Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
590/19.4T8GRD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: RECONVENÇÃO
ADMISSIBILIDADE PROCESSUAL
Data do Acordão: 03/17/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – JL CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA – JUIZ 4
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 266º, Nº 2, AL. A) DO NCPC.
Sumário: I - A admissibilidade da reconvenção pressupõe uma conexão objectiva entre as duas ações, um nexo entre os objectos da causa inicial e da causa reconvencional.

II - O pedido reconvencional do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação se existir identidade, total ou parcial, de ambas as causas de pedir, a da ação e da reconvenção

III - O pedido reconvencional do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à defesa quando faz nascer uma questão prejudicial em relação à causa principal, ou seja, produza “efeito útil defensivo”, capaz de reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

            1.1.- A Autora – M... – instaurou acção declarativa, com forma de processo comum, contra os Réus

            Herança aberta por óbito de O... ( representada por J...)

            Electro E...

            Herança aberta por óbito de J... ( representada por N...)

            Alegou, em resumo:

            J... exerce a actividade comercial, como empresário em nome individual, com a designação comercial de Electro E..., em cujo estabelecimento trabalhavam a falecida esposa, O... e um filho de ambos, J...

            A Autora nos anos de 2007, 2011 e 2012 fez vários empréstimos a favor dos Réus, através da E..., num total de €70.200,00, que, apesar de interpelados, não pagaram.

            Pediu a condenação dos Réus a declarar vencidos todos os contratos de mútuo, totalizando €70.200,00 e a restituírem esta quantia, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação.

1.2.- O Réu N... contestou, defendendo-se, em síntese:

            Por excepção, arguiu o caso julgado, a ilegitimidade passiva, por preterição de litisconsórcio, a nulidade formal dos mútuos, bem como a simulação.

            Nas datas dos mútuos, J... era casado com O..., mas mantinha com a Autora uma relação de concubinato adulterino, sendo do conhecimento da esposa e demais família, sendo que dessa relação nasceu um filho. Os contratos de mútuo  são simulados, pois foram feitos com o objectivo de servir de garantia à Autora e ao seu filho  na partilha dos bens do património comum do J... e esposa.

            Em reconvenção, alegou resumidamente:

            Desde pelo menos 1998 que Autora e J... vivem em comum, partilham a mesma cama, relacionam-se afectiva e sexualmente.

            Porque o J... era casado com O..., tais factos configuraram violação dos deveres conjugais, retiraram o sono e a  vontade de comer à O... e demais familiares, vivendo em permanente estado de violência psicológica, que lhe causou doença, mal estar e até processo de envelhecimento, danos que merecem a tutela do direito e estimam em €25.000,00.

            Na vigência da vida em comum, J... e a Autora compraram a casa onde vivem pelo preço de €80.000,00, e dois veículos automóveis, no valor de € 15.000,00 e € 20.000,00, bem como os bens móveis que constituem o recheio da casa, assistindo à herança por óbito da O... metade desse valor.

            Concluiu pela improcedência da acção e em reconvenção pediu a condenação da Autora:

            A reconhecer que O... faleceu no estado de casada com o Réu J...;

A reconhecer que no período de 1998 e até hoje o Réu J... afectou os seus recursos económicos à sociedade irregular que estabeleceu com a Autora e neste período adquiriram ambos os bens melhor descritos nos arts.80, 81 e 82;

            A condenar a Aurora a reconhecer que a herança por óbito da O... é dona de metade do indicado património;

            A condenar a A. a pagar aos herdeiros ou à herança de O..., a título de danos não patrimoniais, a quantia de €25.000,00.

            1.3.- Por despacho de 28/11/2019, decidiu-se não admitir o pedido reconvencional.

Justificou-se, a dado passo:

“Os danos decorrentes da alegada relação extraconjugal entre a autora e o réu J... não se configuram nenhuma das hipóteses salvaguardas pela referida alínea a), não existindo conexão com o facto jurídico que serve de fundamento à ação proposta pela autora, nem com o ato ou facto jurídico que serve de fundamento à defesa do réu N... 

Com efeito, os pedidos formulados na ação e na reconvenção não têm como fundamento factos conexos, isto é, os factos alegados pelo referido réu reconvinte não se enquadram, estritamente, na causa de pedir da ação. 

E nem se pode dizer que o pedido de indemnização formulado pelo réu reconvinte emerge do facto jurídico que serve de fundamento à defesa, no sentido de que resulta de factos com os quais indiretamente impugna, os alegados na petição inicial. 

Por outro lado, como acima já aludimos, a alínea c) do n.º 2 do artigo 266º do Código de Processo Civil, admite a reconvenção quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor. 

Em sede de direito substantivo, de acordo com o disposto no artigo 847º do Código Civil, quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor, desde que preenchidos os seguintes requisitos: ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele exceção, perentória ou dilatória, de direito material e terem as duas obrigações por objeto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade. 

A compensação impõe que se admita o crédito do autor, ao qual o réu opõe o seu próprio crédito; não opera por simples efeito do direito, impondo-se que haja manifestação de vontade de um dos credores - devedores nesse sentido. 

A declaração de compensação reporta a extinção dos créditos ao momento em que se tornaram compensáveis - artigo 854.º do Código Civil.   No caso em apreciação, também a factualidade alegada claramente não preenche a previsão da alínea c) do n.º 2 do artigo 266.º do Código de Processo Civil.

Deste modo, não se encontrando preenchidas qualquer uma das condições de admissibilidade, em termos substanciais, previstas no artigo 266º, nº2 do C.P.C., conclui-se que o pedido reconvencional deduzido pelo réu N... é, neste caso, inadmissível. “

1.4.- Inconformado, o Réu recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

...

A Autora contra-alegou no sentido da improcedência do recurso.


II – FUNDAMENTAÇÃO

            2.1.- O objecto do recurso

            A questão suscitada no recurso consiste em saber se são legalmente admissíveis os pedidos reconvencionais.

            2.2. – O mérito do recurso

            A reconvenção tem sido definida como uma acção cruzada ou contra-acção, facultativa, para cuja admissibilidade a lei exige requisitos processuais e requisitos materiais ou objectivos.

Para que a reconvenção seja admissível torna-se indispensável uma conexão objectiva entre as duas acções, ou seja, um nexo entre os objectos da causa inicial e da causa reconvencional.

O art. 266º, nº2, a) do CPC ( mantendo o anterior texto do art.274º, nº2, a) do CPC/61) estabelece que a reconvenção é admissível quando “o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa”.

            Esta norma tem sido consensualmente interpretada no sentido de que deve verificar-se uma identidade, total ou parcial, de ambas as causas de pedir, a da acção e da reconvenção ( cf., por todos, Miguel Mesquita, Reconvenção e Excepção no Processo Civil, pág.146 e segs.).

            Dissertando sobre a noção de causa de pedir para efeitos de reconvenção, Mariana Gouveia esclarece ser necessário identidade, ainda que parcial, de factos essenciais ou principais, isto é, os que constam da norma como constitutivos do direito, para concluir que “ a causa de pedir, para efeitos de admissibilidade de reconvenção, deve ser definida através do facto principal comum a ambas as contra-pretensões” (A Causa de Pedir na Acção Declarativa, pág. 270 ).

            Por seu turno, o facto jurídico que serve de fundamento à defesa significa tratar-se de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor fazendo nascer uma questão prejudicial relativamente à causa principal. Como acentua Miguel Mesquita “ao admitir os pedidos reconvencionais alicerçados numa relação de prejudicialidade-dependência, o legislador visa promover, para além da óbvia economia processual, a harmonia entre decisões” (loc. cit., pág. 162).

Neste contexto, e sobre a aplicação da segunda parte da alínea a) do nº2 do art. 266 CPC, entende-se não ser suficiente que o réu alegue qualquer facto do qual possa extrair um efeito jurídico através da reconvenção, pois é necessário que o facto alegado produza “o efeito útil defensivo”, que seja capaz de reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor (cf., por ex., Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, vol. II, 3ª ed., pág. 32, Marco António de Aço e Borges, A Demanda Reconvencional, 2008, pág. 42; Ac RG 10/7/2018 ( proc. nº 1630/17), Ac RL de 8/10/2019 ( proc. nº 45824/18), disponíveis em www dgsi.pt ).

No caso concreto a causa de pedir da acção é o contrato de mútuo e o incumprimento (responsabilidade contratual), sendo que a pretensão reconduz-se ao pedido de restituição dos valores mutuados (€70.200,00).

            A causa de pedir da reconvenção traduz-se num hipotético crédito da herança por óbito de O... assente em responsabilidade civil extracontratual (violação dos deveres conjugais a que o marido estava adstrito, por a Autora se relacionar com ele).

Este problema enquadra-se no âmbito da responsabilidade civil no direito de família e a ressarcibilidade por danos não patrimoniais nas relações de conjugalidade, a partir da norma do art.1972º, nº 1  do CC ( redacção do DL nº 496/77, de 25/11) que traduzia a chamada “teoria da fragilidade da garantia”, segundo a qual pelo facto de os deveres conjugais serem imbuídos de uma natureza própria, tal impediria uma indemnização pelo seu incumprimento. Mas esta concepção vinha sendo posta em causa, argumentando-se que aos deveres conjugais correspondem direitos subjectivos cuja lesão pode provocar danos.

A Lei nº 61/2008, de 31/10 (que aprovou o novo regime do divórcio) alterou a redacção do art.1792º do CC e deixou de prever expressamente a possibilidade de o cônjuge (inocente) pedir indemnização pelos danos não patrimoniais causados pela dissolução, ressalvando os casos em que o divórcio tenha por fundamento a al. b) do art.1781º CC (alteração das faculdades mentais), remetendo agora para o regime geral da responsabilidade civil (art.483º e segs. CC ), embora se divirja quanto à sua amplitude.

A teoria da fragilidade da garantia foi, por isso, postergada, pelo que a violação dos deveres conjugais pode implicar uma situação de responsabilidade civil extracontratual e daí que o art.1792º, nº1 CC reforce que o cônjuge lesado tem o direito de pedir a reparação dos danos causados pelo outro, nos termos gerais da responsabilidade civil, ou seja, na cláusula geral do art.483º do CC.

Contudo, não sendo aqui demandado o J..., postula-se a questão da responsabilidade do terceiro cúmplice (a Autora) na violação do dever de fidelidade, tratando-se de uma problemática que divide as opiniões ( cf., por ex., Castro Mendes, Direito da Família, pág.26; Leite Campos, Lições de Direito da Família, pág.132).

Mesmo que se admitisse a responsabilização do terceiro cúmplice, com base na cláusula geral do art.483º CC, a verdade é que o pedido não emerge da causa de pedir da acção, nem dos fundamentos da defesa (como a nulidade do mútuo tanto por vício de forma, como por simulação).

Quanto ao pedido reconvencional de condenação da Autora a reconhecer que a herança por óbito de O... é dona de metade do património constituído pelos bens descritos nos arts. 80, 81 e 81 da contestação, também aqui não tem qualquer conexão com a causa pedir da acção principal, nem com os fundamentos da defesa.

E não tem, desde logo, porque o Réu alegou que os bens pertencem à sociedade irregular constituída por Autora e J...

De um modo geral designa-se por sociedade comercial irregular aquela sociedade que não está formalmente constituída, ou seja, que enferma de vício de forma (formalidade ad substantiam). Com efeito, a lei impõe que a sociedade seja constituída por documento escrito ( art.7º do CSC ) e o registo obrigatório, visto que as sociedades só adquirem personalidade jurídica com o registo definitivo da sua constituição (art.5º do CSC).

À sociedade comercial irregular aplicam-se as normas dos arts.980º e segs. do CC, que regem as sociedades civis, por força do art.36º, nº 2 do CSC. Embora sem personalidade jurídica, a sociedade comercial irregular tem personalidade judiciária (art.12 do CPC ), logo, na perspectiva da alegação do reconvinte nunca poderia ser demandada a Autora.

Além disso, também a alegação nem sequer consubstancia um contra-crédito do Réu contra a Autora, para que pudesse ser admitido a coberto da alínea c) do nº 2 do art. 266º CPC.

Note-se que a compensação (art.847º CC ) é uma forma de extinção das obrigações, no caso de créditos recíprocos, em que o credor de uma delas é devedor na outra e o credor desta última é devedor na primeira. Ou seja, se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem. Pressupõe a reciprocidade dos créditos, a validade, exigibilidade e exequibilidade do contra-crédito, a fungibilidade e homogeneidade das prestações, a existência e validade do crédito principal.

O que o Réu alegou foi um crédito a favor da herança por óbito da Otília, mas a reciprocidade de créditos exigiria que se tratasse de um contra-crédito do Réu (reconvinte) o que manifestamente não é o caso, pois o reconvinte representa a herança aberta por óbito do J...

Improcede a apelação.

2.3.- Síntese conclusiva

a). A admissibilidade da reconvenção pressupõe uma conexão objectiva entre as duas acções, um nexo entre os objectos da causa inicial e da causa reconvencional.

b). O pedido reconvencional do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção se existir identidade, total ou parcial, de ambas as causas de pedir, a da acção e da reconvenção

c). O pedido reconvencional do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à defesa quando faz nascer uma questão prejudicial em relação à causa principal, ou seja, produza “efeito útil defensivo”, capaz de reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor.


III – DECISÃO

            Pelo exposto, decidem:

1)

Julgar improcedente a apelação e confirmar o despacho recorrido.

2)

Condenar o Apelante nas custas.

Relação de Coimbra, 17 de Março de 2020.

Jorge Arcanjo ( Relator )

Isaías Pádua

Teresa Albuquerque