Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
574/20.0T9ACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
ELEMENTO SUBJETIVO DO CRIME
Data do Acordão: 05/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE LEIRIA – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 287º, N.º 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL; 14º DO CÓDIGO PENAL
Sumário: Para além da enunciação das razões de discordância relativamente ao despacho de arquivamento, o assistente encontra-se obrigado, nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do CPP, a enunciar, ordenada e concretamente, os factos imputados ao denunciado integradores do tipo de crime imputado, na sua vertente objetiva e subjetiva.
Decisão Texto Integral: **


Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                                                                                   


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            A - Relatório:

            1. Nos Autos de Inquérito n.º 574/20...., no âmbito do Processo de Inquérito, 574/20...., , no Juízo de Instrução Criminal de Leiria – Juiz 3, foi proferido, em 8/2/2024, o seguinte Despacho:

           “Veio o assistente AA requerer a abertura de instrução, reagindo ao despacho de arquivamento do MP.

            Dispõe o art. 287.º, do CPP:

            “1 – A abertura de instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento:

a) Pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação; ou

           b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.

           2 – O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º, não podendo ser indicadas mais de 20 testemunhas.

           3 – O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução”.

           Ora, no caso concreto e da leitura do requerimento de instrução ressalta que o assistente não fez constar do mesmo uma acusação contra o denunciado, o qual nem sequer identifica.

           O assistente manifesta a sua discordância em relação ao despacho de arquivamento, descreve o tipo legal de crime que entende que se verifica e faz constar conclusões que retira da sua argumentação.

           O mesmo não descreve em concreto os factos praticados pelo denunciado, ou seja, não faz constar a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, como determina o art. 283.º, al. b), do CPP.

           Pelo exposto, não se pode considerar como válido o requerimento apresentado para a abertura de instrução, já que o mesmo não respeita o disposto no art. 283.º, n.º 3 al. b) do Código de Processo Penal, aqui aplicável por remissão do n.º 2 do artigo 287.º do mesmo diploma legal.

           Pelo exposto, rejeita-se por inadmissibilidade legal o requerimento apresentado para a abertura de instrução pelo assistente (art. 287, n.º 3, do CPP).

            Notifique e registe a presente decisão em livro próprio.

           Após trânsito em julgado da presente decisão, devolva os autos de inquérito ao DIAP competente.

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2. Inconformado com a decisão, o Assistente, em 14/3/2024, veio recorrer da mesma, extraindo da Motivação as seguintes Conclusões:

            A. O Tribunal a quo julgou inadmissível a abertura de instrução porquanto considerou que o Assistente não acusou o Denunciado.

B. O art.º 287.º n.º 2, afirma que o Assistente deve proceder à narração dos factos.

C. Contudo não impõe que a mesma seja especificada, bastando, que a mesma, seja uma narração sintética.

D. (…)não tem que conter as indicações tendentes à identificação do Arg. ou denunciado (…) - Vide neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º1592/18.3T9SXL.L1-9, de 11-03-2021.

E. O Assistente, no Requerimento para Abertura da Instrução apresentado, indica os factos e indica as disposições legais aplicáveis, de tudo resultando a imputação aos Denunciados de um tipo legal de crime bem delimitado e bem definido, sendo perfeitamente percetível qual a sanção penal a aplicar.

F. O Assistente imputa factos “ o Requerente nunca assinou qualquer documento que permitisse tal cedência”.

G. Encontra-se igualmente balizado o tempo da ocorrência ilícita – “01.09.2019,(…)”

H. Cujo conhecimento do Assistente só ocorreu em 7 de Julho de 2020 conforme consta do auto da GNR.

I. O lugar não o pode precisar pois a prática do mesmo foi sem a presença do Assistente.

J. A motivação é patente nos pontos 29, 30, 31, 36, 37, 38, pois o Denunciado é ex-cunhado do Assistente, existindo um conflito latente e patente entre o Assistente e a Denunciada irmã do Denunciado.

K. Não obstante, o Ministério Público não ter efectuado diligência pericial da assinatura.

L. A prova existente dos autos é que, o contrato de cedência de posição contratual do alarme foi efectuada e que o foi para uma pessoa não proprietária do imóvel em causa.

M. Tal factualidade não pode ser deixar de ser considerada ilícita, sendo comprovada documentalmente nos autos, pelo que, existiriam indícios suficiente para acusar o Denunciado.

N. Caso assim não se entenda, sempre teremos de considerar que, a falta de perícia não pode ser igual a falta de prova indiciaria para a acusação.

O. Senão sempre teríamos de considerar que existiu insuficiência do inquérito.

P. Tal insuficiência constituiria sempre uma nulidade insanável, tornando a decisão nula.

Q. Ora, sem prejuízo da nulidade invocada, a prova presente nos autos é suficiente para a acusação.

R. Bem como, o requerimento de abertura de instrução do Assistente é suficiente para que seja admitido como tal.

S. Fica supra demonstrado que o Assistente alegou factos suficientes para preencher a narração do facto ilícito praticado.

T. Existindo a possibilidade do Tribunal a quo realizar a sua apreciação / investigação autónoma para aferir da suficiência de indícios para emitir despacho de pronúncia ou não pronuncia.

U. Designadamente, ordenado a realização da prova necessária e requerida pelo Assistente.

V. Ademais, se estiverem em causa omissões e imperfeições da descrição dos factos imputados ao denunciado, estas poderão ser colmatadas pelo juiz de instrução, dando, oportunamente, cumprimento ao disposto no art.º 303º do CPP.”

W. A rejeição do Requerimento para Abertura da Instrução, nos termos e com os fundamentos em que foi levada a cabo pelo tribunal recorrido, constitui uma verdadeira denegação de justiça, com flagrante violação do direito da assistente a uma tutela jurisdicional efetiva.

X. Pelo que andou mal o Tribunal a quo, em não convidar o Assistente no aperfeiçoamento do seu requerimento, rejeitando liminarmente.

Y. Deve assim ser revogada tal decisão por uma diversa que, admita o requerimento de abertura de instrução ou por um que convide o Assistente ao seu aperfeiçoamento.

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3. O recurso, em 19/3/2024, foi admitido.

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  4. O Ministério Público, em 21/3/2024, veio responder ao recurso, defendendo que não merece provimento.

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           5. Instruídos os autos e remetidos a este Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 17/4/2024, emitiu douto parecer no qual defendeu que o recurso não merece provimento.                                                             

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6. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.

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8. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.

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B - Cumpre apreciar:

            De harmonia com o disposto no n.º 1, do artigo 412.º, do CPP., o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente.

           A questão a conhecer cinge-se a saber se o requerimento de abertura de instrução contém os elementos necessários para que seja admitido como tal.

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           Enquanto fase jurisdicional, como refere Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 1994, p. 128, citando Figueiredo Dias, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, 1988, p. 16: «A atividade processual desenvolvida na instrução é, por isso, materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguações”.                                               Por isso, é comum afirmar-se que a instrução não é um complemento da investigação feita em inquérito, antes contempla a prática dos atos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento.

Em boa verdade, o juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução, sempre tendo em conta a indicação constante do requerimento da abertura de instrução, a que se refere o n.º 2 do artigo 287.º, do CPP (ver artigo 288.º, n.º 4, do mesmo código).

O artigo 286.º, n.º 1, do CPP, indica expressamente como objetivo da instrução a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

A instrução culmina com o debate instrutório o qual visa permitir uma discussão perante o juiz, por forma oral e contraditória, sobre se, do decurso do inquérito e da instrução, resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento. De acordo com o artigo 298.º, do C.P.P.

Após o debate instrutório será proferido despacho de pronúncia ou de não pronúncia consoante existam ou não indícios suficientes que justifiquem a submissão ou não do arguido a julgamento.

Um dos fundamentos do arquivamento do inquérito pelo Ministério Público e do despacho de não pronúncia pelo juiz de instrução é a insuficiência dos indícios da verificação de crime ou de quem foram os seus agentes (artigos 277.º, n.º 2 e 308.º, n.º 1, ambos do C.P.P.).

Em resumo, a instrução visa a comprovação judicial de acusar ou não acusar, isto é, pretende-se que se afira da existência ou não de indícios dos quais resulte a possibilidade razoável de em julgamento vir a ser aplicada ao arguido uma pena, pelos factos e ilícito que lhe são imputados, in casu, pelo assistente no requerimento de abertura de instrução.

Dispõe o artigo 308.º, n.º 1, do CPP, que, se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos respetivos factos; caso contrário profere despacho de não pronúncia.

Resulta, por sua vez, do artigo 283.º, n.º 2, do CPP, para onde remete o artigo 308.º, n.º 2, do mesmo diploma legal, que se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento uma pena ou uma medida de segurança.

O despacho de não pronúncia deverá ser proferido sempre que, perante o material probatório constante dos autos, não se indicie que o arguido, se vier a ser julgado, venha provavelmente a ser condenado, sendo tal probabilidade um pressuposto indispensável da submissão do feito a julgamento.

Por indiciação suficiente, entende-se “a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em razão dos meios de prova já existentes, uma pena ou medida de segurança”. Trata-se da “…probabilidade, fundada em elementos de prova que, conjugados, convençam da possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicável uma pena ou medida de segurança criminal…” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2ª edição, Verbo 1999, páginas 99 e 100).

Como ensina Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.º volume, 1974, pág. 133, “…os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.”, acrescentando que “tem pois razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase do julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação.

Podemos, então, concluir que constitui indiciação suficiente o conjunto de elementos que, devidamente relacionados e conjugados entre si, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo vingar a convicção de que este virá a ser condenado pelo crime que lhe é imputado. - Sobre este conceito, ver, ainda, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 388/99 (DR, II, 8-11-1999, páginas 16.764 e ss.) e n.º 583/99 (DR, II, 22-2-2000, páginas 3.599 e ss.); e o Acórdão do TRE, de 1-3-2005, in www.dgsi.pt.

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            Só da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito, bem como na instrução, há de resultar uma verdadeira convicção de probabilidade de uma futura condenação ou não, não bastando um mero juízo de carácter subjetivo, antes se exigindo um juízo objetivo fundamentado nas provas recolhidas.

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           Aqui chegados, é fácil concluir que se reveste de especial importância o requerimento de abertura de instrução que constitui uma peça essencial no desenvolvimento processual.

 Perante o arquivamento do inquérito, o assistente pode requerer a abertura da instrução (artigo 287.º n.º 1-b), CPP) mas, neste caso, terá de observar os requisitos ou pressupostos legais.            

Dispõe o artigo 287.º, n.º 2, do CPP, na parte que ora interessa, que “o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283 nº 3, alíneas b) e c).”                          

O requerimento de abertura de instrução consubstancia, materialmente, uma acusação, na medida em que por via dele é pretendida a sujeição do arguido a julgamento, por factos geradores de responsabilidade criminal.             

A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objeto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura de instrução.                                         

Existe uma semelhança substancial entre o requerimento de abertura de instrução e a acusação. Daí que o artigo 287.º, n.º 2, do CPP, remeta para o artigo 283.º, n.º 3 -b) e c), do mesmo diploma legal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento de abertura de instrução.                                                   

Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento de abertura de instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3, do artigo 283.º, do CPP, (cfr., a este propósito, Acórdão do TC n.º 358/2004, onde a Relatora acrescenta que essa exigência (refere-se ao requerimento para abertura de instrução) “decorre (…) de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória.

É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legítima”.                      Também, no Acórdão do TC nº 674/99, DR II, de 25/2/2000, se realça que “a necessidade de uma narração de factos penalmente censuráveis pode ser vista como uma decorrência lógica do princípio da vinculação temática, já que, só deste modo a acusação pode conter os limites fácticos a que fica adstrito o tribunal no decurso do processo (cfr. António Barreiros, Manual de Processo Penal, Universidade Lusíada, 1989, pág. 424).

Ou seja, a narração dos factos, que constituem elementos do crime, deve ser suficientemente clara e percetível não apenas, por um lado, para que o arguido possa saber, com precisão, do que vem acusado, mas igualmente, por outro lado, para que o objeto do processo fique claramente definido e fixado.

É, assim, imperativo que a acusação e a pronúncia contenham a descrição, de forma clara e inequívoca, de todos os factos de que o arguido é acusado, sem imprecisões ou referências vagas”.                                         

Em síntese, podemos afirmar que o requerimento para abertura da instrução formulado na sequência do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público deve fixar e delimitar o objeto do processo (como se tratasse de uma acusação deduzida pelo Ministério Público), limitando e condicionando os poderes de cognição do tribunal.

           Com a devida vénia, e antes de avançarmos para o caso concreto dos autos, passamos a citar o Acórdão do STJ, de 7/5/2008, Processo 07P4551, no qual se sintetiza, com clareza, a posição a seguir em casos como o ora em análise, (ver www.dgsi.pt.jstj):

O artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal indica expressamente como objetivo da instrução a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.                            

A abertura da instrução, como decorre do artigo 287.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, pode ser requerida pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.                                                                 

Dispõe o n.º 2 do supra citado artigo 287.º que o requerimento para abertura da instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), do CPP.                        

Reportando-se à acusação pelo Ministério Público, estabelece este último preceito que a mesma contém, além do mais, sob pena de nulidade: b) «a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada»; c) «a indicação das disposições legais aplicáveis».                

No que respeita à direção e natureza da instrução, o artigo 288.º, n.º 4, do CPP, dispõe que o juiz de instrução – a quem compete a direção da instrução – investiga autonomamente o caso submetido a instrução, tendo em conta a indicação, constante do requerimento da abertura de instrução, a que se refere o n.º 2 do artigo anterior.                                  

Por outro lado, determina o artigo 307.º, n.º 1, do CPP que, encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia, podendo fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura de instrução; acrescenta o artigo 309.º, n.º 1, do mesmo diploma, que a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução.                 

Da análise deste regime extrai-se que, no caso de ter sido proferido despacho de arquivamento, o requerimento de abertura de instrução determinará o objeto da instrução, definindo o âmbito e os limites da investigação a cargo do juiz de instrução, bem como da decisão instrutória de pronúncia.

A este propósito, Germano Marques da Silva, (Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, 1994, págs. 140 e ss.) afirma: «O requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente, devendo indicar desde logo as razões de facto e de direito da sua discordância relativamente à decisão de abstenção do MP, constitui uma verdadeira acusação, a que o assistente entende que devia ser deduzida pelo MP, e, se aceita pelo tribunal, não há razão de fundo que justifique a necessidade de ser repetida nos seus precisos termos pelo MP (...). O requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente constitui, substancialmente, uma acusação alternativa que, dada a divergência com a posição assumida pelo MP, vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial».                                         

Anteriormente, na dissertação de doutoramento em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade Católica, Do Processo Penal Preliminar, Editorial Minerva, Lisboa, 1990, p. 258/9, afirmara: “A decisão de arquivar o inquérito é um pressuposto do requerimento do assistente para abertura de instrução. Neste, o assistente deve indicar as razões de facto e de direito da sua discordância relativamente à não acusação do MP; formalmente o assistente não acusa, indica como entende que deveria ter procedido o MP: que não deveria arquivar, mas acusar e em que termos o deveria fazer. É esta “acusação” que o assistente entende que o MP deveria ter deduzido que vai delimitar substancialmente os poderes de cognição do juiz, o caso objeto da instrução”.                                       

Atento o paralelismo que se estabelece entre a acusação e o requerimento para abertura de instrução deduzido pelo assistente na sequência de um despacho de arquivamento, sendo que tal requerimento contém substancialmente uma acusação, deverá o mesmo conter a narração dos factos e indicar as provas a produzir ou a requerer, tal como para a acusação o impõe o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e d), do CPP.                                      

Sendo o requerimento para abertura da instrução a causa de pedir da atividade instrutória, o mesmo só fará sentido se contiver a descrição de substrato fáctico e a indicação dos elementos probatórios, com base nos quais será proferido o despacho de pronúncia ou de não pronúncia.                                                 

Substanciando o requerimento de abertura de instrução uma manifestação de discordância em relação a um despacho de arquivamento e sendo o essencial da fase de instrução o controlo da acusação, quer tenha sido deduzida pelo Mº Pº ou pelo assistente, a submissão à comprovação judicial só faz sentido com a apresentação de uma narrativa de factos cuja prática é imputada ao arguido, pois que a comprovação, a confirmação, o reconhecer-se como bom o requerimento (ou a acusação) terá de passar necessariamente pela aferição de factos concretos da vida real.                                       

A divergência tem de ser substanciada, indicando uma causa petendi, que delimite o objeto do processo, enforme o campo da vinculação temática e modele o thema probandum, expondo-se os factos que fundamentam a iniciativa processual com vista à “renovação” da instância noutros moldes.

No Acórdão do STJ de 07-03-2007, proferido no processo n.º 4688/06 - 3.ª, refere-se:

«A estrutura acusatória do processo determina que o thema da decisão seja apresentado ao juiz, e que a decisão deste se deva situar dentro da formulação que lhe é proposta no requerimento para abertura de instrução. O requerimento para abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais – artigo 287.º, n.º 2, do CPP – mas há de definir o thema a submeter à comprovação judicial sobre a decisão de acusação ou de não acusação.                                                                                         

O objeto da instrução deve ser suficientemente delimitado, com a indicação («mesmo em súmula», diz a lei – artigo 287.º, n.º 2, do CPP) das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação ou arquivamento, bem como a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros se espera provar.                                                                

(…) O requerimento para abertura da instrução constitui, pois, o elemento fundamental de definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução: investigação autónoma, mas delimitada pelo tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura da instrução.                              

No caso de instrução requerida pelo assistente, o limite tem de ser definido pelos termos em que, segundo o assistente, deveria ter sido deduzida acusação, e consequentemente, não deveria ter sido proferido despacho de arquivamento – no rigor, por um modelo de requerimento que deve ter o conteúdo de uma acusação alternativa, ou, materialmente, da acusação que o assistente entende que deveria ter sido deduzida com base nos elementos de prova recolhidos no inquérito (…)».                           

O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 358/2004 (Processo n.º 807/2003 - 2.ª), de 19 de Maio de 2004, publicado no DR n.º 150, Série II, de 28-06-2004 e em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 59º volume, p. 441 e ss., não julgou inconstitucional a norma do artigo 283º, nº3, alíneas b) e c) do CPP, interpretada no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição, que constem expressamente do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente os elementos mencionados nessas alíneas. 

Aí se considerou o seguinte:

     «(…) A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objeto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.                   

Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objeto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa.

         Essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.

Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe (…) uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287.º, n.º 2, remeta para o artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução. 

           Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre, como se deixou demonstrado, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada».           

«(…) a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efetiva do acesso ao direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito».                                

A exigência de rigor na delimitação do objeto do processo – note-se que a exigência feita ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa - sendo uma concretização das garantias de defesa, esclarece-se no citado acórdão, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.

Em síntese, o requerimento de instrução do assistente que não descreva cabalmente os factos imputados, de uma forma concisa, deve ser objeto de rejeição, por inadmissibilidade legal desta, nos termos conjugados dos artigos 287.º, n.º 2, e n.º 3, e 283.º, n.º 3, b) do Código de Processo Penal, sendo certo, ainda, que não pode o juiz de instrução intrometer-se de qualquer modo na delimitação do objeto do processo, no sentido de o alterar ou completar, diretamente ou por convite ao assistente requerente da instrução (cfr. o acórdão do STJ de fixação de jurisprudência n.º 7/2005) - ver, neste sentido, e a título de mero exemplo, os Acórdãos do TRC, de 6/7/2011, Processo n.º 212/10.9TAFND.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Brízida Martins; de 16/11/11, Processo n.º 37/09.4TAPNC.C1, relatado pela Exma. Desembargadora Maria Pilar Oliveira; de 7/3/2012, Processo n.º 903/09.7PBVIS.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Luís Ramos; de 21/3/2012, Processo n.º 2831/10.1TACBR.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Calvário Antunes; de 9/5/2012, Processo n.º 1272/11.0PCCBR.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Paulo Guerra; de 6/6/2012, Processo n.º 135/10.1TALSA.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Abílio Ramalho; de 15/5/2013, Processo n.º 362/11.4PBCVL.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Jorge Jacob; de 2/10/2013, Processo n.º 91/12.1TAFIG.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Vasques Osório.

Por último, por ser pertinente para o caso em apreço, convém ter presente, o Acórdão do STJ 1/2015, publicado no DR, I Série, de 27 de janeiro de 2015, que fixou a seguinte jurisprudência obrigatória:

A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente valor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º, do CPP.

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           Como aplicar o que acaba de ser referido aos presentes autos?

           Vejamos o teor do requerimento para abertura de instrução formulado, em 22/1/2024, pelo ora assistente:  

Exmo. Sr. Dr. Juiz de Instrução,

AA, Assistente nos autos à margem referenciados e neles melhor identificado, não se conformando com o despacho de Arquivamento de Inquérito, proferido pelo Magistrado do Ministério Público, vem, nos termos do artigo 287.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, requerer

                                    ABERTURA DE INSTRUÇÃO

O que faz nos seguintes termos e com os seguintes fundamentos:

1. DA ABERTURA DE INSTRUÇÃO

1. Os presentes autos foram arquivados, porquanto se constatou “não existirem elementos bastantes que permitam a prossecução dos mesmos (dos autos) com a inerente imputação aos denunciados da incriminação em apreço”.

2. Salvo o devido respeito, discordamos em absoluto de tal decisão.

3. (…).

4. (…).

5. (…).

6. Ora, in casu, considera o Requerente que existiam indícios suficientes para a acusação.

Vejamos:

7. (…).

8. (…).

9. (…).

10. (…).

11. (…).

12. Nesse sentido, e quanto aos presentes autos, vejamos:

13. O tipo objetivo do crime – o abuso da assinatura e uso de documento falsificado – encontra-se preenchido.

14. Pela informação transmitida pela A..., a 01.09.2019, terá sido firmado um acordo de cedência de posição contratual.

15. Nos termos do qual o Requerente, alegadamente, cede a sua posição contratual ao Sr. BB.

16. No entanto, o requerente nunca assinou qualquer documento que permitisse tal cedência.

17. Nem sequer autorizou, mandatou ou consentiu na mesma.

18. Pelo que, a tal documento, terá sido aposta assinatura falsa do Requerente!

19. Efetivamente, a prova documental cuja junção se requereu demonstra-se essencial para a reunião de elementos objetivos bastantes.

20. Porquanto tais documentos haverão de ter sido assinados por cedente e cessionário – aqui, Assistente e denunciado.

21. Razão pela qual a junção aos autos dos contratos inicais, bem como do acordo de cedência de posição contratual, não só permitirá contrapor as assinaturas apostas nuns documentos e noutros,

22. Como permitirá a realização da devida perícia.

23. permitindo, a final, concluir como preenchido o elemento objetivo do crime de falsificação!

24. Aliás, a A... tem a responsabilidade de guardar e conservar a documentação contratual dos clientes, pelo menos, enquanto vigorar o contrato celebrado.

25. Razão pela qual não se compreende como pode a A... não colaborar no sentido de remeter a documentação solicitada, essencial à descoberta da verdade!

26. Quanto ao tipo subjetivo do crime, sempre se dirá que o Denunciado tinha conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade,

27. Tendo igualmente a intenção de causar prejuízo a terceiro, de obter para si benefício ilegítimo,

28. Que não precisa de ser patrimonial.

29. O Denunciado com a sua conduta pretendia criar uma situação de detenção do Requerente,

30. Tinha a intenção de criar situações de conflito, que pudessem causar prejuízo, patrimonial e não patrimonial, ao Requerente.

31. Tendo, com isso, criado uma angústia profunda no Requerente, que ficou ansioso e consternado com o comportamento e atuação do ex-cunhado.

32. De igual forma, também aqui a prova documental cuja junção se requereu se demonstra essencial para a reunião de elementos bastantes para a conclusão de que foi o Denunciado que fez constar o nome do Denunciado na qualidade de cedente.

33. Porquanto tais documentos haveriam de ter sido, em teoria, assinados por cedente e cessionário aqui, Assistente e Denunciado.

34. O que, desde logo, indicia que, a provar-se, por meio de perícia, que a assinatura aposta em tais documentos é falsa, tal falsificação terá sido feita pelo Denunciado.

35. O Denunciado sabia que o Requerente não tinha assinado qualquer documento, nem aceite qualquer cedência de posição contratual.

36. Pretendeu, com a sua conduta, que ocorresse como esteve prestes a ocorrer – a detenção do Requerente!

37. Que viu a sua residência ser “visitada” por elementos dos órgãos policiais, causando grande transtorno e colocando em causa inclusivamente o seu bom nome.

38. Obrigando-o a apresentar-se, junto das autoridades, para demonstrar a sua identidade e comprovar que era proprietário do imóvel para o qual estaria a entrar, sendo essa a sua própria residência!

39. Com o devido respeito, existem indícios e elementos bastantes que permitam a imputação ao Denunciado da Acusação em apreço.

40. Sendo de extrema importância para a descoberta da verdade a disponibilização, pela A..., de cópia dos contratos iniciais e acordo de cedência de posição contratual relativa aos contratos n.ºs ...06 e ...77 a fim de, finalmente, ser alvo de perícia a assinatura do Requerente.

II – DOS ATOS DE INSTRUÇÃO

1. (…).

2. Nesse sentido, o Assistente requer que se insista na disponibilidade, pela A..., de cópia dos contratos iniciais e acordo de cedência de posição contratual relativa aos contratos n.ºs ...06 e ...77 a fim de, finalmente, ser alvo de perícia a assinatura do Requerente.

Nestes termos, e nos mais de direito que V.ª EX.ª mui doutamente suprirá, se requer que seja:

a) Declarada aberta a instrução;

b) Sejam produzidos os atos de instrução e produzidas as provas requeridas;

c) A final, seja proferido despacho de pronúncia do Denunciado;

d) E, consequentemente, a improcedência do despacho de arquivamento.”

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Perante este requerimento, consideramos que o assistente não elaborou uma narração precisa e cronológica dos factos que interessam aos autos.

Na verdade, o requerimento de abertura de instrução, em larga medida, enuncia as razões de discordância relativamente ao despacho de arquivamento, e é nesse contexto que vai aludindo, em determinados momentos, aos factos que terão sido praticados pelo denunciado, muito em tom conclusivo, o que faria sentido em sede de reclamação hierárquica mas que se revela inócuo ao nível do efeito pretendido ora em causa.

Esqueceu, em boa verdade, o recorrente que, para além da enunciação dessas razões, estava obrigado, nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do CPP, a enunciar, ordenada e concretamente, os factos imputados ao denunciado integradores do tipo de crime imputado, na sua vertente objetiva e subjetiva, nos mesmos termos que são exigidos ao Ministério Público quando exerce a ação penal.

            Assentemos, pois, e salvo o devido respeito, que a transcrição efetuada torna claro que o requerimento não contém nenhuma descrição ordenada, precisa e concreta dos factos imputados ao arguido.

            Na realidade, face ao arquivamento ordenado nos autos, deveria o assistente ter indicado no seu RAI, de uma forma autónoma, factos concretos em causa, pois só, desse modo, poderia ficar plasmado nos autos o preenchimento dos elementos objetivos dos tipos de crime em causa, não de uma maneira vaga, mas de um modo conciso que permitisse a defesa do denunciado.

            A ausência dessa indicação inquina, desde logo, a viabilidade de aceitação do requerimento de abertura de instrução, sendo certo que este deve conter, também, os elementos subjetivos do crime.

           Ora, a este propósito, diga-se que são precisamente os elementos subjetivos do crime, com referência ao momento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objetivo de ilícito) que permitem estabelecer o tipo subjetivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respetiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias, nas vertentes do dolo direto, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira.

Assim, os elementos objetivos, que constituem a materialidade do crime, traduzem a conduta, a ação, enquanto modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos e os elementos subjetivos traduzem a atitude interior do agente na sua relação com o facto material.

Num crime doloso – só essa categoria está aqui em causa – da acusação há de constar, necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua ação), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objetivos do tipo).

Aqui chegados, é incontornável que o assistente, também quanto a este aspeto, não contemplou na narração dos factos a totalidade destes elementos.

Enfatize-se que a descrição do elemento subjetivo do tipo de crime pressupõe o dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, em qualquer uma das modalidades previstas no artigo 14.º, do Código Penal.

Assim sendo, perante a mencionada deficiência da descrição factual, é líquido que o requerimento do assistente devia, como foi, ser rejeitado, importando manter a decisão recorrida.

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C - Decisão:

           Nesta conformidade, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso,

            Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

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(Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado – artigo 94.º, n.ºs 2 e3, do CPP)

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                                                      Coimbra, 22 de maio 2024


 José Eduardo Martins      

  Alcina da Costa Ribeiro    

 Maria Alexandra Guiné