Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1370/19.2T8LRA.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: FELIZARDO PAIVA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
DESCARATERIZAÇÃO
VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE SEGURANÇA
NEXO DE CAUSALIDADE
AUMENTO DA PROBABILIDADE DE ACIDENTE
GRAVIDADE DO COMPORTAMENTO
Data do Acordão: 04/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO TRABALHO DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 14.º, N.º 1, AL.ªS A) E B), E N.º 2, DA LAT E 19.º, N.º 1, DO DLEI N.º 50/2005, DE 25-02
Sumário: I – O fundamento de descaracterização previsto na segunda parte da alínea a), do nº 1, do art. 14º, exige que:
a) as condições e regras de segurança estabelecidas pelo empregador ou pela Lei se mostrem conexionadas com o risco decorrente da atividade profissional exercida, ligadas à própria execução do trabalho que o sinistrado se obrigou a prestar no exercício da sua atividade laboral;
b) o sinistrado tenha conhecimento de tais condições e regras de segurança;
c) se verifique o nexo de causalidade entre o ato ou omissão cometida pelo trabalhador e o acidente de que este foi vítima, ocasionado por violação das referidas regras;
d) inexistência de causa justificativa tal como esta se encontra definida no nº 2 do citado artº 14º;
e) a violação das regras de segurança se fique a dever, em concreto, a um comportamento subjetivamente grave do sinistrado.

II – Verfica-se o nexo de causalidade entre a inobservância das regras de segurança por parte do sinistrado e o acidente quando essa violação se traduza num aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se.

III – Deve ser caracterizado como subjetivamente grave o comportamento de um sinistrado que no painel de comando de uma granuladora apenas desligou o ventilador não tendo desligado a eclusa que continuou com o seu movimento de rotação e que, sabendo deste movimento, introduziu a mão entre a eclusa em movimento e espalhador num local de pouca luminosidade, o que lhe provocou a amputação de um dedo.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
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Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra

I – AA, casado, residente no Largo ..., ..., ..., ..., instaurou a presente ação para a efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho contra:

1) A..., S.A., com sede na Avenida ..., ..., ... ... e

2) B..., S.A., com sede na Rua ..., Urbanização ..., ..., ... ....

Pedindo a condenação da 2.ª Ré, com base na responsabilidade agravada, no pagamento das seguintes quantias:

- € 4.612,39 a título de indemnização diferencial por incapacidades temporárias, pelo período de 12-03-2019 a 11-06-2019 (ITA), acrescido de juros à taxa legal, desde 12-06-2019 e até integral pagamento;

- € 557,00 a título de danos patrimoniais, correspondente às despesas de deslocação ao Gabinete Médico-Legal, ao Tribunal e para assistência médica, conforme resulta dos autos e se encontra supra descrito, acrescido de juros à taxa legal, desde 12-06-2019 e até integral pagamento;

- capital de remição, calculado com base na pensão anual de € 2.229,10, reportada a 12-06-2019, e de acordo, ainda, com a base técnica de cálculo de capital de remição das pensões devidas em caso de acidente de trabalho, anexa à Portaria n.º 11/2000, de 13 de Janeiro, acrescido de juros à taxa legal, desde 12-06-2019 e até integral pagamento;

- € 3.500,00 a título de danos não patrimoniais, correspondente à tristeza e à revolta sentida, dores sofridas e às alterações morfológicas do Sinistrado, acrescido de juros à taxa legal, desde a Sentença e até integral pagamento.

Subsidiariamente, para o caso de se entender inexistir qualquer atuação culposa da entidade empregadora, pede a condenação da Seguradora no pagamento das prestações devidas e das despesas já identificadas.

Alegou, para o efeito, e muito em suma, tal como consta da sentença impugnada, que foi vítima de um acidente de trabalho, ocorrido em ... – ..., no dia 11/03/2019, ao serviço da sua entidade empregadora e aqui 2ª Ré, a qual transferiu a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho do Autor para a 1ª Ré, quando efetuava a limpeza de um arrefecedor de uma granuladora, tendo sido atingido por uma eclusa no dedo indicador da mão esquerda, cortando-o, daí resultando amputação pela metade distal da falange média desse dedo e que determinou que o Autor sofresse um período de incapacidade temporária absoluta, padecendo o mesmo de uma incapacidade permanente parcial de 10%.

Referiu ainda que nunca recebeu qualquer formação, informação, explicações ou recomendações por parte da sua entidade empregadora para trabalhar com a máquina a não ser uma breve explicação de um colega, não tendo sido alertado para potenciais riscos, pelo que a mesma omitiu a observância de regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho.

Mais referiu que a Seguradora lhe atribuiu alta em 11/04/2029 tendo deixado de lhe prestar assistência pelo que passou a custear as despesas com assistência às lesões resultantes do acidente, tendo despendido a esse título € 375,00; para a realização de atos médicos realizou 27 viagens entre o local da sua residência e o Centro Hospitalar ..., por cerca de 30km cada deslocação, num total de 810km, reclamando 0,20/km, no total de € 162,00.

O Autor alegou ainda que sofreu e ainda sofre dores, sentindo angústia, tristeza e revolta decorrente da amputação do dedo, devendo estes danos de natureza não patrimonial serem compensados.


+

A Ré A..., S.A. apresentou contestação referindo, em suma, que a máquina em apreço é composta por vários elementos, nomeadamente o arrefecedor, que é um compartimento por onde passa o granulado, no interior do qual está instalada uma “eclusa”, que trabalha em movimento rotativo e sempre que é necessário mudar a referência do granulado, o operador tem que efetuar a limpeza do circuito, acedendo ao interior da máquina e procedendo à limpeza. A máquina não dispõe de um sistema (sensor) de interrupção automática do seu funcionamento quando se tem de proceder à sua limpeza pelo que é necessário aceder ao quadro de comando da máquina para a desligar, o qual se localiza no piso de cima, relativamente ao piso onde a mesma se encontrava. No dia em apreço, o sinistrado encontrava-se a operar a máquina granuladora M12, tendo sido nessa altura necessário efetuar a sua limpeza para mudar a referência do granulado sendo que o sinistrado acedeu ao interior do compartimento da máquina através da porta de acesso para proceder à limpeza do arrefecedor e quando introduziu a sua mão esquerda na abertura da “eclusa”, o dedo do Autor foi apanhado pelas respetivas pás. O Autor sabia que o procedimento de limpeza do circuito da máquina granuladora tinha obrigatoriamente que ser feito com a máquina parada, no entanto optou por realizar a limpeza da máquina com a mesma em pleno funcionamento, em violação das normas estabelecidas pela empregadora, tendo assumido um comportamento temerário em alto e relevante grau, que deu causa ao acidente, que deve ser descaracterizado ao abrigo do disposto no art.º 14.º, n.º 1, al. a) e b) da Lei n.º 98/2009, de 04/09. Impugnou ainda a factualidade atinente às deslocações referidas pelo Autor, que não são devidas considerando que o mesmo não se encontrava impossibilitado de se deslocar em transportes públicos.

Terminou pedindo que a ação seja julgada improcedente, por não provada, devendo ser absolvida do pedido.

A Ré, B..., S.A., veio apresentar contestação alegando, em resumo, que a tarefa que o Autor se encontrava a desempenhar por ocasião do acidente correspondia às funções para as quais foi contratado e tratava-se de uma tarefa que já havia executado algumas dezenas de vezes antes. A limpeza da máquina é sempre efetuada com a máquina totalmente desligada/parada sendo que, no caso concreto, o Autor não a desligou. Da análise feita pela Ré concluiu-se que o Autor desligou o equipamento não se tendo apercebido que a turbina do arrefecimento do sistema continuava em movimento. Mais referiu que o Autor recebeu diversa formação através da contratação de serviços externos de formação. Por outro lado, todos os equipamentos industriais da Ré possuíam fichas de procedimento de segurança que eram dadas a conhecer aos respetivos colaboradores e todos os trabalhadores que laboravam com a máquina em apreço tinham os conhecimentos necessários para operar com a mesma em condições de segurança.

Com tais fundamentos, pretende, a final, que todos os factos alegados na contestação sejam julgados procedentes e a Ré absolvida da totalidade do pedido.


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Citada a Segurança Social, não foi deduzido pedido de reembolso

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II – Foi proferido despacho saneador, organizaram-se os factos assentes, identificou-se o objeto do litígio com enunciação dos temas da prova e, no prosseguimento dos autos veio, a final, a ser proferida sentença de cujo dipositivo consta.:

“Pelos fundamentos expostos, decide-se julgar parcialmente procedente a presente ação para a efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho, e, em consequência:

a). Declara-se que o Autor, AA, se encontra, em virtude do acidente de trabalho objeto deste processo, afetado de uma Incapacidade Permanente Parcial de 10%, desde 12/06/2019;

b) Condena-se a Ré “A..., S.A.” a pagar ao Autor, AA, o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de € 1.560,37 (mil quinhentos e sessenta euros e trinta e sete cêntimos), devida desde 12/06/2019;

c) Condena-se a Ré “A..., S.A.” a pagar ao Autor, AA, quantia de € 375,00 (trezentos e setenta e cinco euros) despendida pelo Autor com a assistência às lesões resultantes do acidente;

d) Condena-se a Ré “A..., S.A.” a pagar ao Autor, AA, juros de mora sobre as prestações pecuniárias supra atribuídas e em atraso, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde 12/06/2019, até integral pagamento;

e) Absolve-se a Ré “A..., S.A.” do demais peticionado pelo Autor, AA;

f) Absolve-se a Entidade Empregadora, B..., S.A., do pedido”.


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Não se conformando com esta decisão dela a seguradora apelou.

Por e por acórdão desta Relação de 24.06.2024 foi decidido: “ao abrigo do disposto no artigo 662º n.º 2 al. c) e d) do CPC, anular a sentença de modo a que 1ª instância possa suprir a contradição, obscuridade e deficiência apontadas fundamentando ainda devidamente a matéria de facto nos termos referidos”.


+

III. De novo na 1ª instância, veio a ser proferida nova sentença em cuja parte dispositiva se lê:

“Pelos fundamentos expostos, decide-se julgar parcialmente procedente a presente ação para a efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho, e, em consequência:

a) Declara-se que o Autor, AA, se encontra, em virtude do acidente de trabalho objeto deste processo, afetado de uma Incapacidade Permanente Parcial de 10%, desde 12/06/2019;

b) Condena-se a Ré “A..., S.A.” a pagar ao Autor, AA, o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de € 1.560,37 (mil quinhentos e sessenta euros e trinta e sete cêntimos), devida desde 12/06/2019;

c) Condena-se a Ré “A..., S.A.” a pagar ao Autor, AA, quantia de € 375,00 (trezentos e setenta e cinco euros) despendida pelo Autor com a assistência às lesões resultantes do acidente;

d) Condena-se a Ré “A..., S.A.” a pagar ao Autor, AA, juros de mora sobre as prestações pecuniárias supra atribuídas e em atraso, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde 12/06/2019, até integral pagamento;

e) Absolve-se a Ré “A..., S.A.” do demais peticionado pelo Autor, AA;

f) Absolve-se a Entidade Empregadora, B..., S.A., do pedido.

IV. Novamente inconformada, a seguradora veio apelar, concluindo:

(…).


+

Contra-alegou sinistrado, concluindo:

(…).


+

O Exmº PGA emitiu fundamentado parecer no qual entende que sentença “continua a suscitar, ainda que em menor grau, face à atual motivação da matéria de facto, de algumas das deficiências anteriormente apontadas à sentença de 10/01/2024 e que conduziram à respetiva anulação”

Caso assim não se entenda, afigura-se-lhe “que o recurso interposto pela Ré reúne condições para, ao mesmo, ser concedido provimento”.

No essencial, “subscreve os argumentos recursivos e respetivas conclusões”.


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IV – A 1ª instância considerou provada a seguinte matéria:

1) O Autor, no dia 11 de março de 2019, prestava a sua atividade, sob as ordens, direção e fiscalização da Ré Entidade Empregadora, “B..., S.A.”, com a categoria profissional de semi-especializado e auferia a remuneração de € 1450,00 x 14 meses, acrescida de € 4,40 x 22 dias x 11 meses de subsídio de alimentação e € 84,20 x 11 meses (média mensal) de horas extras, num total anual ilíquido de € 22.291,00. – Alínea A) dos Factos Assentes.

2) Na referida data e no local acima referenciado, o Autor encontrava-se a efetuar a limpeza de um arrefecedor de uma granuladora quando, ao colocar a sua mão entre o espalhador e a eclusa, foi atingido por esta última no dedo indicador da mão esquerda, cortando-o. – Alínea B) dos Factos Assentes.

3) A máquina granuladora encontra-se num local barulhento e não dispunha de luz natural nem artificial no seu interior.

4) Para efetuar a operação de limpeza, e não dispondo a máquina de um sistema (sensor) de interrupção automática do seu funcionamento, o Autor tinha de aceder ao quadro do comando da máquina para desligar o ventilador, o arrefecedor e a eclusa, o qual se localiza no piso acima daquele onde a máquina se encontrava.

5) A operação de limpeza do arrefecedor apenas pode ser efetuada com a máquina totalmente desligada, nomeadamente os seus componentes móveis, tendo o Autor sido advertido pela Ré Empregadora da obrigatoriedade de cumprir esse procedimento de segurança.

6) O Autor já tinha procedido, outras vezes, à operação de limpeza do arrefecedor da granuladora, que faz parte das respetivas funções.

7) O Autor efetuou a limpeza da máquina com a eclusa ainda em movimento.

8) Para entrar na máquina o Autor teve de desligar, pelo menos, o ventilador abrindo, após a porta que dá acesso ao interior da máquina assim neutralizando a operacionalidade do equipamento, nomeadamente a rotação da eclusa, que continuou em movimento devido à cadência do movimento rotativo.

9) Do evento descrito e da lesão dele decorrente, resultou para o Autor, enquanto sequela, a nível do membro superior esquerdo, amputação pela metade distal da falange média do dedo indicador, estando o coto moderadamente almofadado com cicatriz nacarada, a qual determina que o mesmo se encontre afetado com incapacidade permanente parcial de 10% desde 12 de junho de 2019, dia seguinte ao da consolidação das lesões (alta). – Alínea C) dos Factos Assentes.

10) Também em consequência do acidente e das lesões dele resultantes, o Autor esteve na situação de incapacidade temporária absoluta desde 12/03/2019 até 11/06/2019. – Alínea D) dos Factos Assentes.

11) O Autor recebeu da Ré, “A..., S.A.”, a quantia de € 1006,05 a título de indemnização por incapacidades temporárias. – Alínea E) dos Factos Assentes.

12) A Ré Empregadora disponibilizou ao Autor botas de biqueira de aço, luvas e óculos. – Alínea G) dos Factos Assentes.

13) A Ré Empregadora promoveu a realização de duas ações de formação no âmbito do serviço de higiene e segurança no trabalho, uma delas subordinada ao tema “Avaliação de riscos”, no dia 21 de julho de 2016, com uma carga horária de uma hora e a outra subordinada ao tema “Equipamentos de proteção individual, equipamentos de proteção coletiva e plano de emergência interna”, no dia 4 de julho de 2017, com uma carga horária de duas horas, com a participação, em ambas do Autor.

14) O Autor concluiu com aproveitamento duas unidades de formação de curta duração do Catálogo Nacional de Qualificações, uma das quais sobre Ambiente, segurança, higiene e saúde no trabalho, com início em 12/06/2018, de 25 horas e a outra sobre Primeiros Socorros, com início em 29/10/2018, de 25 horas.

15) O Autor tinha recebido informação da Entidade Empregadora, acerca dos procedimentos a observar na operação de limpeza do arrefecedor, nomeadamente por intermédio do seu colega, BB, e designadamente que tinha de desligar a máquina para assegurar que o movimento de todos os componentes móveis da máquina era neutralizado.

16) A empresa prestadora de serviços externos no âmbito da higiene, segurança e saúde no trabalho elaborou a ficha de procedimentos de segurança relativamente à manutenção/desencravamento da máquina granuladora.

17) O Autor despendeu a quantia de € 375,00 com a assistência às lesões resultantes do acidente.

18) Em virtude do acidente o Autor sofreu dores e sentiu tristeza por se ver com o dedo amputado.

19) À referida data, a Ré “B..., S.A.”, tinha a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho relativamente ao Autor, transferida para a Ré “A..., S.A.”, através da Apólice n.º ...60, pela totalidade da retribuição anual ilíquida auferida pelo Autor. – Alínea F) dos Factos Assentes.

20) O Autor nasceu em ../../1974. – Alínea H) dos Factos Assentes.

Factos não provados:

Não se provou que:

a) A ficha de procedimentos de segurança relativamente à manutenção/desencravamento da máquina granuladora foi dada a conhecer ao Autor.

b) O Autor despendeu a quantia de € 20,00 em deslocações obrigatórias ao GML e ao Juízo do Trabalho de Leiria.

c) O Autor despendeu a quantia de € 162 com deslocações para a assistência às lesões, tendo realizado 27 viagens entre a sua residência e o Centro Hospitalar ....

d) Em virtude do acidente o Autor sentiu revolta e angústia.


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V - Conforme decorre das conclusões das alegações que, como se sabe, delimitam o objeto do recurso, as questões a dilucidar e decidir equacionam-se do seguinte modo:

1. Se a matéria de facto deve ser alterada.

2. Se o acidente se encontra descaracterizado não dando lugar à reparação.

Da alteração da matéria de facto:

O recorrente pretende que o ponto 8 dos factos provados, com o seguinte teor:

“Para entrar na máquina o Autor teve de desligar pelo menos o ventilador abrindo, após, a porta que dá acesso ao interior da máquina assim neutralizando a operacionalidade do equipamento, nomeadamente a rotação da eclusa, que continuou em movimento devido à cadência do movimento rotativo

Deve passar a ter a seguinte redação:

“Para entrar na máquina o Autor teve de desligar o ventilador, mas não desligou a eclusa que se mantinha no seu movimento de rotação.”

Decidindo.

Ouvimos integralmente toda a prova, assim como analisámos toda documentação junta aos autos.

Da prova testemunhal, principalmente do depoimento da testemunha CC, serralheiro mecânico que trabalhou na B... desde 1990 e que revelou conhecimento técnico sobre o modo como funcionava a máquina granuladora onde ocorreu o sinistro, podemos concluir que esta máquina, da qual fazem parte o ventilador, a eclusa e o arrefecedor distribuídos por vários pisos, tem no piso superior os comandos (“botões”) que permitem ligar e desligar a máquina.

Desses “botões”, o geral, desliga todo o circuito da máquina parando o ventilador, a eclusa e o arrefecedor/secador.

Cada um dos outros três “botões” destinam-se, individualmente, a parar o funcionamento do ventilador, da eclusa e do arrefecedor.

Para se entrar na máquina tinha de ser desligado o ventilador pois o forte jato ou a forte circulação do ar no seu interior não permita a presença de pessoas bem como dificilmente ou muito dificilmente permitia a abertura da porta de acesso ao interior onde iria ser efetuada a limpeza do granulado.

Por isso estamos inteiramente de acordo com a decisão da 1ª instância quando deu como assente que que, pelo menos (alteração introduzida após baixa do processo), o sinistrado desligou o ventilador.

Mas terá desligado também a eclusa, cuja rotação lhe provocou a amputação do dedo?

O sinistrado declarou e redigiu pelo seu punho passados cerca de 15 dias após o acidente em declarações prestadas ao perito averiguador (declarações que não foram contestadas) o seguinte “…na limpeza do arrefecedor meti a mão esquerda na abertura da passagem do granulado e a eclusa no movimento rotativo apanhou-se o dedo indicador. O painel de comando situa-se no piso superior e m relação ao arrefecedor e a eclusa situa-se no meio. A limpeza da máquina é feita com a mesma parada e no caso concreto não a desliguei” (sublinhado e negrito nossos)

Ou seja, embora tivesse desligado o ventilador para poder entrar na máquina não desligou a eclusa, embora o pudesse ter feito acionando o respetivo botão de paragem ou o botão de corte geral de todo o circuito fazendo parar, neste caso, todos os componentes da máquina granuladora.

Com efeito, o sinistrado ao afirmar que “no caso concreto não a deliguei” apenas pode ser entendido como não tendo parado ou desligado a eclusa, fazendo necessariamente parar o respetivo movimento de rotação.

Acontece que a máquina, segundo a testemunha CC, possuía um sistema que a parava quando ocorresse um encravamento, o que ocorreria se alguém entrasse dentro da máquina.

Se bem que a testemunha CC tenha afirmado que com a abertura da porta da máquina o movimento da eclusa parava em virtude de entrar em ação o mecanismo que detetava os encravamentos, o facto é que, nesta parte, o depoimento da dita testemunha é contrariado pela factualidade narrada no facto 4 (não impugnado), ou seja, que a máquina não disponha de um sistema (sensor) de interrupção automática do seu funcionamento.

De tudo isto, apenas podemos concluir fora de qualquer dúvida razoável, que o sinistrado apenas desligou o ventilador, mas não desligou a eclusa, não sendo crível que o movimento da eclusa tivesse cessado com o simples abrir da porta ou que a eclusa, por efeito da inércia, se encontrasse ainda em rotação quando atingiu o dedo do sinistrado.

Aliás, esta última situação apenas em termos hipotéticos é colocada pela testemunha CC.

De todo o exposto, entendemos dar a seguinte redação ao facto 8:

“Para entrar na máquina o Autor teve de desligar o ventilador, mas não desligou a eclusa, que se mantinha no seu movimento de rotação.”

Da descaraterização:

A recorrente alega que o acidente se encontra descaraterizado nos termos das alíneas a) e b) do artº 14º da LAT.

Diga-se em primeiro lugar que as duas causas de descaraterização não podem verificar-se simultaneamente.

E isto pela simples razão de que, verificando-se a circunstância da alínea a), a negligência, ainda que grosseira, a verificar-se, deixará de ser exclusiva relativamente ao acidente, pelo que não se verificará a causa de descaracterização prevista na da alínea b).

Daí que se comece por analisar se está verificado ou não o circunstancialismo da alínea a).

Esta alínea prevê duas hipóteses de descaracterização do acidente: uma, decorrente de atuação dolosa provocada pelo sinistrado e outra, prevista na segunda parte, se o acidente provier de ato ou omissão do sinistrado que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei.

Relativamente ao fundamento de descaracterização previsto na segunda parte da alínea a), do nº 1, do art. 14º, exige-se que: a) as condições e regras de segurança estabelecidas pelo empregador ou pela Lei se mostrem conexionadas com o risco decorrente da atividade profissional exercida, ligadas à própria execução do trabalho que o sinistrado se obrigou a prestar no exercício da sua atividade laboral; b) o sinistrado tenha conhecimento de tais condições e regras de segurança; c) que se verifique o nexo de causalidade entre o ato ou omissão cometida pelo trabalhador e o acidente de que este foi vítima, ocasionado por violação das referidas regras; e d) inexistência de causa justificativa tal como esta se encontra definida no nº 2 do citado artº 14º.

O ónus da prova da descaracterização, como facto impeditivo do direito do trabalhador à reparação cabe à entidade responsável por essa mesma reparação.

Como norma de segurança instituída pelo empregador do sinistrado/Autor na empresa, insere-se a proibição da operação de limpeza do arrefecedor sem que a máquina esteja totalmente desligada, nomeadamente os seus componentes móveis, tendo o Autor sido advertido pela Ré Empregadora da obrigatoriedade de cumprir esse procedimento de segurança (facto 5).

Como norma legal de segurança temos o artº 19º do DL 50/2005 que no seu nº 1 estipula “As operações de manutenção devem poder efetuar-se com o equipamento de trabalho parado ou, não sendo possível, devem poder ser tomadas medidas de proteção adequadas à execução dessas operações ou estas devem poder ser efetuadas fora das áreas perigosas”.

Ora, não podem restar dúvidas de que, quer a norma instituída pelo empregador quer a norma legal se conexionam com o risco decorrente da atividade profissional e da execução do trabalho que estava a ser executada pelo sinistrado.

Por outro lado, o sinistrado, como resulta, da matéria de facto, tinha conhecimento da norma instituída pelo seu empregador como não podia deixar de conhecer o comando ínsito na norma legal, ou seja, que as operações de manutenção, como era o caso da limpeza da granuladora, devem efetuar-se com o equipamento de trabalho parado.

Relativamente ao nexo de causalidade, aplicando aqui o que o STJ decidiu no AUJ6/2024, de 13 de maio (Diário da República n.º 92/2024, Série I de 2024-05-13)[1] não temos dúvidas de que, atentas as circunstâncias do caso concreto, a violação por parte do sinistrado das mencionadas regras de segurança se traduziu em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se, ou seja, ao proceder à limpeza da granuladora com a eclusa em plena rotação a probabilidade do dedo do sinistrado vir a sofrer um corte pela rotação da eclusa quando colocou a sua mão entre o espalhador e a eclusa não era só provável como era real, pelo que se encontra verificado o imprescindível nexo de causalidade.

De referir ainda que o sinistrado tinha perfeito conhecimento que a operação de limpeza tinha de ser feita com a máquina parada não se vislumbrando que tivesse dificuldade em compreender a regra sobre segurança que lhe tinha sido transmitida.

Isto para dizer que não ocorreu qualquer causa justificativa para o não cumprimento ou observância por parte do sinistrado da regra sobre segurança que lhe tinha sido comunicada.

Mas, para que esta causa de descaraterização opere é necessário que a violação das regras de segurança pelo sinistrado se fique a dever a um comportamento subjetivamente grave, a uma culpa grave do sinistrado.

O STJ outrora entendia que nestes casos para que o acidente fosse descaraterizado não se exigia a prova da culpa do sinistrada na eclosão do evento, bastando a inobservância da regra.

A jurisprudência evoluiu no sentido de se exigir a prova do comportamento subjetivamente grave do sinistrado; e isto, ao que cremos, no seguimento das lições do agora Conselheiro Júlio Gomes que na obra “O Acidente de Trabalho, O acidente de trabalho in itinere e a sua descaraterização” escreveu, designadamente (pgªs 240 a 242) “..não pode ser o mero facto da violação das regras de segurança que opera a descaraterização, devendo exigir-se um comportamento subjetivamente grave, ao que acresce que outras “justificações” poderão ser relevantes. Terá, por conseguinte, que verificar-se, também aqui, uma culpa grave do trabalhador, tão grave que justifique a sua exclusão, mesmo que ele esteja a trabalhar, a executar a sua prestação, do âmbito da tutela dos acidentes de trabalho. Essa culpa deve ser aferida em concreto e não em abstrato e não poderá deixar de atender a fatores como o excesso de confiança induzido pela própria profissão, a eventual passividade do empregador perante condutas similares no passado – até porque muitos especialista sublinham que o desrespeito por regaras de segurança resulta muitas vezes, de o trabalhador tentar encentrar “atalhos” para produzir mais rapidamente, sobretudo quando lhe são impostos ritmos de produção muito elevados ou de o trabalho ter sido, anteriormente, elogiado ou apreciado, apesar do empregador bem saber que tinha sido prestado com violação de regras de segurança – e simplesmente, fatores fisiológicos e ambientais, como o cansaço, o calor ou o ruído existentes no local de trabalho”

Todavia, entendemos que esta culpa grave não poderá ser entendida como equiparada à negligência grosseira sob pena da alínea b) do nº 1 do artºs 14º da LAT ficar vazia de conteúdo.

No caso em análise, o sinistrado desligou o ventilador quando os comandos que permitiam a paragem da eclusa, e também do arrefecedor, se encontravam no 1ª piso no painel de comando, não se encontrando justificação para que tivesse desligado o ventilador, mas não a eclusa quando sabia que tinha de entrar na granuladora para efetuar a limpeza.

É verdade que o sinistrado já tinha procedido, de outras vezes, à operação de limpeza do arrefecedor da granuladora, o que faz parte das respetivas funções (facto 6).

Contudo, desta materialidade, não decorre que tivesse criado um excesso de confiança no que se refere à limpeza da máquina, nem se demonstrou que quaisquer fatores ambientais tivessem concorrido para que tivesse executado o serviço da forma como o executou, sem ter deligado a eclusa que sabia estar em movimento quando introduziu a sua mão entre o espalhador e aquela.

É certo que máquina granuladora se encontrava num local barulhento que não dispunha de luz natural nem artificial no seu interior.

Todavia, estas circunstâncias não fazem diminuir a culpa ou o juízo de censura que sobre si recai.

Com feito, sabendo o sinistrado que a eclusa se encontrava em movimento, mais se lhe exigia que, na falta de luminosidade, não tivesse introduzido a mão entre a eclusa e o espalhador.

É que a falta de luz, limitativa da sua visão, aumentou necessariamente o risco de ser atingido pela eclusa em rotação como, efetivamente, veio a acontecer.

Considerando todo o circunstancialismo em que o evento infortunístico ocorreu, somos a concluir que o comportamento do sinistrado deve ser qualificado como subjetivamente grave pelo que o acidente se encontra descaracterizado, não dando lugar à reparação.


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IV - Termos em que se decide julgar a apelação procedente em função do que, na revogação sentença impugnada, se absolve a recorrente do pedido.

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Custas a cargo da apelante

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Sumário[2]:

(…).


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Coimbra, 10 de abril de 2025

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(Joaquim José Felizardo Paiva)

(Paula Maria Mendes Ferreira Roberto)

(Mário Sérgio Ferreira Rodrigues da Silva)



[1] É certo que este aresto foi tirado para os casos de as regras de segurança serem violadas pelo empregador e não pelo trabalhador sinistrado. Contudo, por uma questão de similitude não vemos que, quando a violação seja praticada pelo sinistrado, a jurisprudência referida não deva também ser aplicada
[2] Da exclusiva responsabilidade do relator.