Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
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| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | FONTE RAMOS | ||
| Descritores: | PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM ALUGUER VEÍCULO RESTITUIÇÃO PERICULUM IN MORA LESÃO DE DIFÍCIL REPARAÇÃO | ||
| Data do Acordão: | 10/28/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – CALDAS DA RAINHA – JUÍZO LOCAL CÍVEL | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | REVOGADA | ||
| Legislação Nacional: | ARTIGOS 362.º, 368.º, 377.º A 409.º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL | ||
| Sumário: | 1. No procedimento cautelar comum, a lesão que se receia acontecer enquanto se aguarda pela decisão definitiva da ação será considerada como de difícil reparação quando, na hipótese de ela se concretizar, retirar efeito útil à decisão definitiva da causa ou impedir a efetividade do direito que for reconhecido ao requerente na decisão definitiva.
2. Se o locador de um veículo automóvel requer a apreensão e a entrega desse veículo [aluguer de longa duração], configura receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito à restituição do veículo, em consequência da resolução do contrato de aluguer, o receio fundado de dissipação ou ocultação do veículo enquanto se aguarda pela decisão definitiva da causa. 3. Se o veículo levasse descaminho ou fosse ocultado pelo requerido, enquanto decorresse a ação principal, o direito à restituição seria lesado em termos irreversíveis, o que constitui situação mais gravosa do que a lesão dificilmente reparável, pois estaria comprometida a efetividade do direito que o requerente quer acautelar. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
| Decisão Texto Integral: | Relator: Fonte Ramos Adjuntos: Carlos Moreira Vítor Amaral * Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. Em 16.5.2025, A... - Aluguer e Gestão de Automóvel instaurou, no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria (Juízo Local Cível das Caldas da Rainha), procedimento cautelar comum contra AA, pedindo, além do mais, que, sem prévia audiência do requerido, se ordene a apreensão do bem melhor identificado no art.º 3º da petição e consequente entrega judicial do mesmo à requerente, bem como, nos termos do disposto no art.º 369º do Código de Processo Civil (CPC), a inversão do contencioso. Alegou, em síntese: - No exercício da sua atividade, a 29.7.2021, celebrou com o requerido o contrato de Aluguer de Veículos sem condutor n.º ...80[1] que teve por objeto o veículo da marca Jeep, modelo Reneg. 1. 3T 190 Limited 4WD Aut, com a matrícula ..-..-DV (entregue ao requerido em 07.3.2022) e a prestação de serviços conexos, conforme respetivas Condições Particulares (Doc. 1 e 2 / 2º a 4º). - A propriedade do referido veículo está inscrita a favor da requerente (Doc. 4./5º).[2] - Nos termos do mencionado contrato, pelo aluguer do veículo eram devidos pelo requerido, 60 (sessenta) alugueres com vencimento mensal e sucessivo, no montante de € 553,64 (excluído o IVA) (6º e 7º). - As faturas emitidas relativamente aos alugueres e serviços conexos contratados, não foram pagas, encontrando-se em dívida as faturas que se venceram a partir de setembro de 2024, pelo que, por cartas registadas (com A/R) datadas de 27.01.2025, procedeu à resolução do contrato, nos termos da alínea a) do n.º 2 da Cláusula 18 das Condições Gerais do Contrato (Doc. 5. e 6.[3]/8º e 9º). - O requerido ficou obrigado a restituir de imediato o veículo objeto do contrato, conforme estipulado n.º 3 alínea a) da mesma cláusula, mas não liquidou osvaloresemdívida e nãoprocedeu àdevolução daviaturalocada na sede da requerente (10º e 11º). - Em face do sucedido, tem a requerente o fundado receio que este continue a utilizar o veículo em seu benefício, o que causará à requerente um inevitável agravamento do prejuízo já verificado pelo incumprimento contratual, designadamente, pela violação do seu direito de propriedade, pelos riscos inerentes à condução do veículo, pela sua eventual perda por acidente, desgaste complementar das viaturas, depreciação do seu valor comercial e a impossibilidade que para a requerente resulta de vir a dispor da viatura que lhe pertence (14º). - O flagrante e continuado incumprimento pelo requerido das suas obrigações, não só faz pressupor que o mesmo se encontra em má situação financeira, como faz também recear pelo destino do bem dado em aluguer - em situações como esta, é normal que os detentores tentem vender a terceiros os bens que se encontram na sua posse e o bemestáigualmente sujeito a qualquerapreensão eapropriação por credores do requerido ou terceiros, sem que a requerente tenha qualquer controle sobre a situação (15º a 17º). O requerido, citado, não contestou no prazo legal nem constituiu mandatário. Atendendo à factualidade alegada na petição, tida como provada/indiciada[4], a Mm.ª Juíza do Tribunal a quo, concluindo inexistir fundado receio de que outrem cause lesão grave e de difícil reparação (periculum in mora), julgou improcedente o procedimento cautelar. Dizendo-se inconformada, a requerente apelou formulando as seguintes conclusões: 1ª - O Tribunal a quo indeferiu a providência cautelar requerida, por considerar não verificado o requisito do justo receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito de propriedade invocado pela Recorrente. 2ª - Todavia, conforme alegado nos artigos 14º a 20º da Petição Inicial, a Recorrente expôs de forma clara o incumprimento contratual do Requerido e os fundamentos do receio quanto ao destino e integridade do veículo locado. 3ª - O proprietário de um veículo automóvel, cujo contrato de aluguer foi validamente resolvido, tem legitimidade para, através do procedimento cautelar comum, requerer a restituição do bem não entregue voluntariamente pelo locatário. 4ª - O risco que se pretende acautelar é o da lesão do direito de propriedade da Recorrente, cuja tutela provisória se impõe pela via cautelar. 5ª - A providência requerida visa, assim, evitar que a lesão do direito de propriedade da Recorrente se mantenha e agrave, sendo certo que uma eventual indemnização futura não permitirá a plena reintegração do direito violado. 6ª - Verifica-se, pois, uma situação de lesão grave e dificilmente reparável do direito de propriedade, nos termos previstos no artigo 381º, n.º 1, do CPC. 7ª - O facto de estarmos perante interesses patrimoniais e a possibilidade teórica de indemnização não excluem a verificação do periculum in mora, quando o que está em causa é a tutela específica de um direito real e não a mera compensação pela sua perda. 8ª - Está em causa a proteção efetiva do direito de propriedade da Recorrente, que não pode ver-se diminuído ou adiado sem que tal constitua uma violação grave dos seus direitos. 9ª - Não se pretende dispensar a prova do justo receio de lesão, mas sim reconhecê-lo como verificado à luz dos factos assentes, jurisprudência consolidada e princípios de tutela jurisdicional efetiva. 10ª - A decisão recorrida, salvo devido respeito, incorre em erro de julgamento e colide com a interpretação normativa e jurisprudencial dominante, prejudicando injustamente o direito de propriedade da Recorrente. Remata dizendo que “deve ser revogada a decisão de indeferimento e em sua substituição, ordene que o tribunal ´a quo` prossiga com o procedimento cautelar”. Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso, a questão a solucionar consiste em saber se os factos alegados na petição configuram o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável ao direito da requerente (periculum in mora). * II. 1. A tramitação e os factos (indiciados) a considerar na decisão do recurso constam do precedente relatório, rectius, os articulados “pela Requerente na sua Petição Inicial”, relevando ainda: 1) Reza a cláusula 18 das Condições Gerais do Contrato: - Se a resolução se dever a facto imputável à Locatária, fica aquela obrigada à restituição do veículo nos termos e condições estabelecidos no presente contrato [n.º 3 alínea a)]; - A resolução por incumprimento produzirá os seus efeitos logo que decorridos oito dias após a comunicação à parte faltosa, por carta registada com aviso de receção [n.º 5]. 2) Consta das respetivas condições particulares, designadamente: preço de base - € 32 539,52; aluguer total mensal excl. IVA - € 553,64; datas de entrega e de restituição: 07.3.2022 e 06.3.2027, respetivamente. 3) À data da instauração deste procedimento, as faturas emitidas de setembro a dezembro/2024 e janeiro a abril/2025 relativas a “aluguer mensal”, no montante de € 665,88 cada [renda mensal de € 553,64 + IVA no valor de € 84,44 + serviços no valor de € 103,46 + IVA de € 23,80], não tinham sido pagas. 4) Em janeiro/2025, foi emitida fatura no valor de € 4,65 referente a “passagens de via verde”. 5) O requerido não levantou a carta registada que continha a sentença proferida nestes autos, endereçada para a morada onde foi citado (cf. fls. 57 e 63). 2. Cumpre apreciar e decidir. Constitui objeto do presente recurso a decisão que julgou improcedente o procedimento cautelar, tratando-se de providência cautelar requerida ao abrigo do n.º 1 do art.º 362º do CPC - pedido de apreensão de um veículo automóvel e sua entrega à requerente. Decorre da decisão sob censura, que a Mm.ª Juíza do Tribunal a quo concluiu inexistir fundado receio de que o requerido cause à requerente lesão grave e de difícil reparação (periculum in mora) 3. Sem quebra do devido respeito por entendimento contrário e sabendo-se estarmos perante problemática não isenta de dificuldades, afigura-se que será porventura razoável e avisada uma solução que passe pelo prosseguimento dos autos, não apenas pela clara divisão verificada na jurisprudência acerca dos requisitos conducentes ao deferimento da pedida providência cautelar, mas, sobretudo, atendendo à factualidade alegada e, necessariamente, dada como indiciada e ao mais que decorre dos autos e ficou enunciado em II. 1., supra. 4. Com a reforma processual civil operada pelo DL n.º 329-A/95, de 12.12, as providências cautelares não especificadas - meio residual de proteção de direitos ameaçados - foram eliminadas e substituídas por um «procedimento cautelar comum», do qual consta a regulamentação dos aspetos comuns do “direito cautelar”. Esta providência tem o seu âmbito de aplicação definido no art.º 362º do CPC[5]. Segundo o n.º 1 deste preceito, “Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado”. Refere o n.º 2 do mesmo art.º: “O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em ação constitutiva, já proposta ou a propor”. Instituiu-se, assim, conforme consta do relatório daquele diploma legal, “uma verdadeira ação cautelar geral para a tutela provisória de quaisquer situações não especialmente previstas e disciplinadas, comportando o decretamento das providências conservatórias ou antecipatórias adequadas a remover o «periculum in mora» concretamente verificando e a assegurar a efetividade do direito ameaçado, que tanto pode ser um direito já efetivamente existente, como uma situação jurídica emergente de sentença constitutiva, porventura ainda não proferida”. Por sua vez, dispõe o art.º 368°, n.° 1: “A providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão”. E o n.º 2 do mesmo art.º estabelece: “A providência pode (...) ser recusada pelo tribunal, quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar”. 5. As denominadas providências cautelares destinam-se a acautelar o efeito útil de determinada ação - impedir que, durante a pendência de qualquer ação declarativa ou executiva, a situação de facto se altere de modo a que a sentença nela proferida, sendo favorável, perca toda a sua eficácia ou parte dela.[6] Destinando-se a prevenir o perigo da demora inevitável no processamento normal da ação, o procedimento cautelar necessita de ter uma estrutura bastante mais simplificada, sendo que, ao apreciar os pressupostos da providência em causa, o juiz não poderá exigir, na prova da existência e da violação do direito do requerente, nem na demonstração do perigo de dano que o procedimento se propõe evitar, o mesmo grau de convicção que se requer na prova dos fundamentos da ação.[7] Pressupondo ou visando a efetiva conjugação da segurança e da celeridade decisória, o decretamento de uma providência cautelar comum depende da concorrência dos seguintes requisitos: a) Probabilidade séria da existência do direito invocado [o requerente deve alegar e provar que tem um direito ou interesse juridicamente relevante relativamente ao requerido, embora no procedimento cautelar não seja necessário um juízo de certeza, mas apenas de verosimilhança ou de aparência do direito - fumus boni juris]; b) Fundado receio de que outrem, antes de a ação ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito [o procedimento cautelar tem por fim obviar ao perigo da demora da declaração e execução do direito, afastando o receio do dano jurídico, através de medidas que limitam os poderes ou impõem obrigações àqueles que se encontram em conflito com o requerente da providência - periculum ín mora]; c) Adequação da providência à situação de lesão iminente [que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efetividade do direito ameaçado]; d) Não existência de providência específica que acautele aquele direito [tipificadas nos art.ºs 377º a 409º]. A estes quatro requisitos principais, acresce uma derradeira exigência: que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar.[8] 6. Na situação em análise, o direito visado acautelar com a providência, atento o circunstancialismo alegado na petição, é o direito à restituição do veículo em consequência da resolução do contrato de aluguer. Apesar de a requerente afirmar que é a proprietária do veículo, a relação que serve de fundamento ao procedimento é o contrato de aluguer do veículo celebrado entre a requerente, como locadora, e o requerido, como locatário. E é com base na resolução do aluguer, por incumprimento contratual do requerido, que a requerente reclama a restituição do veículo [cf., sobretudo, a alegação vertida nos art.ºs 19º e 22º da petição]. 7. No que concerne à interpretação feita pela decisão recorrida do n.º 1 do art.º 362º, na parte em que faz depender o recurso ao procedimento cautelar comum do requisito do fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável ao direito do requerente, antolha-se evidente que a Mm.ª Juíza do Tribunal a quo acentuou a natureza puramente patrimonial do dano (efetivo e potencial) na esfera da requerente, e que esta não terá alegado matéria para o eventual preenchimento do requisito do receio de lesão grave e dificilmente reparável, considerando-se insuficiente ou irrelevante o aduzido, v. g., nos art.ºs 10º, 11º, 14º, 15º, 16º e 17º da petição, como se reproduziu no ponto I., supra. 8. Relativamente à interpretação/aplicação da parte do n.º 1 do art.º 362º que se refere “ao receio de lesão … dificilmente reparável ao seu direito” - maxime, a questão da alegação do periculum in mora nos procedimentos cautelares relativos a contratos de aluguer de longa duração de veículos automóveis - importa considerar a existência de uma prolongada contraposição de duas orientações jurisprudenciais divergentes. Por um lado, há quem siga o entendimento de que quando o direito que se quer acautelar tiver natureza patrimonial, a lesão receada só será de qualificar como de difícil reparação quando, atendendo às possibilidades concretas do requerido para suportar economicamente uma eventual reparação do direito do requerente, se concluir que o mesmo não tem condições económicas para suportar a reparação da lesão causada - tratando-se de lesões patrimoniais nos direitos do locador, só se poderá falar em lesão dificilmente reparável quando o locatário não dispusesse de meios para o ressarcimento dos prejuízos sofridos pelo locador em consequência da não restituição ou da demora na entrega do veículo[9]. Do outro lado, em clara oposição, defende-se que mantendo-se o locatário a utilizar o automóvel, na sequência da resolução do contrato e sem pagar as rendas, e denotando a sua oposição ao procedimento cautelar comum, interposto pelo locador, a intenção de assim continuar, deve ter-se por verificada a existência de periculum in mora (perante o incumprimento do contrato, que levou à sua resolução, a não entrega pelo requerido/locatário de um bem que não lhe pertence, que se desvaloriza pelo uso normal e decurso do tempo e cuja utilização se tomou ilícita por força dessa mesma resolução, indicia fundado receio de lesão grave e difícil reparação).[10] 9. O tribunal a quo indeferiu o pedido dizendo, em síntese, que se encontra suficientemente demonstrado o direito de propriedade do veículo, o direito de crédito sobre os alugueres não pagos e o direito à entrega do veículo, por via da resolução contratual, preenchendo-se, assim, o primeiro pressuposto da procedência da providência (probabilidade séria da existência do direito) [e, na verdade, nenhuma dúvida se suscita quanto à afirmação deste requisito, porquanto havendo a probabilidade séria da existência do direito à restituição do veículo, em consequência da resolução do contrato de aluguer, assiste ao locador a faculdade de requerer a providência adequada a assegurar a efetividade de tal direito], porém, o requisito do justo e fundado receio de que outrem lhe cause lesão grave e de difícil reparação (periculum in mora) segundo um juízo de realidade ou certeza, não se mostra preenchido, pois os factos alegados pela requerente assentam em meras suposições ou conjeturas (v. g., impossibilidade de dispor do veículo locado e dele retirar qualquer rendimento no âmbito do seu comércio; desvalorização e depreciação rápida e significativa por cada dia que passa; possibilidade do mesmo ter um acidente, desaparecer ou ser vendido/alienado ou servir de garantia para pagamento de dívidas), sendo que o direito da locadora a ser indemnizada pelo atraso na restituição da coisa ou pela perda ou deterioração da mesma está contemplado nos art.ºs 1044º e 1045º do Código Civil (CC), subsidiariamente aplicáveis ao contrato de aluguer de veículos automóveis sem condutor, e não foi sequer alegado que a situação económica do requerido seja tal que o eventual direito de indemnização da requerente fique desprovido da garantia patrimonial - haveria a requerente que ter concretizado que a falta de pagamento das rendas devidas e dos prejuízos decorrentes do uso abusivo e demora da entrega e desvalorização do veículo, estava associada à inexistência de meios para o requerido solver o montante da dívida ou de que era seu efetivo intento a dissipação do veículo, não sendo tal falta de alegação suprível pelo facto notório de que os veículos se desvalorizam com o uso ou a mera suposição de perda do veículo.[11] 10. Retomando o expendido em II. 3., supra, e pelo que se exporá de seguida, afigura-se, salvo o devido respeito por entendimento contrário, que a situação em análise tem particularidades que desaconselham o enquadramento à luz da primeira perspetiva aludida em II. 8., supra.[12] 11. Prosseguindo. A razão de ser dos procedimentos cautelares é a de acautelar o efeito útil da ação (cf. art.º 2º, n.º 2, in fine) ou assegurar a efetividade do direito ameaçado (art.º 362º, n.º 1, in fine). Se os procedimentos cautelares servem para dar utilidade ao que for decidido na ação a favor do requerente, se servem para assegurar a efetividade do direito que lhe for reconhecido, então a lesão que se receia acontecer enquanto se aguarda pela decisão definitiva da ação será considerada como de difícil reparação quando, na hipótese de ela se concretizar, retirar efeito útil à decisão definitiva da causa ou impedir a efetividade do direito que for reconhecido ao requerente na decisão definitiva. Por outras palavras, a lesão que se receia há-de ser considerada de difícil reparação quando existir o risco de insatisfação do direito, risco resultante da demora na decisão definitiva da causa.[13] 12. Relativamente à questão de saber se a requerente alegou factos suficientes para caracterizar como dificilmente reparável a lesão ao seu direito, caso não fosse decretada a apreensão e a entrega do veículo automóvel dado de aluguer, dir-se-á que, ainda que se admita que, por exemplo, o perigo de desvalorização/depreciação contínua do veículo ou os riscos inerentes à circulação automóvel (ou a uma utilização imprudente) poderão não relevar como fundamento da providência requerida[14], verifica-se, contudo, que a requerente fundamentou a sua pretensão com a alegação de outros perigos, caso não seja decretada a providência requerida, nomeadamente, que o flagrante e continuado incumprimento pelo requerido das suas obrigações[15], não só faz pressupor que o mesmo se encontra em má situação financeira, como faz também recear pelo destino do bem dado em aluguer (v. g., eventual venda - de coisa alheia - a terceiro; apreensão, apropriação ou apoderamento por credores do requerido ou terceiros), sem que a requerente tenha qualquer controle sobre a situação (cf. art.ºs 15º a 17º da petição), o mesmo será dizer que, partindo daquela realidade, a requerente invoca também o perigo de ele ser dissipado ou ocultado pelo requerido. 13. O requerido deixou de pagar quaisquer valores desde setembro/2024 (ou seja, reportando-nos ao momento atual, cerca de ¼ das prestações devidas), não deduziu oposição ao procedimento e revelou total indiferença face ao presente caso [e, anteriormente, ignorou o pedido de restituição da viatura - cf. art.ºs 9º a 11º da petição e missivas reproduzidas a fls. 48 e seguintes[16]] e a subsequente pronúncia do tribunal [cf., principalmente, II. 1. 5), supra]. Tais factos e circunstâncias levam-nos a concluir que aqueles perigos indicados por último encontram adequada tradução no que se vê (claramente) indiciado - afigura-se-nos, pois, legítimo o receio da requerente quanto ao destino do veículo - sabendo-se que se o veículo levasse descaminho ou fosse ocultado pelo requerido, enquanto decorresse a ação principal, o direito à restituição seria lesado em termos irreversíveis, o que constitui situação mais gravosa do que a lesão dificilmente reparável. Em tal hipótese, não seria possível satisfazer o direito à restituição do veículo, em consequência da resolução do contrato do aluguer, isto é, estaria comprometida a efetividade do direito que a requerente quer acautelar, razão pela qual se poderá concluir que a requerente alegou factos suscetíveis de caracterizar o receio de lesão grave e dificilmente reparável do seu direito (restituição do veículo).[17] 14. Em virtude da revelia absoluta do requerido, o assim alegado (e o que daí se poderá/deverá inferir[18]) fica necessariamente indiciado (cf. art.ºs 549º, n.º 1; 566º e 567º, n.º 1) e, daí, suficientemente fundado o receio da requerente (art.º 368º, n.º 1). Acresce que não se poderá dizer que exista apenas uma mera possibilidade remota de a requerente vir a sofrer danos, pela simples razão de que nada obsta a que o julgador se convença do perigo alegado (de que existe perigo, isto é, que considere provados/indiciados factos que permitam concluir existir um conjunto de circunstâncias que tornam altamente provável a ocorrência de um dano futuro).[19] 15. Esta, cremos, a solução exigida pelo direito enquanto validade normativa, uma resposta normativamente adequada às circunstâncias do caso concreto[20] e aos interesses em presença, sabendo-se que “o objeto problemático da interpretação jurídica não é a norma como objetivação cultural (...), mas o caso decidendo, o concreto problema prático que convoca normativo-interpretativamente a norma com seu critério judicativo (...), o que significa, evidentemente, que é o caso e não a norma o ´prius` problemático-intencional e metódico”.[21] E - reafirma-se - a matriz essencial da justiça cautelar é o asseguramento do princípio da efetividade da tutela jurisdicional, de modo a permitir que o titular de todo e qualquer direito possa obter, em tempo útil e na medida do possível, o que o respetivo conteúdo o autoriza a fruir (cf. art.ºs 2º, n.º 2 e 362º, n.º 1, do CPC e 20º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa).[22] 16. Concluindo-se que se encontra preenchido o indicado segundo pressuposto para o decretamento da providência, por existir justo e fundado receio de que o requerido cause lesão grave e de difícil reparação (periculum in mora), importa conhecer, na 1ª instância, dos demais requisitos cuja análise se considerou prejudicada. 17. Procedem, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso. * III. Pelo exposto, procedendo a apelação, revoga-se a sentença recorrida, com a consequência assinalada em II. 16., supra. Sem custas. * 28.10.2025
[4] Dispõe o art.º 567º, n.º 1, aplicável ex vi do disposto no art.º 366º, n.º 5, do CPC, que “se o réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa ou tendo juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor.” [9] Cf., de entre vários, acórdãos da RP de 11.9.2008-processo 0736163 e 26.01.2016-processo 7401/15.8T8VNG.P1, da RL de 23.4.2009-processo 5937/08.6TBOER e 15.12.2011-processo 746/11.8TVLSB e da RC de 28.4.2010-processo 319/10.2TBPBL, 07.9.2010-processo 713/09.1T2AND, 19.10.2010-processo 358/10.3T2ILH, 13.11.2012-processo 460/12.7T2ILH e 01.10.2013-processo 589/13.4T2AVR, publicados no “site” da dgsi. [10] Cf., entre outros, acórdãos da RP de 18.6.2008-processo 0833386, 09.7.2009-processo 11881/08.0TBVNG.P1, 20.4.2017-processo 575/17.5T8VNG.P1 e 07.01.2019-processo 903/17.3T8VNG.P1 - bem como o “voto de vencido” no acórdão da RP de 26.01.2016-processo 7401/15.8T8VNG.P1 -, da RL de 12.10.2010-processo 5549/09-7, 18.11.2010-processo 339/10.7TBSSB.L1-8 e 26.02.2015-processo 1617/14.1T8SNT.L1-6 e da RC de 23.9.2008-processo 1247/08.7TBFIG.C1 [neste aresto, qualificou-se o contrato de ALD como contrato inominado, sendo-lhe aplicável o regime da locação previsto no CC e as disposições do DL n.º 354/86, de 23.10, perspetiva que o legislador viria a afastar - o DL n.º 354/86, de 23.10 (alterado pelos DL n.ºs 373/90, de 27.11; 44/92, de 31.3 e 77/2009, de 01.4) foi revogado pelo DL n.º 181/2012, de 06.8, diploma que passou a regular as condições de acesso e de exercício da atividade de aluguer de veículos de passageiros sem condutor, também designada por atividade de «rent-a-car», bem como o aluguer de curta duração de veículos de passageiros sem condutor, com e sem motor, também designado por atividade de «sharing», regime não aplicável aos contratos de prestação de serviços de aluguer de longa duração, incluindo os designados de ALD - cf. art.º 1º, n.ºs 1 e 3, alínea c) e 4 do DL n.º 181/2012; este DL veio a ser alterado pelos DL n.ºs 207/2015, de 24.9 e 47/2018, de 20.6] e 28.11.2018-processo 3440/17.2T8LRA.C1 e da RE de 13.7.2022-processo 973/22.2T8LLE.E1, publicados no “site” da dgsi. [11] Seguiu-se de perto o expendido, principalmente, no cit. acórdão da RC de 01.10.2013-processo 589/13.4T2AVR.C1, no qual se sumariou (sob o ponto 2.): «A mera alegação de que um veículo automóvel é um bem de fácil e rápida deterioração e desvalorização, e de que se a requerente tiver de aguardar pelo desfecho da ação declarativa, corre o risco de esta já não ter qualquer utilidade ou efeito prático, por entretanto a viatura já ter perdido integralmente o seu valor e a sua possibilidade de utilização, não preenche o referido requisito, se não estiver associada à alegação da inexistência de meios para a requerida solver o montante da dívida ou de que era seu intento a dissipação do veículo, não bastando a mera suposição de tal podia ocorrer.» [13] Neste sentido, cf. o cit. acórdão da RC de 28.11.2018-processo 3440/17.2T8LRA.C1 [assim sumariado: «I - Visto os procedimentos cautelares servirem para dar utilidade ao que for decidido na ação a favor do requerente, para assegurar a efetividade do direito que lhe for reconhecido, a lesão que se receia acontecer enquanto se aguarda pela decisão definitiva da ação será considerada como de difícil reparação quando, na hipótese de ela se concretizar, retirar efeito útil à decisão definitiva da causa ou impedir a efetividade do direito que for reconhecido ao requerente na decisão definitiva. II - No âmbito de um procedimento cautelar comum em que o locador de um veículo automóvel requer a apreensão e a entrega desse veículo [aluguer de longa duração], configura receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito à restituição do veículo, em consequência da resolução do contrato de aluguer, o receio fundado de dissipação ou ocultação do veículo enquanto se aguarda pela decisão definitiva da causa.»], que segue de perto o ensinamento de Marco Carvalho Gonçalves, in Providências Cautelares, páginas 214 e 215 - onde se afirma: “… o juiz deve fazer um juízo de prognose, colocando-se na situação futura de uma hipotética sentença de provimento, para concluir se há, ou não, razões para recear que tal sentença venha a ser inútil, por entretanto se ter consumado uma situação de facto incompatível com ela, ou por se terem produzido prejuízos de difícil reparação para quem dela deva beneficiar, que obstam à reintegração específica da sua tutela jurídica” -, bem como o que se escreveu na RLJ ano 80º, 297. [15] A resolução operou aqui relevantemente, com a consequente destruição da relação contratual em causa, tornando-se evidente a inequívoca obrigação de restituição da viatura impendente sobre o locatário (art.º 1038º, alínea i) do CC) e a insubsistência, por banda deste, de qualquer fundamento ou tutela respeitante à detenção dessa mesma viatura (por parte de quem sabe perfeitamente que, ao prolongar essa detenção, está a atuar contra a vontade do legítimo dono) - cf., neste sentido, o cit. acórdão da RC de 23.9.2008-processo 1247/08.7TBFIG.C1. [16] Releva, pois, o sentido útil do preceituado no art.º 1038º, alínea i), do CC, no que concerne à obrigação de restituição do veículo ao locatário findo o contrato. [17] Cf. os citados acórdãos da RC de 28.11.2018-processo 3440/17.2T8LRA.C1 e 25.6.2019-processo 641/19.2T8FIG.C1. [18] A presunção é a inferência ou processo lógico mediante o qual, por via de uma regra de experiência, se conclui, verificado certo facto, a existência de outro facto, que, em regra, é a consequência necessária daquele. O juiz poderá lançar mão do instrumento probatório das presunções judiciais, de facto, hominis ou simples, enquanto meios lógicos ou mentais da descoberta de factos entregues “às luzes e à prudência do magistrado” - valendo-se de certo facto e de regras de experiência, o juiz conclui que aquele denuncia a existência de um outro facto, é consequência típica de outro -, presunções que, condicionadas a uma utilização prudente e sensata, não deixam de constituir um instrumento precioso a empregar, quando necessário e tal for legalmente admitido na formação da convicção que antecede a resposta à matéria de facto (art.ºs 349º e 351º, do CC), o que se torna premente, principalmente, quando se trata de proferir decisão em que os factos se tornam dificilmente atingíveis através de meios de prova direta - Cf. Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material), BMJ, 110º, págs. 190 e seguintes e, de entre vários, acórdão da RL de 25.3.2003, in CJ, XXVIII, 2, 91 (e dgsi/processo 2155/2003.7). [19] Sobre esta problemática, cf. acórdão da RC de 28.11.2018-processo 3440/17.2T8LRA.C1 e a doutrina que aí se invoca - Marco Gonçalves, obra citada, pág. 214, e Lucinda Dias da Silva, Procedimento Cautelar Comum, Coimbra Editora, págs. 145 e seguinte. Impressivo, diga-se, o que se afirma no cit. acórdão da RP de 20.4.2017-processo 575/17.5T8VNG.P1: “o direito à restituição é o direito de recuperar o bem como coisa íntegra, útil e utilizável, e não como coisa imprestável, inutilizável ou já apenas sucata”, acolhendo-se e reproduzindo-se aí, de resto, o que havida sido referido, por exemplo, nos acórdãos da RP de 19.4.2007-processo 0731622 (publicado no “site” da dgsi) e 18.6.2008-processo 0833386, atrás citado. Equacionada, ou não, determinada corrente/perspetiva jurisprudencial, também não se poderá enjeitar ou afastar o preenchimento dos pressupostos legais a partir de uma “presunção atuante de que a contínua desvalorização do veículo equivale, enquanto preenchimento dos requisitos de um procedimento cautelar comum, ao fundado receio” estabelecido no n.º 1 do artigo 362º do CPC; “a inferência de ser evidente que a proteção do locador contra o ´periculum quod est in mora` não se compadece com a espera por uma decisão definitiva, no caso de um bem sujeito a uma contínua desvalorização, como sucede com um automóvel” - cf. o cit. acórdão da RC de 23.9.2008-processo 1247/08.7TBFIG.C1. Em idêntico sentido, cf. o cit. acórdão da RE de 13.7.2022-processo 973/22.2T8LLE.E1, assim sumariado: «A não restituição do veículo automóvel ao seu dono devido a incumprimento contratual e a sua ocultação implica que se desvalorize pelo uso (e o decurso do tempo) e indicia o receio fundado de lesão grave e de difícil reparação, tornando desnecessária a alegação de factos concretos integradores do ´periculum in mora`.» [21] Vide A. Castanheira Neves, O Actual Problema da Interpretação Jurídica, in RLJ, 118º, págs. 257 e seguinte. |