Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1237/20.1T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: REJEIÇÃO DO RECURSO DE FACTO
CONSTITUIÇÃO DE SERVIDÃO DE PASSAGEM POR DESTINAÇÃO DE PAI DE FAMÍLIA
DECLARAÇÃO CONSTANTE DE ESCRITURA PÚBLICA DE OPOSIÇÃO À CONSTITUIÇÃO DE TAL SERVIDÃO
Data do Acordão: 05/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1543.º E 1549.º, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 607.º; 640.º, 2, A) E 663.º, 2, DO CPC
Sumário: i) Estando o depoimento gravado, se a recorrente, não indica com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, não indicando nenhuma passagem, nem em texto, nem temporalmente na fita da gravação (cujo início e termo nem sequer apontou), e nem sequer transcreveu excertos que considerasse relevantes, apesar dessa transcrição ser facultativa, esse procedimento, em desrespeito pelo estatuído no art. 640º, nº 2, a), do NCPC, implica rejeição imediata do recurso nesta parte, respeitante a tal testemunha;
ii) Um dos requisitos legais da constituição da servidão por destinação do pai de família (art, 1549º do CC), é que os prédios ou as fracções do prédio se separem quanto ao seu domínio e não haja no documento respectivo nenhuma declaração oposta à constituição do encargo;

iii) Esta reserva, em escritura pública, verifica-se se os vendedores aí o declararam expressamente, relativamente a uma relação de serventia, ou tacitamente, se declararem que o imóvel em causa é vendido livre de quaisquer ónus ou encargos.

Decisão Texto Integral:

I - Relatório

1. AA e mulher BB, residentes em ..., intentaram acção declarativa contra A..., UNIPESSOAL, LDA., com sede em ... e Banco 1..., SA (originalmente B... – SOCIEDADE FINANCEIRA DE CRÉDITO, S.A.), com sede em ..., pedindo sejam:

1. As rés condenadas a reconhecer que os autores são donos e legítimos proprietários do prédio identificado no artigo 1º, pois que o adquiriram pela via do instituto da usucapião;

2. As rés condenadas a reconhecer que o prédio identificado no artigo 1º é dominante relativamente ao prédio identificado no artigo 6º, este serviente, existindo uma serventia de passagem, com largura de 3 metros e comprimento de 29,50 metros, que atravessa toda a parte sul do prédio identificado no artigo 6º, possibilitando o acesso da Rua ... ao prédio identificado no artigo 1º e deste para aquela Rua, quer a pé quer de carro;

3. condenados a demolir o muro justaposto ao portão instalado no prédio identificado no artigo 1º, por forma a que o acesso deste para a Rua ... e vice-versa possa ter lugar;

4. condenados a retirar o portão instalado no prédio identificado no artigo 6º e identificado nos artigos 44º, 45º e 46º, por forma a que este não impeça a passagem dos autores pela serventia sempre em causa, deixando sempre uma largura de três metros ao longo da serventia;

5. Condenados a demolir o acrescento do muro dos autores, situado na parte poente do prédio identificado no artigo 1º, retirando-lhe três filas de blocos, numa altura de 75cm, por forma a que este seja reposto na altura que tinha antes da intervenção da primeira ré;

6. condenados a repor as terras que retiraram da serventia, repondo a sua cota, com compactagem da terra e com colocação de saibro, tudo de modo a que os autores nela possam transitar livremente e sem obstáculos, tal e qual antes faziam;

7. condenados a abster-se de por qualquer meio obstaculizarem e impedirem a utilização da serventia, que é de pé e carro, por parte dos autores ou por quem estes permitam o acesso ao prédio identificado no artigo 1º;

8. condenada a primeira ré a pagar aos autores uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de 3.000 €.

Alegaram, em suma, ser donos e legítimos possuidores dos imóveis identificados nos artigos 1º e 2º da p.i., confinantes, que adquiriram por usucapião. Quanto ao prédio mencionado no artigo 6.º, por escritura de justificação e compra e venda, justificaram a aquisição e acto contínuo, pela mesma escritura, venderam tal prédio à firma C..., Lda., compra e venda esta que foi precedida de um contrato-promessa no qual se clausulou a constituição de uma servidão predial voluntária em benefício do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial. Foi aberta uma determinada serventia de passagem, sendo por esse caminho/serventia que os autores passaram a aceder do prédio identificado no artigo 1º à via pública. Desde 12/1991 que os autores acedem ao prédio identificado no artigo 1º, através da utilização de tal caminho, sempre na convicção de gozarem de um direito próprio de passagem, sem interrupção, ostensivamente e sem oposição de ninguém. Por essa serventia sempre passaram tractores, veículos, trabalhadores contratados pelos autores, os próprios autores, familiares destes, sempre que necessário. O único meio de o prédio identificado no artigo 1º ter ligação à via pública é pela serventia que há mais de 20/30 anos existe e cuja manutenção foi convencionada previamente ao negócio celebrado entre os autores e a C.... Entretanto, os autores vieram a constatar que a 1ª ré havia tapado a serventia atrás referida. Pretendem ainda os autores ser ressarcidos em sede de danos não patrimoniais.   

A 1ª ré contestou, excepcionando a prescrição da obrigação prevista no contrato-promessa de constituição de uma servidão predial voluntária, que nunca, nos 30 anos decorridos desde a celebração da promessa, foi outorgar mediante escritura pública. Os autores (por intermédio da sua filha) usam os dois prédios referidos em 1º e 2º da p.i. como se se tratasse de um só. Assim, os 2 prédios dos autores constituem materialmente um só, por estarem ambos vinculados a uma mesma utilização. Assim, o prédio referido em 1º da p.i. não pode ser considerado, em caso algum, um prédio encravado. Para mais, na escritura pública de 12/1991, pela qual venderam o prédio à C..., os autores declararam que o imóvel atrás identificado não está sujeito a qualquer ónus ou encargo. Assim, o alegado encrave do prédio dos autores resultou exclusivamente de acto seu, sem qualquer motivo justificável, o que implicaria abuso do direito dos autores. Os autores, desde 12/1991, nunca usaram a alegada passagem pelo prédio da ré, não existindo ali nenhuma serventia, mas mesmo admitindo que tal servidão existisse, a mesma extinguiu-se pelo não uso durante vinte anos.  

Em reconvenção, subsidiariamente, para o caso de ser julgada procedente a acção, pede que seja declarada a extinção da servidão de passagem, por desnecessidade, nos termos do disposto no nº 2 do art. 1569º do CC.

A 2ª ré também contestou, aduzindo que, na data em que adquiriu o imóvel, não constava do respectivo registo predial qualquer servidão de passagem a favor de qualquer prédio confinante, nem foi informada da existência de tal servidão, sendo por isso terceiro de boa fé. Impugnou a restante matéria.

Os autores replicaram, excepcionando a ilegitimidade da 1ª ré, mera locatária, para peticionar a extinção de uma servidão que onera um prédio de que não é proprietária. Que a servidão em causa é voluntária e constituiu-se mesmo não se tendo chegado a outorgar escritura pública ou documento equivalente de constituição da servidão, pois sendo o promitente-vendedor dono tanto do prédio dominante como do prédio dominado e tendo-se iniciado o uso da servidão, a criação de uma servidão nas referidas condições traduz-se na constituição de uma servidão voluntária por destinação de pai de família, a qual não carece de qualquer formalização legal. Enquanto servidão constituída por destinação de pai de família, a servidão a que se referem os autos não pode ser extinta por desnecessidade. Sendo o prédio totalmente encravado, a servidão em causa é, hoje como desde há muito, absolutamente necessária ao prédio dominante. No demais impugnaram.

A 1ª ré respondeu às excepções deduzidas contra a reconvenção, pugnando pela respectiva improcedência.

Face ao óbito da autora, foram habilitados seus herdeiros, além do autor os filhos CC, DD, EE e FF.

Face ao óbito do autor, foram habilitados seus herdeiros, os seus filhos, já habilitados, CC, DD, EE e FF.

Entretanto, a autora-habilitada EE informou que os herdeiros procederam à partilha das heranças dos primitivos autores, nos termos da qual lhe foram adjudicados os imóveis identificados nos artigos 1º e 2º da petição inicial. 

*

A final foi proferida sentença que:

- Declarou extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, em relação a CC, DD e FF, herdeiros habilitados dos primitivos autores (art. 277º, e), do NCPC).

- Julgou a acção parcialmente procedente, e, em consequência, declarou que a A./habilitada EE é legítima proprietária do prédio descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...30, freguesia ..., aí inscrito a seu favor por partilha da herança dos primitivos autores AA e BB.

- Absolveu ambas as RR do demais peticionado na acção.

- Julgou prejudicada a apreciação da reconvenção, formulada a título subsidiário, apenas para a hipótese de procedência da acção.

*

2. A A./habilitada recorreu, formulando as seguintes conclusões:

1 – O presente recurso é interposto da D. sentença proferida pelo Tribunal “ a quo” na parte em que decidiu absolver ambas as Rés do demais peticionado na acção, designadamente: a as Rés reconhecerem que o prédio identificado no artigo 1º é dominante relativamente ao prédio identificado no artigo 6º, este serviente, existindo uma serventia de passagem, com largura de 3 metros de comprimento e 29,50 metros, que atravessa toda a parte sul do prédio identificado no artigo 6º, possibilitando o acesso da Rua ... ao prédio identificado no artigo 1º e deste para aquela rua, quer a pé, quer de carro; a demolir um muro justaposto ao portão instalado no prédio identificado no artigo 1º da p.i., por forma a que o acesso deste para a Rua ... e vice-versa possa ter lugar; a retirar o portão instalado no prédio identificado no artigo 6º, por forma a que este não impeça a passagem dos Autores pela serventia, deixando sempre uma largura de três metros ao longo da serventia; a demolir o acrescento do muro dos Autores, por forma a que este seja reposto na altura que tinha antes da intervenção da Primeira Ré, e a repor as terras que retiraram da serventia, repondo a sua cota, tudo de modo a que os Autores nela possam transitar livremente e sem obstáculos, tal e qual faziam antes; a abster-se de por qualquer meio obstaculizarem e impedirem a utilização da serventia, quer a pé quer de carro, por parte dos Autores ou por quem estes permitam; condenados em custas e no mais que for de lei.

2 – Porquanto, entendeu a Meritíssima Juiz “a quo” que, cotejada a matéria de facto dada como provada e dada como não provada, é manifesto que os Autores não lograram provar, como lhes competia, os factos constitutivos da invocada servidão de passagem constituída por usucapião, não se tendo provado que, após a venda do prédio identificado no ponto 6 dos factos provados à firma C..., em 30/12/1991, os Autores tenham continuado a aceder ao prédio identificado no ponto 2) dos factos provados, desde a Rua ... para este e deste para a Rua ..., através da utilização do caminho em discussão, sempre na convicção de gozarem de um direito próprio de passagem, sem interrupção, ostensivamente e sem oposição de ninguém, designadamente dos gerentes da C... e de toda a gente.

3 - Motivo pelo qual improcede o pedido de reconhecimento da existência de servidão de passagem, constituída por usucapião, a onerar o prédio da 2ª Ré – de que a 1ª ré é locatária financeira – em benefício do prédio dos autores (hoje, da autora/Recorrente, habilitada por sucessão hereditária).

4 - Com o devido respeito, é nosso entendimento que a Meritíssima Juiz “a quo”, ao decidir da forma como o fez, decidiu mal e em desconformidade com a lei, bem como não foi feita uma correcta apreciação e valoração da prova testemunhal, verificando-se, assim, um erro notório de apreciação da prova produzida.

5 - A Apelante recorre assim, da matéria de facto e de direito.

6 – Devendo atentar-se na prova produzida, designadamente nos depoimentos das testemunhas GG, HH e II, que, no nosso entendimento, não foram devidamente valorados e que estão em contradição com as conclusões retiradas pela Meritíssima Juiz “a quo” na sentença agora em crise e que impõe decisão diferente.

7 - Está aqui em causa (na presente acção) o pedido de reconhecimento da existência de uma servidão de passagem, constituída por usucapião, ou por destinação do pai de família, a favor do prédio da recorrente sobre o prédio da Recorrida e sobre o qual incide locação financeira a favor da Banco 1....

8 - Para que se possa constituir a servidão de passagem por usucapião, para além do requisito da existência de sinais visíveis e permanentes da servidão, têm que ser preenchidos os requisitos dos artigos 1287º e seguintes do C. Civil.

9 - Ora, as testemunhas GG, JJ e II, conforme bem resulta dos excertos supra transcritos dos respectivos depoimentos prestados em audiência de julgamento, afirmaram ter passado na serventia objecto dos autos, ao longo dos anos, quer para o fornecimento de materiais de construção aquando da construção dos muros de vedação do terreno, quer para a limpeza do terreno (nos anos de 2015, 2016, 2017 e 2018, 1 a 2 vezes por ano como é comum), estes a pedido do Senhor Cid, também para despejar fossas e para lavrar o terreno, ou seja, sempre que foi necessário ir àquele terreno para uma qualquer actividade a aí desenvolver.

10 -Tendo todas estas deslocações ocorrido após o ano de 2000, ou seja, após a venda do terreno ocorrida em 30/12/1991, pelo que ficou e está demonstrado que os Autores continuaram a aceder ao prédio identificado no ponto 2) dos factos provados após a venda do prédio identificado no ponto 6 dos factos provados à firma C..., em 30/12/1991.

11 - E que em todas essa deslocações o fizeram desde a Rua ... para aquele e daquele para a Rua ..., através da utilização do caminho em discussão, serventia que dizem estar bem visível, feita em pó de terra e sem que alguém e, designadamente o senhores gerentes da C..., alguma vez lhe tenham dito para ali não passarem ou os impediram de ali passar. Muito pelo contrário.

12 - A testemunha GG diz mesmo que quando foi ao terreno levar os materiais de construção, que estavam pessoas a trabalhar nas instalações da C... e que o terão necessariamente visto passar, pois que o camião fazia barulho.

Ninguém o impediu, ou lhe disse o que quer que seja.

13 - Ainda, a testemunha HH diz ter mesmo ido chamar o dono do barracão pedindo-lhe que aquele retirasse da serventia uma carrinha que ali se encontrava, o que aquele fez, sem nada manifestar, disponibilizando-se o voltar a fazer se necessário.

14 - Ou seja, passaram sem a oposição de ninguém e à vista de toda a gente.

15 - Todas estas testemunhas descreveram pormenorizadamente o percurso que fizeram e o caminho que utilizaram para aceder ao terreno identificado no ponto 2 dos factos provados.

16 - Mais referindo, tratar-se de uma servidão com cerca de 3 metros de largura (o que é confirmado até pela dimensão do camião grua que a testemunha GG utilizou para ir levar os materiais de construção) e de cerca de 30 metros de comprimento.

17 - Ainda, todas as testemunhas supra referidas afirmaram ser este o único acesso, com ligação directa à via pública, daquele terreno com veículos automóveis e a pé, não havendo qualquer ligação directa à via pública, que não seja, pela referida servidão.

18 - Mais sendo referido que não há possibilidade de passar com qualquer veículo do prédio da Recorrente para este prédio, pois que existe um muro a separados dois terrenos e o terreno da Recorrente está a um nível mais alto que o terreno identificado no ponto 2 dos factos provados.

19 - Pelo que, se conclui que o prédio está encravado, dizendo-se que o prédio está encravado quando não tem acesso à via pública (ou quando o acesso existente é insuficiente) – artigo 1550º do C. Civil, ou seja, um prédio está encravado quando não tem comunicação com a via pública.

20 - O que é o caso dos autos.

21 - Desta forma, atento o supra exposto e a prova produzida (nomeadamente a testemunhal aqui referida), deverão ser considerados provados os seguintes factos:

A) Desde 30/12/1991 que os Autores acedem ao prédio identificado no ponto 2) dos factos provados, desde a Rua ... para este e deste para a Rua ..., através da utilização de tal caminho, sempre na convicção de gozarem de um direito próprio de passagem, sem interrupção, ostensivamente e sem oposição de ninguém, designadamente dos gerentes da C... e de toda a gente. (corresponde ao ponto 4 dos factos não provados).

B) Servidão de passagem essa com uma largura de 3 metros em toda a sua extensão, e com cerca de 30 metros de comprimento. (corresponde parcialmente ao ponto 5 dos factos provados).

C) Os gerentes da C... nunca obstaculizaram por qualquer meio ou atitude a utilização da dita serventia por parte dos autores ou por parte dos filhos destes. (corresponde parcialmente ao ponto 6 dos factos não provados)

D) o prédio dos autores identificado no ponto 2 dos factos provados, é dominante relativamente ao prédio identificado no ponto 6 dos factos provados, que, no caso, é prédio serviente (corresponde parcialmente ao ponto 6 dos factos não provados)

E) Desde 30/12/1991, por essa serventia sempre passaram tractores, veículos trabalhadores contratados pelos autores, os próprios autores, familiares destes, sempre que necessário, designadamente para limpeza do terreno, limpeza de fossas, para materiais de construção. (Ponto 7 dos factos não provados alterado)

F) O único contacto directo com a via pública do prédio identificado em 2 dos factos provados é pela serventia cuja manutenção foi convencionada previamente ao negócio celebrado entre os Autores e a C... (ponto 9 dos factos provados com redacção alterada).

22 - Em suma, impõe-se a conclusão de que foi adquirido por usucapião o direito de passagem a favor do prédio identificado no ponto 2 dos factos provados, propriedade da Recorrente, sobre o prédio identificado no ponto 6 dos factos provados, propriedade da Recorrida.

23 - Devendo as Recorridas reconhecer que o prédio identificado no ponto dois dos factos provados é dominante relativamente ao prédio identificado no ponto 6 dos factos provados, este serviente, existindo uma serventia de passagem, com largura de 3 metros de comprimento e cerca de 30 metros de comprimento, que atravessa toda a parte sul do prédio identificado no ponto 6 dos factos provados, possibilitando o acesso da Rua ... ao prédio identificado no ponto 2 dos factos provados e deste para aquela rua, quer a pé, quer de carro.

24 - E devendo proceder as demais pretensões associadas (demolição do muro e do acrescento do muro, retirada do portão, reposição de terras, abstenção de actos que obstaculizem ou impeçam a utilização da servidão.

25 - Caso assim se não entenda, sem conceder, sempre há que considerar-se constituída a servidão de passagem por destinação de pai de família, porquanto se encontram preenchidos todos os requisitos para a sua constituição.

26 - Não sendo suficiente, com o devido respeito por melhor opinião, para a afastar a referência na escritura pública de compra e venda de que a venda não estava sujeita a qualquer ónus ou encargos, devendo referir-se expressamente à servidão de passagem, o que não se verifica.

Termos em que se requer a V. Exªs que seja dado provimento ao presente recurso, que apreciem a gravação da prova e, consequentemente, ser a D. sentença recorrida revogada e substituída por outra que dê como provado os factos constantes das alíneas A) a F) aqui identificados, julgando-se procedentes os pedidos, com todas as demais consequências, assim se fazendo a tão costumada JUSTIÇA.

3. Inexistem contra-alegações.

 

II – Factos Provados

 

1) A 21/09/2023, no âmbito do Procedimento Simplificado de Partilha e Registos n.º 4180/2023, lavrado na Conservatória do Registo Civil ..., os herdeiros dos primitivos autores procederam à partilha das heranças deixadas por óbito destes, nos termos da qual os imóveis identificados nos artigos 1.º e 2.º da petição inicial (verbas n.º 5 e 6 da relação de bens constante do título da partilha) foram adjudicados a EE. (certidão junta a 26/09/2023)

2) Mostra-se descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...21, freguesia ..., o prédio urbano sito em ..., com a área total de 413 m2, toda ela descoberta, composto de parcela de terreno destinada a construção urbana, a confrontar do Norte com KK, do Sul com «D..., Lda.» e do Nascente e do Poente com AA, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo ...27. (certidão de registo predial junta a 26/09/2023)

3) A aquisição de tal prédio encontra-se definitivamente inscrita no registo a favor de EE, casada com II, no regime da comunhão de adquiridos, por partilha da herança de AA e BB, através da apresentação ...10 de 21/09/2023. (mesma certidão de registo predial)

4) Mostra-se descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...21, freguesia ..., o prédio urbano sito em ..., com a área total de 320 m2, sendo 83 m2 de área coberta e 237 m2 de área descoberta, composto por casa de rés-do-chão para habitação e logradouro, a confrontar do Norte com caminho, do Sul com LL, do Nascente com MM e do Poente com NN, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo ...87. (certidão de registo predial junta a 26/09/2023)

5) A aquisição de tal prédio encontra-se definitivamente inscrita no registo a favor de EE, casada com II, no regime da comunhão de adquiridos, por partilha da herança de AA e BB, através da apresentação ...10 de 21/09/2023. (mesma certidão de registo predial)

6) Mostra-se descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...20, freguesia ..., o prédio urbano sito na Rua ..., ..., ..., com a área total de 600 m2, sendo 269,6 m2 de área coberta e 330,4 m2 de área descoberta, composto por pavilhão industrial de 3 pisos e logradouro, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo ...28. (certidão de registo predial junta sob documento n.º 4 com a petição inicial)

7) A aquisição de tal prédio encontra-se definitivamente inscrita no registo a favor de «B... – SOCIEDADE FINANCEIRA DE CRÉDITO, S.A.», por compra a «C..., LDA.», através da apresentação ...98 de 21/03/2019. (mesma certidão de registo predial)

8) Sobre tal prédio mostra-se ainda registada, pela apresentação ...99 de 21/03/2019, a locação financeira a favor de «A..., UNIPESSOAL, LDA.», pelo prazo de 120 meses com início nessa data de 21/03/2019. (mesma certidão de registo predial, conjugada com o teor do documento junto com a petição inicial intitulado «Contrato de Locação Financeira Imobiliária n.º ...27», no qual figuram como locadora a ré «B... – SOCIEDADE FINANCEIRA DE CRÉDITO, S.A.» e como locatária a ré «A..., UNIPESSOAL, LDA.»)

9) Por escritura pública outorgada a 21/03/2019, exarada de fls. 109 a fls. 110 verso do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.º ...39... do Cartório Notarial ... a cargo da Notária OO, intitulada «Compra e Venda», «C..., LDA.», aí representada pelas suas gerentes PP e ..., declarou vender a «B... – SOCIEDADE FINANCEIRA DE CRÉDITO, S.A.», aí representada por QQ, que declarou comprar, pelo preço de €130.000,00, o prédio urbano composto de pavilhão industrial de 3 pisos e logradouro, sito na Rua ..., ..., ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...73, freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ...28 (que provém do artigo ...06 da freguesia ... (extinta), que por sua vez provém do artigo 1283 da União de Freguesias ... e ...), destinando-se o prédio a ser dado em locação financeira. (certidão da escritura pública de compra e venda junta sob documento n.º 5 com a petição inicial).

10) Por escritura pública outorgada a 30/12/1991, exarada de fls. 32 verso a fls. 34 verso do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.º ...57... do extinto ... Cartório Notarial ..., intitulada «Justificação e Compra e Venda», AA e mulher BB, declararam serem donos e possuidores, com exclusão de outrem, que adquiriram por usucapião, o imóvel composto de barracão amplo destinado a indústria, com escritório e logradouro, com a área total de 600 m2, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., a confrontar do Norte com KK, do Sul com RR, do Nascente com AA e do Poente com Rua ..., inscrito na matriz respectiva sob o artigo ...72 e omisso no registo predial. Mais declararam que, pelo preço de seis mil contos, que já receberam, vendem à representada dos terceiros outorgantes - «C..., LDA.», aí representada pelos seus sócios-gerentes SS e TT - o imóvel atrás identificado, o qual não está sujeito a qualquer ónus ou encargo. (certidão da escritura pública junta sob documento n.º ... com a petição inicial).

11) Por escrito datado de 09/02/1990, intitulado «Contrato-Promessa de Compra e Venda», celebrado entre AA e mulher BB na qualidade de promitentes-vendedores e «C..., LDA.» na qualidade de promitente-compradora, pelos primeiros foi declarado serem donos e proprietários de um prédio urbano sito na Rua ..., ..., ..., composto por um barracão amplo destinado à indústria e logradouros, com a área total de 600 m2, sendo 200 m2 de superfície coberta e 400 m2 de logradouros, que confrontava nessa data de Norte com KK, do Sul com RR, do Nascente com rústico dos promitentes-vendedores e do Poente com Rua ..., inscrito na matriz respectiva sob o artigo ...34. Mais declararam prometer vender o referido prédio à segunda outorgante ou a quem os seus sócios indicarem, pelo preço de 6.000.000$00 (seis milhões de escudos). Declararam ainda que a escritura pública de compra e venda será outorgada até ao final do corrente ano, em data a fixar pelos representantes da segunda outorgante. Consta da cláusula 7.ª desse contrato «Acordaram ainda ambas as partes que do referido terreno anexo ao barracão se considerará toda uma faixa de 3 metros de largura do lado sul, confinante portanto com RR, que ficará afecta à passagem para o prédio rústico dos primeiros outorgantes que fica a nascente, constituindo-se assim uma servidão predial voluntária.». (documento n.º 9 junto com a petição inicial)

12) O prédio referido em 4) confronta a Poente com o prédio identificado em 2), confrontando este com aquele a Nascente. (acordo)

13) O prédio referido em 4) tem comunicação a Nascente com a via pública, encontrando-se «emparedado» a Norte e a Sul, confinando nestes pontos cardeais com prédios de terceiros. (acordo)

14) O prédio referido em 2) confina a Norte e a Sul com prédios de terceiros e confina a Poente com o prédio referido em 6). (acordo)

15) No prédio referido em 2), em data não concretamente apurada, os autores primitivos edificaram um muro na estrema Poente do prédio e, na parte Poente/Sul, colocaram um portão, por forma a que por ele se pudesse aceder à via pública.

16) Antes da formalização do contrato-promessa referido no ponto 11) dos factos provados e da escritura de compra e venda referida no ponto 10) dos factos provados, era pelo prédio identificado no ponto 6) dos factos provados que os autores acediam ao prédio identificado no ponto 2) dos factos provados e deste para a Rua ....

17) Em dia não concretamente determinado, entre o Natal e o Ano Novo de 2019, a 1.ª ré edificou um muro em blocos, justaposto ao portão existente no prédio identificado no ponto 2) dos factos provados, mais alto que o próprio portão, pois que do patamar à parte de cima é de pelo menos 1,90m, como alteou parte do muro pré-existente em três filas de blocos em cimento, em 75cm. (acordo)

18) Com tal edificação, a abertura que se encontrava fechada por portão, e que permitia por este, quando aberto, atingir-se a Rua ... e desta para o prédio identificado no ponto 2) dos factos provados, ficou tapada e assim os autores impedidos de utilizar esse acesso. (acordo)

19) A 1.ª ré procedeu a escavações no prédio identificado no ponto 6) dos factos provados, o que dificultará ou mesmo impedirá o seu uso futuro por parte dos autores, mesmo com a demolição do muro justaposto ao portão. (acordo)

20) Na segunda ou terceira semana de Março de 2020, a 1.ª ré colocou um portão, próximo da Rua ..., por forma a tapar, também por esse local, a passagem aos autores para o seu prédio. Portão este que tem a largura de todo o espaço entre a parede sul do barracão e a estrema Sul do prédio onde este se encontra inserido, pelo que tapa e impede a utilização do acesso. (acordo)

*

Factos não provados:

(…)

4. Desde 30/12/1991 que os autores acedem ao prédio identificado no ponto 2) dos factos provados, desde a Rua ... para este e deste para a Rua ..., através da utilização de tal caminho, sempre na convicção de gozarem de um direito próprio de passagem, sem interrupção, ostensivamente e sem oposição de ninguém, designadamente dos gerentes da «C...» e de toda a gente.

5. Servidão de passagem essa com uma largura de 3 metros em toda a sua extensão, que é de 29,50 metros lineares.

6. Os gerentes da «C...» nunca obstaculizaram por qualquer meio ou atitude a utilização da dita serventia por parte dos autores ou por parte dos filhos destes, pois que sempre respeitaram a constituição da serventia de passagem a favor do prédio dos autores identificado no ponto 2) dos factos provados, sendo este dominante relativamente ao prédio identificado no ponto 6) dos factos provados, que, no caso, é prédio serviente.

7. Desde 30/12/1991, por essa serventia sempre passaram tractores, veículos, trabalhadores contratados pelos autores, os próprios autores, familiares destes, sempre que necessário, designadamente, para proceder aos actos normais de conservação do prédio, como seja, limpezas de ervas, matos, árvores, etc., como para realizarem uma pequena agricultura, designadamente, de couves, alfaces e feijão.

(…)

9. O único meio de o prédio identificado no ponto 2) dos factos provados ter ligação à via pública é pela serventia que há mais de 20/30 anos existe e cuja manutenção foi convencionada previamente ao negócio celebrado entre os autores e a «C...».

(…)

III - Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Alteração da matéria de facto.

- Procedência da acção (com excepção da indemnização referida no ponto 8. do pedido).

 

2. A A./habilitada impugna a decisão da matéria de facto, relativamente aos factos não provados 4. a 7. e 9., pretendendo que eles passem a provado, ou provado em parte ou com redacção alterada, com base no depoimento das testemunhas GG, HH e II (cfr. as conclusões de recurso 4- a 21-).

Na motivação da convicção probatória a julgadora exarou que:

“A factualidade não provada foi assim considerada mercê da ausência de prova válida, segura e bastante no sentido da respectiva afirmação, levando em conta que a dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita, no caso, os autores, quanto aos factos constitutivos da servidão de passagem (artigo 414.º do Código do Processo Civil).

Ademais, à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos; se o conseguir, é a questão decidida contra a parte onerada com a prova (artigo 346.º do Código Civil).

GG (vendedor de materiais de construção civil à autora-habilitada EE e marido) foi ao local apenas 2 vezes, há cerca de 10 anos, sem certeza, descarregar materiais de construção (blocos de cimento e areia, para a construção de um muro de vedação e da piscina junto à casa da filha dos autores primitivos, EE). Disse ter entrado pelo caminho em discussão nos autos, ao lado do pavilhão, tendo descarregado os materiais no terreno entre a casa da autora-habilitada EE e as traseiras do barracão. Uma das vezes passou com um camião-grua e da outra vez com uma carrinha mais pequena. Da sua percepção, o caminho teria cerca de 3 metros de largura (o camião-grua é um veículo com 2,60 metros de largura e ainda sobrava cerca de 20 centímetros de cada lado). Saiu pelo mesmo caminho. Foi o autor primitivo quem lhe disse para passar por ali, não sabendo dizer se com prévia autorização dos donos do terreno do barracão.

HH (compadre da autora-habilitada EE) foi ao local, com um tractor, para efectuar trabalhos de limpeza do terreno, 2 ou 3 vezes por ano, nos anos de 2015 e 2016. Deixou de ir no ano de 2018 e não mais lá voltou.

A conjugação destes depoimentos apenas permite afirmar a existência de passagens pontuais e esporádicas pelo caminho em causa, circunscritas a uma finalidade específica, muito longe de um cenário de uso reiterado e permanente, com consistência e continuidade temporal. Passagens essas passíveis de ser enquadradas nas relações de boa vizinhança, por mera tolerância da proprietária do caminho.

De resto, II (marido da autora-habilitada EE) acabou por admitir que os Senhores da «C...» diziam que «o terreno da serventia era deles», que «não estava legal», mas deixavam passar.

Ora, UU e TT (sócios-gerentes da firma «C...», desde o início ao fim da empresa, tendo sido este último quem fez o negócio com o autor primitivo), de modo essencialmente convergente e corroborante, explicitaram com precisão e detalhe os termos do negócio de compra e venda do terreno do pavilhão que a «C...» fez com os primitivos autores e, bem assim, a razão subjacente ao facto de no contrato-promessa constar previsão de uma servidão de passagem, que não foi contemplada no contrato definitivo de compra e venda do prédio. Não foi por acaso, nem por esquecimento. Deveu-se à constatação de uma divergência de áreas do terreno prometido vender, entre o consignado no contrato-promessa e a medição efectuada no local (o terreno tinha menos 20 ou 30 metros), que foi resolvida, de comum acordo, mediante o autor prescindir da passagem, abdicando da área que ficaria afecta à servidão de passagem. Essa a razão de o negócio definitivo ter sido efectuado, como consta expresso da respectiva escritura, com o prédio livre de quaisquer ónus ou encargos, designadamente da servidão de passagem que era mencionada no contrato-promessa.

TT adiantou ainda, relativamente ao muro nas traseiras do pavilhão, que lhe foi dito pelo autor primitivo, quando fizeram o negócio, «o muro é vosso, é do pavilhão».

Disseram, sem divergências, nunca ter existido servidão de passagem.

Peremptoriamente, afirmaram que, enquanto a «C...» ali funcionou, «eles nunca passaram lá», nem tractores, nem carrinhas a levar materiais de construção. Se passasse alguém, teriam notado. Se passaram, foi a dias ou horas em que não estavam lá (por exemplo, aos fins-de-semana) e «como aquilo estava aberto, podiam passar livremente».

Depois da venda do prédio à «C...», nunca viram o autor primitivo passar ali, porque não precisava de passar por ali, passou a aceder ao «terreno do meio» pelo outro lado, onde já existia uma casa construída. Não havia muro divisório entre o terreno da casa e o terreno do meio. E o terreno da casa tem acesso à via pública, pelo outro lado.

Precisou TT que nunca o autor primitivo o abordou sobre esta matéria, quem o fez foi o genro dele, morador na casa existente do outro lado.

QQ (funcionário bancário há 22 anos, na «Banco 1...», gerente da agência da ... desde Março de 2023 e antes, de 2018 até Março de 2023, gerente da agência da ...) representou a «Banco 1...» - «CLF» na altura – na escritura de compra e venda do imóvel adquirido à «C...» para posteriormente ser locado à 1.ª ré, cliente. Nas averiguações preliminares, analisou a documentação (caderneta predial e certidão de registo) e não constava qualquer registo de encargo de servidão de passagem. Nem tal encargo foi alguma vez mencionado nas conversações prévias com a vendedora.

(…)

Assim, o conjunto da prova produzida não permite afirmar que, depois da venda do prédio identificado no ponto 6) dos factos provados à firma «C...», os autores primitivos tivessem continuado a praticar actos materiais de passagem pela faixa de terreno em causa, sem interrupção, ostensivamente e sem oposição de ninguém, designadamente dos gerentes da «C...», muito menos na convicção de gozarem de um direito próprio de passagem.

Como acima se deixou exposto, os pontuais e esporádicos acessos – para depósito de materiais e para limpeza do terreno – são explicáveis à luz da mera tolerância da proprietária, ademais, facilitados pela inexistência de qualquer barreira física que o impedisse, junto da via pública, Rua ....

A ausência de demonstração da concreta data da colocação do «portão verde» entre a traseira do pavilhão e o prédio do meio, no que, na tese dos autores, seria o leito da servidão, não permite concluir que esse portão tenha sido aí colocado como sinal visível e permanente da serventia de um prédio para com o outro, no momento da sua separação.

II (marido da autora-habilitada EE) disse também que o «prédio do meio» tem uma ligação com o seu a pé e que, actualmente, existem lá no «prédio do meio» uns anexos e outras instalações provisórias e amovíveis (um estábulo e um canil), o que é compatível com o retratado na imagem obtida do «Google Maps» junta pela 1.ª ré no decurso da audiência final:

» (imagem do Google Maps)«

Realidade que infirma a inexistência de outro acesso ao «prédio do meio».

(…)

Daí toda a factualidade dada como não provada.”.

2.1. Relativamente ao facto não provado 6., 2ª, parte, a recorrente pretende que seja dado como provada, nos termos da redacção proposta na sua conclusão de recurso 21-, D), a saber que o prédio dela, referido nos factos provados 2), é dominante relativamente ao prédio identificado no ponto 6) dos factos provados, que, no caso, é prédio serviente.

Estas expressões, que decorrem do texto do art. 1543º do CC, que definem a servidão predial, são meras conclusões de direito, que por natureza não cabem no julgamento da matéria de facto, que estão mesmo dela arredadas (arts. 607º, nº 3, 1ª parte, e nº 4, 1ª parte, do NCPC).

Assim, o objectivo perseguido pela recorrente não pode ser obtido. Indeferindo-se, por isso esta parte da impugnação.

2.2.1. Quanto à restante matéria impugnada, vemos que ela se funda na prova testemunhal, designadamente no depoimento de HH. Acontece que, apesar dele estar gravado, a recorrente, não indica com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, na verdade não indica nenhuma passagem, nem em texto, nem temporalmente na fita da gravação – cujo fim e termo nem sequer apontou -, e nem sequer transcreveu excertos que considerasse relevantes, apesar dessa transcrição ser facultativa. Procedimento este, em desrespeito pelo estatuído no art. 640º, nº 2, a), do NCPC, o que implica a rejeição imediata do recurso nesta parte, respeitante a tal testemunha.

2.2.2. Vamos proceder, então, à audição do depoimento das restantes 2 testemunhas, gravado em áudio, referente à matéria impugnada.

GG, disse o que consta da motivação da decisão de facto da julgadora. Precisou ainda que ninguém lhe disse para não passar por ali, apesar de haver lá pessoas a trabalhar ao lado, no barracão.

II, marido da A., declarou o que consta da motivação da julgadora de facto, mais dizendo que sempre acederam ao prédio por esta serventia, sempre quando eu precisei fazer qualquer coisa naquele terreno, para lavrar o terreno, para despejar uma fossa que por exemplo tenho lá, uma fossa de apoio à casa das águas. Foi sempre por ali a partir do momento em que o meu sogro vendeu, o acesso foi sempre por ali. Ali também existia um portão, um portão de 3 metros que é a largura da serventia. É um portão verde. Esse portão foi o meu sogro que o fez, não consigo precisar, mas foi nos anos de 2001/2002, por aí. Esta serventia inicia na via pública, Rua ..., com a largura de 3 metros e cerca de 30 metros de comprimento, e termina no portão. Sempre que precisam de ir ao prédio é sempre por aqui que vão, não há outra forma de ir lá. Acrescentou que o terreno foi vendido com uma serventia para ele, tinha um papel a dizer isso, que era o contrato promessa de compra e venda à C....

Analisando.

Quanto ao depoimento da testemunha GG, estamos com a julgadora de facto, quando a mesma pondera que tal depoimento apenas permite afirmar a existência de passagens pontuais e esporádicas pelo caminho em causa, circunscritas a uma finalidade específica, muito longe de um cenário de uso reiterado e permanente, com consistência e continuidade temporal. Passagens essas passíveis de ser enquadradas nas relações de boa vizinhança, por mera tolerância da proprietária do caminho.

O depoimento de II (marido da autora-habilitada) foi mais injuntivo, mas apesar de ter de suscitar maior distanciamento por parte do julgador, dada a aludida relação familiar, a dita testemunha acabou por admitir que os senhores da C... diziam que o terreno da serventia era deles, que não estava legal, mas deixavam passar. E sobre a não menção de tal serventia na escritura em si nada soube explicar sobre esse facto.

Ora, de outro lado, conforme exarado na referida motivação, temos as testemunhas UU e TT (sócios-gerentes da firma C..., desde o início ao fim da empresa, tendo sido este último quem fez o negócio com o autor primitivo), de modo essencialmente convergente e corroborante, a explicitar os termos do negócio de compra e venda do terreno do pavilhão que a C... fez com os primitivos autores e, bem assim, a razão subjacente ao facto de no contrato-promessa constar previsão de uma servidão de passagem, que não foi contemplada no contrato definitivo de compra e venda do prédio: não foi por acaso, nem por esquecimento. Deveu-se à constatação de uma divergência de áreas do terreno prometido vender, entre o consignado no contrato-promessa e a medição efectuada no local (o terreno tinha menos 20 ou 30 metros), que foi resolvida, de comum acordo, mediante o autor prescindir da passagem, abdicando da área que ficaria afecta à servidão de passagem. Essa a razão de o negócio definitivo ter sido efectuado, como consta expresso da respectiva escritura, com o prédio livre de quaisquer ónus ou encargos, designadamente da servidão de passagem que era mencionada no contrato-promessa. Ambos, disseram, sem divergências, nunca ter existido servidão de passagem. Afirmaram que, enquanto a C... ali funcionou, se passasse alguém pelo local teriam notado e se passaram foi a dias ou horas em que não estavam lá (por exemplo, aos fins-de-semana) e como aquilo estava aberto, podiam passar livremente. Depois da venda do prédio à C..., nunca viram o autor primitivo passar ali, porque não precisava de passar por ali, passou a aceder ao «terreno do meio» pelo outro lado, onde já existia uma casa construída. Precisou TT que nunca o autor primitivo o abordou sobre esta matéria, quem o fez foi o genro dele, morador na casa existente do outro lado. Também QQ (funcionário bancário há 22 anos, na Banco 1..., gerente da agência da ...) que representou a Banco 1... na escritura de compra e venda do imóvel adquirido à C... para posteriormente ser locado à 1.ª ré, cliente, verificou que não constava qualquer registo de encargo de servidão de passagem. Nem tal encargo foi alguma vez mencionado nas conversações prévias com a vendedora.

Pelo que, o conjunto da prova produzida não permite afirmar que, depois da venda do prédio identificado à C..., os autores primitivos tivessem continuado a praticar actos materiais de passagem pela faixa de terreno em causa, sem interrupção, ostensivamente e sem oposição de ninguém, designadamente dos gerentes da C..., muito menos na convicção de gozarem de um direito próprio de passagem.

De modo que acompanhamos a convicção da julgadora a quo, por podermos formular idêntica convicção (arts. 663º, nº 2, e 607º, nº 5, 1ª parte, do NCPC).

E assim sendo improcede a impugnação de facto quanto aos apontados factos 4., 5., 6. (1ª parte), 7. e 9.

3. Na sentença recorrida escreveu-se que:

“Na definição legal ínsita no artigo 1543.º do Código Civil, «servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente».

O prédio sujeito à servidão diz-se serviente.

O prédio que beneficia da servidão diz-se dominante.

(…)

Conforme resulta do disposto no artigo 1547.º, n.º 1 do Código Civil, as servidões podem ser constituídas por:

(…)

(…)

- Usucapião; ou

- Destinação do pai de família.

Porém, as servidões não aparentes não podem ser constituídas por usucapião, considerando-se não aparentes as servidões que não se revelam por sinais visíveis e permanentes – artigos 1548.º, n.º s 1 e 2 e 1293.º, alínea a), do Código Civil.

(…)

No caso, como clarificado pelos autores na réplica, o pretendido é o reconhecimento da existência de uma servidão de passagem constituída por usucapião ou por destinação do pai de família. …

(…)

Em causa está, sim, a constituição de uma servidão de passagem por usucapião ou por destinação do pai de família, admissível, visto corresponderem a modos legalmente previstos de constituição de servidões prediais.

A usucapião, como forma originária de aquisição do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, encontra-se definida no artigo 1287.º do Código Civil, ao prescrever que «a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião».

Invocada a usucapião, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse – artigo 1288.º do Código Civil.

A verificação da usucapião depende de dois elementos: a posse (verdadeira e própria) e o decurso de certo período de tempo, variável consoante a natureza móvel ou imóvel da coisa.

Para conduzir à usucapião, a posse tem sempre de revestir duas características: ser pública e pacífica (artigo 1297.º do Código Civil). Os restantes caracteres (boa ou má-fé, titulada ou não titulada) influem apenas no prazo.

Não podem adquirir-se por usucapião as servidões prediais não aparentes (desde logo por lhes faltar o requisito da publicidade), nem os direitos de uso e habitação – artigo 1293.º do Código Civil.

No caso de imóveis, não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de 15 anos, se a posse for de boa-fé, e de 20 anos, se for de má-fé (artigo 1296.º do Código Civil). Havendo título de aquisição e registo deste, a usucapião tem lugar quando a posse, sendo de boa-fé, tiver durado por 10 anos, contados desde a data do registo ou quando a posse, ainda que de má-fé, houver durado 15 anos, contados da mesma data – artigo 1294.º, alíneas a) e b) do Código Civil.

Diz-se titulada a posse fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico, sendo que o título não se presume, devendo a sua existência ser provada por aquele que o invoca – artigo 1259.º, n.º s 1 e 2 do Código Civil. Por outro lado, a posse diz-se de boa-fé quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem – artigo 1260.º, n.º 1 do Código Civil.

A posse titulada presume-se de boa-fé, e a não titulada, de má-fé – n.º 2 do mesmo artigo.

Doutro passo, nos termos prescritos nos artigos 1251.º e 1253.º a contrario do Código Civil, posse é o poder de facto que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, na convicção de que o mesmo lhe pertence.

Destes preceitos, quer a doutrina quer a jurisprudência têm assentado que a posse exige a presença de 2 elementos: o «corpus», que é o elemento material ou objectivo da posse, entendido como exercício efectivo de poderes de facto sobre a coisa ou na possibilidade física desse exercício; e o «animus», que é o elemento subjectivo e que significa a consciência de que o sujeito actua como verdadeiro «dominus», melhor, que o possuidor exerce o poder de facto sobre a coisa com a intenção de agir como beneficiário do direito.

Em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto (artigo 1252.º, n.º 2 do Código Civil).

A posse adquire-se, entre outros, pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito, pela tradição material ou simbólica da coisa, efectuada pelo anterior possuidor, por constituto possessório ou por inversão do título da posse – artigo 1263.º do Código Civil.

Todavia, os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito, os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito, os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem, são havidos como meros detentores ou possuidores precários (artigo 1253.º, alíneas a), b) e c) do Código Civil).

Logo, não sendo possuidores no sentido verdadeiro e próprio, não podem adquirir direitos por usucapião.

Revertendo ao caso sub judice, cotejada a matéria de facto dada como provada e como não provada, é manifesto que os autores não lograram provar, como lhes competia, os factos constitutivos da invocada servidão de passagem constituída por usucapião – artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil.

Não se provou que, após a venda do prédio identificado no ponto 6) dos factos provados à firma «C...», em 30/12/1991, os autores tenham continuado a aceder ao prédio identificado no ponto 2) dos factos provados, desde a Rua ... para este e deste para a Rua ..., através da utilização do caminho em discussão, sempre na convicção de gozarem de um direito próprio de passagem, sem interrupção, ostensivamente e sem oposição de ninguém, designadamente dos gerentes da «C...» e de toda a gente.

Antes dessa venda, formalizada por escritura pública de 30/12/1991, porque os autores eram os proprietários de todos os prédios em causa (direito real máximo, de «plena potestas», «jus utendi, fruendi et abutendi», de gozar, de modo pleno e exclusivo, dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem – artigo 1305.º do Código Civil), a passagem que efectuavam pelo dito caminho traduz uma posse correspondente ao exercício do direito de propriedade.

Não traduzia uma posse correspondente ao exercício do direito de passagem através de prédio(s) alheio(s), um direito real menor, cujo conteúdo não é equiparável ao direito de propriedade, fazendo com que as posses não sejam agregáveis.

Pelo que, para o efeito que ora cuidamos (servidão de passagem constituída por usucapião), são irrelevantes os actos materiais de passagem ocorridos quando os autores eram proprietários de ambos os prédios.

Improcede, assim, o pedido de reconhecimento da existência de servidão de passagem, constituída por usucapião, a onerar o prédio da 2.ª ré - de que a 1.ª ré é locatária financeira - em benefício do prédio dos autores (hoje, da autora-habilitada EE, por sucessão hereditária).

Vejamos agora o segundo fundamento invocado para a constituição da servidão de passagem – destinação do pai de família.

Sobre a constituição de servidão predial por destinação do pai de família, dispõe o artigo 1549.º do Código Civil: «Se em dois prédios do mesmo dono, ou em duas fracções de um só prédio, houver sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para o outro, serão esses sinais havidos como prova da servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios, ou as duas fracções do mesmo prédio, vierem a separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento.».

(…)

Assim, para a constituição de uma servidão por destinação do pai de família é necessário que: (i) os dois prédios, ou as duas fracções do prédio em causa, tenham pertencido ao mesmo proprietário; (ii) existam sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos os prédios, que revelem inequivocamente uma relação estável de serventia de um prédio para com o outro; e (iii) que os prédios ou as fracções do prédio se separem quanto ao seu domínio e não haja no documento respectivo nenhuma declaração oposta à constituição do encargo.

Do exposto decorre ser necessária a prova de sinais – visíveis e permanentes - que revelem uma vontade ou consciência do proprietário de constituição de uma relação de serventia, ou seja, de criação de uma situação de facto estável e duradoura, que objectivamente corresponda à de uma servidão aparente.

(…)

Uma servidão aparente é aquela que se revela por sinais visíveis e permanentes – artigo 1548.º, n.º 2, a contrario sensu, do Código Civil.

É hoje pacífico, pela similitude das expressões usadas nos artigos 1548.º, n.º 2 e 1549.º do Código Civil, ser idêntico o alcance dos requisitos da visibilidade e da permanência dos sinais, quer para a constituição da servidão por usucapião, quer para a constituição da servidão por destinação do pai de família.

No ensinamento de PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, no seu «Código Civil Anotado», Volume III, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1987, páginas 634 e ss, «(…) o que o artigo 1549.º exige, para a constituição por destinação do pai de família, são os mesmos tipos de sinais que denunciariam uma «servidão» aparente (por conseguinte, uma prestação de utilidade «não transitória», mas estável), caso os dois prédios pertencessem a donos diferentes. (…) Os sinais hão-de revelar a serventia de um prédio para com o outro. Isto significa que hão-de ter sido postos ou deixados com a «intenção» de assegurar certa utilidade a um, à custa ou por intermédio do outro. (…)».

Escrevem ainda estes autores, na mesma obra citada, páginas 629 e ss, «(…) continua a entender-se que se torna as mais das vezes difícil distinguir entre as servidões não aparentes e os actos de mera tolerância, consentidos «jure familiaritatis», que não reflectem uma relação possessória capaz de conduzir à usucapião (…). Admitir a usucapião como título aquisitivo deste tipo de servidões, não obstante a equivocidade congénita dos actos reveladores do seu exercício, teria o grave inconveniente de dificultar, em vez de estimular, as boas relações de vizinhança, pelo fundado receio que assaltaria as pessoas de verem convertidas em situações «jurídicas» de carácter irremovível situações de facto, assentes sobre actos de mera «condescendência» ou «obsequiosidade». (…) No mesmo sentido milita ainda a circunstância de, não havendo sinais «visíveis» e «permanentes» reveladores da servidão, sendo esta porventura exercida só clandestinamente, a atitude passiva do proprietário poder ser apenas devida à ignorância da prática dos actos constitutivos da servidão. (…) Para que seja «aparente», não basta que a servidão se revele por obras ou sinais exteriores. É necessário que, além de «visíveis» (sendo a «visibilidade» destinada a garantir a «não clandestinidade»), os sinais reveladores da servidão sejam «permanentes». (…) A permanência da obra ou sinal torna seguro que não se trata de um acto praticado a título precário, mas de um encargo preciso, de carácter estável ou duradouro, como é próprio da servidão. (…)».

E como decidido no acórdão da Relação de Coimbra de 03/11/2020 (processo n.º 3884/182T8PBL.C1, disponível em www.dgsi.pt), «(…) IV - As servidões aparentes postulam a existência de sinais visíveis e permanentes.

V - A visibilidade dos sinais respeita à sua materialidade, no sentido de serem percepcionáveis e interpretáveis como tais, pela generalidade das pessoas que se confrontem com eles e a permanência consiste na manutenção dos sinais, com a aludida visibilidade, ao longo do tempo, sem interrupções (pelo menos nos casos em que a ausência temporária dos sinais torne equívoco o seu significado), por forma a gerar e manter a ideia de que se trata de uma situação estável e duradoura e, ao mesmo tempo, afastar a hipótese de se tratar de uma situação precária, podendo tais sinais, no entanto, ser alterados ao longo do tempo ou substituídos por outros.

VI - Apesar de uma cancela aberta num muro ser um sinal visível e permanente, para efeitos da existência de uma servidão por destinação de pai de família – artigo 1549.º do Código Civil –, devendo existir à data da divisão do prédio, não se sabendo desde quando existe, sendo tal facto constitutivo do direito da Autora, tal dúvida é valorada contra a autora por ser a parte a quem o facto aproveita – artigo 414.º do Código de Processo Civil.».

No caso, a constituição da servidão de passagem por destinação do pai de família mostra-se afastada nos termos da ressalva final ínsita no artigo 1549.º do Código Civil, visto que, ao tempo da separação dos prédios, outra coisa foi declarada no respectivo documento. Como resultou provado, na escritura pública outorgada a 30/12/1991, pela qual os primitivos autores venderam à «C..., LDA.» o imóvel composto de barracão amplo destinado a indústria, com escritório e logradouro, com a área total de 600 m2, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., a confrontar do Nascente com prédio dos vendedores e do Poente com Rua ..., declararam expressamente que o imóvel em causa não estava sujeito a qualquer ónus ou encargo, designadamente servidão de passagem.

Da prova produzida também resultou suficientemente explicitada a razão pela qual a servidão de passagem prevista na cláusula 7.ª do contrato-promessa que precedeu a realização dessa escritura pública não chegou a ser contemplada no contrato definitivo de compra e venda.

Aqui chegados, improcede também este fundamento de constituição da servidão de passagem.

Bem como improcedem as demais pretensões associadas, que pressupunham tal demonstração (demolição do muro e do acrescento do muro, retirada do portão, reposição de terras, abstenção de actos que obstaculizem ou impeçam a utilização da servidão e compensação por danos não patrimoniais).”.

A recorrente discorda, conforme decorre das suas conclusões de recurso (as 22- a 26-).

3.1. Quanto à servidão constituída por usucapião, a fundamentação jurídica apresentada pelo tribunal a quo apresenta-se acertada, segundo as normas legais que convocou e sua interpretação dogmática.

No caso, a matéria de facto manteve-se inalterada. Por conseguinte, não provado que, após a venda do prédio identificado no facto provado 6) à C..., em 30.12.1991, os AA tenham continuado a aceder ao prédio identificado no facto provado 2), desde a Rua ... para este e deste para a Rua ..., através da utilização do caminho em discussão, sempre na convicção de gozarem de um direito próprio de passagem, sem interrupção, ostensivamente e sem oposição de ninguém, designadamente dos gerentes da C... e de toda a gente, terá de improceder o pedido de reconhecimento da existência dessa servidão de passagem, constituída por usucapião, a onerar o prédio da 2ª R. - de que a 1ª R. é locatária financeira - em benefício do prédio dos autores, hoje, da A./habilitada.

3.2. Quanto à servidão constituída por destinação do pai de família, como exposto no discurso de direito do tribunal a quo, a mesma depende, face ao disposto no art. 1549º do CC, dos seguintes requisitos: (i) os dois prédios, ou as duas fracções do prédio em causa, tenham pertencido ao mesmo proprietário; (ii) existam sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos os prédios, que revelem inequivocamente uma relação estável de serventia de um prédio para com o outro; e (iii) que os prédios ou as fracções do prédio se separem quanto ao seu domínio e não haja no documento respectivo nenhuma declaração oposta à constituição do encargo.

Ora, no nosso caso, a constituição da servidão de passagem por destinação do pai de família mostra-se afastada nos termos da ressalva final ínsita no indicado art. 1549º, visto que, ao tempo da separação dos prédios, outra coisa foi declarada no respectivo documento. Como resultou provado, na escritura pública outorgada a 30.12.1991, pela qual os primitivos autores venderam à C... o imóvel aí declararam expressamente que o imóvel em causa não estava sujeito a qualquer ónus ou encargo – facto 10) -, designadamente servidão de passagem.

Objecta, porém, a recorrente (conclusão de recurso 26 -), que não é suficiente, para a afastar a referência na escritura pública de compra e venda de que a venda não estava sujeita a qualquer ónus ou encargos, devendo, antes, referir-se expressamente à servidão de passagem, o que não se verifica.

Explica A. Varela (em CC Anotado, Vol. III, 2ª Ed., nota 7. ao citado art. 1549º, pág. 635) que a ressalva da declaração oposta à constituição da servidão deve constar de documento, não bastando para o efeito uma simples declaração oral. Não é necessário, todavia, para excluir a servidão, que as partes se refiram expressamente à relação de serventia. A declaração, por exemplo, de que um prédio é vendido livre de quaisquer ónus ou encargos bastará para impedir que sobre ele se constitua determinada servidão (apelando, também, a acórdão do STJ que identifica). A mesma doutrina é defendida por José Alberto C. Vieira, em D. Reais, 1ª Ed., 2008, pág. 850).   

Por assim ser, improcede também este fundamento de constituição da servidão de passagem.

3.3. Como as anteriores pretensões da recorrente não procedem, forçosamente, os restantes pedidos formulados na p.i., não podem também proceder: demolição do muro e do acrescento do muro, retirada do portão, reposição de terras, abstenção de actos que obstaculizem ou impeçam a utilização da servidão.

(…)

 

IV - Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, assim se confirmando a sentença apelada.

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Custas a cargo da recorrente. 

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                                                                           Coimbra, 7.5.2024

                                                                          

 Moreira do Carmo

 Fonte Ramos

Alberto Ruço