissibilidade do recurso no caso vertente, estando em causa, recordemo-lo, a averiguação da identidade dos factos descritos na acusação e na pronúncia. O êxito dessa indagação pressupõe como condição essencial a determinação do sentido da norma do art. 310º, nº 1, tarefa que não prescinde da compreensão da realidade complexa e dinâmica em que se traduz a construção do sistema jurídico. O direito, na acepção de regra jurídica, parte duma determinada intenção normativa, vem a positivar-se como disposição legal e tende a consolidar-se com um sentido e alcance que, não sendo imutável – tende a evoluir essencialmente por via jurisprudencial – corresponde fundamentalmente à exigência que presidiu à sua formulação, interpretado de acordo com as exigências impostas pela vivência do concreto momento histórico em que é chamado a operar, ditado pela conformação do sistema jurídico no seu conjunto, assim se operando a interpretação histórico-actualista. A norma que agora cuidamos de interpretar, de tão recente que é, não tem ainda verdadeiro lastro jurisprudencial, devendo o seu sentido e alcance ser fixado essencialmente em função dos interesses que conduziram à sua consagração legislativa, pensados e ponderados no âmbito da harmonia do sistema jurídico. Como claramente resulta do texto da norma, o legislador pretendeu obstar ao recurso nos casos em que tendo havido acusação por determinados factos, a decisão de submeter o arguido a julgamento por esses factos venha a ser confirmada em despacho de pronúncia, após instrução. Na verdade, havendo já um juízo de concordância entre o M.P. e o juiz de instrução quanto à relevância criminal dos factos imputados ao arguido, em termos de se justificar a sua sujeição a julgamento, não faria sentido, do ponto de vista da desejada celeridade processual, admitir ainda um recurso para confirmação dessa opção, tanto mais que subsiste a presunção de inocência, bem como a possibilidade de recurso da decisão que vier a ser proferida após o julgamento. A referência aos factos constantes da acusação do Ministério Público constante do art. 310º, nº 1, do CPP, tem em vista os factos na acepção de conduta naturalística, ou seja, enquanto modificação do mundo exterior, independentemente do modo de imputação subjectiva desses mesmos factos ao seu autor. O que verdadeiramente releva para o funcionamento da norma em apreço é a identidade objectiva, pois que o cerne da questão é a relevância criminal da acção. E assim sendo, desde que não ocorra alteração substancial de factos na transição da acusação para a pronúncia, estes manter-se-ão substancialmente os mesmos e a identidade postergada pelo nº 1 do art. 310º não será posta em causa. Sustenta o arguido a verificação de duas alterações de facto com relevância substancial, questão que se prende já com o recurso do despacho de arguição de nulidade: - Uma primeira alteração substancial decorrente da circunstância de na acusação lhe ser imputado o facto de ter deixado a cancela aberta (dolosamente) e assim ter provocado um acidente, enquanto na pronúncia lhe é imputado o não ter fechado a cancela, pressupondo a imputação da prática de um crime por omissão assente num dever jurídico de fechar a cancela; - E uma outra, decorrente de ter sido acusado por acção dolosa e ulteriormente pronunciado por actuação negligente.
O primeiro dos fundamentos invocados traduz aquilo a que em retórica se convencionou chamar um argumento “quase lógico”, com estrutura similar ao raciocínio formal [4]. Claro que a palavra escrita, por se afirmar essencialmente como um jogo de «significâncias»[5] permite múltiplos significados. A sua decifração exigirá a ponderação dos interesses que a movem em confronto com as interpretações que se lhe ajustam, pelo que será no contexto das significâncias vertidas no texto, apreciado este no seu quadro mais amplo, que haverá que encontrar o sentido que aquela comporta. Daí que a verdadeira dimensão de um texto nem sempre se ofereça com linear clareza, afirmação particularmente verdadeira numa área do conhecimento tão vasta como é a do Direito, marcada por uma multiplicidade de «Escolas» e de «perspectivas», quantas vezes insusceptíveis de conciliação. Trata-se, dizíamos, de um argumento “quase lógico”, na medida em que a lógica meramente formal que lhe subjaz não resiste a uma análise mais aprofundada, acabando assim por se afirmar como um simples jogo de palavras que procura atribuir significâncias distintas a uma diversa descrição do mesmo fenómeno. O recorrente procura convencer que “deixar a cancela aberta” e “não fechar a cancela” são coisas diferentes e comportam implicações diversas consoante a imputação seja feita a título de dolo ou de negligência, como se a existir um dever jurídico de obstar à criação do perigo a primeira das apontadas formulações a excluísse, numa duplicidade que relembra a interrogação de Demóstenes: «será que eles pretendem por acaso que uma convenção, no caso de ser contrária à nossa cidade, é válida, enquanto, se ela lhe serve de garantia, recusam reconhecê-la? É isso que vos parece justo?» [6]. A negação desse ponto de vista passa por constatação que não pressupõe aprofundado raciocínio jurídico, antes se bastando com a afirmação indiscutivelmente redundante e tautológica, mas por isso mesmo, exacta, de que «quem deixou a cancela aberta, não a fechou». E nem se diga que a diferença reside na imputação a título de dolo ou a título de negligência, já que tanto o tipo doloso previsto no nº 1, como o tipo negligente previsto no nº 4, do art. 290º do CP, traduzem crimes de perigo concreto, em que a realização do tipo se vem a traduzir num mero pôr em perigo um bem juridicamente tutelado [o traço distintivo entre crimes de perigo e crimes de dano consiste precisamente na circunstância de nos primeiros a incriminação traduzir uma antecipação da defesa desse bem jurídico, visto que o preenchimento do tipo se basta com a mera criação do risco de lesão, enquanto que nos crimes de dano se exige uma efectiva lesão do bem jurídico. Por seu turno, nos crimes de perigo concreto, o perigo constitui elemento do tipo, exigindo a lei a sua verificação efectiva, competindo ao juiz aferi-lo caso a caso, por contraponto aos crimes de perigo abstracto ou presumido, em que o perigo constitui simples razão da proibição, sendo suposto pela lei «iuris et de iure» sem exigência da verificação concreta do perigo de lesão resultante de certos factos (o critério de perigosidade é encontrado por exclusivo recurso à norma legal) [7] ].
Por seu turno, o segundo argumento invocado recupera questão já reiteradamente tratada pela jurisprudência e que se prende com o âmbito da alteração substancial. Traduzirá a alteração da imputação de crime doloso para a imputação do mesmo crime sob a forma negligente uma alteração substancial? A resposta, por força das regras da hermenêutica jurídica, há-de partir necessariamente do conceito vertido no art. 1º, al. f), do CPP, que define como “«alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”. Factos que impliquem a imputação de um crime diverso ou que agravem os limites máximos das sanções aplicáveis (portanto, a implicar a pronúncia ou condenação pelo mesmo tipo legal de base, mas agravado ou qualificado), são, necessariamente, factos com repercussão na configuração do ilícito e/ou na moldura penal. Fora desse âmbito, qualquer alteração será não substancial. Ocorrendo, não uma agravação, mas uma redução dos limites máximos das sanções possíveis, como sucede com a passagem, dentro do mesmo tipo, para o crime negligente, a alteração, em regra, será não substancial. Em regra, dissemos, porque nem sempre assim é. Já referimos, supra, casos em que o tipo negligente tem elementos próprios e acrescentaremos agora que também na transição do crime-padrão para o crime privilegiado, a que corresponde uma moldura penal inferior precisamente por força da menor ilicitude, verificar-se-á em regra uma alteração substancial, por força dos específicos requisitos materiais do tipo – veja-se, a título de exemplo, o crime de homicídio privilegiado, p.p. no art. 133º do Código Penal. Aqui chegados, constatando-se que na transição da acusação para a pronúncia não ocorreu alteração substancial de factos – a modificação não implica a tutela de um bem jurídico distinto do considerado na acusação e dela não resulta um facto naturalístico diferente, assim como não ocorre perda da identidade do facto primitivo –e que em causa está apenas uma diversa atitude interior do agente na sua relação com o facto material (elemento subjectivo), o confronto dos factos constantes da acusação e da pronúncia com a norma do art. 310º, nº 1, não desmente a validade da sua aplicação ao caso concreto, antes a reclamando, por via da consideração de que as normas “(…) têm sempre um alcance limitado - limitado intencionalmente (pelo critério que prescrevem) e objectivamente (pelo objecto que prevêem) - , pois não são mais do que soluções generalizadas de determinados e circunscritos problemas jurídicos” [8], pelo que só através da dogmática jurídica, entendida esta como pensamento jurídico com uma intenção de elaboração jurídico-sistemática do direito positivo e com uma amplitude explicitante, integrante e construtiva é possível encontrar as soluções jurídicas solicitadas a cada momento e em cada intervenção do direito [9]. Perspectiva que, no caso vertente, se satisfaz com a interpretação do citado art. 310º, nº 1, do CPP, pré-ordenada pela defesa do interesse que determinou a previsão legal – já antes o referimos – e que resultaria defraudado com a admissão do recurso. Dito de outro modo: o despacho de pronúncia a que nos reportamos não admite recurso por força daquela disposição legal, pelo que o recurso interposto da decisão instrutória deverá ser rejeitado, nos termos dos arts. 420º, nº 1, al. b) e 414º, nº 2.
Quanto ao recurso do despacho que conheceu da nulidade da pronúncia, ainda que admissível por força das disposições conjugadas dos arts. 310º, nº 3 e 309º, contraria reiterada jurisprudência dos tribunais superiores relativamente à questão nele tratada, devendo ser julgado por decisão sumária por força do disposto no art. 417º, nº 6, al. d).
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Nos termos apontados, rejeita-se o recurso do despacho de pronúncia e julga-se sumariamente o recurso do despacho que conheceu da nulidade arguida, negando-se-lhe provimento. Por ter decaído integralmente nos recursos interpostos, condena-se o recorrente na taxa de justiça, já reduzida a metade, de 3 UC por cada um daqueles dois recursos, bem como no pagamento da quantia de 3 UC relativamente ao recurso rejeitado, por força do art. 420º, nº 3.
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Jorge Miranda Jacob |