Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2273/10.1TBLRA-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
PRESUNÇÃO JURIS ET DE JURE
EFEITOS
Data do Acordão: 02/07/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ARTºS 185º, 186º E 189º, Nº 2 DO CIRE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 185º, 186º E 189º, Nº 2 DO CIRE
Sumário: I – A impossibilidade de o devedor solver os seus compromissos, o que caracteriza o estado de insolvência, pode ser meramente casual, ou fortuita e culposa, lato sensu (artº 185 do CIRE).

II - A insolvência é culposa quando esse estado tiver criado ou agravado em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (artº 186 nº 1 do CIRE).

III - A qualificação da insolvência como culposa reclama, portanto, uma conduta ilícita e culposa do devedor ou dos seus administradores.

IV - A ilicitude do comportamento do devedor ou dos seus administradores reparte-se por elementos objectivos e subjectivos.

V - A culpa do devedor ou dos seus administradores decorre de um juízo de censurabilidade, em cuja formulação devem ser consideradas as condições que justificam que lhes seja dirigida essa censura.

VI - A censurabilidade da conduta é uma apreciação de desvalor que resulta do reconhecimento de que o devedor, ou os seus administradores, nas circunstâncias concretas em que actuaram, podiam ter conformado a sua conduta de molde a evitar a queda do primeiro na situação de insolvência ou agravamento do estado correspondente.

VII - A censurabilidade do comportamento do devedor ou dos seus administradores é um juízo feito pelo tribunal sobre a atitude ou motivação de um e de outros, segundo o que pode ser deduzido dos factos provados.

VIII - A lei considera sempre culposa a insolvência do devedor, que não seja pessoa singular, designadamente quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham destruído ou descaminhado, no todo ou em parte, o património do devedor ou tenham incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada (artº 186 nº 2 a) e h), 1ª parte, do CIRE).

IX - Trata-se, nitidamente, de uma presunção absoluta, inilidível ou iuris et de iure, dado que impõe um regime, não admitindo prova em contrário (artº 350 nº 2, in fine, do Código Civil).

X - As consequências da declaração de insolvência caracterizam-se pela patrimonialidade.

XI - Porém, no caso de qualificação da insolvência como culposa, aos efeitos patrimoniais da declaração de insolvência podem somar-se efeitos pessoais, quer relativamente à pessoa do devedor – se for uma pessoa física ou singular – quer no tocante aos administradores do devedor, quando este não tenha aquela qualidade.

XII - Efeitos que atingem logo direitos fundamentais e mesmo direitos fundamentais que têm por objecto bens e direitos de personalidade.

XII - A qualificação da insolvência como culposa implicava irremissivelmente duas consequências principais para o sujeito que devesse ser afectado por essa qualificação: uma inabilitação temporária; uma inibição temporária para o exercício do comércio e de certos cargos (artº 189 nº 2 b) e c) do CIRE).

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.
D… interpôs recurso ordinário de apelação da sentença do 5º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria que qualificou a insolvência de B… – Comércio e Representação de Artigos Desportivos, Lda como culposa, considerou afectado por essa qualificação o sócio gerente, D… e decretou a inibição deste para o exercício do comércio, ocupação de qualquer cargo de titular de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de 24 meses.
O recorrente pede, no recurso, a revogação desta decisão e a sua substituição por outra que declare que aquela insolvência foi fortuita, que o desafecte da qualificação e que não o iniba o exercício do comércio, ocupação de qualquer cargo de titular de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa.
O apelante condensou os fundamentos da impugnação nas conclusões seguintes:
...
O Ministério Público, concluiu, na resposta, que cabe inteira razão ao recorrente.

2. Factos Provados.
2.1. O Tribunal de que provém o recurso julgou provados os seguintes factos:
2.1.1. Por sentença de 22 de Junho de 2010, já transitada em julgado, foi declarada a insolvência de “B… – Comercio e Representação de Artigos Desportivos, Lda”, encontrando-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Leiria sob o nº ---, tendo a sua sede na ... (ponto A) dos Factos Assentes).
2.1.2. São sócios da referida sociedade D… e I…, conforme certidão do registo comercial de fls. 143 a 145 dos presentes autos (ponto B) dos Factos Assentes).
2.1.3. Ambos eram gerentes ate 07.11.2007, data em que I… renunciou à gerência (ponto C) dos Factos Assentes).
2.1.4. A devedora insolvente apresentou as contas dos últimos três anos (ponto D) dos Factos Assentes).
2.1.5. A sociedade comercial “M…, Lda” encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Anadia sob o n.º…, tendo a sua sede na Avenida… (ponto E) dos Factos Assentes).
2.1.6. São sócios da referida sociedade D… e I…, conforme certidão do registo comercial de fls. 68 a 70 dos presentes autos (ponto F) dos Factos Assentes).
2.1.7. Ambos eram gerentes até 07.11.2007, data em que D… renunciou à gerência (ponto G) dos Factos Assentes).
2.1.8. O volume de vendas em 2007 foi de € 178.201,59, em 2008 foi de € 95.981,80 e em 2009 foi de € 29.364,41 (ponto H) dos Factos Assentes).
2.1.9. A sociedade comercial referida em E) dos factos assentes consta como cliente da insolvente, sendo devedora do valor de € 5.131,88 (ponto I) dos Factos Assentes).
2.2.10. A requerente não tem actividade desde o 1.º trimestre de 2010 (quesito 1 da Base Instrutória).
2.1.10. Nas traseiras do armazém onde funciona a sociedade comercial referida em E) dos factos assentes, funcionava a devedora insolvente (quesito 2 da Base Instrutória).
2.2. Aos factos referidos em 2.1. deve adicionar-se pose mostrar documentalmente provado e relevar para o conhecimento do objecto do recurso, o facto seguinte:
2.2.1. A insolvência foi requerida por um credor, no dia 22 de Abril de 2010.

3. Fundamentos.
3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.
Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).
Nas conclusões da sua alegação é lícito ao recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso (artº 684 nº 2 do CPC). Porém, se tiver restringido o objecto do recurso no requerimento de interposição, não pode ampliá-lo nas conclusões Acs. do STJ de 16.10.86, BMJ nº 360, pág. 534 e da RC de 23.3.96, CJ, 96, II, pág.24..
Maneira que, em face do conteúdo da sentença apelada e das alegações do recorrente, são duas as questões esta Relação deve resolver:
a) Se a insolvência de B… – Comércio e Representação de Artigos Desportivos Lda deve ser qualificado como culposa ou simplesmente, como fortuita;
b) No caso de qualificação da insolvência como culposa, se o recorrente deve ser afectado por essa qualificação.
A resolução destes problemas exige, naturalmente, que se examinem, ainda que levemente, os pressupostos da qualificação como culposa da insolvência e da afectação do recorrente por essa qualificação e, finalmente, as consequências jurídicas dessa afectação.
Os elementos assim obtidos permitirão, depois, regressar ao caso objecto do recurso e resolver a questão concreta controversa que constitui o seu objecto.
3.2. Qualificação da insolvência.
O processo de insolvência é uma execução colectiva ou universal (artº 1 do CIRE).
Na acção executiva promove-se, em geral, a realização coactiva de uma única prestação contra um único devedor e, em observância de um princípio de proporcionalidade, apenas são penhorados e excutidos os bens do devedor que sejam suficientes para liquidar a dívida exequenda (artºs 828 nº 5, 833 nº 1 e 832 nº 1 a) do CPC). Esta execução distingue-se do processo de insolvência que é uma execução universal, tanto porque nela intervêm todos os credores do insolvente, como porque nele é atingido, em princípio, todo o património deste devedor (artºs 1, 47 nºs 1 a 3, 128 nºs 1 e 3 e 149 nºs 1 e 2 do CIRE).
Como o devedor se encontra em situação de insolvência, quer dizer, impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, todos os credores, podem reclamar os seus créditos e todo o património do devedor responde pelas suas dívidas (artº 3 nº 1 do CIRE).
Na execução singular, um credor pretende ver satisfeito o seu direito a uma prestação; esse credor necessita de uma legitimação formal, que é um título executivo e se o devedor for solvente obtém na acção executiva a satisfação do seu crédito (artºs 45 nº 1 e 55 nº 1 do CPC).
No processo de insolvência podem apresentar-se todos os credores do insolvente, ainda que não possuam qualquer título executivo, porque todos eles podem concorrer ao pagamento rateado do seu crédito, através do produto apurado na venda de todos os bens arrolados para a massa insolvente.
O processo de insolvência baseia-se na impossibilidade de o devedor saldar todas as suas dívidas e, portanto, orienta-se por um princípio de distribuição de perdas entre os credores.
Mas para que possa iniciar-se a liquidação total do património do devedor é absolutamente indispensável que o tribunal emita uma sentença que o declare em estado de insolvência. Quer dizer: a sentença é o único título executivo susceptível de servir de base á execução universal e colectiva em que a insolvência se resolve. Proferida essa sentença, o sacrifício de todos os bens do insolvente que se segue, mais não é que a sua execução.
No entanto, para que seja proferida a sentença de declaração de insolvência, exige a lei que o devedor se encontre em estado de insolvência. Portanto, o primeiro problema que aquela sentença deve resolver é se se verificam as condições e circunstâncias, que, no pensamento da lei, justificam a declaração daquela situação de insolvência.
O tráfego jurídico exige a pontualidade de pagamentos porque cada operador económico, ao mesmo tempo que tem os seus devedores, tem por outro lado os seus credores, de modo que a impontualidade dos seus devedores pode obrigá-lo à impontualidade para com os seus credores, e este efeito reflecte-se na actividade económica, trazendo as mais graves e perversas consequências. A regularidade da vida económica e a salvaguarda das regras de concorrência inerentes e indispensáveis ao funcionamento de uma economia de mercado reclama que cada operador económico cumpra, com pontualidade, os seus compromissos; quando isso não suceda, ocorre uma lesão do tecido económico que deve ser reparada, extirpando-se dele, através da declaração de insolvência, o devedor comprovadamente relapso e promovendo-se liquidação total do seu património em benefício de todos os seus credores A insolvência tem também, na verdade, por finalidade expurgar do mercado as empresas, económica ou financeiramente, inviáveis: Ac. do STJ de 14.11.06, www.dgsi.pt..
O que, portanto, caracteriza, essencialmente, o estado de insolvência é a impossibilidade de o devedor solver os seus compromissos (artº 3 nº 1 do CIRE).
O estado de insolvência traduz-se, portanto, numa impotência económica – a impotência para fazer face às obrigações assumidas. Note-se que não é necessário que a impossibilidade do cumprimento diga respeito a todas as obrigações; basta, para que o devedor se considere em estado de insolvência, que a impossibilidade de pagamento se refira às obrigações que, pelo seu significado no conjunto do património do devedor, ou pelas circunstâncias específicas envolventes do não cumprimento, tornem patente, a impotência económica daquele para assegurar a satisfação da generalidade das suas obrigações.
Essa impotência constitui, evidentemente, uma realidade diversa da simples superioridade do passivo relativamente ao activo. O devedor pode estar impossibilitado de pagar aos seus credores e, no entanto, ter um activo superior ao passivo. E o inverso também é verdadeiro: o devedor pode, em dado momento, ter um activo inferior ao passivo, mas dispor de crédito, i.e., da possibilidade de mobilizar, por recurso a terceiros, disponibilidades monetárias que lhe permitam os compromissos para com os seus credores, à medida que se vão tornado exigíveis Manuel de Andrade – Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Facto Jurídico, em Especial Negócio Jurídico, Reimpressão, Coimbra 1998, pág. 110..
Deficit patrimonial ou insuficiência do activo e impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas não são, portanto, situações absolutamente coincidentes.
É claro que a insuficiência do activo para satisfação do passivo exterioriza, tipicamente, a insolvabilidade do devedor uma vez que a persistência desse deficit patrimonial o impossibilitará, mais tarde ou mais cedo, de satisfazer ou solver, com pontualidade, os seus compromissos.
Apesar disso, a insuficiência do activo e a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, são critérios diferentes e autónomos de caracterização de uma mesma situação: o estado de insolvência do devedor.
O devedor considera-se insolvente quando se mostrar impotente para cumprir as suas obrigações ou quando, tratando-se de pessoas colectivas ou de patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliado por recurso às normas contabilísticas aplicáveis (artºs 3 nº 1 e 2 do CIRE).
O desequilíbrio económico grave do devedor, que tenha a natureza de pessoa meramente jurídica ou de património autónomo, patente na insuficiência, desde que manifesta, do activo para satisfação do passivo, aliada à inexistência de pessoa singular que responda ilimitada e pessoalmente pelas suas dívidas, constitui também fundamento de consideração do devedor no estado de insolvência.
No tocante às pessoas colectivas, género que as sociedades comerciais constituem uma espécie, e aos patrimónios autónomos a impossibilidade de solver as suas obrigações liga-se normalmente à insuficiência do activo. Por isso que se consideram em estado de insolvência quando o activo for inferior ao passivo e não exista pessoa singular que responda, pessoal e ilimitadamente por ele.
Mas esta constatação não autoriza a conclusão de que, por exemplo, as sociedades comerciais só podem ser declaradas insolventes quando o seu passivo seja superior ao activo. No tocante às sociedades comerciais, para manter o exemplo dado, a insuficiência do activo para solver o passivo, soma-se ao outro fundamento ou pressuposto objectivo de declaração da insolvência mencionado: é um fundamento específico, especial – recuperado pelo CIRE - que não exclui o outro fundamento geral, antes lhe acresce O critério da insuficiência do activo não é, na verdade, desconhecido no nosso direito, remontando ao Código das Falências de 1935, aprovado pelo Dec. 25 981, de 26 de Outubro, no qual já era admitido, complementarmente, a par do critério fundamental básico, como causa especial de falência, mas apenas no tocante às sociedades de responsabilidade limitada (artº 1774 nº 2 do CPC, revogado pelo artº 9 do DL nº 132/93, de 23 de Abril, que aprovou o CPEREF). Comentando o preceito correspondente do CPC de 1939 – o artº 1136 § 1º - Alberto dos Reis, depois de citar o Relatório do Código de Falências 1935, Código que entretanto havia sido integrado no Código de Processo Civil, fazia notar que a existência daquele critério não deveria levar à conclusão de que a falência das sociedades daquela espécie só poderia ser decretada quando se desse o caso de o activo ser superior ao passivo e que a doutrina exacta era, antes, a de que se tratava de um fundamento especial, que se somava às outras causas de falência indicadas na lei. Cfr. Processos Especiais, vol. II, Coimbra, 1982, págs. 318. No mesmo sentido se pronunciavam Pedro de Sousa Macedo – Manual de Direito das Falências, vol I., Almedina, Coimbra, 1964, pág. 288 e – de forma crítica - Sá Carneiro – Notas ao Código de Falências, Revista dos Tribunais, Ano 51, pág. 292 e Manuel de Andrade – Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Facto Jurídico, em Especial Negócio Jurídico, Reimpressão, Coimbra 1998, pág. 111 - que sublinhava que, não funcionando nas sociedades de responsabilidade limitada, o elemento pessoal, a falência devia fundar-se também na insuficiência do activo.. É um pressuposto objectivo de insolvência especial no sentido de que só respeita a espécie particular de devedores e não com o significado de que a estes não é também aplicável o fundamento ou causa geral de declaração daquele estado.
A impossibilidade de o devedor solver os seus compromissos que caracteriza o estado de insolvência, pode, porém, ser meramente casual, ou fortuita e culposa, lato sensu (artº 185 do CIRE).
A insolvência é culposa quando esse estado tiver criado ou agravado em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (artº 186 nº 1 do CIRE).
A qualificação da insolvência como culposa reclama, portanto, uma conduta ilícita e culposa do devedor ou dos seus administradores.
A ilicitude do comportamento do devedor ou dos seus administradores reparte-se por elementos objectivos e subjectivos.
O elemento objectivo afere a ilicitude da actuação do devedor ou dos administradores pela sua correspondência com o estado de insolvência do primeiro: a conduta é ilícita se dela resulta a criação ou agravamento da situação de insolvência. O elemento subjectivo valora a conduta pelo conhecimento e vontade do devedor ou dos seus administradores na criação ou agravamento da situação de insolvência, i.e., pelo dolo ou pela negligência daquele ou destes. Mas não releva uma qualquer negligência – mas apenas uma negligência grave ou grosseira, quer dizer, uma negligência de grau essencialmente aumentado ou intensificado, portanto, uma violação particularmente qualificada dos deveres de cuidado ou diligência presentes no caso.
A culpa do devedor ou dos seus administradores decorre de um juízo de censurabilidade, em cuja formulação devem ser consideradas as condições que justificam que lhes seja dirigida essa censura. A censurabilidade da conduta é uma apreciação de desvalor que resulta do reconhecimento de que o devedor, ou os seus administradores, nas circunstâncias concretas em que actuaram, podiam ter conformado a sua conduta de molde a evitar a queda do primeiro na situação de insolvência ou agravamento do estado correspondente. A censurabilidade do comportamento do devedor ou dos seus administradores é um juízo feito pelo tribunal sobre a atitude ou motivação de um e de outros, segundo o que pode ser deduzido dos factos provados.
O desvalor que fundamenta a ilicitude da conduta do devedor ou dos seus administradores encontra-se no resultado: a criação ou agravamento da situação de insolvência. Devendo a ilicitude referenciar-se a esse resultado antijurídico, importa verificar, não apenas que esse resultado se produziu – mas se ele pode ser atribuído – imputado – à conduta.
É a exigência de um relacionamento ou de uma conexão dessa conduta com o evento a que se procura dar resposta com a causalidade.
Uma orientação que tem merecido um apoio generalizado é a da causalidade adequada ou da causalidade jurídica sob a forma de adequação, que, simplificadamente, pode formular-se assim: um facto é causa de um resultado, sempre que, em termos de normalidade social, seja adequado a produzir esse resultado (artº 563 do Código Civil) Cfr. v.g., Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 5ª ed. Almedina, Coimbra, 1986, pág. 743 e ss., Pereira Coelho, o Nexo de Causalidade na Responsabilidade Civil, BGD, Suplemento nº IX, Coimbra, 1976, pág. 201 e ss. e Miguel Teixeira de Sousa, Da Responsabilidade Civil por Factos Lícito, Lisboa, 1977, pág. 124 e ss. Menezes Cordeiro - Direito das Obrigações, cit., págs 338 e 338 – sugere a integração da causalidade na própria conduta e, consequentemente a sua sujeição ao juízo de ilicitude: nesta perspectiva, a averiguação da causalidade adequada limitar-se-ia à indagação da licitude de certo comportamento face a um concreto dano e à identificação da adequação com a verificação do fim visado pelo agente.. Para que se afirme um nexo de adequação, deve ponderar-se, de um ponto de vista objectivo, se dadas as regras de experiência e o normal acontecer dos factos – o id quod plerumque accidit – a conduta tem como consequência a produção do evento. Caso se entenda que a produção do resultado era imprevisível ou que, sendo previsível, era improvável ou de verificação rara, a imputação não deverá ter lugar.
A indagação do carácter doloso ou gravemente negligente da conduta do devedor, ou dos seus administradores, e da relação de causalidade entre essa conduta e o facto da insolvência ou do seu agravamento, de que depende a qualificação da insolvência como culposa, revela-se muitas vezes extraordinariamente difícil. Para facilitar essa qualificação, a lei estabelece presunções, através das quais opera a distribuição do ónus da prova da culpa, i.e., o encargo de demonstrar a sua existência.
Assim, a lei considera sempre culposa a insolvência do devedor, que não seja pessoa singular, designadamente quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham destruído ou descaminhado, no todo ou em parte, o património do devedor ou tenham incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada (artº 186 nº 2 a) e h), 1ª parte, do CIRE).
Trata-se, nitidamente, de uma presunção absoluta, inilidível ou iuris et de iure, dado que impõe um regime, não admitindo prova em contrário (artº 350 nº 2, in fine, do Código Civil) Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Reimpressão, vol. II, Quid Iuris, Lisboa, 2006, pág. 14 e Carvalho Fernandes, Qualificação da Insolvência, Themis, 2005, Edição Especial, Sobre o Novo Direito da Insolvência, 94..
A lei presume também a existência de culpa grave quando os administradores do insolvente, que não seja uma pessoa singular, tenham incumprido o dever de requerer a insolvência ou de elaborar, no prazo legal, as contas anuais ou de as depositar na conservatória do registo comercial (artº 186 nº 3 a) e b) do CIRE). Esta presunção é, porém, meramente relativa, ilidível ou iuris tantum, dado que se limita a inverter o ónus da prova, podendo ser afastada mediante prova em contrário (artº 350 nº 2, 1ª parte, do Código Civil) Catarina Serra, O Novo Regime da Insolvência, 2ª edição, pág. 68 e Menezes Leitão, CIRE Anotado, 2ª edição, pág. 175..
O Tribunal Constitucional já foi chamado a pronunciar-se sobre a conformidade constitucional do artº 189 nº 3 do CIRE com os bens e valores constitucionais. Fê-lo no acórdão 564/2007 DR, I Série, nº 13 de Fevereiro de 2008, também disponível em www.tribunalconstitucional.pt..
Aquele Tribunal, depois de notar que se trata de uma presunção ilidível, assente na prática de factos ilícitos, que apresentam um valor sintomático da ocorrência de culpa, que se dirige a pessoas que, em princípio, exercem profissionalmente a actividade de administração, cujo facto base são regras cuja observância não reveste especiais dificuldades e que visam, funcionalmente, assegurar a transparência da situação económico-financeira do ente administrado e, por essa via, a protecção dos interesses dos credores, concluiu que é inteiramente razoável, não arbitrária, adequada e proporcionada e, naturalmente, não julgou inconstitucional a norma correspondente.
Sendo inteiramente procedentes e fundadas estas razões, não há razão para divergir do julgamento correspondente.
Contudo, para que neste caso se conclua pelo carácter culposo da insolvência, não basta assentar na culpa grave, ainda que simplesmente presuntiva, dos seus administradores na omissão do cumprimento de qualquer daquelas obrigações; exige-se a prova da relação ou nexo de causalidade entre essa conduta e a criação ou agravamento da situação de insolvência do devedor Assim, por exemplo, os Acs. da RP de 15.03.07, 13.09.97, 07.01.08, 23.06.09, 15.07.09 e 22.06-10, da RL de 22.01.08, e da RC de 24.03.09, 21.04.09 e 23.06.09, www.dgsi.pt e Raposo Subtil, Matos Esteves, Maria José Esteves e Luís Martins, CIRE Anotado, 2ª edição, págs. 265 e 266..
Quer dizer, ao passo que a prova da violação, por exemplo, do dever de manter a contabilidade organizada importa, irremissivelmente, a qualificação da insolvência como culposa, a violação, pelos administradores, v.g., do dever de requerer a insolvência, apenas permite presumir a culpa grave daqueles – mas já não a imputação da situação de insolvência, ou o seu agravamento, à respectiva conduta Neste ponto, não parece exacta a conclusão, tirada nos fundamentos do acórdão do TC nº 564/2007, de harmonia com a qual, do incumprimento das regras que estão no sopé da presunção, a norma retira a ilação, através do mecanismo presuntivo, de que a situação de insolvência foi criada ou agravada em consequência da actuação com culpa grave do sujeito afectado, em sintonia com o critério de culpa consagrado no nº 1 do artº 186 do CIRE. Em todo o caso, o acórdão julgou que essa ilação não se afigura uma utilização arbitrária do mecanismo presuntivo.. Este último facto deve ser objecto de demonstração autónoma.
3.3. Consequências da afectação do recorrente pela qualificação da insolvência como culposa.
As consequências da declaração de insolvência caracterizam-se pela patrimonialidade. Porém, no caso de qualificação da insolvência como culposa, aos efeitos patrimoniais da declaração de insolvência podem somar-se efeitos pessoais, quer relativamente à pessoa do devedor – se for uma pessoa física ou singular – quer no tocante aos administradores do devedor, quando este não tenha aquela qualidade Cfr. Jorge Duarte Pinheiro, Efeitos Pessoais da Declaração de Insolvência, Estudos em Memória do Professor Doutor José Dias Marques, Almedina, Coimbra, 2007, págs. 207 e ss.. Efeitos que atingem logo direitos fundamentais e mesmo direitos fundamentais que têm por objecto bens e direitos de personalidade.
A qualificação da insolvência como culposa implicava irremissivelmente duas consequências principais para o sujeito que devesse ser afectado por essa qualificação: uma inabilitação temporária; uma inibição temporária para o exercício do comércio e de certos cargos (artº 189 nº 2 b) e c) do CIRE) Qualquer destas consequências não é, em absoluto rigor, instrumental em relação ao processo de insolvência, visto que se verificam mesmo nos casos em que se conclui que o património não é presumivelmente suficiente para a satisfação das custas do processo e não cessam com o encerramento do processo (artºs 191 e 233 nº 1 a) do CIRE). Cfr. Catarina Serra, As novas tendências do direito português da insolvência. Comentário ao regime os efeitos da insolvência sobre o devedor no projecto do Código da Insolvência, em Ministério da Justiça, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Coimbra Editora, 2004, págs. 45 e 46..
Na verdade, o CIRE criou uma nova causa de inabilitação, que se somava às previstas na lei geral (artº 152 do Código Civil).
Tratava-se, além disso, de uma causa absoluta ou peremptória de inabilitação, dado que constitui consequência irrecusável da qualificação como culposa da insolvência. A lei parecia presumir, de forma inilidível, que o carácter culposo da insolvência revela uma incapacidade, do devedor ou do administrador do devedor, de reger convenientemente o património. A verdade, porém, é que esta inabilitação não se funda numa diminuição da capacidade natural do atingido por ela e, portanto, não é funcionalmente disposta para a sua a tutela, tendo antes por fundamento final a punição do dolo ou da culpa grave daquele sujeito, e, portanto, um carácter puramente sancionatório.
Recortado, pela forma indicada, o fundamento e a finalidade conspícuas da inabilitação é bem de ver que a norma na qual surgia disposta conflituava com o direito fundamental à capacidade civil constitucionalmente consagrado (artº 26 nº 4 da Constituição da República Portuguesa). Decerto que a garantia do direito à capacidade civil – entendida como o direito a ser pessoa jurídica e, portanto, sujeito de relações jurídicas – não é ilimitada, visto que a Constituição, embora proíba a sua exclusão total, admite, ela mesma, que lhe sejam apostas restrições, ainda que só por via da lei. Mas é claro que, no exercício da sua liberdade de conformação, o legislador permanece vinculado à observância de outros princípios constitucionais pertinentes, como, por exemplo, o da dignidade humana, da proibição do excesso ou da proporcionalidade (artºs 67 do Código Civil e 1º e 18 nºs 2 e 3 da CRP).
Em todo o caso, uma dimensão ineliminável do direito fundamental à capacidade civil é, com certeza, a da proibição da sua restrição com um carácter ou com uma finalidade estritamente sancionatória: a restrição da capacidade não pode servir de pena ou de efeito de pena J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição revista, vol. I, Coimbra Editora, pág. 465..
E foi, no essencial, por estas razões que a jurisprudência constitucional concluiu pela inconstitucionalidade material do artº 189 nº 2 b) do CIRE – por violação dos artºs 18 nº 2 e 26 da Constituição da República Portuguesa – na medida em que impunha ao juiz, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, que decretasse a inabilitação do administrador da sociedade comercial, declarada insolvente, inconstitucionalidade, essa, que acabou por ser declarada, com força obrigatória geral, pelo Ac. nº 173/2009 DR, I Série, de 4 de Maio de 2009, também disponível em www.tribunalconstitucional.pt..
Sendo essa norma constitucionalmente imprópria outra coisa não resta que recusar – como bem fez, aliás, a decisão recorrida - a sua aplicação (artºs 204 e 277 da CRP).
Porém, se a norma contida na al. b) do nº 2 do artº 189 do CIRE merece um juízo de desvalor constitucional, o mesmo não ocorre com a contida na al. c) do mesmo preceito que impõe à pessoa afectada pela qualificação da insolvência como culposa a inibição para o exercício do comércio durante o período de 2 a 10 anos, bem como a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa.
O fundamento ou a razão material da inibição – que não é um conteúdo do estado de insolvência - é uma coisa que se explica por si: a defesa geral da credibilidade do comércio e dos cargos cujo exercício é vedado ao atingido pela qualificação da insolvência Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, 2ª edição, vol. I, Introdução, As Pessoas, Os Bens, Coimbra Editora, 2000 pág. 213 e Efeitos da Falência sobre a Pessoa e Negócios do Falido, RFDUL, vol. XXXVI, 1995, nº 2, págs. 326 e 327. O CIRE, continuando uma larga tradição, denomina este efeito da qualificação da insolvência de inibição. Mas esta expressão não deve induzir a conclusão que se trata de uma incapacidade de exercício, já que não assenta numa verdadeira capitis diminutio nem é ordenada para a protecção do sujeito atingido por ela. Oliveira Ascensão - Direito Civil, cit., pág. 214 - sugere o seu enquadramento na categoria das incompatibilidades; contra, porém, sustentando a diversidade da inibição e da incompatibilidade, António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Comercial, I vol., 2001, Almedina, Coimbra, págs. 192 e 193. Cfr. também sobre a natureza e o alcance desta inibição, J. M. Coutinho de Abreu, Curso, vol. II pág. 122 e ss., Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, 2ª edição, Lex, Lisboa, 1985, págs. 310 a 313, A. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Reprint, Lex, Lisboa, 1994, págs. 98 e ss. e José Gabriel Pinto Coelho, Efeitos da Falência sobre a Capacidade do Falido segundo o Novo Código de Processo Civil, Estudos de Direito Comercial, vol. I, Das Falências, FDUL, Almedina, Coimbra, 1989, págs. 12 e ss.. É-lhe, por isso, absolutamente estranha qualquer finalidade sancionatória ou punitiva; não se trata nunca de punir o dolo ou a culpa constitutiva ou agravadora da situação de insolvência, mas de tutelar um interesse colectivo axiológica e sistemicamente relevante.
É claro que essa inibição colide com os direitos fundamentais da liberdade de trabalho, na dimensão de liberdade da escolha do género de trabalho, e da liberdade de iniciativa económica privada (artºs 47 nº 1, 58 nº 1 e 61 nº 1 da CRP) Direitos que também podem ser concebidos como manifestações do direito geral de personalidade ou mesmo como direito de personalidade a se. Cfr. Rabindranath Capelo de Sousa, O direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, págs. 262 e Leite de Campos, Lições de Direitos da Personalidade, separata do BFDUC, Coimbra, 1995, pág. 105.. Mas dessa colisão não decorre, como corolário que não possa ser recusado, a ilegitimidade constitucional daquela norma da lei ordinária.
Como a jurisprudência constitucional tem afirmado repetidamente, nem a liberdade de escolha da profissão nem a liberdade de iniciativa privada são direitos absolutos e legalmente incondicionáveis, antes estão, ambos, nos termos expressos pela própria Constituição, sujeitos, no seu exercício, às restrições legais impostas pelo interesse colectivo ou inerentes à própria capacidade dos interessados ou ao interesse geral (artºs 47 nº 1 e 61 nº 1) Cfr., v.g., os Acs. do TC nºs 474/89 e 187/01, ATC, 14º vol., pág. 77 e ss., e www.tribunalconstitucional.pt., respectivamente..
A liberdade de iniciativa económica privada – que se desdobra na liberdade de iniciar uma actividade económica (liberdade de criação de empresa ou de estabelecimento), e é neste sentido um direito pessoal, e na liberdade de organização, gestão e actividade da empresa (liberdade de empresa, do empresário ou liberdade empresarial), faceta em que assume a natureza de direito institucional – pode ser objecto de limites ou restrições mais ou menos extensos. O direito fundamental correspondente só pode exercer-se nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e mostra-se constitucionalmente funcionalizado ao interesse geral (artº 61 nº 1 da CRP). Não é, portanto, um direito absoluto, nem tem sequer os seus limites constitucionalmente garantidos Cfr. v.g., Acs. do TC nºs 76/85, ATC 5º vol., pág. 207 e 328/94, www.tribunalconstitucional.pt.. Não sendo um direito absoluto, é meramente consequencial a maior amplitude da liberdade de conformação do seu conteúdo do legislador ordinário.
Não é, assim, de modo algum constitucionalmente inadmissível uma restrição desse direito para a qual possa ser dada uma razão material radicada no interesse colectivo ou geral como aquela que justifica, no caso de falência qualificada por dolo ou culpa grave, a inibição do administrador do ente administrado declarado insolvente.
De resto, a medida responde mesmo a interesses ou exigências constitucionalmente atendíveis como a garantia do eficiente funcionamento dos mercados e do equilíbrio da concorrência entre as empresas (artº 81 f), 1ª parte, da CRP). A situação de insolvência perturba a eficiência do mercado e rompe o equilíbrio da concorrência entre as empresas, componente principal de uma economia de mercado. Neste contexto é constitucionalmente compreensível uma medida que, no limite, visa obstar a futuras insolvências em prejuízo definitivo de outros operadores económicos ou daqueles que, por qualquer título, estabeleçam vínculos de conteúdo patrimonial, v.g. os trabalhadores, com o insolvente.
A liberdade de escolha da profissão ou trabalho assume-se como um direito subjectivo que não tem apenas um conteúdo negativo – de direito de defesa – mas inclui uma dimensão positiva ligada ao direito ao trabalho e, bem assim, um aspecto de liberdade no exercício da profissão, sem a qual, naturalmente, a liberdade de escolha nada valeria Acs. do TC nºs 328/94 e 446/91, www.tribunalconstitucional.pt..
Mas este conteúdo da liberdade de escolha da profissão não impede, naturalmente, que, por exemplo, no tocante especificamente à profissão de comerciante, em princípio aberta a todas as pessoas singulares, a lei ordinária possa estabelecer proibições gerais – como que ocorre com o comércio bancário ou com a actividade seguradora que só podem ser exercidas por sociedades anónimas autorizadas – ou incompatibilidades – como as que ferem os magistrados judiciais e do Ministério Público – ou impedimentos – como o que limita os agentes de comércio (artºs 14 nº 1 b) do RGIC, 7 nº 1 a) do DL nº 94-B/98, de 17 de Abril, 13 nº 1 do EMJ, aprovado pela Lei nº 21/85, de 30 de Julho, 60 nº 1 da LOMP, aprovada pela Lei nº 47/86, de 15 de Outubro e 253 do Código Comercial, respectivamente). Do mesmo modo, não vulnera aquela liberdade, a exigência de determinadas qualificações para o exercício de certa profissão ou de preenchimento de certos requisitos de idoneidade para aceder a esse exercício.
E também não há razão sólida para concluir que a norma questionada se encontra ferida com a mácula da inconstitucionalidade por violação dos princípios, de matriz constitucional, da proibição do excesso, da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade.
Abstraindo da oscilação semântica do princípio constitucional estruturante da proibição do excesso ou, na acepção mais comum, das várias dimensões do princípio, igualmente estruturante, da proporcionalidade, a que, de resto, não é imune a própria jurisprudência constitucional Jorge Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, 2004, págs. 160 e ss. Este autor decompõe o princípio da proporcionalidade em sentido lato – ou como acha preferível, da proibição do excesso – em três subprincípios ou elementos: o princípio da idoneidade, o princípio da indispensabilidade ou da necessidade e o princípio da proporcionalidade em sentido estrito – ops. cit., págs. 162 e 163. Já, por exemplo, o Ac. nº 634/93 – ATC, 26º vol., págs. 205 e ss. – desdobra o princípio da proporcionalidade em três subprincípios: o princípio da adequação; da exigibilidade; o princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito., deve ter-se por certo que princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso representa, seguramente, um dos principais instrumentos de controlo da adequação substancial de medidas restritivas de direitos fundamentais e, por essa via, um limite externo à liberdade de conformação do legislador (artº 18 nº 2 da CRP).
Perante o espaço de conformação do legislador e a função negativa de controlo que o princípio desempenha, o tribunal deve limitar-se a aferir se a regulação legislativa que estabeleça uma restrição do direito, da liberdade ou da garantia fundamental, é adequada ou idónea para a prossecução do fim visado pela lei, se é necessária ou indispensável por não existir meio menos lesivo para o direito, liberdade ou garantia restringida igualmente apto para a prossecução da finalidade visada, e, finalmente, se existe uma justa medida entre a restrição e o resultado que ela permite obter, de modo a que medida legal restritiva não se mostre desproporcionada, excessiva, desrazoável, relativamente ao fim alcançado.
Já se isolou o fim prosseguido com a restrição: a credibilidade do comércio e dos cargos de gestão cujo acesso é vedado ao atingido pela qualificação. A medida restritiva – a inibição – é perfeitamente apta a realizar o fim visado com a restrição; não é possível fazer a prova da existência, para prosseguir o fim visado com a restrição, de outro meio alternativo menos restritivo ou agressivo que o utilizado; a comparação do entre o sacrifício imposto aos bens constitucionais e os benefícios ou vantagens prosseguidos e obtidos com a inibição mostra que esta é justa, adequada, razoável e proporcionada.
A inibição revela-se, portanto, idónea ou adequada, indispensável ou necessária e proporcional.
A regulação legislativa da inibição satisfaz o núcleo central dos requisitos exigidos às restrições dos direitos fundamentais tal como podem ser deduzidos do princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade. Não há, assim, a mínima razão para estigmatizar a norma contido no artº 189 nº 2 c) do CIRE com o valor negativo da inconstitucionalidade O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta medida restritiva, tal como era configurada no artº 148 nº 1 do CPEREF, tendo concluído que era consentida pelo artº 47 nº 1 da CRP, não sendo arbitrária nem desproporcionada: Ac. nº 414/02, www.tribunalconstitucional.pt. Cfr., também, no mesmo local, o Ac. 464/02..
Este viaticum habilita-nos, com suficiência, à apreciação do objecto do recurso e à declaração do direito do caso.
3.4. Concretização.
Na espécie sujeita, a sentença apelada concluiu pela qualificação como culposa da insolvência com fundamento na existência de culpa grave do recorrente na omissão de requerer o processo de insolvência e, ao que parece, de promover a elaboração, a fiscalização e o depósito das contas anuais na conservatória do registo comercial (artº 186 nº 3 a) e b) do CIRE).
E diz-se ao que parece, no tocante ao último dos fundamentos indicados, visto que a sentença apelada não se deteve no seu exame, tendo-se limitado, a este propósito a indicar a norma legal que o prevê: o artº 186 nº 3 b) do CIRE).

Seja como for, em face da matéria de facto julgada provada pelo decisor da 1ª instância – julgamento cuja exactidão não vem discutida no recurso – deve ter-se por liminarmente excluída a violação, pelo recorrente, administrador de direito da insolvente, da violação da obrigação relativa à elaboração das contas anuais do exercício.
Os membros da administração das sociedades comerciais, v.g., os gerentes, estão vinculados ao dever de elaborar e de submeter aos órgãos competentes da sociedade designadamente as contas do exercício, dever que deve ser cumprido no prazo de três meses, contado da data do encerramento de cada exercício anual (artº 65 nºs 1 e 5, 1ª parte, do Código das Sociedades Comerciais – CSC).
Quando o pacto não disponha diferentemente, o exercício anual corresponde, supletivamente, ao ano civil (artº 9 nº 1 i) do CSC).
Portanto, os gerentes devem elaborar e submeter as contas anuais do exercício até ao dia 31 de Março de cada ano e, portanto, as contas anuais, por exemplo do exercício de 2010, deveriam ser apresentadas até ao dia 31 de Março de 2011.
De harmonia com a matéria de facto julgada provada pelo tribunal de que provém o recurso, a sociedade comercial declarada insolvente apresentou as contas dos últimos três anos, vale dizer – visto que a insolvência foi declarada em 22 de Junho de 2010 – dos anos de 2007, 2008 e 2009.
Por sua vez, as contas anuais do exercício de 2010 deveriam ser apresentadas até ao dia 31 de Março de 2011. Todavia, nesse momento por força da transferência, para o administrador da insolvência, dos poderes de administração decorrente da declaração de insolvência, o recorrente estava, nessa data, desvinculado daquela obrigação de elaboração de elaborar e de submeter à apreciação e a depósito as contas do exercício do ano de 2010 (artº 81 nº 1, 1ª parte, do CSC).
É exacto, de harmonia com o núcleo de facto que o tribunal teve por provado, que não está demonstrado que o devedor ou recorrente tenham procedido ao depósito das contas na conservatória do registo comercial. Todavia, como tal facto se não presume, a dúvida sobre a realidade dele - visto que a respectiva prova não compete ao devedor ou ao recorrente - não deve ser resolvida contra eles (artº 342 nº 1 e 346, in fine, do Código Civil e 516 do CPC).
Nestas condições, não há razão para assacar ao recorrente a violação do mencionado dever e, correspondentemente, para presumir a sua culpa grave e, por essa via, para assentar no carácter culposo da insolvência do devedor.
A sentença apelada assentou, contudo, no carácter culposo da insolvência por um outro fundamento e, pelas razões apontadas, mesmo só neste fundamento: a violação do dever de requerer a insolvência, ofensa que, ainda que presuntivamente, imputou a culpa grave do recorrente.
É indubitável a vinculação do devedor ao dever de se apresentar ou requerer a sua insolvência, obrigação que deve ser cumprida no prazo de 60 dias contado da data em que teve ou devesse ter conhecimento da situação de insolvência (artº 18 nº 1 do CSC). Nos casos em que o devedor é titular de uma empresa, presume-se iuris et de iure, aquele conhecimento, decorridos que sejam três meses sobre o incumprimento generalizado, por exemplo, de dívidas fiscais ou para fiscais ou emergentes do contrato de trabalho (artº 18 nº 3 e 20 nº 1 g), i), ii) e iii) do CIRE).
Por razões que se explicam por si, o dever de apresentação do devedor à insolvência cessa se a declaração correspondente tiver sido requerida por qualquer outro legitimado.
Na espécie do recurso – como aliás a sentença impugnada reconhece – nada se sabe sobre a natureza das dívidas do devedor declarado insolvente – nem mesmo, de resto, sobre o seu valor. Nestas condições, não é possível, presumir, irrefragavelmente, o conhecimento da situação de insolvência.
Quanto a este ponto o único facto provado que deve ter-se por relevante é, decerto, o de que o devedor insolvente não tinha actividade desde o 1º trimestre de 2010, quer dizer, desde 31 de Março de 2010.
Por aplicação de regras de experiência e critérios sociais é lícito presumir que o devedor declarado insolvente – e o recorrente – tiverem, ou usando da diligência exigível, deveriam ter tido, conhecimento do estado de insolvência do primeiro, ao menos no momento em que ocorreu a cessação da sua actividade (artº 349 do Código Civil).
Todavia, se se localizar naquela data o terminus a quo do prazo de cumprimento do dever de apresentação, o terminus ad quem desse mesmo prazo situar-se-ia, necessariamente, em 30 de Maio de 2010. Porém, nessa data já tinha sido requerida, por um credor, a declaração de insolvência e, portanto, já se mostrava cessado o dever de apresentação que vinculava o devedor.
Sendo isto exacto, então segue-se, como corolário que não pode ser recusado, que não houve, no caso, violação, pelo devedor ou pelo recorrente, do apontado dever de apresentação e, consequentemente, que não há, em boa verdade, razão para concluir pelo carácter culposo da insolvência.
Mas vamos que, realmente, o recorrente violou, com culpa grave, ainda que meramente presumida, tanto o dever de promover a declaração de insolvência como o de elaborar, submeter à apreciação ou ao depósito as contas anuais do exercício da sociedade insolvente.
Nessa hipótese, sempre seria exigível, pelas razões apontadas, a prova da relação ou nexo de causalidade entre essa conduta e a criação ou o agravamento da situação de insolvência do devedor.
No caso, porém, não está demonstrado – nem, aliás, uma tal exigência surge sequer individualizada na sentença apelada – qualquer facto relativo à relação de causalidade entre aquela conduta e a criação, ou o agravamento, do estado de insolvência.
Nestas condições, qualquer daquelas condutas do recorrente, ainda que lhe devessem ser assacadas, mesmo de forma presuntiva, a título de culpa grave, sempre seriam inidóneas para qualificar a insolvência como culposa. E esta razão seria suficiente, por si só, para concluir pela falta de bondade da decisão recorrida e, portanto, para a revogar
Todas as contais feitas, a conclusão a tirar é a de que, realmente, não há fundamento para a qualificação como culposa da insolvência, e, consequentemente, para julgar o recorrente afectado por tal qualificação.
A decisão apelada não é, pois, juridicamente exacta e, por isso, deve ser revogada e substituída por outra que declare o carácter fortuito da insolvência e subtraia o recorrente às consequências da afectação.
A proposição mais saliente do acórdão pode resumir-se nestas palavras: para concluir pelo carácter culposo da insolvência, não basta assentar na culpa grave, ainda que simplesmente presuntiva, dos seus administradores na omissão do cumprimento das obrigações de requerer o processo de insolvência e de de promover a elaboração, a fiscalização e o depósito das contas anuais na conservatória do registo comercial, sendo ainda exigível a prova da relação ou do nexo de causalidade entre essa conduta e a criação ou agravamento da situação de insolvência do devedor.
Face à procedência do recurso, as custas dele deverão ser suportadas pela massa insolvente (artºs 446 nºs 1 e 2 do CPC e 51 nº 1 a) do CIRE).
Dada a pouca complexidade do tratamento processual do objecto do recurso, a respectiva taxa de justiça deve ser fixada nos termos da Tabela I-B que integra o RCP (artº 6 nº 2).
4. Decisão.
Pelos fundamentos expostos, julga-se procedente o recurso, revoga-se a decisão impugnada, qualifica-se a insolvência de B… – Comércio e Representação de Artigos Desportivos, Lda como fortuita e desafecta-se o recorrente, D…, das consequências da qualificação daquela insolvência como culposa.
Custas pela massa insolvente, devendo a taxa de justiça ser fixada nos termos da Tabela I-B, integrante do RCP.


Henrique Antunes (Relator)
Regina Rosa
Artur Dias