Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
12/07.3GCMBR-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: EXECUÇÃO
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
PRECIPUIDADE
PRODUTO DOS BENS PENHORADOS
Data do Acordão: 09/14/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE VISEU - J4)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 716.º E 829.º-A DO CC; ART. 541.º DO CPC; ARTS. 18.º E 62.º DA CRP
Sumário:
I – Estando em causa apenas o cumprimento parcial da obrigação exequenda, o n.º 3 do artigo 716.º do Código Civil aponta para a irrazoabilidade de o Estado retirar do valor já obtido a percentagem (de 2,5%) fixada, no artigo 829.º-A daquele diploma, a título de sanção pecuniária compulsória.

II – Por outro lado, em caso de venda de bens penhorados – salvo quando o valor exequendo fique integralmente pago –, a sanção pecuniária compulsória não está entre as despesas judiciais que, por força do artigo 541.º do Código de Processo Civil, saem precípuas do produto dos bens penhorados.

III – Posição diversa, ou seja, entendimento no sentido de o artigo 541.º do CPC prever a sanção pecuniária compulsória quando a quantia reclamada pelo exequente não está totalmente paga, afronta o princípio da proporcionalidade e o direito de propriedade privada, previstos, respectivamente, nos artigos 18.º e 62.º da CRP.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra - 5ª Secção - criminal.



I- Relatório.

AA, exequente nos autos de execução de sentença, não se conformando com a decisão vertida no despacho liminar que julgou improcedente a reclamação da conta anteriormente apresentada pelos exequentes de 23/09/2021, vem interpor recurso, de tal despacho, concluindo:

“1ª Na presente execução para pagamento de indemnização arbitrada em processo crime foi recuperado valor (€ 89.019,69) insuficiente para pagamento de tal indemnização (€ 136.989,00), mais juros e despesas com o processo;

2ª A senhora Agente de Execução ao elaborar a conta descontou ao valor recuperado juros compulsórios a entregar ao Estado no valor de € 16.433,00.

3ª Desta conta, o exequente reclamou alegando que este valor de juros compulsórios a entregar ao Estado teria de ser pago pelo executado a final do processo (devendo a acção prosseguir para se arrecadar o valor em falta) e não pelo exequente (que nesta fase intermédia viu o seu crédito satisfeito apenas parcialmente).

4ª O Tribunal a quo indeferiu tal reclamação estribando-se no artigo 785.º do CC no sentido de que tal valor recuperado deve ser imputado primeiro às despesas e juros (incluindo os compulsórios) e só depois e em último lugar no capital.

5ª A imputação do valor recuperado primeiro nos juros e só depois no capital está na esfera de disponibilidade do credor (artigo 785.º, 2 do CC) e não do devedor ou do Tribunal.

7ª Ora, com a sobredita reclamação à conta, o credor exequente manifestou clara e inequivocamente que o valor recuperado fosse imputado no capital antes, e não em último lugar.

8ª Por outro prisma, o artigo 716.º, 2 do CPC estipula que se a execução compreender juros a vencer-se a sua liquidação é feita a final.

9ª A expressão a final só pode ser entendida como o momento de pagamento integral e efetivo do valor da dívida exequenda, que ainda não se verificou.

10ª Parece-nos assim que não pode ser o exequente compelido a pagar prematuramente os juros compulsórios, quando ainda nem sequer viu o seu crédito satisfeito integralmente.

11ª Os juros compulsórios não deverão ser suportados pelo aqui Apelante, que é credor exequente, pois tais juros são devidos pelo devedor executado e devem ser pagos no momento do pagamento efetivo do valor total da dívida exequenda, portanto a final, e não em fase intermédia.

12ª Só o executado deve ser compelido a pagar tais juros compulsórios pois só assim se satisfaz aquela finalidade de moralidade e eficácia das decisões judiciais e se favorece o cumprimento das obrigações, realizando assim o espírito da Lei.

13ª Violou assim o Tribunal a quo o disposto nos artigos 785º, 2 e 829º A, 4 ambos do CC e artigo 716º, 2 do CPC.

Termos em que deve o presente recurso ser admitido e a final ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que dê deferimento à reclamação da conta deduzida pelo exequente.”


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Respondeu BB, viúva do devedor CC, subscrevendo e dando por integralmente reproduzido o despacho proferido pela Juiz, o qual não lhe merece qualquer reparo, censura quer quanto à forma, quer quanto à substância.

Acrescenta que “a motivação apresentada pelo autor é completamente destituída de qualquer fundamento que possa reputar-se de minimamente sério, assumindo a sua conduta processual de contornos de clara e ostensiva má-fé processual a que não será porventura alheia a circunstância de beneficiar de apoio jurídico.”


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O Digno Procurador-Geral Adjunto junto desta Relação emitiu o seguinte parecer

“Preceitua o art. 785.º, do CC: (Dívidas de juros, despesas e indemnização) 1. Quando, além do capital, o devedor estiver obrigado a pagar despesas ou juros, ou a indemnizar o credor em consequência da mora, a prestação que não chegue para cobrir tudo o que é devido presume-se feita por conta, sucessivamente, das despesas, da indemnização, dos juros e do capital. 2. A imputação no capital só pode fazer-se em último lugar, salvo se o credor concordar em que se faça antes.

Por sua vez o artigo 829.º-A, CPC: (Sanção pecuniária compulsória) 1 - Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso. 2 - A sanção pecuniária compulsória prevista no número anterior será fixada segundo critérios de razoabilidade, sem prejuízo da indemnização a que houver lugar. 3 - O montante da sanção pecuniária compulsória destina-se, em partes iguais, ao credor e ao Estado. 4 - Quando for estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente, são automaticamente devidos juros à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, os quais acrescerão aos juros de mora, se estes forem também devidos, ou à indemnização a que houver lugar.

Assim, tendo presente o despacho recorrido e os normativos transcritos, afigura-se dever ser tomado em conta, no que concerne aos pagamentos, a ordem estatuída no nº 2 do art. 785º, do CC, conjugado com o art. 829º-A, do CPC.


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Ao parecer respondeu o exequente:

“-1.º-

O Ministério Público (MP) não se limitou a apor o seu visto, antes sim, apresentou Alegação dizendo, em suma, que “afigura-se dever ser tomado em conta, no que concerne aos pagamentos, à ordem estatuída no nº 2 do art. 785º, do CC, conjugado com o art. 829º-A, do CPC [sic].”.

-2.º-

O recorrente não pode conformar-se com a posição do MP, uma vez que

-3.º-

tal interpretação dos mencionados artigos desconsidera, por um lado, o espírito da Lei ao estabelecer a obrigação de pagamento de juros compulsórios a favor do Estado, previstos no 829.º -A n.º 4 do Código Civil (CC), e, por outro lado, ignora a ordem estatuída no n.º 2, in fine, do artigo 785.º do CC, assim, atentemos,

-4.º-

Ao criar a figura da sanção pecuniária compulsória, que compreende os juros compulsórios, o Legislador nunca quis onerar os credores (exequentes).

-5.º-

É assente que a figura visa, antes sim, "uma dupla finalidade de moralidade e de eficácia", pois, além de reforçar "a soberania dos Tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça", favorece o cumprimento "das obrigações de prestação de facto ou de abstenção infungíveis" – cfr., por exemplo, Ac. da Rel. de Lisboa de 19/12/91, Col. Jur., Ano XVI, V, 147.

-6.º-

Ora, conforme ao espírito do disposto no artigo 829.º-A n. º4 do CC, seria, que o pagamento dos juros compulsórios se realizasse apenas e quando obtido o valor total da dívida exequenda.

-7.º-

Neste sentido, e uma vez que ainda não foi obtido o valor total da dívida exequenda, terá a instância executiva de prosseguir para se obter tal valor e juros compulsórios a favor do Estado.

-8.º-

Posto isto, resta-nos concluir que a posição do MP acabaria por premiar o incumprimento do executado e por sancionar, imensamente, o exequente.

-9.º-

Nesta perspetiva, as contas apresentadas penalizam sobremaneira o exequente por ter estado todos estes anos sem receber o crédito que lhe era (e ainda é) devido por Pedido de Indemnização Cível arbitrado em Processo Penal.

-10.º-

Ora, tal não pode ser entendido como conforme ao espírito da Lei ao consagrar a figura dos juros compulsórios, ademais,

-11.º-

como já se asseverou supra, ignora também o MP, a ordem estabelecida pelo n.º 2 do art. 785º do CC, assim,

-12.º-

O preceito do n.º 2 do artigo 785.º do CC estatui que: “A imputação no capital só pode fazer-

se em último lugar, salvo se o credor concordar em que se faça antes.” (sublinhado nosso).

-13.º-

Ora, uma correta interpretação deste preceito terá sempre em consideração a vontade do credor. O contrário tornaria a parte final do n.º 2 do art. 785º do CC letra morta.

-14.º-

Nesta senda, tanto a Reclamação, apresentada pelos exequentes a 23.09.2021, como o Recurso que agora corre, correspondem a uma clara e inequívoca concordância do credor no sentido de se fazer a imputação no capital antes, e não em último lugar.

-15.º-

Tal como preceituado no art. 785º, n. º2 in fine do CC.

-16.º-

De resto, ainda que tal preceito não tenha sido mencionado pelo MP na respetiva tomada de posição, cabemos ainda fazer referência ao disposto no artigo 716.º, n. º2 do Código de Processo Civil (CPC).

-17.º-

Assim, nos termos do preceito suprarreferido, “[q]uando a execução compreenda juros que continuem a vencer-se, a sua liquidação é feita a final, pelo agente de execução, em face do título executivo e dos documentos que o exequente ofereça em conformidade com ele ou, sendo caso disso, em função das taxas legais de juros de mora aplicáveis.”

Atendemos que, salvo melhor entendimento, expressão “a final” só pode ser entendida como o momento do pagamento efetivo do valor total da dívida exequenda, que ainda não se verificou.

-18.º-

Pois, como já se expôs, deve a instância executiva de prosseguir para se obter tal valor e juros compulsórios a favor do Estado.

Termos em que se deve concluir como nas alegações de recurso.”


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O recurso foi admitido.

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Colhidos os vistos cumpre decidir.

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II - Fundamentação

Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.

1 - Questões a decidir.

Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada é a seguinte a única questão a decidir:

Em que momento a sanção pecuniária compulsória do n.º 4 do art. 829.º-A deve ser liquidada.


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2.- Despacho recorrido.

“Reclamação da conta apresentada pelos exequentes de 23/09/2021:

Não obstante não sermos insensíveis aos argumentos invocados pelos exequentes, a verdade é que nos termos da Lei, deverá o agente de execução proceder à imputação de cada um dos depósitos nos termos do artigo 785.º do Código Civil, isto é, imputando o valor recuperado, primeiramente, às despesas (incluindo custas prováveis com o processo - artigo 541.º do Código de Processo Civil), seguidamente aos juros, aqui se incluindo os juros compulsórios devidos nos termos do artigo 829.º-A, n.º4 do Código Civil e só depois ao capital e, assim, sucessivamente, por reporte a cada um dos meses em que foi depositada alguma quantia à ordem do processo, sendo que só depois de efectuados os respetivos cálculos será possível apurar qual o valor efectivamente em dívida na presente execução. Improcede, por isso, a reclamação apresentada.

Notifique, incluindo o agente de execução para proceder aos pagamentos pela ordem acima referida.


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 Viseu, 02/11/2021”

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III – Fundamentação

A sanção pecuniária compulsória legal - ope legis - é fixada automaticamente em 5%, sempre que se trate de condenação em pagamento de dinheiro corrente, sendo devida desde o trânsito em julgado da sentença, e acresce a juros de mora que eventualmente sejam devidos e a indemnização a que haja lugar - art 829.º-A, nº4, do CC.

Conforme estatui o nº 3 do artigo 716.º, do CPC, sob a epígrafe "Liquidação", “Além do disposto no número anterior, o agente de execução liquida, ainda, mensalmente e no momento da cessação da aplicação da sanção pecuniária compulsória, as importâncias devidas em consequência da imposição de sanção pecuniária compulsória, notificando o executado da liquidação.”

Como realça o acórdão da Rel do Porto 11.1.2021, relatora Des Fernanda Almeida, este normativo não ordena ao AE que efectue liquidação daquela sanção no momento em que foi objecto de venda o bem penhorado ou quando se apura a entrega ao exequente de valores obtidos na execução. A liquidação é mensal para que o executado tenha percepção regular do avolumar da sua dívida. E, a final, quando a sanção deixar de se aplicar é porque há integral cumprimento da obrigação.

Ou seja, os juros compulsórios só devem ser liquidados e pagos a final, conforme acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 12.09.2019, Processo n.º 8052/11.1TBVNG-B.P1.S1.

Segundo o citado aresto do Porto “Este normativo apontaria, já, para a irrazoabilidade de, em caso de estar em causa apenas o cumprimento parcial da obrigação exequenda, o Estado poder retirar desse valor a sua fatia de 2, 5%.”

Por outro lado, o art. 541.º CPC estabelece que saem precípuas do produto dos bens penhorados: as custas da execução, incluindo os honorários e despesas devidos ao agente da execução, apensos e respetiva ação.

A significar que, “em caso de venda de bens penhorados – a não ser que o valor exequendo fique integralmente pago – a sanção pecuniária compulsória do n.º 4 do art. 829.º-A não está entre as despesas judiciais que saem precípuas do produto dos bens penhorados.”

Concordamos pois que admitir que o art. 541.º CPC contempla a sanção do n.º 4 do art. 829.º-A, quando a quantia exequenda não está integralmente satisfeita, será atentar contra o princípio da proporcionalidade do art. 18.º da CRP, bem como contra o direito de propriedade privada contemplado no art. 62.º, n.º da CRP.

E concluímos como no mencionado acórdão: “Não tem qualquer aplicabilidade a estas situações o disposto no art. 785.º, n.º 1 CC, que se refere à imputação do cumprimento quando a prestação realizada pelo solvens não permite extinguir a dívida e o devedor não procede a qualquer designação. Porém, trata-se aí do pagamento a um único accipiens sendo que, no caso da venda executiva de bem penhorado, é o art. 541.º CPC que efetua a designação das dívidas que saem precípuas do produto dos bens penhorados. Não há qualquer similitude ou relação de complementaridade entre o disposto no art. 785.º CC e a disposição do art. 541.º CPC.”

Termos em que se impõe a revogação do despacho recorrido que deve ser substituído por outro que defira a reclamação apresentada.


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III – DISPOSITIVO

Pelo exposto, decidem os Juízes deste Tribunal da Relação, julgar o recurso procedente, revogando o despacho recorrido.

Sem custas.


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Coimbra, 14 de Setembro de 2022

Isabel Valongo (Relatora)

Jorge França (Adjunto)

Alcina Costa Ribeiro (Adjunta)