Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ARLINDO OLIVEIRA | ||
Descritores: | ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO OU INDÚSTRIA DESPEJO ADMINISTRATIVO CADUCIDADE DO ARRENDAMENTO REOCUPAÇÃO DO LOCADO OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR ABUSO DE DIREITO | ||
Data do Acordão: | 11/15/2011 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | VISEU | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALMENTE REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 790.º; 1031.º, AL. B); 1051.º, 1, E) DO CC; ARTIGO 92.º, N.º 5 DO DL 555/99, DE 16/12, ALTERADO PELO DL 177/2001, DE 4/6 | ||
Sumário: | 1. O arrendamento caduca com a demolição do prédio em consequência de decisão administrativa, haja ou não culpa do senhorio, designadamente por o mesmo não realizar obras que evitem a ruína do edifício, apenas relevando essa culpa para efeitos de indemnização ao arrendatário, conferindo-lhe o direito a ser indemnizado pelos prejuízos sofridos. 2. Não age necessariamente com abuso de direito o réu que, não obstante não ter feito obras de conservação, pede a caducidade do contrato de arrendamento em consequência da demolição administrativa do prédio. 3. Com o “despejo sumário” e subsequente demolição, terminam os poderes da autoridade administrativa para regular as relações posteriores que se venham a estabelecer entre os diversos interessados nas relações jurídicas que contendam com o prédio demolido, passando as mesmas a caber nas atribuições dos tribunais, pelo que o despejo administrativo não garante a reocupação do locado. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
A..., LDª, com sede no ..., em Viseu, B... e marido C..., com domicílio profissional no ... em Viseu e D... e mulher E..., residentes no ..., em Viseu, interpuseram a presente acção declarativa de condenação sob a forma ordinária contra F... e mulher G..., residentes na ..., Brasil. Os autores pedem que os réus sejam condenados a: a) Permitirem aos autores a reocupação dos espaços que estes ocupavam na altura do despejo e logo que a reconstrução esteja licenciada pela Câmara Municipal; b) A procederem à reconstrução dos espaços destinados aos autores por forma a estes obedecerem a todos os requisitos legais necessários ao exercício das actividades que ali eram exercidas na altura do despejo; c) A indemnizarem os autores dos prejuízos sofridos até ao mês de Março de 2007 (a autora A... na importância de 26.564,54 euros – 3.064,50 euros de diferenças de rendas, 13.500,00 euros de falta de retirada dos sócios, 2.178,00 euros de falta de pagamento ao contabilista e 7.822,04 euros de diminuição de rendimentos; os autores D... e mulher na importância de 54.255,93 euros – 3.055,50 euros de diferença de rendas, 4.953,22 euros de obras de adaptação, 124,03 euros de publicidade, 15.834,58 euros de despedimentos, 25.077,60 euros de diminuição de rendimentos e 5.211,00 euros de falta de remuneração da autora mulher; e os autores B... e marido na importância de 11.321,00 euros de diminuição de rendimentos e diferença de renda; d) Nos prejuízos que os autores vierem a sofrer até à reocupação efectiva das instalações que ocupavam na altura do despejo, a liquidar em execução de sentença.
Para tanto, em síntese e com relevo, os autores alegam que são titulares dos estabelecimentos comerciais que identificam no artigo 1º da petição inicial e que os réus são proprietários do prédio onde aqueles se situam e que, apesar dos autores irem realizando obras no interior dos estabelecimentos respectivos, os réus não fizeram obras de conservação tendo a Câmara Municipal de Viseu notificado os réus do estado de ruína do edifício e os réus iam insinuando junto da edilidade que a culpa era dos autores e, como meio de pressão, plantaram junto do edifício uma grua e chegaram a conseguir a vinda da televisão para que fizesse uma reportagem. Mais alegam os autores que aceitaram a deliberação de despejo administrativo (e que teve por fundamento a ruína que ocorreu por os réus não terem realizado quaisquer obras de conservação e beneficiação) e dirigiram-se aos réus para resolverem o problema da reocupação tendo estes decretado que a Câmara é que devia indemnizar os autores. Alegam igualmente os autores que tiveram que mudar de locais e que suportaram prejuízos, também com o despejo, resultantes da diminuição de proveitos e aumento de despesas.
Os réus, devidamente citados, contestaram a fls. 87 e seguintes. Defendem-se por impugnação e deduzem pedido reconvencional. Pedem que se decrete a caducidade dos arrendamentos dos autos e que a pretensão dos reconvindos é juridicamente abusiva, condenando-se os mesmos no respeito por essa decisão, em custas e procuradoria. Os réus alegam que os autores sempre pretenderam adquirir o prédio por um valor muito inferior ao real e que sempre se opuseram á realização de obras profundas. Mais alegam que o prédio apresentava danos estruturais ao nível das paredes interiores e telhado que não permitiam correcção que não passasse pela demolição (o que veio a suceder) e apresentaram aos autores soluções em espaços comerciais, num raio de 100 metros, destinados á instalação temporária dos estabelecimentos daqueles, mas os mesmos rejeitavam as propostas e preferiram ver o prédio a degradar-se para que ruísse e para o adquirirem ao desbarato. Por último, os réus/reconvintes, sustentam que caducaram os arrendamentos dos autos.
Os autores replicaram a fls. 111 e seguintes, alegando que mantiveram com os réus conversações com vista à resolução da questão e que os contratos de arrendamento não caducaram nem se verifica qualquer abuso de direito da sua parte.
Os réus treplicaram a fls. 118, reiterando o que já haviam exposto.
Depois de infrutífera tentativa de conciliação, foi proferido despacho saneador tabelar e procedeu-se à selecção da matéria de facto assente e controvertida, de que reclamaram os réus, a qual foi indeferida por despacho de fl.s 266 a 267 v.º, já transitado em julgado. Teve lugar a audiência de discussão e julgamento a qual se realizou de acordo com o formalismo legal, com gravação dos depoimentos prestados, tendo o Tribunal respondido à base instrutória sem que houvesse reclamações, cf. fl.s 392 a 396. No decurso da audiência de julgamento, a autora A..., Ldª e os réus, transaccionaram os termos do litígio existente entre ambas, tendo os autos prosseguido os seus termos quanto aos demais autores e réus. No seguimento do que foi proferida a sentença de fl.s 398 a 418, na qual se decidiu o seguinte: “Face ao exposto, julgo improcedente, por não provada, a acção e, em consequência: a) Declaro a caducidade dos arrendamentos identificados em 2. e 3. dos factos provados; b) Absolvo os réus F... e mulher G... dos pedidos formulados pelos autores B... e marido C..., e D... e mulher E....
Custas da acção pelos autores e da reconvenção pelos réus.”.
Inconformados com a mesma, interpuseram recurso os autores D... e mulher E... e B... e marido C..., recurso, esse, admitido como de apelação e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 422), finalizando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões): 1ª - Provada a culpa exclusiva dos RR senhorios na degradação do prédio que ditou o despejo administrativo dos AA, que tinham nessa data estabelecimentos no prédio em funcionamento, e ainda que se lhe tenha seguido a sua reconstrução interior, nem por isso se verifica a caducidade do contrato de arrendamento. 2ª - O despejo administrativo existe ao abrigo de um regime especial que garante aos inquilinos a reocupação, mesmo quando está em causa a reconstrução total do prédio; pelo que considerar que, apesar da previsão legal expressa, ocorre a caducidade do contrato significa ignorar que se trata de um regime especial e julgar sem obediência à lei. 3ª - No caso dos autos a invocação da caducidade do contrato pelos RR deve considerar-se abusiva, porquanto se trata de caducidade em matéria não excluída da disponibilidade das partes e dependente dessa invocação; 4ª- Tudo concorrendo para que se julguem provados os pedidos de reocupação do prédio e de execução das obras necessárias ao efectivo exercício das actividades que nele desenvolviam os AA por só dessa forma ser assegurada a efectiva reocupação. 5ª - Os AA sofreram prejuízos com a mudança para outro locais e provou-se o nexo de causalidade entre a actuação culposa dos RR e os prejuízos sofridos, a determinar a sua condenação em indemnização, 6ª - A qual deverá ter por medida o ressarcimento dos prejuízos que se provaram ter ocorrido, bem como a reposição dos lucros que os AA deixaram de obter desde o despejo e até que os RR os realojem em condições análogas às que dispunham nos arrendados, num total de € 89.514,96 a favor dos AA D... e E... e € 94.626,19 a favor do C... e B..., 7ª – Sendo a causa dos prejuízos a mesma e sendo os prejuízos os mesmos quer se conclua pela não caducidade do arrendamento, quer se conclua que ela ocorreu e apenas deixa aberta a via da reconstituição natural. 8ª - Ainda que se conclua pela caducidade do contrato por impossibilidade da prestação pelos RR, a existência de culpa sua na verificação dessa impossibilidade conduziria à substituição da obrigação de gozo pela de indemnização natural, como corolário lógico daquela decisão, a impor a condenação dos RR no realojamento dos AA em local análogo ao que ocupavam, 9ª – Decisão que o Tribunal deveria ter tomado, sem que com ela violasse o pedido. 10ª - Foram violados pelo Tribunal a quo, na interpretação e aplicação que deles fez ao caso os artigos . 1051º/e) do C Civil, . 89º/3, 952/5 do DL 555/99 de 16 de Setembro, 8º/2 e 9º/3 do C. Civil . 334º do C. Civil, . 483º e 562º do C. Civil e . 664º e 661º do C. P. Civil. Nestes Termos, Deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência revogada a decisão recorrida, proferindo-se Acórdão que julgue a acção procedente; ou se assim não se entender, o que não vai concedido, e no que toca ao pedido de realojamento, condene os RR a alojar os AA em condições análogas às que detinham no arrendado, condenando-os, sempre, no ressarcimento dos prejuízos causados aos AA. Assim decidindo, farão V. Exªs, JUSTIÇA
Contra-alegando, os réus, pugnam pela manutenção da decisão recorrida, designadamente, que em virtude da demolição total do prédio caducaram os contratos de arrendamento em causa, o que acarreta que os réus não têm direito nem a reocupar o novo edifício nem direito a qualquer indemnização, uma vez que os contratos de arrendamento deixaram de subsistir após a demolição do prédio.
Colhidos os vistos legais, há que decidir. Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 684, n.º 3 e 690, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir são as seguintes: A. Se se verificou a caducidade dos contratos de arrendamento em causa nos autos, em virtude da demolição do prédio onde se situavam os locados; B. Se a invocação da caducidade por parte dos réus constitui abuso do direito; C. Se os autores têm direito à reocupação dos locados e; D. Se os autores têm direito a receber as peticionadas indemnizações.
É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:
A. Se se verificou a caducidade dos contratos de arrendamento em causa nos autos, em virtude da demolição do prédio onde se situavam os locados. Defendem os recorrentes que não se verificou a caducidade dos contratos de arrendamento versados nos autos, porquanto o estado de degradação a que chegou o prédio onde se situavam os locados, se ficou a dever a culpa exclusiva dos réus, que nele não realizaram quaisquer obras, o que acarretou a que a Câmara Municipal de Viseu tivesse ordenado o despejo administrativo, o qual se rege por um regime especial que garante aos inquilinos a reocupação mesmo em caso de reconstrução total do prédio.
De acordo com o disposto no artigo 1031.º, al. b), CC, uma das obrigações do locador é a de assegurar ao locatário o gozo da coisa para os fins a que a mesma se destina. Por outro lado, em conformidade com o seu artigo 1051.º, n.º 1, al. e), o contrato de locação caduca pela perda da coisa locada. A perda da coisa a considerar para este efeito é a perda total, por só esta determinar a caducidade do contrato de arrendamento, com a consequente extinção da obrigação do locador, nos termos do artigo 790.º, CC. Como critério distintivo para aferir do carácter total ou parcial da perda da coisa, deve atender-se ao fim que era dado ao locado, podendo dizer-se que existe perda total quando o mesmo deixa de poder ser usado para o fim convencionado – neste sentido Aragão Seia, in Arrendamento Urbano, Anotado E Comentado, Almedina, 1995 a pág.s 324 e 325 e Januário Gomes, Arrendamentos Comerciais, 2.ª Edição Remodelada, Almedina, 1991, a pág. 256. No caso em apreço, uma vez que se procedeu à demolição do prédio onde se situavam os arrendados e construindo-se um novo, (cf. item 13 dos factos provados), é indubitável que estamos perante um caso de perda total. Resta-nos, pois, averiguar quais as consequências daqui resultantes. Alegam os recorrentes que a demolição do prédio de que os réus eram proprietários se ficou a dever exclusivamente ao facto de estes não terem feito obras, em consequência do que a Câmara Municipal de Viseu procedeu ao despejo administrativo, pelo que não pode operar a caducidade. Fazem-no sem razão! Efectivamente, como se salienta, entre outros nos Acórdãos do STJ, de 26/06/2008, in CJ, STJ, ano XVI, tomo 2, a pág.s 131 e seg.s e de 09/03/2010, Processo 440/07.4TVPRT.S1 e de 13/07/2010, Processo 60/10.6YFLSB, estes, ambos, disponíveis in http://www.dgsi.pt/jstj, tal caducidade opera quer haja, quer não, culpa do senhorio, designadamente por o mesmo não realizar obras que evitem a ruína do edifício, apenas relevando a culpa do senhorio para efeitos de indemnização ao arrendatário, conferindo-lhe o direito a ser indemnizado pelos prejuízos sofridos, mas sem que tal obste à caducidade do contrato de arrendamento. Isto, com o fundamento em que a perda total da coisa locada a impõe nos termos definidos no artigo 790.º CC, dado que se torna impossível a subsistência da obrigação que impende sobre o senhorio de continuar a proporcionar ao arrendatário o gozo do imóvel ou fracção que constitui o objecto do contrato de arrendamento. Como refere Pedro Romano Martinez, in Direito das Obrigações (Parte Especial) Contratos, a pág. 210, ainda que haja culpa do locador, cuja actuação levou à perda da coisa locada, ele será responsável, tendo de indemnizar o locatário por essa situação, mas tal não obsta a que o contrato caduque, ali se mencionando que “O contrato, na realidade, caduca, mas sobre o locador impenderá uma obrigação de indemnizar a contraparte se tiver havido culpa da sua parte no que respeita à produção do facto que desencadeou a caducidade.”. Trata-se de um caso de impossibilidade objectiva da prestação, que constitui causa de extinção das obrigações – neste sentido, Cunha de Sá, in Caducidade do Contrato de Arrendamento, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, vol. I, pág. 282, referido nos Arestos em causa e Pinto Furtado, Curso de Direito dos Arrendamentos Vínculísticos, Almedina, 1984, pág.s 503/504. Causa de caducidade esta que opera ope legis, sem necessidade de qualquer denúncia ou de qualquer declaração das partes no contrato, o que acarretou que, aquando da demolição do edifício em causa operou a caducidade dos contratos de arrendamento sub judice, nos termos do artigo 1051.º, al. e), do Código Civil. Assim, quanto a esta questão, tem de improceder o presente recurso.
B. Se a invocação da caducidade por parte dos réus constitui abuso do direito. Alegam os recorrentes que assim tem de considerar-se porque se trata de caducidade em matéria não excluída da disponibilidade das partes e dependente dessa invocação e constitui venire contra factum próprio, por terem sido os réus que deram origem ao estado de degradação do prédio, quem solicitou a intervenção administrativa e asseguraram à Câmara que assegurariam o retorno dos autores aos locados.
O primeiro dos fundamentos ora invocados (necessidade de invocação da caducidade) é insubsistente, uma vez que, como acima já referido, a causa de caducidade a que se referem os autos, opera ope legis, sem necessidade de denúncia ou de qualquer declaração das partes no contrato. Pelo que resta analisar esta questão sob o prisma do venire contra factum próprio.
De acordo com o disposto no artigo 334, do Código Civil: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. Como o refere A. Menezes Cordeiro, in Litigância de Má Fé Abuso do Direito de Acção e Culpa “In Agendo”, Almedina, 2006, a pág.s 33 e 49, o abuso do direito constitui uma forma tradicional para exprimir a ideia do exercício disfuncional de posições jurídicas, isto é, do exercício concreto de posições jurídicas que, embora correcto em si, acabe por contundir com o sistema jurídico na sua globalidade, ou seja, como um princípio que entende deter uma actuação que, em primeira linha, se apresentaria legítima. Tanto a nível doutrinário como jurisprudencial o abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprio, tem vindo a ser encarado à luz da tutela das doutrinas da confiança ou das doutrinas negociais, consoante a situação em apreço, surgindo o princípio da confiança “… como uma mediação entre a boa fé e o caso concreto. Ele exige que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido levadas a acreditar na manutenção de um certo estado de coisas.” – autor e ob cit., a pág. 51. No entanto, como não podia deixar de ser, a tutela da confiança, apoiada na boa fé, e seguindo, ainda o mesmo autor e obra, agora, a pág. 52, só pode ser tutelada desde que se verifiquem as seguintes proposições: 1.ª Uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa fé subjectiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias; 2.ª Uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objectivos capazes de, em abstracto, provocar uma crença plausível; 3.ª Um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efectivo de actividades jurídicas sobre a crença consubstanciada; 4.ª A imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela protecção dada ao confiante; tal pessoa por acto ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao factor objectivo que a tanto conduziu. Em idêntico sentido se expressou J. Batista Machado, in Obra Dispersa, vol. I, Scientia Iuridica, Braga, 1991, a pág. 407, quando ali refere que a proibição do venire contra factum proprio, se caracteriza pela conformidade à ideia de justiça distributiva que os riscos originados na credibilidade da conduta anterior do agente não devam ser suportados por quem, dentro da normalidade da vida de relação acreditou na mensagem irradiada pelo significado objectivo da conduta do mesmo agente e que, por outro lado, seja possível alcançar esse resultado sem sujeitar tal agente a uma obrigação, sem lhe impor a constituição de um vínculo, mas pelo simples desencadear de um efeito inibitório ou inabilitante, que carece de fundamento bem mais ténue que aquele que exigiria a constituição de uma obrigação. De igual forma, e seguindo, ainda, o mesmo Estudo, pág.s 415 a 419, exige tal Autor que se verifique uma situação objectiva de confiança, no sentido de que a confiança digna de tutela tem de radicar numa conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a uma dada situação futura e que, directa ou indirectamente, revele a intenção do agente de se considerar vinculado a uma determinada atitude no futuro. Em segundo lugar, que o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica apenas surjam quando uma contraparte, com base na situação de confiança criada, toma disposições ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos, se a sua confiança legítima vier a ser frustrada e que tal dano não seja removível através de outro meio jurídico capaz de conduzir a uma situação satisfatória, no sentido de que o recurso a esta proibição é sempre um último recurso e, por último, que exista boa fé da contraparte que confiou e tenha agido com o cuidado e as precauções usuais no tráfico jurídico. Também no mesmo sentido, opina M. J. Almeida Costa, in RLJ, ano 129, pág. 62, que ali refere exigir a proibição do venire, para além da situação objectiva de confiança e a boa fé do sujeito que confiou, o investimento na confiança que corresponde às mudanças na vida do destinatário do factum proprio que evidenciam tanto a expectativa nele criada como revelam os danos que resultarão da falta de tutela eficaz para aquele, bem como que, subjectivamente, se encontre numa posição de boa fé, no sentido de que tenha agido na suposição de que o autor do factum proprio estava vinculado a adoptar a conduta prevista e que, ao formar tal convicção tenha tomado todos os cuidados e precauções usuais no tráfico jurídico, os quais deverão ser tanto maiores quanto mais vultuosos forem os investimentos inspirados na confiança.
Analisados os pressupostos de que se deve fazer depender a aplicação de tal princípio vejamos, agora, por cotejo, com a factualidade apurada, se os mesmos se verificam, isto é, se é de imputar aos ora réus, uma conduta enformadora de abuso do direito, sendo que este, de acordo com a formulação que do mesmo se colhe no artigo 334, do Código Civil, tem de ser manifesto. Desde já e adiantando a decisão, parece-nos que assim não é! Assim sendo, não vislumbramos que tenham os réus agido em abuso do direito, o qual tinha de ser manifesto, o que, não ocorre. É certo que o estado de degradação a que chegou o prédio se deveu ao facto de os réus não terem feito obras que a tal obstassem – cf. itens 19 e 21. Mas, por outro lado, para tal também contribuiu a “força dos anos”, não se podendo esquecer que se trata de um prédio construído na 1.ª metade do século XIX, parte em muros de pedra e o restante em madeira e tabique – cf. itens 52 e 53, não restando, face ao seu estado de degradação, outra solução que não a respectiva demolição – cf. itens 54 e 55. Demolição, esta, que foi ordenada pela Câmara Municipal de Viseu. Também, como se constata da carta junta a fl.s 47, enviada pelos réus à referida Câmara se verifica que estes ali referem que estão disponíveis “… para lhes (aos autores) garantir o direito de retorno aos locais agora ocupados.”. No entanto, como melhor se tentará explicar aquando da análise da próxima questão a tratar, os autores não gozam do direito a reocupar os locados. Por outro lado, também não se pode olvidar o que consta dos itens 49 a 51, de acordo com os quais os réus propuseram aos autores várias alternativas para a instalação temporária destes, o que estes sempre rejeitaram e acabando por se vir a instalar em locais semelhantes aos indicados pelos réus – cf. item 57. Face a este quadro, típico de uma fase de “conversações e propostas” para se tentar chegar a um entendimento entre as partes envolvidas, que se goraram, não vemos que aquela declaração prestada à Câmara tenha a virtualidade de fazer criar nos autores a convicção de que o seu retorno aos locais arrendados estava assegurado, até porque não se trata de um comportamento reiterado e consensual entre as partes. Ao invés, resulta da matéria provada que autores e réus não estiveram de acordo em resolver, consensualmente, a questão da instalação temporária dos estabelecimentos comerciais, bem como não o estiveram quanto à respectiva reocupação a título definitivo, pelo que não se pode concluir que tenha resultado da conduta dos réus que estes se tenham vinculado a reocupar os autores no prédio que viessem a edificar. Ainda de considerar que, nos termos do disposto nos artigos 89.º, n.º 2 e 92.º, n.º 2, do DL 555/99, de 16/12, poderiam os autores ter reagido contra o estado de contínua degradação do prédio onde se situavam os seus estabelecimentos, nos termos aí previstos, visando minimizar a incúria dos réus quanto à manutenção do prédio. Decisivo, no entanto, para afastar a conduta dos réus como actuando em abuso do direito é o facto de esta figura não constituir, no caso em apreço o único meio jurídico capaz de ressarcir os autores pelos danos que terão sofrido com a conduta dos réus. Efectivamente, como antes já referido, se se vier a concluir que a situação de ruína a que chegou o prédio onde se situavam os locados ocorreu por culpa dos réus, estes estão obrigados a indemnizar os autores pelos prejuízos causados, pelo que, por esta via, ficarão acautelados os seus direitos. Por último e já que de abuso do direito se trata, também não pode deixar de se referir o quantitativo das rendas que os autores pagavam (mencionadas no item 4) em comparação com o custo das obras (referido no item 56). Concluindo, não somos de opinião que os réus agissem em abuso do direito. Assim, igualmente, quanto a esta questão, improcede o presente recurso.
C. Se os autores têm direito à reocupação dos locados. Defendem estes que lhes assiste tal direito por se tratar de um caso de reconstrução total do prédio decorrente de despejo administrativo motivado pelo estado de ruína a que aquele, por inacção dos autores, chegou.
Fundamentam-se, para tal, no disposto no artigo 92.º, n.º 5 do DL 555/99, de 16/12, alterado pelo DL 177/2001, de 4/6, (ao tempo, em vigor) de acordo com o qual: “Fica garantido aos inquilinos o direito à reocupação dos prédios, uma vez concluídas as obras realizadas, havendo lugar a aumento de renda nos termos gerais.”. Este preceito tem de ser conjugado com o disposto no artigo 89.º do mesmo DL, segundo o qual as edificações devem ser objecto de obras de conservação pelo menos uma vez em cada período de oito anos, podendo a respectiva Câmara Municipal, oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado, ordenar a demolição total ou parcial das construções que ameacem ruína ou ofereçam perigo para a segurança das pessoas. Acrescentando-se no n.º 1 do citado artigo 92.º que “A câmara municipal pode ordenar o despejo sumário dos prédios nos quais haja de realizar-se as obras referidas nos n.os 2 e 3 do artigo 89.º, sempre que tal se mostre necessário à execução das mesmas.”. Tal poder das Câmaras Municipais constitui um desvio ao princípio da separação de poderes, já que, em termos de normalidade, o poder de decretar um despejo está atribuído aos tribunais, desvio este que apenas se pode compreender como visando defender os interesses da saúde pública e/ou segurança das pessoas e bens, decorrentes do estado de degradação/ruína dos edifícios a carecer de obras. E uma vez salvaguardados tais interesses com a actuação da câmara municipal ao ordenar o “despejo sumário” e subsequente demolição, terminam os poderes das câmaras municipais para regular as relações posteriores que se venham a estabelecer entre os diversos interessados nas relações jurídicas que contendam com o prédio demolido, passando as mesmas a caber nas atribuições dos tribunais.
Daqui decorre que a situação passa a ser enquadrada na lei geral e esta, como vimos, determina que, mesmo em casos como o presente, se verifica a caducidade do contrato de arrendamento por perda da coisa locada, como acima já explicitado. E como se refere no Acórdão do STJ, de 09/03/2010, anteriormente citado, o prédio reconstruído já não é o mesmo e o contrato de arrendamento que versava sobre fracção nele existente deixou de existir, dada a sua extinção por caducidade. Ora, a ser concedido aos autores o direito ao realojamento no prédio a construir nas mesmas condições ou análogas às que tinham antes da demolição, equivaleria à “… realização da mesma prestação que ficou impossibilitada e que se extinguiu.”. Tendo os mesmos apenas direito, desde que verificada a culpa do proprietário, a serem indemnizados em moldes equivalentes ao direito que detinham, como ali explicitado, mas sem que lhes assista, nos termos gerais de direito, e nos referidos moldes, o direito de reocupação, que invocam, no prédio reconstruído. Pelo que, também, quanto a esta questão, improcede o presente recurso.
D. Se os autores têm direito a receber as peticionadas indemnizações. Alegam os autores ter direito a receber a quantia global de 89.514,96 € para os AA D... e mulher e 94.626,19 € para os autores C... e B..., resultantes do aumento das rendas pagas e diminuição das vendas e decorrente aumento de prejuízos. Na sentença recorrida considerou-se que tais quantias não eram devidas porque os autores configuraram a indemnização com base na responsabilidade civil pela prática de factos ilícitos por parte dos réus, quando deveriam ter alicerçado tal pedido com base nos motivos que acarretaram a caducidade dos contratos e ainda porque não se provou o nexo de causalidade entre a conduta dos réus e os alegados prejuízos.
É certo que os autores configuram a questão como tratando-se de responsabilidade pela prática de factos ilícitos, que não vislumbramos existir. No entanto, é ao Tribunal que incumbe aplicar o direito, cf. artigo 664.º CPC, pelo que se a pretensão indemnizatória deduzida pelos autores tiver fundamento, deve ser atendida.
Como já se referiu, em casos de caducidade do contrato de arrendamento, por culpa do senhorio, incorre este na obrigação de indemnizar o locatário pelos prejuízos causados, nos termos dos artigos 798.º, 801.º, n.º 1 e 562 e seg.s do Código Civil, casos em que o credor tem direito a uma indemnização equivalente à prestação e a reparação dos prejuízos resultantes da inexecução, de modo a colocar-se o credor na situação que estaria se a obrigação tivesse sido cumprida, como se refere no Acórdão de 09/03/2010, citando Vaz Serra, BMJ n.º 47, pág.s 8 e 16. Assim, em primeiro lugar cumpre aferir se os réus tiveram culpa pelo facto de a demolição ter sido ordenada, decorrente de não terem efectuado obras de reparação no prédio. Conforme itens 19, 21, 47 e 52 a 56, resulta que o prédio tinha sido erigido na 1.ª metade do século XIX e por força dos anos e da falta de obras, atingiu um estado tal que não restava outra solução que não a demolição. Ou seja, temos dois factores que conduziram à degradação do prédio: passar dos tempos e falta de obras, sem esquecer que se trata de um imóvel construído na primeira metade do século XIX. Pelo que se tem de concluir que a culpa dos réus na degradação do prédio é exclusiva, no sentido de não partilhada com mais ninguém, mas não é total, dada a idade do prédio em questão e o decorrer dos tempos que, inexoravelmente, se reflectiu na degradação do mesmo, tudo em conjugação com as rendas recebidas e valor das obras que era necessário realizar (ascendem a 600.000,00 €). Também de referir que os autores rejeitaram todas as soluções que lhe foram apresentadas pelos autores para a instalação temporária dos respectivos estabelecimentos, não valendo a argumentação usada pelos recorrentes de que tal foi antes de ocorrer o despejo administrativo, uma vez que a ser a mesma resolvida, poderiam estar instalados até efectivo realojamento, nos acordados moldes. Comparando todos estes factores, parece-nos que se poderá fixar aos réus um grau de culpa de cerca de metade pela sua inacção em realizar obras de conservação do prédio onde se situavam os locados. Pelo que e nesta medida será esta a obrigação de indemnizar os autores, tendo como limite a data em que vier a ocorrer o realojamento dos mesmos noutro estabelecimento similar ao que detinham anteriormente.
Os autores alegam prejuízos derivados do aumento das rendas que passaram a pagar e perdas de rendimentos e, ainda, no caso dos autores D... e E... a quantia de 15.834,58 €, decorrente do despedimento de 4 funcionários, tendo como causa invocada o despejo administrativo. No que concerne à alegada perda de rendimentos e diminuição dos lucros não se pode concluir dos factos provados que tais perdas resultem exclusivamente da mudança do local, até porque, como resulta do item 57, os autores instalaram-se todos a menos de 100 metros dos locados, pelo que não se vislumbra como tal “deslocação” possa ter ocasionado tamanhas perdas de rendimentos. Pelo que quanto a todos estes danos se recorrerá à equidade, em conformidade com o disposto no artigo 566.º, n.º 3 do Código Civil. Os únicos danos que objectivamente se poderão ter por assentes e decorrentes da mudança de instalações são os constantes dos itens 23 a 25 (quanto aos autores D... e E...) e acréscimos das rendas efectivamente pagas e quanto aos autores B... e C... apenas os decorrentes das diferenças das rendas efectivamente pagas e sempre reduzidos a metade, como acima referido. Assim, têm os autores D... e mulher direito a haver as quantias de 9.784,66 €, relativa aos custos que suportaram com as obras no novo estabelecimento, anúncios e despedimentos de quatro funcionários. A que acresce a quantia equivalente a metade da diferença das rendas efectivamente pagas e que correspondem ao período de seis meses, cf. item 27. Quanto à perda de rendimentos, por apelo à equidade, fixa-se-lhes a quantia de 250,00 €, por mês, até efectivo realojamento do locado. Relativamente aos autores B... e C..., têm os mesmos igualmente direito a metade da diferença das rendas efectivamente pagas e quanto à perda de rendimentos fixa-se a mesma na quantia de 250,00 €, por mês, até efectivo realojamento do locado, também, por recurso à equidade. Assim, quanto a esta questão, procede parcialmente e na medida do exposto, o presente recurso.
Nestes termos se decide: Julgar parcialmente procedente a apelação deduzida, em função do que se revoga a decisão recorrida, na parte em que absolveu os réus do pagamento da indemnização aos autores, que se substitui por outra que condena os réus a pagar aos autores as seguintes quantias: Aos autores D... e E...: - 9.784,66 € (nove mil setecentos e oitenta e quatro euros e sessenta e seis cêntimos); - a quantia correspondente a metade da diferença das rendas referidas no item 27 dos factos provados e; - 250,00 € (duzentos e cinquenta euros), por mês, desde a demolição do prédio e até efectivo realojamento do locado. Aos autores B... e C...: - a quantia correspondente a metade da diferença das rendas pagas no novo locado e até efectivo realojamento do locado e; - 250,00 € (duzentos e cinquenta euros), por mês, desde a demolição e até efectivo realojamento do locado. Mantendo-a, quanto ao mais. Custas pelos apelantes e pelos apelados, em ambas as instâncias, na proporção de 3/5 (três quintos) e 2/5 (dois quintos), respectivamente.
|