Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3/21.1T8ANS-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: DECISÃO DO AGENTE DE EXECUÇÃO SOBRE A VENDA EXECUTIVA
RECLAMAÇÃO PARA O JUIZ
IRRECORRIBILIDADE DA DECISÃO JUDICIAL
INCONSTITUCIONALIDADE
DIREITO À TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA
INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ANSIÃO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: RECLAMAÇÃO (ART.º 643.º DO CPCIV.)
Decisão: INDEFERIDA
Legislação Nacional: ARTIGOS 723.º, N.º 2, 812.º, N.º 7, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E 20.º, N.ºS 1 E 4, DA CONSTITUIÇÃO
Sumário: I – A autonomia vs. não autonomia do recurso respeita ao momento da sua interposição, pelo que o problema da autonomia ou não autonomia do recurso pressupõe, logicamente, a recorribilidade da decisão, e só no caso de a impugnação ser admissível é que há lugar à discussão sobre a autonomia ou não autonomia do recurso, i.e., se foi interposto no momento processualmente adequado, se podia ser interposto independentemente de qualquer outro recurso.
II – A decisão do juiz de execução que aprecie a reclamação deduzida contra a decisão do agente de execução de escolha da modalidade da venda executiva e de fixação o valor dos bens a vender, seja qual for o seu fundamento, constitui caso de exclusão expressa específica – e incondicional – de irrecorribilidade: essa decisão é irrecorrível.

III – A irrecorribilidade daquela decisão do juiz de execução não é constitucionalmente imprópria ou ilegítima, por violação do direito ao recurso, enquanto dimensão do direito de acesso ao direito, dado que é materialmente justificada pelo princípio – ou argumento – da proporcionalidade entre o objecto daquela decisão do agente de execução e do juiz de execução – um acto meramente preparatório da venda executiva – e a suficiência e a adequação da actividade do tribunal e pela finalidade de impedir a execução da garantia patrimonial com a discussão relativa a um objecto ou acto processual meramente preparatório e, portanto, instrumental relativamente a um acto ulterior.

IV – Os princípios da reserva de juiz, da tutela jurisdicional efectiva e da interpretação conforme com a Constituição, não impõem uma interpretação restritiva da norma que prevê a apontada irrecorribilidade, dado que a intervenção daquele princípio de interpretação da lei só é lícita se existir um espaço de decisão, em espaço aberto a várias propostas interpretativas, umas conformes, a que se deve dar preferência, e outras desconformes com o texto constitucional, o que não é seguramente o caso, visto que a norma que prevê a apontada irrecorribilidade da decisão do juiz de execução apenas comporta o sentido que, inequivocamente, decorre do seu significado literal.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: Relator: Henrique Antunes
Adjuntos: Falcão de Magalhães
Sílvia Pires

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

Na acção executiva que, sob o nº 3/21, corre termos no Juízo de Execução de Ansião, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, na qual é executada AA, esta, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 812.º. n.º 6, apresentou reclamação da decisão da venda, pedindo o levantamento da penhora do imóvel ou, caso assim se não entenda, que se dê a presente avaliação sem efeito e após validação da metragem da aérea correcta pela AT se proceda a uma avaliação consentânea com a realidade dos factos.

Fundamentou estas pretensões no facto de penhora datar de Janeiro de 2021, não tendo sido efectuado diligências para a realização do pagamento efectivo do crédito em causa, de a decisão de venda estar instruída com relatório de avaliação com que não concorda, não concordando com o método utilizado, existindo uma área utilizada pela executada com cerca de 2 100,00 m2 que não foram tidos em conta na avaliação por não constarem da caderneta predial, posto é que o valor do mercado para venda padece dessa irrealidade, com claras repercussões e desvantagens para as partes envolvidas.

Ouvida a Sra. Agente de Execução, a Sra. Juíza de Direito julgou improcedente a reclamação a decisão de venda.

A executada logo interpôs deste despacho recurso autónomo de apelação - para subir em separado e com efeito suspensivo - no qual pede a sua revogação, tendo rematado a sua alegação com estas, deveras singulares, conclusões: a) Do efeito suspensivo do presente recurso; b) Da consideração ou não da área total – ainda que não inscrita na matriz; c) Do método de avaliação mais adequado à situação.

Porém, a Sra. Juíza de Execução, com fundamento em que no caso em apreço, o despacho objecto de recurso apenas pode ser impugnado conjuntamente com a decisão final, uma vez que não se enquadra em nenhuma das alíneas do n.º 2 do artigo 644.º do C.P.C., que assim, o ensina Abrantes Geraldes (in Recursos em Processo Civil - Novo Regime, pág. 194) em anotação ao artigo 691º quando escreve que "As decisões intercalares que, reunindo os pressupostos gerais da recorribilidade, não admitam recurso imediato podem (e só podem) ser impugnadas no âmbito do recurso que eventualmente venha a ser interposto da decisão final  (...), de acordo com o disposto no n.º 3, ou nas condições referidas no n.º 4.", e que deste modo, a decisão sob recurso, por não se enquadrar em nenhum dos casos expressamente previstos no n.º 2 do artigo 644.º só pode ser impugnada conjuntamente com o recurso da decisão final, nos termos do mencionado preceito legal, pelo que é legalmente inadmissível – não admitiu o recurso.

É, justamente, esta decisão de rejeição do recurso que a executada impugnou através da reclamação - na qual pede a sua revogação - tendo condensado a sua discordância relativamente ao despacho reclamado nestas conclusões:

(…).

Não foi oferecida resposta.

O relator proferiu sobre a reclamação, no dia 1 de Março de 2024, o despacho com o conteúdo seguinte:

2. Factos relevantes para o conhecimento do objeto da reclamação.

Os factos que relevam para o conhecimento da reclamação, relativos, designadamente, ao despacho impugnado no recurso indeferido, ao requerimento de interposição desse mesmo recurso e ao conteúdo da decisão reclamada, são os que, em síntese apertada, o relatório documenta.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação do âmbito objetivo da reclamação.

A questão concreta controversa que importa decidir é uma só: a de saber se o despacho que indeferiu in limine o recurso interposto pela reclamante da decisão que lhe indeferiu a reclamação contra a decisão da venda, com fundamento na sua irrecorribilidade autónoma, deve ou não ser revogado e logo substituído por outra decisão que admita o recurso e, do mesmo passo, fixe o modo de subida e o efeito – extraprocessual – da sua interposição.

No julgamento da impugnação, deve ter-se presente o distinguo entre fundamentos absolutos e relativos da reclamação. Dizem-se absolutos os fundamentos que se forem considerados procedentes pelo tribunal de recurso conduzem sempre à procedência da reclamação, porque não são compatíveis com a confirmação da decisão recorrida com outro fundamento; os fundamentos relativos são aquele que, apesar de serem reconhecidos pelo tribunal ad quem, não impedem a confirmação da decisão recorrida, com um fundamento distinto daquele que foi aceite pelo tribunal a quo[1].

Portanto, a improcedência da reclamação, e a consequente confirmação da decisão impugnada podem resultar, da modificação pelo tribunal superior, do fundamento dessa mesma decisão. Sempre que a decisão possa comportar vários fundamentos, o tribunal ad quem pode, mesmo que, eventualmente, deva aceitar a procedência da reclamação, pode encontrar um fundamento, distinto daquele que foi utilizado pelo tribunal a quo, para confirmar a decisão reclamada.

3.2. Concretização.

O fundamento da rejeição do recurso consistiu no facto de a decisão nele impugnada não ser autonomamente impugnável e, portanto, de a sua interposição apenas ser admissível em conjunto com o recurso interposto de uma outra decisão: a decisão final. Diferentemente, a reclamante acha, por um lado, que a decisão impugnada no recurso é autonomamente recorrível por se tratar da decisão de um incidente – competindo-lhe um efeito extraprocessual suspensivo, por aplicação extensiva da previsão da alínea c) do n.º 3 do artigo 647.º do CPC – e, por outro, que a impugnação diferida da decisão recorrida torna absolutamente inútil o recurso, pois que o processo está já na fase da venda e pode prosseguir com uma avaliação que não corresponde à realidade dos factos.

Creio, em face da decisão que é impugnada no recurso indeferido, que o problema não é de autonomia ou não autonomia desse mesmo recurso – mas de irrecorribilidade, tout court, daquela decisão.

A exclusão expressa da recorribilidade nos recursos ordinários pode referir-se a uma categoria de decisões – ou a uma espécie de decisões, exclusão que pode ser incondicional, como sucede no tocante a algumas decisões específicas.

Na preparação da venda executiva, compete ao agente de execução, ouvidos que sejam o exequente, o executado e os credores com garantias reais sobre os bens a vender, escolher, quando possível, a modalidade da venda e fixar o valor base dos bens a vender (art.ºs 812.º, n.ºs 1 e 2, a), do CPC). Esta decisão do agente de execução deve ser notificada àqueles sujeitos processuais e, apesar de os ter ouvido previamente, qualquer interessado pode reclamar para o juiz de execução de qualquer daquelas decisões daquele agente (art.ºs 812.º, n.ºs 1 e 6, do CPC). Da decisão juiz de execução que aprecie a reclamação não cabe recurso (art.º 812.º, n.º 7, 2.ª parte, do CPC).

No caso que nos ocupa, a executada reclamou contra a decisão do agente de execução - nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 812.º. n.º 6 - no segmento em que fixou o valor do bem imóvel a vender, controvertendo esse valor, e a decisão impugnada no recurso é, precisamente, a da Sra. Juíza de Execução, que julgou improcedente essa reclamação. Esta decisão – declara clara e terminantemente a lei – é irrecorrível.

Quer dizer: a lei regula de modo especificado ou individualizado, a admissibilidade do recurso da decisão que aprecia a reclamação deduzida por qualquer interessado contra a decisão do agente de execução de determinação da modalidade da venda executiva e do valor dos bens a vender e exclui sua recorribilidade, seja qual o fundamento de improcedência dessa mesma reclamação. Não há, por isso, razão, ao contrário do que se decidiu no despacho de indeferimento do recurso e ao inverso também do que a reclamante sustenta na reclamação, para recorrer às regras gerais relativas à admissibilidade do recurso autónomo para se decidir dessa mesma admissibilidade.

Em face daquela exclusão incondicional específica da recorribilidade, a improcedência da reclamação é meramente consequencial.

As custas da reclamação deverão ser satisfeitas pela parte que nela sucumbe: a reclamante (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, julgo improcedente a reclamação.

Custas pela reclamante.

A reclamante reclamou também deste despacho, pedindo a sua revogação, tendo rematado o requerimento com as conclusões seguintes:

(…).

Não foi oferecida resposta.

O relator determinou que o processo fosse levado à conferência para se decidir a reclamação.

2. Factos procedimentais relevantes para o conhecimento do objecto da reclamação.

Os factos, de índole processual, que relevam para o conhecimento do objecto da reclamação, relativos ao conteúdo das decisões reclamadas e aos fundamentos da impugnação correspondente, são os que o relatório documenta.

3. Fundamentos.

A questão concreta controversa colocada à atenção da conferência é uma só: a de saber se a decisão singular do relator que desatendeu a reclamação deduzida pela reclamante contra a decisão de rejeição do recurso que interpôs da decisão de indeferimento da reclamação que apresentou contra a decisão do agente de execução de determinação da modalidade da venda executiva e do valor base do bem a vender, deve ser revogada e logo substituída por acórdão que admita o recurso rejeitado e, consequentemente, lhe fixe o modo e o momento da subida e o efeito – extraprocessual – da sua interposição.

A decisão da 1.ª instância de indeferimento liminar do recurso assentou na irrecorribilidade autónoma da decisão que desatendeu a reclamação deduzida contra a decisão do agente de execução de fixação do valor base do bem a vender executivamente; a reclamação deduzida contra a decisão de rejeição in limine daquele recurso tem por fundamento a recorribilidade autónoma da decisão impugnada no recurso rejeitado; diferentemente, o relator fundamentou a decisão de improcedência da reclamação na irrecorribilidade tout court da decisão que recaiu sobre a impugnação deduzida contra a decisão do agente de execução. De todos estes pontos de vista, o que encontra na letra da lei um amparo indiscutível é o do relator: realmente, a lei é clara, peremptória e terminante em declarar que da decisão juiz de execução que aprecie a reclamação deduzida contra a decisão do agente de execução de escolha da modalidade da venda e de fixação do valor base dos bens a vender não cabe recurso (art.º 812.º, n.º 7, 2.ª parte, do CPC). Patentemente, nem a decisão de rejeição do recurso da 1.ª instância nem a reclamante levaram em devida e boa conta esta previsão específica de irrecorribilidade.

 E é esta a norma aplicável, dado o seu carácter especial, e não a que, com carácter geral, estabelece a regra da irrecorribilidade da decisão do juiz de execução que decida a reclamação contra actos e impugnações de decisões do agente de execução (art.º 723.º, n.º 1, c), do CPC. O que, parece, não é, de todo, destituído de relevância, dado que neste último caso, mas já não no primeiro, o juiz de execução pode aplicar ao reclamante uma multa processual de 0,5 a 5 UC (art.º 723.º, n.º 2, do CPC).

A autonomia vs. não autonomia do recurso respeita ao momento da sua interposição. Os recursos relativos a decisões interlocutórias, i.e., respeitantes a decisões não finais proferidas durante a tramitação do processo podem, efectivamente, ser autónomos – que são aqueles que são interpostos independentemente de qualquer outro recurso – ou não autónomos – que são aqueles que são interpostos conjuntamente com o recurso interposto de uma outra decisão, nomeadamente de uma decisão final. Regra geral, tanto na acção declarativa como na executiva, os recursos interpostos de decisões interlocutórias são recursos não autónomos (art.º 644.º, n.º 3, 671.º, n.º 2, e 853.º, n.º 1, do CPC). Portanto, o problema da autonomia ou não autonomia do recurso pressupõe, logicamente, a recorribilidade da decisão, e só no caso de o recurso ser admissível é que há lugar à discussão da sua autonomia ou não autonomia, i.e., se foi interposto no momento processualmente adequado, se podia ser interposto independentemente de qualquer outro recurso.

A exclusão expressa da recorribilidade, no tocante aos recursos ordinários, pode referir-se a uma categoria de decisões – ou a uma espécie de decisões, i.e., casos em que a lei exclui a recorribilidade de decisões específicas. Caso de exclusão expressa específica – e incondicional - de irrecorribilidade é, precisamente, o da decisão do juiz de execução que aprecie a reclamação deduzida contra a decisão do agente de execução de escolha da modalidade da venda executiva e de fixação o valor dos bens a vender: tal decisão, repete-se, é irrecorrível (art.º 812.º, n.º 7, 2.ª parte, do CPC).

Para ladear a apontada previsão específica incondicional de irrecorribilidade, a impugnante obtempera que não pode ser feita uma interpretação literal do artigo 812.º, n.º 7 por violação do direito a tutela jurisdicional efetiva consagrada no artigo 20.º, n.º 1 e 4 (da Constituição da República Portuguesa), sendo de admitir uma interpretação restritiva do artigo 723.º na medida em que a irrecorribilidade absoluta pode colidir com a reserva de jurisdição do juiz de execução e o direito a uma tutela jurisdicional efetiva.

Julga-se que caso se deva concluir que a norma contida no n.º 7 do art.º 812.º do CPC viola a norma constitucional invocada pela reclamante, o problema não é de interpretação daquela norma, mas o da sua inconstitucionalidade, portanto, da sua invalidade: a reação ou sanção típica da ordem constitucional contra a inconstitucionalidade de actos normativos é a sanção da nulidade: o acto normativo que não preencha os requisitos materiais, formais orgânicos e procedimentais estabelecidos pela Constituição é um acto inválido, totalmente improdutivo – nulidade absoluta (art.º 282.º, n.º 2, da Constituição). Mas também se julga que não há a mínima razão para ter a apontada norma processual ordinária por constitucionalmente imprópria, do ponto de vista material e, consequentemente, por nula.

No plano constitucional, o único recurso que encontra uma consagração expressa é o recurso para o Tribunal Constitucional para fiscalização da constitucionalidade e da legalidade (art.º 280.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa). Mas o texto constitucional contém uma consagração implícita do direito ao recurso quando se refere ao Supremo Tribunal de Justiça e aos tribunais de 1.ª e 2.ª instância (art.º 209.º, n.º 1, da Constituição): da previsão de diversos tribunais, hierarquicamente ordenados, decorre, realmente, sem dificuldade, a proibição de eliminação, pelo lei ordinária, do direito ao recurso em todo e qualquer caso[2]. Mas do mesmo passo, da consagração constitucional de tribunais de diferentes hierarquias, não decorre a possibilidade de recorrer sempre e em qualquer caso. Quer dizer: a Constituição proíbe uma eliminação global dos recursos – mas não impõe uma recorribilidade irrestrita de toda e qualquer decisão.

Relativamente às limitações ou restrições do direito ao recurso, é a seguinte a orientação, consolidada, da jurisprudência constitucional: a garantia do acesso aos tribunais não abrange a obrigação de consagração, pelo legislador ordinário, de um duplo grau de jurisdição, entendido como a possibilidade de obter o reexame de uma decisão jurisdicional, em sede de mérito, por outro juiz pertencente a uma grau de jurisdição superior, para todas as decisões – mas apenas, em consonância com o princípio da proporcionalidade que domina o regime dos direitos fundamentais, para questões de maior relevo ou importância, pelo que só é constitucionalmente imprópria uma restrição não proporcional do recurso[3]. De harmonia com a jurisprudência constitucional, o direito de acesso aos tribunais não garante, necessariamente, e em todos os casos, o direito a um duplo grau de jurisdição: aquele direito apenas garante o acesso aos tribunais para obter uma decisão definitiva de um litígio num campo de estrita horizontalidade. Dito doutro modo: não existe qualquer preceito constitucional que consagre a dupla instância ou o duplo grau de jurisdição, em termos gerais, pelo que o legislador dispõe de uma ampla liberdade de conformação quanto à regulação dos requisitos e graus de recurso, apenas se lhe sendo vedado regulá-lo de forma discriminatória ou limitá-lo de modo excessivo. A conclusão a tirar, no domínio do processo civil é, assim, que há sempre o direito a recorrer ao juiz – mas não há sempre o direito de recorrer do juiz (art.º 20 n.º 1, da Constituição, e 2.º, n.º 1, do CPC).

Como se observou na decisão reclamada, na preparação da venda executiva, compete ao agente de execução, ouvidos que sejam o exequente, o executado e os credores com garantias reais sobre os bens a vender, escolher, quando possível, a modalidade da venda, e fixar o valor base dos bens a vender (art.º 812.º, n.ºs 1 e 2, a), do CPC). Esta decisão do agente de execução deve ser notificada àqueles sujeitos processuais e, apesar de os ter ouvido previamente, qualquer interessado pode reclamar para o juiz de execução de qualquer destas decisões daquele agente (art.º 812.º, n.ºs 1 e 6, do CPC).

A lei chama à impugnação da decisão daquele agente, reclamação. Formal ou legalmente esta reclamação não é, pois, um recurso; mas materialmente é-o sem dúvida, se se tiver presente que a reclamação representa um pedido de reapreciação da decisão pelo mesmo órgão que a proferiu e sobre a mesma situação em face da qual decidiu – impugnação horizontal – e o que recurso representa um pedido de apreciação da legalidade de uma decisão que é feito a um órgão decisor diferenciado e supraordenado – impugnação vertical. A exclusão específica e incondicional da decisão do juiz de execução que aprecie a impugnação deduzida contra aquela decisão do agente de execução encontra a sua justificação na proporcionalidade entre o objecto daquela decisão do agente de execução e do juiz de execução – um acto meramente preparatório da venda executiva – e a suficiência e a adequação da actividade do tribunal. Nesta perspectiva abstracta e formal, parte-se do princípio de que é suficiente a decisão de um único juiz e abstrai-se da importância da decisão para as partes, em especial, para o eventual recorrente, e da relevância dos fundamentos da sua impugnação. Fundamento a que se pode adicionar o propósito de evitar que se embarace a execução da garantia patrimonial com a discussão relativa a um objecto ou acto processual meramente preparatório e, portanto, instrumental relativamente a um acto ulterior. À sombra destes fundamentos, a exclusão da recorribilidade da apontada decisão do juiz de execução é adequada e proporcional e, portanto, não é contrastante com o direito ao recurso, enquanto dimensão do direito de acesso aos tribunais.

No ver da impugnante, a irrecorribilidade irrestrita do art.º 723.º do Código de Processo Civil, colide com a reserva de jurisdição do juiz de execução e o direito a uma tutela jurisdicional efectiva, que imporiam uma interpretação restritiva da norma contida naquele preceito.

A interpretação restritiva – que é uma interpretação citra litteram – justifica-se sempre que o significado da letra da lei deva, por força do seu espírito, ficar aquém do seu significado literal e fundamenta-se num juízo de desagregação, dado que o que está estabelecido para o todo só deve valer para a parte.

 Em primeiro lugar, importa notar que a regra de que a decisão reclamada aplicou é a contida no n.º 7 do art.º 812.º do Código de Processo Civil que concretiza, no tocante à decisão do juiz de execução que conheça da reclamação deduzida contra a decisão do agente de execução de escolha da modalidade da venda e de fixação do valor dos bens a vender, o princípio geral da irrecorribilidade das decisões do juiz de execução que apreciem reclamações contra as decisões aquele agente, objecto do n.º 2 do art.º 723.º do mesmo Código, pelo que se torna desinteressante discutir se esta última norma deve ou não ser objecto de uma interpretação restritiva.

Em qualquer caso, tem-se por certo que não há qualquer razão que justifique uma interpretação restritiva tanto de uma como de outra destas normas, dado que não há fundamento para concluir, quer a partir da reserva de juiz quer do princípio da tutela jurisdicional efectiva, que o espírito de qualquer delas fique aquém da sua letra, para restringir o seu alcance com o argumento de que sua dimensão pragmática fica aquém da sua dimensão semântica.

Sendo indiscutível que processo executivo comporta dimensões processuais materialmente jurisdicionais e dimensões processuais que não exigem a intervenção do juiz, podendo estas ser dinamizadas por outros agentes ou operadores – v.g., o agente de execução - a reserva de juiz é aqui, no tocante a um conjunto alargado de questões, meramente relativa, no sentido de que o juiz de execução não tem, o monopólio da primeira palavra, com o significado de que lhe compete não só a última e decisiva palavra, mas também a primeira palavra referente à definição da modalidade da venda executiva e ao valor base dos bens a vender – monopólio de juiz ou reserva absoluta de jurisdição – mas apenas o monopólio da última palavra quanto a esses aspectos de preparação da execução da garantia patrimonial. Simplesmente, o problema da reserva de juiz, relativa ou absoluta, é estranho ao problema da recorribilidade das decisões do juiz e, portanto, não é apto para fundamentar uma interpretação restritiva de uma norma que contenha uma previsão específica de irrecorribilidade da decisão desse juiz. E à mesma conclusão se chega, considerada a questão à luz do princípio da tutela jurisdicional efectiva, que nos remete para o princípio da interpretação da lei em conformidade com a Constituição, princípio de controlo que tem como função assegurar a constitucionalidade da interpretação, que, aliás, só ganha relevo autónomo quando a utilização dos elementos interpretativos não permite a obtenção de um sentido inequívoco dentro dos vários significados da norma. É o que linearmente decorre da sua formulação: no caso de normas polissémicas ou plurissignificativas, deve dar-se prevalência a uma interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a Constituição, formulação que comporta, entre outras, esta dimensão: o princípio da exclusão da interpretação conforme à constituição mas contra legem, que impõe que o aplicador de uma norma não pode contrariar a letra dessa norma através de uma interpretação conforme à constituição, mesmo que através de uma interpretação consiga uma concordância entre a norma infraconstitucional e a norma constitucional. O que a vincula a que a interpretação conforme à Constituição só é legítima quando existe um espaço de decisão, em espaço aberto a várias propostas interpretativas, umas conformes, a que de deve dar preferência, e outras desconformes com o texto constitucional. Ora não é esse seguramente o nosso caso, visto que a norma que prevê a apontada irrecorribilidade da decisão do juiz de execução apenas comporta o sentido que, inequivocamente, decorre do seu significado literal e esse resultado interpretativo nem sequer está em contradição com a norma constitucional relativo ao direito de acesso á jurisdição, na vertente relativa ao direito ao recurso, e caso estivesse, a decisão correcta era a da sua rejeição, por inconstitucionalidade, e não sua correcção, através de uma interpretação restritiva, pelo tribunal que, no caso de inequívoca contradição com a constituição,  lhe está mesmo proibida.

A reclamante tem o direito de recorrer ao juiz de execução para impugnar a decisão do agente de execução de selecção da modalidade da venda e de determinação do valor base dos bens a vender – mas já não o direito de recorrer da decisão daquele juiz.

Em absoluto remate: a decisão do relator de improcedência da reclamação, com fundamento na irrecorribilidade incondicional específica da decisão impugnada no recurso rejeitado é, pois, correcta. Cumpre, portanto, julgar também improcedente a reclamação deduzida pela reclamante contra aquela decisão do relator.

Do percurso argumentativo percorrido, extraem-se como proposições conclusivas mais salientes: as seguintes:

(…).

A reclamante sucumbe na reclamação. Essa sucumbência torna-a objectivamente responsável pelas respectivas custas (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos nega-se provimento à reclamação e confirma-se a decisão do relator nela impugnada.

Custas da reclamação pela reclamante.

                                                                                              2024.04.23


[1] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, pág. 470.
[2] Ac. do TC 259/97 (18.03.199).
[3] V.g. Ac. do TC 575/2008 (26.11.2008).