Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | FRANCISCO CAETANO | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE CONTRATUAL COISA IMÓVEL COISA DEFEITUOSA | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 02/09/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DO BAIXO VOUGA - AVEIRO | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | AGRAVO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ART.ºS 406.º Nº 2 E 483.º, N.º 1, DO CC | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | O engenheiro técnico civil, autor dos projectos e director técnico da obra não é responsável perante os compradores de imóvel comprado à firma que o construiu, pela eliminação de possíveis defeitos nem com base em responsabilidade contratual, atento o princípio da eficácia relativa dos contratos (n.º 2 do art.º 406.º do CC), a que foi de todo estranho, nem em responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, desde logo porque arredado o pressuposto da ilicitude do seu procedimento (art.º 483.º, n.º 1, do CC). | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
1. Relatório A.... e mulher B..... propuseram, então no 1.º Juízo Cível de Aveiro, contra “C.....” e D...., acção com forma de processo ordinário, pedindo a condenação de ambos a reparar os defeitos existentes no imóvel que adquiriram à 1.ª Ré e na indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de tais defeitos, contabilizados em € 18.900,00 ou, não os reparando, ser condenados no pagamento da quantia de € 106.625,00, equivalente à despesa de reparação, acrescida de juros vincendos até efectivo pagamento. Alegaram, para tanto, em resumo, que por escritura pública de compra e venda de 19.4.02 do 2.º Cartório Notarial de ...adquiriram à Ré, que a construiu, uma moradia unifamiliar de r/c e 1.º andar, com anexo, a qual, na sequência de peritagem mandada efectuar, apresenta defeitos vários, que discriminaram, pelos quais são responsáveis ambos os RR., a Ré enquanto vendedora e construtora e o Réu enquanto responsável pela direcção técnica, fiscalização e acompanhamento da obra e em cujo livro de obra omitiu quaisquer defeitos, bem como o não cumprimento dos projectos aprovados, havendo necessidade de os AA. abandonar a habitação, para execução das obras por um período de pelo menos 8 meses, tendo que arrendar outra, o que ocasionará despesas no valor que indicaram e que integra o quantitativo acima peticionado. Citados, contestaram os RR., o Réu por excepção, arguindo a sua ilegitimidade, com fundamento em não ser titular de nenhuma relação material controvertida com os AA., uma vez que com eles não celebrou qualquer contrato, excepcionaram, depois, a caducidade do direito à reparação pelos defeitos e impugnaram a matéria alegada, o R., mormente, que cumpriu todas as normas legais urbanísticas que se lhe impunham no desempenho das suas funções de director técnico da obra, em representação da sociedade “E.....”, pedindo, a final, a absolvição dos pedidos e a condenação dos AA. a título de litigância de má fé em multa e na indemnização de € 25.000,00. Houve lugar a réplica onde utilmente os AA responderam à matéria de excepção, no sentido da sua improcedência e acrescentaram o pedido de condenação, agora dos RR., como litigantes de má fé em multa e indemnização aos AA. não inferior a € 10.000,00, concluindo como na petição inicial. No despacho saneador a Ex.ma Juíza conheceu da arguida excepção dilatória de ilegitimidade do R., no sentido da sua improcedência enquanto pressuposto processual, mas, apreciando a excepção como de direito material e concluindo que “os AA. não estão legitimados para deduzirem pedidos contra o R. Eng.º Técnico D... (fls. 148), por este ser terceiro em relação aos negócios (contrato-promessa de compra e venda e contrato de compra e venda) celebrados entre os AA. e a Ré sociedade” e porque com a presente acção os AA. pretendem fazer valer a responsabilidade contratual, a que esse R. é alheio, decidiu que “os AA. não têm legitimação activa para o demandar”, em consequência o absolvendo dos pedidos. Quanto à outra excepção, de caducidade, foi relegado o seu conhecimento para final, prosseguindo, contra a Ré, o saneador com a selecção dos factos assentes e organização da base instrutória. Os AA., inconformados com aquela decisão de absolvição do Réu dos pedidos, recorreram, de agravo, em cujas alegações formularam extensas conclusões, que podem resumir-se nas seguintes: a) – Os agravantes alegaram em relação ao agravado e justificativo dos pedidos que contra ele formularam, que foi o autor dos projectos de arquitectura, estabilidade, instalação de gás, redes prediais de águas e esgotos e isolamento térmico, apresentados e aprovados pela Câmara Municipal de ..., bem como o técnico responsável pela direcção técnica da construção da moradia que hoje pertence aos agravantes; b) – A moradia apresenta os defeitos que foram discriminados na petição inicial, bem como a mesma não se encontra edificada de acordo com o projecto de arquitectura e respectiva memória descritiva que foi aprovado pela edilidade municipal, os quais são devidos ao facto de a Ré C... ter edificado o imóvel sem cumprir com as boas regras de construção, bem como ao facto de o agravado Eng.º D... , por esta contratado, enquanto responsável, não ter orientado nem supervisionado os trabalhos por forma a que os mesmos fossem executados segundo tais projectos; c) – O agravado não orientou, como era seu dever, os trabalhos de construção por forma a evitar que tais anomalias pudessem vir a aparecer, tendo omitido do livro de obras, inclusive, a alteração aos projectos que foram aprovados pela Câmara Municipal competente, comportamento esse que foi determinante para o seu aparecimento e de outros defeitos que podem estar ainda ocultos; d) – É obrigação do responsável técnico da obra zelar pelo cumprimento do projecto de construção aprovado, acompanhar a obra, registando, para tal, no livro de obra todos os trabalhos que se vão desenvolvendo e assinar o livro de obra e se os mesmos estão a ser executados de acordo com os projectos aprovados; e) – O que não sucedeu, já que o agravado, para além de não ter acompanhado devidamente a obra, não denunciou os defeitos e nada escreveu no livro de obra durante a sua edificação, apenas o tendo assinado; f) – A Ré não procedeu aquando da edificação do imóvel, à aplicação de uma laje, como constava do projecto, tendo o agravado omitido intencionalmente tal falta, que é a principal causa de todos os defeitos do imóvel, ao nível do piso; g) – Tal matéria, porque impugnada, encontra-se controvertida e carente de prova para demonstrar o direito que os agravantes invocam quer quanto à Ré C..., quer quanto ao agravado; h) – O agravado, enquanto autor dos projectos que expressamente para esse efeito foi contratado pela Ré C... e também enquanto responsável técnico da obra, cujo termos de responsabilidade em como fora executada de acordo com os projectos aprovados assinou, através do seu comportamento omissivo das alterações aos projectos que foram feitas e que deram origem aos defeitos que a obra apresenta, é também ele responsável pela sua eliminação e, como tal, parte legítima nos presentes autos; i) – Se por um lado o agravado não teve qualquer intervenção directa na celebração dos dois contratos referidos, quer na promessa de compra e venda, quer na formulação do negócio prometido, já que nos mesmos só intervieram os agravantes e a Ré C... e, como tal, em relação a ele se não aplica o regime de responsabilidade contratual, por outro foi contratado pela Ré para que elaborasse todos os projectos e fosse o responsável técnico pela construção da habitação; j) – Ainda que o agravado seja um terceiro em relação aos negócios celebrados entre os agravantes e a Ré C... já o não é em relação ao objecto desses negócios, uma vez que teve intervenção directa e necessária na construção da moradia; l) – No que respeita aos factos que directamente se prendem com a acção do agravado e que servem de causa de pedir do pedido que contra ele é deduzido, os mesmos reconduzem-se, quanto a ele, ao regime da responsabilidade civil extracontratual, uma vez que alegaram factos demonstrativos de um comportamento ilícito que provocou danos aos agravantes; m) – Comportamento esse contrário às normas urbanísticas sancionadas a título contra-ordenacional, designadamente a omissão no livro de obra das alterações ao projecto e a omissão de fiscalização dos trabalhos de construção; n) – Igualmente alegaram factos demonstrativos do nexo de causalidade entre o facto e os prejuízos advindos para os agravantes; o) – O comportamento do agravado contribuiu para que o objecto dos negócios celebrados entre agravantes e a Ré C... tivesse as anomalias e defeitos alegados na petição inicial, pelo que essa Ré foi demandada com base em responsabilidade contratual e o agravado com base em responsabilidade extracontratual. Concluíram pelo pedido de alteração do despacho recorrido e sua substituição por outro que julgue o agravado parte legítima para contra si correrem os autos. Não houve contra-alegações. Dispensaram-se os vistos ao abrigo do disposto no art.º 705.º do CPC. Cumpre apreciar, sendo que as únicas questões a decidir são estas: - Qual a causa de pedir na presente acção? - Qual a responsabilidade, em relação aos AA., do Réu, enquanto engenheiro técnico civil simultaneamente projectista e director técnico de uma moradia àqueles vendida pela Ré, firma construtora, que o contratou, e com alegados defeitos de construção? Contratual, extracontratual… nenhuma? * 2. Fundamentos 2.1. De facto O quadro factual relevante para a decisão é o que resulta do antecedente relatório que se reproduz e se reconduz ao seguinte: - O Réu, engenheiro técnico civil, foi (por si ou enquanto representante de uma outra sociedade - não releva), contratado pela firma Ré para projectar a construção de uma moradia e ser director técnico da obra de construção que, uma vez adquirida à Ré pelos AA., nela estes vieram a detectar defeitos, cuja reparação reclamam de ambos os RR, * 2.2. De direito A decisão recorrida assentou em que a questão suscitada na contestação pelo R. recorrido, da sua ilegitimidade passiva, não era de forma, de pressuposto processual, consequentemente sendo parte legítima à luz do n.º 3 do art.º 26.º do CPC, mas questão de fundo, legitimidade substantiva, a constituir questão de mérito e com relevância em sede de improcedência parcial do pedido. E, considerando que com a acção os AA. pretenderam fazer valer a responsabilidade contratual de eliminação dos defeitos sobre o imóvel comprado à Ré sociedade e a cuja relação contratual o R. recorrido foi alheio, não relevando civilmente o facto de este ter sido o director técnico da obra e de eventualmente não haver, enquanto tal, acompanhado e fiscalizado a obra ou de ter omitido no registo do livro de obra a sua desconformidade com o projecto, não sendo caso de responsabilidade extracontratual, absolveu o R. recorrido dos pedidos. Adiantando-se a conclusão, falece razão aos recorrentes, sendo de subscrever a douta decisão. Nas alegações de recurso vieram os AA. fazer apelo à responsabilidade extracontratual por facto ilícito do R. recorrido. Que dizer? - Se bem se vir, os AA. gizaram a acção na responsabilidade contratual do vendedor do imóvel, mercê dos defeitos que apresenta, genericamente traduzidos na existência de humidades e infiltrações de água, expressamente derivando a tutela legal do n.º 4 do art.º 1225.º do Cód. Civil. Tanto que o seu pedido se traduz na condenação solidária de ambos os RR. à reparação dos defeitos e ao pagamento de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais (v. g., art.º 38.º da p. i.). Nesse sentido, porque o R. era alheio às obrigações emergentes do contrato de compra e venda, mormente de reparação ou eliminação dos defeitos (art.ºs 1225.º, n.º 4 e 1221.º, do CC) e porque é regra os contratos só vincularem quem a eles se obriga (princípio da eficácia relativa do contrato – n.º 2 do art.º 406.º do CC[1]) arredada se nos afigura qualquer responsabilidade contratual solidária, ou conjunta, com a firma vendedora, para com os AA.[2] Responsabilidade contratual para com os AA., poderá tê-la a vendedora, no âmbito do referido contrato de compra e venda, por isso contra ela prosseguindo a acção. O R., enquanto director técnico responsável pela obra, poderá tê-la, sim, mas perante a firma construtora/vendedora e no âmbito de um contrato de prestação de serviços. Mas, será que as funções de projectista e director técnico de obra, por parte do recorrido, não o co-obrigam, ainda que em sede de responsabilidade civil extracontratual? São conhecidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito (facto, ilicitude, imputação do facto ao lesante, dano e nexo de causalidade entre facto e dano – art.º 483.º do CC), relevando hic et nunc a ilicitude, que se traduz na infracção de um dever jurídico. Pode revestir duas modalidades: a) – Violação de um direito de outrem, ou seja, infracção de um direito subjectivo, principalmente direitos absolutos, como os direitos reais (art.ºs 1251.º e ss do CC) e de personalidade (art.ºs 70.º e ss do CC); b) – Violação de disposições legais destinadas a proteger interesses alheios. O que aqui releva não é qualquer violação de deveres jurídicos. Há que perscrutar o fim da disposição, necessário sendo que vise proteger interesses particulares e não outros, ainda que deles possa aproveitar-se e que o dano se produza no círculo de interesses privados que a lei tem em vista tutelar.[3] Parece claro que o R., ainda que admitindo que enquanto projectista e director técnico da obra não acompanhou devidamente a execução da construção da moradia e não registou no livro de obra todos os factos relevantes, não atentou contra qualquer direito dos AA. recorrentes, v. g., contra o direito de propriedade, que era o que aqui poderia estar em causa, até porque e não obstante a existência (parece) de um contrato-promessa de compra e venda os AA., só se tornaram proprietários do imóvel após a execução da obra, na sequência do contrato de compra e venda, titulado pela respectiva escritura pública, sabendo-se que a promessa não é translativa, somente obrigacional (contratos a que, já vimos, o recorrido era res inter alios). Daí que a 1.ª modalidade de ilicitude esteja arredada. Sustentam os recorrentes, nas alegações, que o recorrido enquanto director técnico não orientou nem fiscalizou os trabalhos e violou normas legais urbanísticas sancionadas a título contra-ordenacional, designadamente a omissão no livro de obra da alteração ao projecto. Percorrendo as diversas normas do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE) (DL n.º 559/99 de 16.12) não encontramos definição do conteúdo funcional do técnico autor de projecto e de director técnico de obra, funções que aqui o recorrido assumiu cumulativamente. Contudo, podemos ver que a responsabilidade para o autor do projecto radica no respectivo “termo de responsabilidade”, que obrigatoriamente deve instruir o processo de licenciamento (art.º 10.º e Portaria n.º 1110/01 de 19.9, anexo I) em como foram observadas as normas legais e regulamentares aplicáveis, designadamente as norma técnicas de construção em vigor. E para o director de obra igualmente relevante é o “termos de responsabilidade” a que alude o art.º 63.º daquele RJUE e cit. Portaria, anexo, II, em como a obra foi executada de acordo com o projecto e licença e as normas legais e regulamentares. E tal declaração é tão relevante quanto hoje dispensa a vistoria prévia municipal para a concessão de licença de utilização e só em casos de indícios de a mesma não ser verdadeira há lugar a ela (art.º 64.º). As falsas declarações em tais termos de responsabilidade podem integrar responsabilidade contra-ordenacional ou criminal (art.ºs 98.º, n.º 1, alíns. e) e f) e 5 e 100.º, n.º 2, do RJUE). Também a falta do livro de obra ou a falta dos registos pelo técnico podem integrar ambos os tipos de responsabilidade (idem, art.º 98.º, n.º 1, alín. e) e 6 e 100.º, n.ºs 1 e 2). Não é de excluir também a responsabilidade disciplinar desencadeada pelas respectivas associações profissionais (idem, art.º 99.º, n.º 3).[4] Daqui resulta que os valores subjacentes a essas normas de ilícito urbanístico têm cariz essencialmente administrativo e só reflexamente visam proteger interesses particulares.[5] Daí que e em conclusão, a possível violação dos deveres jurídicos em causa, atentas as considerações expendidas, não pode fundamentar a 2.ª vertente da ilicitude relevante para integrar a responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito. * 3. Resumindo e concluindo O engenheiro técnico civil, autor dos projectos e director técnico da obra não é responsável perante os compradores de imóvel comprado à firma que o construiu, pela eliminação de possíveis defeitos nem com base em responsabilidade contratual, atento o princípio da eficácia relativa dos contratos (n.º 2 do art.º 406.º do CC), a que foi de todo estranho, nem em responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, desde logo porque arredado o pressuposto da ilicitude do seu procedimento (art.º 483.º, n.º 1, do CC). Importa, assim, julgar improcedentes as conclusões recursivas e confirmar a douta decisão recorrida. * 4. Decisão Face a todo o exposto, acordam em negar provimento ao agravo e confirmar a decisão recorrida Custas pelos agravantes.
|