Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1399/18.8T9PBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO LIMA
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DE FACTOS
CRIME AGRAVADO
Data do Acordão: 05/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE POMBAL – J1)
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 358º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I. A comunicação, em si mesma, de uma alteração não substancial de factos não é um ato decisório, mas uma advertência ao arguido (e aos mais sujeitos processuais) da eventualidade de ulterior consideração dos novos factos ou da diversa qualificação jurídica, a fim de lhe permitir preparar a sua defesa.
II. As alterações de factos, que são por definição modificações da narração fáctica contida no libelo, têm de destrinçar-se das alterações de mera qualificação jurídica, que consistem somente em qualificação jurídico-penal dos factos já constantes do libelo mas diferente da que neste se configurava.
Decisão Texto Integral: ***

ACÓRDÃO


Acordam os juízes da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

1. No Juízo de Local Criminal de Pombal (J...), do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, e após audiência de julgamento em processo comum com intervenção de juiz singular, proferiu-se a 04/10/2023 sentença em cujos termos os arguidos

a) AA,

b) BB,

c) CC,

d) DD,

e) EE,

f) FF, e

g) GG,

foram condenados,

A. Em matéria criminal, todos, como coautores de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art. 143.º/1, 145.º/1-a, e 132.º/2-h, do Código Penal (CP), nas seguintes penas:

i. O arguido CC, de um ano e dois meses de prisão (crime sobre o assistente HH) e de um ano e seis meses de prisão (crime sobre o assistente II), em cúmulo jurídico delas sendo-lhe imposta a pena única de um ano e onze meses de prisão, todavia substituída por suspensão da execução respectiva por igual período de um ano e onze meses; e

ii. Cada um dos arguidos AA, BB, DD, EE, FF e GG, de um ano de prisão (crime sobre o assistente HH) e de um ano e seis meses de prisão (crime sobre o assistente II), a cada um e também em cúmulo jurídico delas sendo imposta a pena única de um ano e nove meses de prisão, todavia igualmente a cada um substituída por suspensão da execução respectiva por igual período de um ano e nove meses de prisão;

B. E, em matéria cível, na procedência parcial dos pedidos de indemnização contra todos formulados pelos assistentes/demandantes HH e II, a pagar a estes, respectivamente, as quantias de 3.185,82 € e 7.028,15 €, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescidas de juros de mora à taxa legal.

2. A todos os arguidos vindo na acusação do MP imputada a comissão, em coautoria, de um crime de ofensas à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º/1, do CP, sucedeu que a 19/09/2023, previamente à leitura da sentença, foram-lhes pela Sr. juiz comunicadas uma alteração de factos tida por não substancial, à luz dos art. 358.º/1/2, e 1.º/f, a contrario, do Código de Processo Penal (CPP), e do mesmo passo e nos termos ainda do art. 358.º/3, do CPP, também uma alteração da qualificação jurídica naquela acusação feita, precisamente perspectivando o enquadramento da factualidade no âmbito do crime qualificado, e em virtude disso concedendo-lhes prazo para preparação da defesa – face ao que o MP manifestou, nos termos e para os efeitos do art. 16.º/3, do CPP, o entendimento de que não deveriam em todo o caso ser aplicadas penas concretas superiores a cinco anos de prisão, e os arguidos sustentaram que a alteração se configurava isso sim como substancial, nos termos do art. 1.º/f, do CPP, de tal sorte que, sob invocação do art. 359.º/1/2/3, do CPP, não estando de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos e com esse novo enquadramento, o tribunal não poderia tomá-los em conta, acrescendo ainda que não sendo autonomizáveis do objecto do processo, a comunicação da dita alteração ao MP também nem mesmo poderia valer como denúncia para que este por eles procedesse; de resto, e para o caso de assim se não entender, requereram diligências probatórias adicionais (inspecção ao local e inquirição de testemunhas). Na sequência, em 04/10/2023 e previamente à leitura da sentença, foi proferido despacho que, confirmando o entendimento de não ocorrer alteração substancial relativamente ao que constava da acusação, decidiu com efeito tomar em consideração os novos factos e a qualificação jurídica deles como comunicados, no mais indeferindo-se o requerimento de prova adicional.

3. Inconformados, recorreram os arguidos contra aquela sentença e este despacho, nos moldes que passamos a sintetizar.

3.1. Conjuntamente, os arguidos CC, DD, EE, FF e GG, contra o despacho e com as seguintes conclusões (apresentadas em correspondência a convite as aperfeiçoamento das originais que lhes foi endereçado em despacho preliminar e nos termos do art. 417.º/3, do CPP):

« I – No decurso do julgamento, a Mm.ª juiz comunicou uma alteração dos factos, que denominou de alteração não substancial de factos, mas que se traduz uma alteração substancial dos factos não autonomizáveis, por ser uma qualificativa agravante, em violação do art. 1.º/f, do CPP. A imputação dum crime diverso, traduziu-se numa qualificativa agravante, o que significa que os novos factos comunicados e conhecidos pelo tribunal vão para além do processo fixado pela acusação ou pela pronúncia não é admitida pela lei, devendo ser declarada a nulidade de tal procedimento e deve o processo ser remetido à primeira instância a fim de se proceder a essa comunicação, sob a forma correta - Vd. Ac. RC de 20/06/2018, Helena Bolieiro, proc. n.º 82/11.0GTLRA.C1.

II – O objeto do processo que deve manter-se o mesmo que é definido até ao trânsito em julgado da decisão, fixa-se com a dedução da acusação ou da pronúncia, delimitando a extensão do caso julgado.

III – No decurso de um julgamento vieram a lume factos novos que implicaram uma alteração substancial dos que constituem o objeto do processo por se traduzirem numa agravante qualificativa especial e, por isso, não pode o julgamento por eles continuar sem o acordo dos arguidos que não deram o seu acordo a que o julgamento prosseguisse com a inclusão dos novos factos comunicados, nem pode o tribunal tomá-los em consideração para efeitos de condenação no processo em curso, conforme estatui o art. 359.º do CPP, artigo este que foi violado na decisão recorrida.

IV – Só após a alteração dos factos comunicada pela juiz aos arguidos é que se alterou a qualificação jurídica. Por essa alteração se traduzir num agravamento do crime, estamos perante uma alteração substancial dos factos. Trata-se de uma alteração dos elementos objetivos do crime que se traduz numa qualificativa agravante e como tal não admitida e não permitida por lei.

V – Não constam dos autos os elementos subjetivos do crime pelo qual se pretende agravar a conduta dos mesmos, faltando nos autos os elementos subjetivos do dolo do crime da ofensa corporal agravada e também por isso, sem este elemento que não pode ser integrado em audiência de discussão e julgamento sob a comunicação de uma alteração de factos, nunca poderão os arguidos ser condenados pelo crime agravado, conforme jurisprudência obrigatória – AUJ, n.º 1/2015 de 27/01, publicado no DR de 27/01/2015.

VI – O tribunal tem a obrigação de proceder a um exame efectivo dos meios e argumentos oferecidos pelos sujeitos processuais, o que não aconteceu. Os princípios do contraditório e da igualdade de armas são elementos incindíveis de um processo equitativo. Uma motivação inexacta deve ser equiparada a uma falta de motivação – Decisão de 9 de Maio de 1994, queixa n.º 15 384/89, Déc. Rap. 77-A, pág. 5. O direito ao processo equitativo está positivado no art. 20.º da CRP, no art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no art. 14.º do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos e no art. 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, artigos esses violados na decisão recorrida.

VII – Os arguidos, que têm direito à prova, participando activamente na produção de prova, requerendo a sua admissão no processo e participando na sua produção, em face da alteração de factos que lhes foi comunicada, resultante de um depoimento de uma testemunha, requereram a inspeção ao local, o que permitia confirmar a credibilidade do depoimento da testemunha. Os requerimentos dos arguidos em ordem a demonstrar que a versão dos assistentes é falsa são sistematicamente indeferidos o que, no mínimo viola o direito ao fair trial.

IX – A estrutura acusatória do processo penal integrado por um princípio de investigação, determina que os sujeitos processuais têm o direito de apresentar e requerer as provas que contribuam ou possam contribuir para o direito a aplicar ao caso concreto, além do poder-dever do tribunal recorrer a outros meios de prova dos apresentados, desde que os considere necessários à descoberta da verdade.

IX – Na perspetiva do arguido o direito à prova é uma consequência do seu direito de defesa de defender-se provando; e na da acusação é também uma consequência do princípio da presunção de inocência, já que se não for afastada a presunção o arguido deverá ser absolvido, por falta de prova da acusação.

X – Na fase de julgamento, o poder do tribunal recusar a admissão e produção de prova requerida pela defesa, art. 340.º/3/4, do CPP, quando os mesmos são legalmente inadmissíveis, ou quando são irrelevantes, quando são inadequados ou inobteníveis, e art. 6.º/3, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e do art. 14.º/3, do Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos, artigos esses violados na decisão recorrida. Na fase de julgamento o direito à prova afirma-se de forma plena – art. 6.º da Diretiva (EU) 2016/343 de 9 de março, no art. 6.º, violado na decisão recorrida.

XI – Após conhecerem o despacho que comunica a alteração dos factos, os arguidos requereram a deslocação ao local que permitirá aferir se é possível o Senhor JJ ter visto e a qual distância, o que afirmou em audiência de discussão e julgamento e, bem assim, se o depoimento dos assistentes que afirmam que os arguidos vinham a correr com os seus factos e botas vestidas de dentro da propriedade dos assistentes e com as ferramentas, botas e capacetes se podiam ter saltado o muro de mais de dois metros de altura, ou pelo menos saber qual a altura correcta do muro e se era possível saltá-lo em passo de corrida, como os assistentes disseram que os arguidos fizeram.

XII – Só uma inspeção ao local permitirá aferir da veracidade dos factos que assistentes e arguidos trazem aos autos e de não haver violação do processo equitativo e justo, parecendo que aos assistentes tudo se permite e se acredita e aos arguidos tudo o que seja para demonstrar o contrário, não se permite, violando o princípio da presunção da inocência. Inspeccionando o local o tribunal veria se era ou não possível os arguidos virem a correr com os equipamentos vestidos e as ferramentas, com botas de 900 gramas em cada pé, galgarem em passo de corrida um muro composto de alvenaria e setas de ferro com mais de 2 metros.

XIII – Os arguidos requereram a prova por inspeção ao local e testemunhal e a mesma tem de ser autorizada e realizada porque muito relevante para a descoberta da verdade e prova da versão dos arguidos que contraria a versão entretanto dada por provada. Só a sua não realização permitiu dar por assentes factos que aos arguidos ficaram vedados de produzir prova. »

3.2. Também conjuntamente, os mesmos arguidos CC, DD, EE, FF e GG, contra a sentença e com as seguintes conclusões (igualmente apresentadas em correspondência a convite as aperfeiçoamento das originais que lhes foi endereçado em despacho preliminar e nos termos do art. 417.º/3, do CPP):

« I – Em audiência, a juiz comunicou uma alteração dos factos, denominada de alteração não substancial de factos, mas que é uma alteração substancial dos factos e não autonomizáveis. A imputação dum crime diverso, traduziu-se numa qualificativa agravante. Os novos factos comunicados e conhecidos pelo tribunal vão para além do processo fixado pela acusação não é admitida pela Lei, devendo ser declarada a nulidade de tal procedimento e deve o processo ser remetido à primeira instância a fim de se proceder a essa comunicação, sob a forma correta - Vd. Ac. RC de 20/06/2018, Helena Bolieiro, proc. n.º 82/11.0GTLRA.C1. Só após essa inserção dos factos novos aditados, a juiz faz uma alteração da qualificação jurídica passando de ofensas corporais simples para ofensas corporais qualificadas. Com um facto novo passou-se de um crime para um crime agravado, qualificativa agravante, em violação do art. 1.º/f, do CPP.

II – No decurso de um julgamento vieram a lume factos novos que implicaram uma alteração substancial dos que constituem o objeto do processo por se traduzirem numa agravante qualificativa especial e, por isso, não pode o julgamento por eles continuar sem o acordo dos arguidos que não deram o seu acordo a que o julgamento prosseguisse com a inclusão dos novos factos comunicados, nem pode o tribunal tomá-los em consideração para efeitos de condenação no processo em curso, conforme estatui o art. 359.º, do CPP, artigo este violado na decisão recorrida.

III – Só após a alteração dos factos comunicada pela juiz aos arguidos é que se alterou a qualificação jurídica. Essa alteração traduz-se num agravamento do crime e estamos perante uma alteração substancial dos factos. Trata-se de uma alteração dos elementos objetivos do crime e traduz-se numa qualificativa agravante, não admitida nem permitida por lei.

IV – Não constam dos autos os elementos subjectivos do crime pelo qual se pretende agravar a conduta dos mesmos. Faltando os elementos subjectivos do dolo do crime da ofensa corporal agravada, sem este elemento que não pode ser integrado em audiência de discussão e julgamento, nunca poderão os arguidos ser condenados pelo crime agravado, conforme jurisprudência obrigatória – AUJ, n.º 1/2015 de 27/01, publicado no DR de 27/01/2015.

V – Os arguidos não deram o seu acordo a que o julgamento prosseguisse com a inclusão dos factos comunicados. O que lhes foi comunicado não se traduz numa alteração não substancial dos factos, mas, uma alteração substancial dos factos que o julgador denominou de alteração não substancial dos factos e de alteração da qualificação jurídica dos factos. Sem o acordo dos arguidos o julgamento não podia ter prosseguido com os novos factos que não são autonomizáveis, sendo por isso a sentença nula, o que deve ser declarado nos termos do disposto nos art. 379.º/1-b, 359.º, e 1.º/f, do CPP, e 32.º/5, da CRP, artigos estes violados na sentença em crise.

VI – A sentença é ininteligível porque “julga procedente a douta acusação e, em consequência, após a alteração da qualificação jurídica dos factos”, decide, “absolver os arguidos”, recorrentes, “pela prática em coautoria, na forma consumada e em concurso real e efectivo, de dois crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º, do CP”, para de seguida os condenar pela prática do crime qualificado. Os arguidos são absolvidos da prática do crime do art.º 143.º/1, não podem ser condenados na agravada com base neste mesmo art. 143.º, do CP.

VII – A juiz na análise da prova, toma por base os depoimentos das testemunhas e as declarações dos arguidos, omitindo por completo a forma como analisa as declarações prestadas pelos assistentes, que têm interesse na causa e que não prestam juramento. Analisar a prova, sem explicar o modo como se analisam as declarações dos assistentes e só as dos arguidos, sabendo-se que uns (assistentes) e outros (arguidos) não prestam juramento e têm ambos interesse na causa, corresponde a uma violação do processo equitativo e justo. Os arguidos beneficiam do princípio da presunção de inocência, consagrado no art. 32.º/2, da CRP, e na Diretiva (EU) 2016/343 de 9 de março, art. 3.º e o art. 6.º, sob a epígrafe ónus da prova, violados na decisão recorrida.

VIII – Quando se pretende analisar da credibilidade de depoimentos ou de testemunhos tem de se ter a noção que um depoimento ou testemunho resulta dos fatores conjugados de percepção, da memória e do testemunho. Uma coisa é o que na realidade ocorreu. Outra, a percepção é o que a pessoa apreendeu ou a forma como viu o que se passou. A capacidade de armazenar no cérebro o que se apreendeu da realidade durante certo tempo corresponde à memória. Reproduzir em tribunal, debaixo de enorme pressão e tensão o que se apreendeu da realidade, a que não é alheio o muito tempo que medeia a vivência dos factos, o que se apreendeu do que se viu, que se guardou na memória durante esse espaço temporal, corresponde ao testemunho.

(…)

4.1.1. Da resposta do MP

« I – O que verdadeiramente sucedeu foi uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, que se consubstanciou numa outra maneira de encarar os factos já constantes da acusação.

II – A Mm.ª juiz, perante a realidade fáctica imputada na acusação, entendeu que a mesma permitia um enquadramento jurídico diferente do que nela constava, recorrendo ao mecanismo estatuído na norma do art. 358.º/1/3, do CPP, pelo que tal não consubstancia uma alteração substancial dos factos mas antes uma alteração da qualificação jurídica dos factos.

III – Nenhuma censura nos merece a decisão recorrida, a qual foi comunicada aos arguidos em cumprimento do n.º 3 do art. 358.º do CPP, assim se assegurando as suas garantias de defesa e o contraditório.

IV – Não existiu qualquer violação do disposto no art. 340.º, do CPP, tendo a Mm.ª juiz correctamente apreciado e indeferido os requerimentos apresentados pelos arguidos, porquanto a produção dos meios de prova pretendidos pelos arguidos se revela desnecessária, dispensável e irrelevante para a descoberta da verdade material e para a boa decisão da causa.

V – Não se mostram, pois, violados, por qualquer forma, quaisquer preceitos legais ou princípios, designadamente os referidos pelos recorrentes. »

4.1.2. Da resposta conjunta dos assistentes

« I – Os arguidos/recorrentes optaram por interpor dois recursos separados, este do despacho prolatado imediatamente antes da leitura da sentença final – vd. acta de julgamento (de 04-10-2023, ref.ª 105000586), que se pronunciou sobre a inexistência de qualquer alteração substancial dos factos, quer no que respeita ao tipo objetivo ou ao tipo subjetivo, mantendo o entendimento já plasmado no despacho que procedeu à comunicação das aludidas alterações; ou seja, o recurso apresentado é sobre matéria de direito.

II – Para os recorrentes as questões decidendas são duas: i) há uma comunicação efectuada pelo tribunal a quo aos arguidos de alteração da qualificação jurídica dos factos, a qual é inadmissível; e ii) não deveria ter sido indeferida a produção de prova por inspeção ao local e testemunhal apresentada pelos arguidos.

III – A jurisprudência é unânime quanto ao iter processual a cursar no caso de alteração não substancial dos factos descritos na acusação pública (art. 358.º, do CPP); o regime aplicável garante (a) que o arguido seja informado da possibilidade de realização de uma convolação jurídica; e após, que, perante tal advertência, (b) lhe seja concedida uma oportunidade de redirecionar a sua defesa em função dessa novidade.

IV – Ora, o tribunal a quo concedeu o prazo de dez dias para assegurar as suas garantias de defesa, e bem assim o contraditório, inobservando-se qualquer nulidade (aqui a prevista no art. 379.º/1-b, do CPP), que os arguidos bem sabem por não a terem invocado, tanto que responderam ao repto, através de requerimento (de 29-09-2023, ref.ª 10108749).

V – Na audiência de julgamento que se seguiu (vd. acta de julgamento, ref.ª 10500022 58), a Mm.ª juiz de direito a quo proferiu despacho oral, no qual, entre o mais, disse: “não há introdução de qualquer elemento fático novo, quer quanto ao elemento objetivo respeitante a esta qualificativa, quer muito menos quanto ao elemento subjetivo e, nesta parte, não há qualquer alteração dos factos neste seguimento”.

VI – Escoram os arguidos que a susodita comunicação é inadmissível, por se tratar de uma alteração substancial dos factos – sem o seu acordo prévio – o que fere a sentença de nulidade;

VII – Discordamos, como salienta a propósito Paulo Pinto de Albuquerque, “A lei n.º 59/98, de 25.8, introduziu o novo n.º 4. Ela visa rejeitar as teses herdeiras da teoria do fait qualifié, que vinculam o objeto do processo à incriminação da acusação ou da pronúncia. O objeto do processo não é constituído pela incriminação imputada ao arguido, mas antes pelos factos que lhe são imputados”.

VIII –O instituto da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia visa assegurar as garantias de defesa ao arguido. O que a lei pretende é que aquele não venha a ser julgado e condenado por factos diferentes daqueles por que foi acusado ou pronunciado, por factos que lhe não foram dados a conhecer oportunamente, ou seja, venha a ser censurado jurídico-criminalmente com violação do princípio do acusatório, sem que haja tido possibilidade de adequadamente se defender”, in Ac. UJ n.º 7/2008, de 25-06-2008.

IX – Não deve, portanto, ser a alteração substancial ou não substancial dos factos confundida com a alteração da qualificação jurídica dos mesmos, nada impedindo que com base nos factos constantes da acusação ou dos resultantes de uma alteração não substancial, o tribunal venha a condenar por crime diverso, ainda que mais grave, posto que, com vista a garantir o efectivo exercício do direito de defesa, maxime o contraditório, comunique a alteração da qualificação jurídica e, sendo o caso, a alteração não substancial dos factos, concedendo, se requerido, prazo para preparação da defesa – cf. art. 358.º/1/3, do CPP.

X – No caso, a acusação imputou aos sete arguidos a prática, em coautoria, na forma consumada, de crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º/1, do CP, e após a comunicação da alteração da qualificação jurídica, segundo os ditames do art. 358.º/1/3, do CPP, o tribunal a quo entendeu que, face ao acervo informacional de factos constantes da acusação e dados como provados, não permaneceria em causa crimes de ofensa à integridade física simples, antes crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art.143.º e 145.º/1-a/2, do CP, pro remissione art. 132.º/2-h, do mesmo diploma legal.

XI – Da prova produzida em audiência de discussão e julgamento – remissão para II – Fundamentação de facto; A) Factos provados: v.g., 6., 7., 9., 10., 11., 12., 13., 14. e 15. –, através da indagação judicial dos factos pertinentes ao objeto do processo e legitimados pelos limites do libelo e correspondente defesa, inerente às provas documental, testemunhal e pericial, para o que contribuiu determinantemente os depoimentos dos assistentes e das testemunhas (com evidência para KK), foi acertado promover a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, dada a discussão da causa em audiência de discussão e julgamento, e que permitiu dar como provado os factos constantes na secção “II – Fundamentação de facto; A) Factos provados”, pontos 6. a 15., que aqui se dão como reproduzidos.

XII – Ora, no caso vertente, também concordamos com o tribunal a quo quando decide que os factos provados são subsumíveis ao exemplo-padrão da al. h), do n.º 2, do art. 132.º, do CP: “Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas (…)”.

XIII –Não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, para os fins dos art. 1.º/f, 120.º, 284.º/1, 303.º/3, 309.º/2, 359.º/1/2, e 379.º/1-b, do CPP, a simples alteração da sua qualificação jurídica, mesmo que para crime mais grave” - vd. Assento 2/93, de 10-03. »

(…)

5. Subidos os autos, o Sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer em que, acompanhando as argumentações das respostas do MP em primeira instância, se pronunciou a final igualmente no sentido da negação integral de provimento a todos os recursos, e cumprido que foi o disposto no art. 417.º/2, do CPP, nada mais se acrescentou.

(…)

II – Fundamentação

1. Delimitação do objecto dos recursos

Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o objecto dos recursos é limitado às focadas nas conclusões apresentada pelos recorrentes. Considerando estas últimas, no sentido de procurar discernir entre elas o relevante, e em todo o caso tendo presente que parte do que nas mesmas se foca sempre seria oficiosamente cognoscível, as matérias aqui a apreciar, alinhando-as segundo a boa ordem lógico-processual, de modo que a decisão relativa a umas vá sucessivamente prejudicando ou viabilizando o conhecimento das outras, podem circunscrever-se do seguinte modo:

1.1. Do recurso contra o despacho de 04/10/2023 (interlocutório):

i. Com as concretas alterações, de factos e de qualificação jurídica, comunicadas pelo tribunal nos termos do art. 358.º/1/3, do CPP, configurou-se isso sim uma alteração substancial dos factos, sujeita ao regime do art. 359.º, do CPP, que deveria ter sido o seguido e cujas prescrições, não sendo observadas, incluindo a obtenção de acordo dos arguidos para isso, impediriam que viesse a ser tomada em conta na decisão condenatória?

ii. Foi destituída de fundamento, e por isso violadora do art. 340.º/1, do CPP, bem como desconforme com os princípios do contraditório e do processo equitativo, o indeferimento do requerimento de produção de prova formulado na sequência da comunicação da alteração?

(…)

2. As decisões recorridas

A boa apreciação da causa importa que se façam aqui presentes tanto o essencial do despacho de 04/10/2023, relativo à questão da alteração de factos e da qualificação jurídica deles, e ao indeferimento da prova suplementar em face dela requerida (o que concita o despacho com que foi comunicada a alteração, esse de 19/09/2023), quanto da sentença recorrida, do mesmo dia 04/10/2023 (factos provados, não provados, motivação correspondente e fundamentos de direito). São os seguintes os teores respectivos.

2.1. Os despachos

2.1.1. O de 19/09/2023 (com a comunicação da alteração)

« “Na sequência da postura dos arguidos iniciou-se uma discussão entre HH e CC, seguidamente ocorreu então o telefonema descrito no ponto 5 da acusação e que nessa sequência, o arguido CC empurrou o HH e desferiu-lhe ainda um murro. Acto contínuo, juntando-se os demais seis arguidos e agora os sete arguidos, atuaram da forma descrita no ponto 6 da acusação”.

Atento o teor dos factos vertidos na acusação e agora atenta a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, mormente os depoimentos prestados pelos assistentes e pela testemunha KK, o tribunal entende que poderá eventualmente ocorrer uma alteração da qualificação jurídica dos factos concretizada na circunstância de em causa não estar um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º/1, do CP, mas sim ao invés um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 145.º/1-a, por remissão para o art. 132.º/2-h, ambos do CP. Efectivamente, veja-se desde logo que do acervo de factos descritos na acusação resultavam já descritos factos respeitantes à dinâmica das agressões em causa que envolvem sete agressores, os aqui arguidos, atuando em conjugação de esforços e intentos, e dois ofendidos. Ou seja, há uma clara superioridade numérica dos agressores em relação aos agredidos e numa dinâmica de agressão que no entendimento do tribunal claramente deveria ter sido desde logo subsumida no art. 145.º/1-a, por remissão para o art. 132.º/2-h, todos do CP. Assim, tal como resulta da jurisprudência fixada pelo STJ, concretamente o Assento 2/93, de 10/03 (DR 58/93, Série 1-A, de 10/03/93), onde se refere que para os fins dos art. 1.º/f, 120.º, 284.º/1, 303.º/3, 309.º/2, 359.º/1/2, e 379.º/1-b, do CPP, não constitui uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respetiva qualificação jurídica ou convolação, ainda que se traduza na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave. É entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência que a alteração da qualificação jurídica só deverá ser considerada ou equiparada à alteração não substancial dos factos da acusação quando não implique a imputação ao arguido de um crime substancialmente diverso ou quando o sentido da acusação se mantiver o mesmo ainda que diversa na sua gravidade. A título meramente exemplificativo, o Ac. TRP de 24/09/2012. Termos em que, face ao exposto, se comunica também aos arguidos a alteração da qualificação jurídica concretizada na imputação aos mesmos em coautoria material e concurso real e na forma consumada de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 145.º/1-a, por remissão para o art. 132.º/2-h, ambos do CP, comunicação esta que se faz nos termos e para os efeitos previstos no art. 358.º/1/3, do CPP, e bem ainda se comunica ao MP nos termos e para os efeitos previstos no art. 16.º/3, do CPP, atenta a moldura penal dos crimes ora imputados aos arguidos. »

2.1.2. O de 04/10/2023 (recorrido)

« No que concerne ao requerimento apresentado pelos arguidos CC, DD, EE, GG e FF, na sequência do despacho proferido ao abrigo do art. 358.º/1/3, do CPP, na anterior sessão, o tribunal apreciará separadamente cada uma das questões suscitadas.

No que concerne à alteração da qualificação jurídica, entendida por estes arguidos como sendo consubstanciadora de uma alteração substancial dos factos, haverá que mencionar, à semelhança do entendimento já anteriormente explanado, que não há introdução de qualquer elemento fáctico novo, quer quanto ao elemento objetivo respeitante a esta qualificativa, quer muito menos quanto ao elemento subjetivo e, nesta parte, não há qualquer alteração dos factos neste seguimento.

Deste modo, o tribunal mantém na íntegra o despacho anteriormente proferido alicerçado no já citado Ac. UJ 2/93, de 27/01/93, razão pela qual entende que doravante os factos deverão ser integrados no crime de ofensas à integridade física qualificada, previsto e punido nos já mencionados preceitos legais.

Relativamente às diligências probatórias, cumpre desde já referir que causa bastante estranheza ao tribunal, no que diz respeito à prova testemunhal indicada, que, após duas decisões de indeferimento de tais inquirições, seja novamente requerida a inquirição das pessoas em apreço, pelo que se indefere o requerido, uma vez que não se afigura imprescindível a inquirição das testemunhas em causa. Aliás, a matéria fáctica que, outrora, num desses pedidos de inquirição, fora indicada, nada tem a ver com a matéria fáctica objecto da alteração não substancial dos factos comunicada aos arguidos, mas sim, ao invés, apenas e tão-somente, quanto ao tipo de equipamentos utilizados pelos arguidos e as respectivas fichas técnicas atinentes a esses mesmos equipamentos.

No que tange à inspeção ao local requerida, à semelhança do ora mencionado quanto às testemunhas, tendo o tribunal já se pronunciado quanto a este pedido e, face à prova documental constante nos autos, no âmbito da qual é perfeitamente perceptível a configuração e altura do muro em apreço, o tribunal entende que é de todo dispensável a realização desta diligência, pelo que se mantém o entendimento vertido em ata a 12/07/2023. Da mesma forma, entende-se que, face ao teor do depoimento da testemunha KK, o qual nem demonstrou certeza no que respeita à distância da dita rotunda em relação ao local em apreço, ser absolutamente desnecessária a sobredita diligência, até porque, tal como consta do auto de notícia e foi relatado em sede de audiência de discussão e julgamento, mormente pelos assistentes, essa testemunha esteve ali presente e foi inclusivamente identificada pelos militares da GNR que ali se deslocaram.

(…) »

2.2. A sentença

« (…)

II – Fundamentação de facto

A. Factos provados

Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos, com relevância para a mesma:

1. No dia 08 de agosto de 2018, os arguidos LL e BB eram funcionários da empresa “E...” e, nessa qualidade, acompanhavam uma equipa de eletricistas da empresa “C..., S.A.”, constituída pelos arguidos CC, DD, EE, FF e GG;

2. Na referida data, pelas 18h39m, os arguidos encontravam-se a realizar um trabalho de ligação de energia ao posto de transformação existente na propriedade do denunciante HH, adjacente ao km 145,550 da EN ...09, em ..., ... – ..., ao tempo em que ali chegaram HH e II;

3. Os arguidos ao serem interpelados por HH e II sobre a razão da sua presença, os mesmos recusaram dar qualquer explicação;

4. Na sequência da postura dos arguidos, iniciou-se uma discussão entre HH e o arguido CC;

5. Seguidamente, II telefonou para a GNR ..., solicitando uma patrulha no local para proceder à identificação dos arguidos;

6. Nessa sequência, o arguido CC empurrou HH e desferindo-lhe ainda um murro, usando um objecto não concretamente apurado, mas contendo uma parte metálica;

7. Acto contínuo, juntando-se-lhe os demais seis arguidos, os ora sete arguidos, em conjugação de esforços e intentos, rodearam HH e, revezando-se entre si, desferiram neste ofendido vários socos na face, cabeçadas e pontapés nos membros inferiores, bem como golpes com capacetes;

8. Ao constatar que os arguidos agrediam fisicamente HH, II foi em auxílio de seu pai;

9. Acto contínuo, os mesmos sete arguidos, em conjugação de esforços e intentos, empurraram o ofendido II, levando-o a cair no chão e, revezando-se entre si, os mesmos sete arguidos desferiram no ofendido II, de forma repetida e em número não concretamente apurado, pontapés com botas de biqueira de aço que o atingiram no braço esquerdo e nos membros inferiores;

10. Como consequência direta e necessária dos factos descritos em 6., o ofendido HH sofreu dores e incómodos, hematoma na arcada zigomática esquerda, e escoriação e hematoma na fronte, dos quais resultaram as seguintes sequelas:

- Membro inferior: na transição entre terço médio e o distal da face anterior da perna duas áreas escurecidas, a mais medial medindo 2cm de comprimento por 1cm de largura e a outra oblíqua infero-medialmente medindo 2cm de comprimento por 0,7 de largura”;

11. Tais lesões foram causa direta e necessária de um período de doença fixável em 10 (dez) dias, sendo 2 (dois) dias com afetação da capacidade de trabalho geral e 2 (dois) dias com afetação da capacidade de trabalho profissional;

12. Como consequência direta e necessária dos factos descritos em 8, II sofreu dores e incómodos, traumatismo da mão esquerda, com fratura do rádio distal esquerdo, e traumatismo no tornozelo direito, dos quais resultaram as seguintes sequelas:

- Membro superior esquerdo: arco de movimento do cotovelo preservado; limitação dolorosa na extensão do punho, com restantes movimentos preservados;

- Membro inferior direito: ligeiro edema na face anterior do tornozelo; mobilidade do tornozelo preservadas e indolores”;

13. Tais lesões foram causa direta e necessária de um período de doença fixável em 50 (cinquenta) dias, sendo 50 (cinquenta) dias com afetação da capacidade de trabalho geral e 50 (cinquenta) dias com afetação da capacidade de trabalho profissional, resultando do evento, para o denunciante II, consequências permanentes que, “sob o ponto de vista médico-legal, se traduzem em limitação dolorosa da flexão do punho esquerdo, o que não limita de forma grave a utilização do corpo ou a capacidade de trabalho”;

14. Ao praticar os factos da forma supra descrita, cada um dos sete arguidos agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, com o propósito comum, e conjuntamente concretizado, de atingir corporalmente os ofendidos HH e II e de provocar nestes as lesões do tipo das verificadas, o que representaram e quiseram;

15. Os arguidos sabiam ainda que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei

 (…) »

3. Por fim apreciando

A. Do recurso interlocutório

3.1. Nos termos do art. 358.º/1/3, do CPP, o tribunal, verificando uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, ou alterando a qualificação jurídica destes, comunica-o ao arguido e concede-lhe, caso o requeira, prazo para a preparação da sua defesa. Neste regime, o legislador equilibra as exigências da estrutura acusatória do processo, segundo imposta pela CR (art. 32.º/5), designadamente o princípio da acusação (assegurar a heteronomia de proposição, na acusação, da matéria a investigar e conhecer judicialmente) e o princípio da vinculação temática (cingir a investigação e cognição judicial aos limites do objecto assim heteronomamente proposto), com as de economia e eficiência processual, definindo em que hipóteses e sob que condições podem em nome destas ter lugar desvios à identidade de factos e sua qualificação entre a acusação e a sentença (princípio da identidade), mas sem descaracterização daquela estrutura acusatória – incluindo nas suas refracções sobre o direito de defesa, em especial salvaguardando o impedimento de decisões-surpresa (sobre isto, cfr. Pedro Soares de Albergaria, in “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, T. IV, Almedina, Coimbra, 2022, pp. 630-631). Comunicada nas hipóteses e com as condições previstas, o arguido fica ciente dos novos termos do que lhe é imputado e pode em face deles adaptar a sua defesa, como pode o tribunal vir a considerá-los em sentença. O regime do art. 359.º, do CPP, versa em paralelo sobre alterações substanciais de factos e, compreensivelmente, vista essa diversidade de objecto e respectivo potencial,  com limites muito mais estreitos (ou, o que é dizer o mesmo, estipulando condições de consideração da alteração que são muito mais exigentes).

3.2. Em qualquer dos casos, a comunicação, em si mesma, não é em boa verdade um acto decisório, mas antes uma advertência, ao arguido (e aos mais sujeitos processuais), da eventualidade de ulterior consideração dos novos factos ou da diversa qualificação jurídica, a fim de permitir-lhe preparar a sua defesa tendo-o em vista, ou até, no caso das alterações substanciais de factos, decidir se consente ou não o prosseguimento do julgamento por eles. Se o tribunal, fora das hipóteses e condições prevenidas, ou sem integralmente observar estas últimas, ainda assim tomar em conta a alteração na eventual condenação subsequente do arguido, então a consequência processual é a de fazer-se nessa medida nula a correspondente sentença condenatória, como explicitamente prevê o art. 379.º/1-b, do CPP, simplesmente não se lobrigando que vício pudesse afectar aquela comunicação em si mesma. Seguindo ainda o autor antes citado (op. cit., p. 638), “a comunicação que o juiz faz à defesa, respeita a factos (novos) indiciados, mas não já definitivamente qualificados como provados. Pressupor assim, equivaleria, em termos circulares, a adiantar precisamente aquilo que só se pode demonstrar na sentença (…) e, por isso, tornaria em mera formalidade o momento de defesa do arguido que o preceito regula. Assim, o sentido da comunicação regulada no n.º 1 é o de levar ao conhecimento da defesa mero projecto ou hipótese de alteração dos factos constantes da peça de imputação e que poderá, ou não, também diante da defesa apresentada pelo arguido, ser concretizada na sentença (cf. o Ac. TC 237/2007, que se refere a um mero ‘juízo provisório e condicional’)”.

3.3. Esgotando-se o sentido da comunicação no dito efeito de advertência, isto é, sem que o acto encerre um valor decisório contrário aos interesses do arguido (bem ao invés abrindo-lhe uma faculdade processual defensiva), bem se vê que o correspondente despacho assume a natureza de um acto de mero expediente ou, talvez com mais propriedade, de determinação de um acto dependente da livre resolução do tribunal, que se limita a salvaguardar a possibilidade processual de um certo rumo decisório ulterior e admitir que a defesa se adapte a essa eventualidade – e como tal nem sequer e em bom rigor recorrível (art. 400.º/1-a-b, do CPP), com o que até já mal cabe referir que, fosse como fosse e por não ser proferido contra o arguido, nem este para esse hipotético recurso teria legitimidade (art. 401.º/1-b, do CPP). Na verdade, uma feição propriamente decisória, e no sentido de projectar-se negativamente na esfera do arguido, não é a comunicação com a advertência da eventualidade de consideração de certas alterações, mas antes, e só, a sentença que, para condená-lo, efectivamente, e em sendo caso, venha a ter em conta as assim advertidas – dessa sim, e no caso de aquele entender que foram desrespeitadas as previsões dos art. 358.º e 359.º, do CPP, sendo inteiramente pertinente o recurso em que argúa a nulidade disso decorrente (art. 379.º/1-b/2, do CPP). Se, como foi o caso, os arguidos entendiam que as alterações comunicadas desbordavam do âmbito das não substanciais e de mera qualificação jurídica em que as enquadrou o tribunal (o do art. 358.º/1/3, do CPP), entrando isso sim pelo da substancialidade delas (subordinadas antes ao regime do art. 359.º, do CPP), então, caso viessem a ser condenados nos termos correspondentes (como foram), poderiam sempre, em recurso dessa decisão condenatória, arguir a nulidade em causa (segundo aliás fizeram).

3.4. Diversamente, face à comunicação em si mesma, em considerando pela sua parte serem substanciais as alterações nela advertidas, então, sem prejuízo de logo segundo melhor entendessem fazerem a correspondente adequação da sua defesa (e exercerem legitimamente o direito de declarar que não consentiam na continuação do julgamento pelos novos factos), já a manifestação daquela sua avaliação contrária à do tribunal revelar-se-ia sempre algo de em última análise inócuo – precisamente porque, repisemo-lo, se tratava de mera advertência sobre uma eventualidade, com objectivo eminentemente processual, incluindo o de facultar-lhes a dita adequação de defesa, e não de uma decisão materialmente contra eles proferida. Obviamente, isto em nada belisca as suas garantias de defesa, asseguradas com a dita possibilidade de recurso contra a ulterior sentença eventualmente condenatória, de resto e como se notou com efeito interposto. É bom de ver, a mais disso, que quanto se vem dizendo a respeito do acto da comunicação em si mesma, vale, mutatis mutandis, para o despacho que desestimou aquela expressão da opinião dos arguidos sobre a substancialidade das alterações comunicadas (a que se não lobriga vício), e assim e já concluindo, o que de útil e passível de conhecimento sobra, no recurso que em rigor é contra este último movido, é, fica só, a parte relativa ao indeferimento da prova adicional requerida no contexto da adequação da defesa às alterações comunicadas. A questão do enquadramento delas no âmbito do art. 358.º ou no do art. 359.º, do CPP, com as consequências que daí possam projectar-se em eventual configuração da nulidade da sentença à luz do art. 379.º/1-b, do CPP, essas apreciar-se-ão adiante, com o conhecimento do recurso contra esta interposto.

3.5. Pois bem, o que os arguidos requereram foi afinal uma inspecção ao local, reputando-a de único meio de provar que o que disseram os assistentes e uma testemunha não correspondia à verdade, e a inquirição de duas testemunhas, neste caso nem mesmo cuidando de especificar o relevo que lhe atribuíam (tudo como se tira do pertinente requerimento, que é o doc. ref. 10108749, de 29/09/2023). Em face disso, o tribunal recorrido indeferiu o requerido, para tanto simplesmente notando que a inquirição das testemunhas em causa tinha sido já por duas vezes indeferida e que a matéria fáctica a que antes, e em um desses indeferidos requerimentos, tinha sido referida como aquela sobre que os depoimentos haveriam de versar (relevante dos equipamentos usados pelos arguidos), era estranha à matéria da alteração comunicada (relativa ao específico modo do começo das agressões julgadas). Quanto à inspeção, o tribunal, a mais de observar que igualmente se tinha já antes pronunciado sobre a respectiva inutilidade, indeferiu-a com reiteração de razões, designadamente porque o conhecimento da configuração do local, incluída a altura de certo muro que os arguidos ou alguns deles teriam saltado, lhe era já cabalmente acessível a partir dos documentos juntos aos autos (fotografias), e quanto à distância desse local até certa rotunda por onde antes de se acercar transitara ainda a testemunha em causa (KK), sendo a incerteza respectiva logo no respectivo depoimento assumida, mas estando fora de questão que com efeito a mesma estivera no local, segundo os assistentes relataram e tendo sido ali subsequentemente aos factos identificada pelas autoridades – tudo consentindo, como necessariamente se infere, segurança de conclusões.

3.6. Como atrás dissemos, o regime da alteração de factos relativamente aos imputados no libelo, tem de assegurar o direito dos arguidos à produção de prova relativamente aos novos factos, único modo de compatibilizar-se com as exigências de um processo penal equitativo e, com ele, da garantia dos direitos de defesa (art. 6.º/3, da CEDH, e 32.º/1, da CR), mas isso, que com efeito visa salvaguardar a abrangência do inciso final do art. 358.º/1, do CPP (e, sendo caso, o art. 359.º/4, do CPP), não significa, como bem se compreende, a outorga de uma irrestrita faculdade de produção de prova, à margem ou para lá do necessário àquele objectivo. Mesmo encarando as coisas com a máxima latitude, aliás aconselhada pelo relevo dos direitos que os arguidos defendem e a especial posição processual que por isso têm, a prova que em tal contexto lhes há-de ser admitida terá de ter alguma conexão com a alteração comunicada, sem o que jamais poderia qualificar-se como adequada a adaptar a defesa em face desta, além disso não está certamente subtraída aos critérios gerais do crivo da respectiva admissibilidade, e seguramente não se inclui nessa admissão a pura e simples recuperação de requerimentos probatórios antes indeferidos sem que o justificasse uma qualquer modificação dos dados do indeferimento que resultasse dos termos da alteração comunicada – sendo neste contexto singularmente irrelevante para o concreto sentido da decisão atacada, o encaixe, nos argumentos de recurso, de lamentos a respeito da suposta sistematicidade dos indeferimentos de requerimentos probatórios dos recorrentes e até da deslocada referência a não ter sido ainda satisfeita a solicitação de certa certidão (tudo em jeito de insinuação de um indevido e odioso tratamento de desfavor).       

3.7. No que ao caso importa, o indeferimento recorrido, ao contrário do que os recorrentes argumentam, tem completa guarida na disposição do art. 340.º/1/4-b-d, do CPP. Notando-se aqui que mesmo no próprio recurso continuam os recorrentes a abster-se de concretizar o que pretenderiam, a propósito da alteração comunicada, com a inquirição das testemunhas já antes indeferida, a audição destas, que não teriam estado no local e se pode inferir ser sobre a referida matéria dos equipamentos que deporiam, nem poderia reputar-se “necessária à descoberta da verdade e boa decisão da causa”, nem em rigor lograria escapar à consideração de “irrelevante”. Quanto à inspecção judicial, de um local com características já documentalmente cognoscíveis e para suposta infirmação de algo que uma testemunha sem certeza referira, caberia, além do mesmo, dizer ainda que seria até mesmo “supérflua”. E enfim, e por isso, ambos os actos resultariam, na objectividade das coisas, como francamente “dilatórios”. Donde, e em suma, na limitada parte em que o recurso interlocutório merece conhecimento (de que, nos termos já antes expostos, se exclui a da natureza eventualmente substancial da alteração comunicada e suas potenciais consequências, matéria a explorar isso sim adiante, em sede de apreciação do recurso contra a sentença), e que é a do indeferimento do requerimento probatório adicional, a conclusão que se impõe é a da improcedência dos argumentos longamente esgrimidos, levando à inevitável conclusão pela negação de provimento e consequente manutenção do decidido.

B. Dos recursos contra a sentença

a. A suposta ininteligibilidade do dispositivo

3.8. Não obstante pareçam nada daí especificamente concluir, porque embora com isso apontem à sentença um suposto “vício”, que assim genericamente referem, nem cuidam de concretizá-lo, nem aliás dele tiram afinal consequência alguma [limitando-se a postular, de resto acertadamente, que se não trataria de falta de fundamentação (art. 379.º/1-a, do CPP) nem de contradição insanável (art. 410.º/2-b, do CPP)], os recorrentes CC, DD, EE, FF e GG, acusam ao dispositivo o que dizem ser uma ininteligibilidade, consistente em por um lado e na respectiva al. A/i serem todos os arguidos absolvidos dos dois crimes de ofensas à integridade física p. e p. pelo art. 143.º/1, do CP, que em coautoria lhes vinham na acusação imputados, mas por outro e logo de seguida, na respectiva al. A/ii e em consequência da consideração da alteração da qualificação jurídica previamente advertida, os condenar a todos como coautores, isso sim, de dois crimes de ofensas à integridade física qualificadas, p. e p. pelos art. 143.º/1, 145.º/1-a/2, e 132.º/2-h, do CP – sendo, segundo sustentam, que se são absolvidos dos crimes p. e p. pelo art. 143.º/1, do CP, não poderiam ser condenados pelos crimes p. e p. nessa norma e nas mais. Breve, e se bem entendemos, a absolvição quanto ao tipo criminal base, seria contraditória com a condenação pelo tipo criminal qualificado, que pressupõe aquele primeiro, e uma tal contraditoriedade tornaria o decidido ininteligível. Temos por certo que, a surpreender-se uma ininteligibilidade do dispositivo e na parte relativa à absolvição/condenação, então, e porque algo que fosse verdadeiramente ininteligível equivaleria substancialmente à sua falta, o vício configurado seria o da nulidade da sentença, nos termos dos art. 379.º/1-a, e 374.º/3-b, do CPP, sendo que nesta última norma justamente se impõe que o dispositivo da sentença contenha (inteligível, vai logicamente pressuposto), a decisão condenatória ou absolutória.  

3.9. Porém, e para lá da aparência de incompatibilidade entre uma decisão a um tempo absolutória e condenatória, por crimes cujas previsões típicas são todavia e em larga medida sobrepostas, não cabe conceder, de modo algum, naquela suposta ininteligibilidade, a começar porque em essência se não lobriga sequer a dita contraditoriedade, muito menos qualquer dificuldade de compreensão do sentido material do decidido. Decerto que pode dizer-se, salvo o devido respeito, que é desnecessário e até mesmo de má técnica, porventura relevante de um equivocado formalismo, dar por absolvidos os arguidos dos crimes que lhes vinham imputados quando, por força de alteração da qualificação jurídica dos factos narrados na acusação, se concluir serem afinal outros, e em particular os mesmos mas qualificados, os que resultam preenchidos e por que devem ser condenados – hipótese em que bastaria, feita a menção a essa alteração de qualificação, condenar pelos crimes ou pela forma dos crimes efectivamente pertinentes. Mas o alvitre deste reparo, se na verdade justo for, não importa é que deixe de constar do dispositivo e como resultado final do julgamento, em termos absolutamente claros e em inteira congruência com a fundamentação precedente, que os arguidos foram condenados como coautores não dos crimes simples, configurados na acusação, mas antes pelos tipos qualificados, de que se entendeu preenchido o tipo – sem que a afirmada absolvição formal pelos primeiros obscureça minimamente a insofismável condenação pelos segundos. Vale dizer, e sempre sem quebra do devido respeito, a arguição é absolutamente gratuita, não se configurando com a objecção feita vício algum.

(…)

c. A alegada alteração substancial de factos relativamente aos narrados na acusação

3.14. São ainda os mesmos recorrentes, CC, DD, EE, FF e GG, quem procura sustentar, reiterando no recurso contra a sentença o essencial da argumentação que a tal respeito expenderam no movido contra o despacho, que a condenação, deles e dos mais, como coautores de dois crimes de ofensas à integridade física qualificadas, em lugar dos dois crimes de ofensas à integridade física simples que na acusação vinham configurados, resultando, ao contrário do assumido pelo tribunal na prévia comunicação, de uma alteração substancial dos factos, para a qual não deram consentimento ao prosseguimento do julgamento, e por isso à margem da previsão e das condições do art. 359.º, do CPP, importa a nulidade da sentença à luz do já falado art. 379.º/1-b, do CPP. Não cabe duvidar de que a ser com efeito assim, isto é, a ter o tribunal recorrido procedido, na materialidade das coisas, a uma alteração substancial dos factos narrados na acusação, com prévia comunicação dela em termos indevidos, como se fosse mera alteração não substancial e alteração da qualificação jurídica, tudo apesar da oposição dos arguidos, que acertadamente a tivessem categorizado como substancial, ao prosseguimento do julgamento pelos novos factos, então a dita nulidade inequivocamente se verificaria, importando as correspondentes declaração e extracção de consequência, que no caso teria de ser a baixa do processo à primeira instância para prolação de nova sentença em que os factos novos não fossem tidos em consideração (nos termos do art. 379.º/3, do CPP). Contudo, o que em concreto se verifica é que de modo nenhum pode aceitar-se que às alterações tomadas em conta assente o qualificativo de substanciais.

3.15. Antes mesmo de com maior detalhe esclarecermos o que vimos de afirmar, e de resto em vista de melhor o fazer, tenhamos presente que, substanciais ou não, as alterações de factos, que são por definição modificações da narração fáctica contida no libelo, têm de destrinçar-se das alterações de mera qualificação jurídica, que consistem somente em qualificação jurídico-penal dos factos já constantes do libelo mas diferente da que neste se configurava. E se as primeiras, segundo sejam ou não substanciais, seguem respectivamente os regimes dos art. 358.º/1/2, ou 359.º/1/2/3/4, do CPP, as segundas seguem sempre o menos exigente e limitativo daquele art. 358.º/1/2, por força da disposição do n.º 3. As coisas são assim porque, estando em causa modificação exclusivamente atinente à dimensão normativa do objecto do processo, com ela não deixam de continuar em apreço os mesmos factos acusados, que em conjunto com os alegados pela defesa e os que resultem do julgamento (sem prejuízo do regime relativo à alteração de factos), bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, são o tema da discussão, nos termos do art. 339.º/4, do CPP. De sorte que, nestes casos, a liberdade de qualificação jurídica do tribunal, que não está vinculado pela que tenha proposto a acusação, salvaguarda a estrutura acusatória do processo e as garantias dos arguidos (nos moldes referidos supra, sob 3/A/3.1-3.4), mesmo nos casos em que da nova qualificação resulte a configuração de tipos criminais diversos ou agravação dos limites máximos das penas, e tudo contanto que àqueles seja consentida, como é, a preparação da defesa em face da nova qualificação.

3.16. Evidentemente, o regime será ainda este quando à alteração jurídica dos factos narrados na acusação se junte uma alteração não substancial deles, e isso, claro está, posto que aquela nova qualificação jurídica não seja o resultado desta alteração de factos. Isto respeitado, tal regime, sendo o mesmo, cabe à alteração de factos por directa aplicação do n.º 1 do art. 358.º, e à alteração de qualificação por força da remissão do n.º 3 para esse n.º 1. Mas se pelo contrário o que implica a mudança da qualificação jurídica é a dos factos descritos na acusação, isto é, se dos novos factos é que resulta a diversa qualificação ou o agravamento das penas, que se erga sobre eles ou deles não prescinda, então verdadeira e evidentemente está em causa uma alteração substancial, segundo definida no art. 1.º/f, do CPP, não podendo essa substancialidade das coisas ser camuflada sob uma artificiosa cisão entre mudança dos factos e mudança da qualificação que ela todavia implica, de modo a indevidamente conseguir-se furtar tal deslocação do objecto do processo das exigências que para tais hipóteses estipula o art. 359.º, do CPP. Notemos, para melhor apreensão da questão, que a lei apenas define positivamente a alteração substancial de factos (justamente como “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis” – cf. o art. 1.º/f, do CPP), ficando o conceito de alteração não substancial delimitado negativamente, a contrario (como aquela que não importe tais efeitos), e quanto à alteração de qualificação jurídica sendo irrelevante que resulte ou não em agravamento dos limites da sanção relativamente à proposta pela acusação.

3.17. O quadro até aqui traçado não ficaria completo (tanto quanto dilucidar as questões suscitadas reclama), sem algo lhe acrescentar sobre a própria noção de alteração neste contexto útil, e concretamente que, para sê-lo, há-de consistir em uma variante dos elementos do quadro histórico-factual cujo relevo jurídico-penal justifique a imposição e uma reacção penal, que assuma relevo para a decisão da causa, mantendo-se uma variante dos mesmos factos, sendo padrão dessa ‘mesmidade’ a pertinência ainda ao feixe de acontecimentos da vida que, significantemente relacionados entre si e num certo horizonte subsuntivo, assumem uma unidade de sentido social que conforma os limites da causa. Para além disso, a novidade, no que aqui nos importa, não será já uma alteração, substancial ou não, mas verdadeiramente a configuração de um outro, novo e autónomo objecto processual. Seguimos nisto uma vez mais, de muito perto e para aí remetendo, Pedro Soares de Albergaria (op. cit., pp. 631/632), autor de quem tiramos um exemplo, bem esclarecedor dos limites da noção de alteração que aqui pretendemos enfatizar : “ (…) se se evidenciar, da prova produzida em audiência, que A, acusado de matar B, deu morte ainda a C ou a D, ou que afinal não foi A, mas E, quem matou B, não há sequer ‘alteração’ de factos, mas antes um novo objecto processual a ser investigado ab initio nos termos gerais”. Ao invés, se a dita variante da descrição se mantiver naqueles limites, aí sim é em sentido próprio uma alteração, restando saber se substancial ou não, à luz dos critérios extraídos da definição daquele art. 1.º/f, do CPP.

3.18. Tudo quanto antecede permite-nos já, descendo ao caso concreto, aprofundar razões para a conclusão logo adiantada sobre a improcedência dos argumentos dos recorrentes, nisso começando por manifestar uma certa surpresa que eles causam face aos termos em que o tribunal recorrido lhes comunicou a alteração de factos, concretizada na fórmula seguinte: “Na sequência da postura dos arguidos iniciou-se uma discussão entre HH e CC, seguidamente ocorreu então o telefonema descrito no ponto 5 da acusação e que nessa sequência, o arguido CC empurrou o HH e desferiu-lhe ainda um murro. Acto contínuo, juntando-se os demais seis arguidos e agora os sete arguidos, atuaram da forma descrita no ponto 6 da acusação”. É que, cotejados com os constantes da acusação (cfr. doc. ref. ...85, de 07/09/2020), especificamente sob os respectivos pontos 4 a 6, logo se constata, com absoluta evidência, que as únicas novidades estão na consideração de a discussão se ter iniciado entre o assistente HH e o arguido CC (no ponto 4 da acusação afirmava-se que essa discussão se iniciara entre todos, assistentes e arguidos), e a mais disso, mantendo-se que em tal contexto o assistente II fez o telefonema para a autoridade policial (o que já constava do ponto 5 da acusação), que na sequência o dito arguido CC empurrou aquele HH e sobre o mesmo desferiu um murro, só após (‘acto contínuo’) se juntando os mais arguidos a agredir aquele assistente (quando na acusação e sob 6 as agressões teriam sido logo iniciadas por todos os arguidos aquando do telefonema, e relativamente à agressão inicialmente conjunta sobre o assistente II nenhuma novidade surgindo nos factos provados 8 e 9 da sentença, relativamente ao que da acusação já constava sob 7 e 8).

3.19. Por mais doutrina e jurisprudência que possam longa e detalhadamente concitar-se, e as mais doutas, como sem dúvida são as que com efeito concitam os recorrentes, simplesmente não vemos como com elas desconsiderar a rigorosa notoriedade de que daquela variante da descrição acusatória, inequivocamente contida no mesmo pedaço de vida e com o mesmo significado social (sete indivíduos, em certa ocasião e local, no contexto de um específico desentendimento, espancarem outros dois), nunca em si mesma decorreria a configuração de crimes diversos ou mais gravemente punidos do que aquilo que a primitiva implicaria – o que é sinal patognomónico de que, sendo para o que importa verdadeiramente uma alteração, ela não é substancial. E por outro lado, não é menos óbvio que a alteração da qualificação jurídica do mesmo passo previamente advertida pelo tribunal, e depois igualmente tida em conta na sentença, não apenas em nada decorre daqueles novos/diversos factos, como absolutamente prescinde deles e em boa verdade até se imporia sempre logo em face dos descritos na acusação. Desta última já com efeito e indiscutivelmente constava que teriam sido os sete arguidos a conjuntamente espancar os assistentes, nisso conjugando esforços e intentos, e a alteração de qualificação consistiu em precisamente deslocá-la da coautoria das ofensas à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º/1, do CP, para a coautoria de ofensas à integridade física qualificadas, p. e p. pelos art. 143.º/1, 145.º/1-a/2, e 132.º/2-h, do CP, isto é, a diversa qualificação, sob o tipo-de-culpa agravado, resulta da prática do facto conjuntamente com pelo menos mais duas pessoas, e isso era o que logo à partida na acusação se imputava (cada um dos sete arguidos tê-lo praticado com mais seis pessoas).

3.20. Os recorrentes procuram ainda esgrimir, sempre nos quadros da arguição de suposta condenação por crime diverso do imputado na acusação e à margem dos casos e condições consentidos pelo art. 359.º, do CPP, com uma putativa falta, na acusação e para preencher os novos crimes configurados, dos pertinentes elementos subjectivos, que ali vinham referidos apenas ao tipo-base. Na compreensão das coisas que avançam, a alteração abrangeria também e necessariamente a descrição fáctica atinente à sua atitude subjectiva, concretamente ao dolo com que teriam agido, e isso sim já a faria substancial, sujeita às ditas condições – ao menos por aqui, pela inobservância delas e ainda assim com a condenação pelos tipos qualificados, se dando corpo à nulidade equacionada. Todavia, damos por seguro que também nisto decai a respectiva argumentação, bastando observar que nos pontos 13 e 14 da acusação vinha já descrita uma atitude subjectiva, de todos, que integramente configurava, nos seus elementos cognitivo, volitivo e emocional, o dolo directo (art. 14.º/1, do CP) relativamente às agressões com que conjuntamente teriam atingido os assistentes, em termos que afinal e em sentença, sem alteração, ficaram assentes sob 14 e 15 dos factos provados. Não se tratou, como resulta bom de ver e bem ao contrário do que os recorrentes parecem pressupor, de na decisão de facto da sentença condenatória, indevidamente incluir os factos integradores do dolo deles e que antes não constassem da acusação, mas somente de, referindo-o aos mesmos factos, com eles dar por preenchido o tipo subjectivo do crime qualificado que verdadeiramente integram, ao que, não requerendo a qualificação (actuação conjunta com mais de duas pessoas) dolo específico algum, nada obstaria.

3.21. Descontando o muito em que a doutrina e jurisprudência laboriosamente invocada pelos recorrentes se mostra, salvo o devido respeito, como francamente deslocada, porque estranha aos concretos dados do problema, o que de tudo tiramos, já concluindo, é que na decisão condenatória foram na verdade tidas em conta uma alteração de factos relativamente aos imputados na acusação, mas não substancial (até em bom rigor de mero pormenor), e, independente dela, uma alteração também da qualificação jurídica dos que a acusação já narrava – em ambos os casos sendo legitimada aquela consideração das alterações pela observância prévia dos procedimentos que se impunham, que eram os previstos pelo art. 358.º/1/3, do CPP (comunicação dos termos circunstanciados da alteração e concessão do prazo requerido para correspondente adaptação da defesa, que os arguidos para tanto usaram segundo entenderam, com irrelevância do manifesto insucesso da estratégia defensiva seguida), não cabendo eram os do art. 359.º, também do CPP, e sendo por conseguinte destituída de alcance (mesmo de sentido) a alegação de não terem sido respeitados os correspondentes pressupostos e limites. Sem que sequer se lobrigue em quê e como teriam sido assim violados os art. 1.º/f, e 359.º/1/2/3/4, do CPP, e muito menos (com a aplicação de que norma e interpretada de que forma?!) o art. 32.º/1/5, da CR, o que sobra é ser patente que não ocorre a apontada nulidade prevista pelo art. 379.º/1-b, do CPP, também nisto decaindo os argumentos de recurso.

(…)

III – Decisão

À luz de quanto antecede, decide-se:

a) Pela total negação de provimento ao recurso interlocutório dos arguidos CC, DD, EE, FF e GG, interposto contra o despacho de 04/10/2023, que por isso é mantido.

Custas deste recurso pelos referidos cinco arguidos, com taxa de justiça em três UC’s por cada um (art. 513º, n.º 1 e 3, do CPP, e 8.º, n.º 9, e Tabela Anexa III, do Regulamento das Custas Processuais – RCP).

b) De igual modo pela total negação de provimento a ambos os recursos contra a sentença também de 04/10/2023, quer o interposto pelos arguidos CC, DD, EE, FF e GG, quer o interposto pelos arguidos AA e BB, desse modo se mantendo integralmente aquela sentença.

Custas deste recurso pelos referidos sete arguidos, com taxa de justiça em quatro UC’s por cada um (art. 513.º/1/3, do CPP, e 8.º/9, e Tabela Anexa III, do RCP).

Notifique


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Coimbra, 08 de Maio de 2023
Pedro Lima (relator)

Cristina Branco (1.ª adjunta)

Carolina Cardoso (2.ª adjunta)

Assinado eletronicamente