Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
203/11.2TBPMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: SIMULAÇÃO
LEGITIMIDADE ACTIVA
HERDEIROS LEGITIMÁRIOS
PREJUÍZO
CONHECIMENTO DE MÉRITO
SANEADOR
Data do Acordão: 01/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - P.MÓS - JL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS.240, 242 Nº2 CC, 595 CPC
Sumário: 1. O art. 242º, nº 2, do CC, estabelece uma norma especial de legitimidade activa quanto aos herdeiros legitimários, impondo que nas situações em que o negócio simulado tenha sido celebrado em vida do autor da sucessão o mesmo tenha sido feito com o intuito ou dolo de os prejudicar, não se exigindo contudo a alegação da existência de um prejuízo efectivo.

2.A legitimidade dos herdeiros legitimários terá de ser aferida em função do que o autor alegue na petição inicial, respeitantemente ao intuito em prejudicá-los.

3. Só é possível conhecer imediatamente do mérito da causa no despacho saneador se o estado do processo permitir a apreciação (total ou parcial) do ou dos pedidos, sem necessidade de mais provas; o que não se verifica quando factualidade essencial para decidir o mérito da causa é controvertida.

Decisão Texto Integral:

I – Relatório

1. T (…), residente em Leiria, F (…), residente na Marinha Grande, J (…), residente em Amor, e P (…), residente na Batalha, intentaram acção declarativa contra A (…), residente em Porto de Mós, F (…), residente em Porto de Mós, J (…), residente em Leiria, e JSJ (…), LDA., com sede em Porto de Mós, peticionando:

1) Serem declaradas nulas e sem nenhum efeito as procurações, tal como os negócios efectuados através das mesmas, por erro na declaração de vontade, conforme acima se alegou; 2) Serem os 2º, 3º e 4ª Réus condenados a reconhecer que, os Autores e o 1º Réu são donos e legítimos proprietários de parte ilíquida dos prédios identificados no artigo 89º desta p.i; 3) Serem declaradas nulas as escrituras públicas de compra e venda, juntas como docs. nºs 10, 13, 16 e 19, por as mesmas terem sido objecto de simulação, tal como acima se alegou, com todas as consequências legais daí resultantes; 4) Caso assim não se entenda, deverão as mesmas escrituras públicas de compra e venda ser declaradas nulas, por falta de legitimidade do 1º Réu na venda, pois estamos perante contratos de compra e venda que versaram sobre bens pertencentes à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito da mulher do 1º Réu, M... ; 5) Serem os 2º, 3º e 4ª Réus condenados a restituir tais prédios à herança aberta por óbito de M... , livres e desocupados e pessoas e coisas; 6) Sejam ordenados os cancelamentos das inscrições e descrições dos referidos prédios a favor dos aqui 2º, 3º e 4ª Réus, na Conservatória do Registo Predial da Batalha e Porto de Mós, bem como a anulação e cancelamento do registo da respectiva propriedade a favor destes.

Para fundamentar o pretendido, invocaram: são filhos do 1º R. e de M (…), com quem o 1º R. casou em 1969, sem convenção antenupcial, no regime da comunhão geral; a M (…) faleceu em 2002; a herança desta mantém-se indivisa, tendo o 1º R. vendido imóveis desta sem o consentimento dos AA; o 1º R. tem 68 anos de idade, sendo o seu estado de saúde psicológico débil (concretizando actos demonstradores), e tendo os 2º a 4ºs RR conhecimento disso aproveitaram-se de tais circunstâncias para enganar o mesmo; assim, de forma concertada, os 2º e 3º RR, tendo conhecimento que ele era possuidor de vários imóveis, convenceram-no a vender os mesmos, tendo o 1º R., porque sabia que os AA também eram co-proprietários de tais imóveis, alertado ambos para tal facto, que disseram que a circunstância de os AA serem herdeiros nada obstava à realização das vendas; desta forma, o 2º R. levou o 1º R. ao cartório notarial a fim de este emitir procuração, em seu nome, para que este procedesse às referidas vendas, o que aconteceu no dia 26.11.2009, onde o 1º R. emitiu uma procuração constituindo seu procurador o 2º R., concedendo-lhe poderes para vender o prédio rústico sito em (...) , freguesia e concelho da Batalha, inscrito na matriz sob o art. 8.079º; no entanto, em nenhum momento, o 2º R. explicou ao 1º R. o que este estava a fazer no Cartório Notarial, nem em que consistia a referida procuração, pelo que tem a referida procuração de ser considerada nula, e sem qualquer efeito, tal como os negócios efectuados através da mesma; mais tarde, foi o 3º R. que se aproveitou do estado débil do 1º R., e o convenceu a emitir uma procuração em seu nome, nunca lhe explicando para que é que a mesma servia, ao que o mesmo acedeu, porque confiava no 3º R., sem imaginar que a mesma dava poderes para este vender os bens pertencentes à sua herança, o que se concretizou em 23 de Abril de 2010, quando o 1º R. emitiu uma procuração em seu nome, dando-lhe poderes para proceder à venda do prédio misto inscrito na matriz sob os arts. 10.102º/rústico e 897º/urbana; estas procurações foram emitidas sem que o emitente 1º R. tivesse real consciência do seu significado, nunca o 1º R. querendo vender os referidos prédios pertencentes à herança ilíquida e indivisa, aberta por óbito da sua esposa; no dia 12.2.2010, o 2º R. na qualidade de procurador do 1º R. declarou que vendeu à 4ª R., pelo preço já recebido de 9.000 € o referido inscrito na matriz sob o art. 8.079º, que se encontra registado a favor da mesma; no entanto, apesar de na escritura pública de compra e venda constar o recebimento do preço tal não corresponde à verdade, pois, o 1º R. não recebeu qualquer preço pela venda efectuada; o objectivo da venda à 4ª R. foi simular um negócio, para que o 1º Réu perdesse o direito a esse bem sem qualquer custo; assim tem a venda efectuada entre o 2º R. e a 4ª R. de ser declarada nula, por simulação, devendo ainda serem cancelados na Conservatória do Registo Predial todos os registos e inscrições a favor desta R., e, nessa sequência, declarar-se que os AA e o 1º R. têm o direito de haver para si tal prédio, devendo os mesmos serem declarados proprietários tanto para efeitos registais como matriciais; por outro lado, o 3º R. também convenceu o 1º R. a que este lhe vendesse um imóvel, que também faz parte da herança ilíquida e indivisa, tendo o 3º R. referido ao 1º R. que se dizia que o prédio era um bem próprio por morte dos seus pais e assim, nunca se descobria que o prédio era um bem comum e que fazia parte da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito da sua mulher, convencendo-o, também, que lhe pagava o preço justo pelo imóvel; o 1º R. aceitou, e no dia 23.4.2010 declarou vender ao 3º R., pelo preço já recebido de 25.000 €, o prédio urbano sito na Q (...) , freguesia e concelho da Batalha, inscrito na matriz sob o art. 1.189º, encontrando-se, actualmente, o prédio registado em nome do 3º R.; sucede que, e em primeira linha, a vontade declarada pelo 1º R. na escritura pública não corresponde à vontade real do mesmo, pois nunca pretendeu proceder à venda de tal prédio, pelo que, tem a escritura de ser declarada nula, e em segunda linha, também, o 1º R. não recebeu qualquer quantia pela referida venda, ao contrário do que se refere na escritura, escritura que foi celebrada com base em declarações falsas, ao referir que o 1º R. adquiriu este bem por dissolução, por morte, da comunhão conjugal e sucessão hereditária de seus pais de quem o vendedor é único filho; assim tem a venda efectuada entre o 1º R. e o 3º R. de ser declarada nula, devendo o 1º R. e 3º R. serem condenados a reconhecer que tal escritura é nula, por ter sido celebrada com base em falsas declarações, devendo ainda serem cancelados na Conservatória do Registo Predial todos os registos e inscrições a favor do 3º R., e, nessa sequência, declarar-se que os AA e o 1º R. têm o direito de haver para si tal prédio, devendo os mesmos serem declarados proprietários; o mesmo 3º R., com intenção de extorquir bens, aproveitando-se da referida procuração de 23.4.2010, no dia 4.6.2010, em representação do 1º R., celebrou escritura pública de compra e venda consigo próprio, onde declarou que vendia a si próprio, pelo preço de 5.000 €, já recebido, 1/20 avos do referido prédio inscrito na matriz urbana sob o art. 897º e matriz rústica sob o art. 10.102º, que actualmente se encontra registado em nome do 3º R.; também esta escritura de compra e venda está ferida de nulidade, pois, o 3º R. aproveitou-se da vulnerabilidade do 1º R. para extorquir património a este, nunca o 3º R. tendo explicado ao 1º R, a razão de ser da procuração que lhe foi conferida, nem o 3º R. pagou o preço da compra ao 1º R.; assim tem a venda efectuada de ser declarada nula, devendo o 3º R. ser condenado a reconhecer que a escritura de compra e venda é nula por simulação, devendo ainda serem cancelados na Conservatória do Registo Predial todos os registos e inscrições a favor do 3ª R., e, nessa sequência, declarar-se que os AA e o 1º R. têm o direito de haver para si tal prédio, devendo os mesmos serem declarados proprietários; também, pelos motivos acima referidos, o 3º R. voltou a convencer o 1º R. a vender-lhe mais um imóvel, ao que o mesmo acedeu, atendendo a relação de confiança existente entre ambos, e assim, no dia 6.8.2010, foi celebrado um contrato de compra e venda, onde o 1º R. declarou vender ao 3º R. um prédio rústico, inscrito na matriz rústica sob o art. 191º, secção 012, pelo preço de 10.000 €, e que actualmente se encontra registado em nome do 3º R., sendo que a vontade declarada pelo 1º R. não correspondia à vontade real deste, pelo que o contrato é nulo, além de, mais uma vez, o 1º R. não ter recebido qualquer quantia; assim tem a venda efectuada entre o 1º R. e o 3º R. de ser declarada nula, devendo o 3º R. ser condenado a reconhecer que a escritura de compra e venda é nula por erro na declaração, pois o negócio celebrado foi contrário à vontade real do 1º R., devendo ainda serem cancelados na Conservatória do Registo Predial todos os registos e inscrições a favor do 3º R., e, nessa sequência, declarar-se que os AA e o 1º R. têm o direito de haver para si tal prédio, devendo os mesmos serem declarados proprietários; mais alegaram que o 1º R. procedeu às aludidas vendas de imóveis que pertenciam à mencionada herança ilíquida e indivisa sem ter legitimidade para o efeito, pois os AA também são donos de parte ilíquida dos imóveis, por serem co-herdeiros na dita herança; a inscrição registral não correspondia à realidade jurídica, pois, os prédios estavam inscritos em nome do 1º R. na qualidade de casado, quando este já era viúvo desde 2002, por morte da sua mulher, que deixou como herdeiros o 1º R. e os AA; em causa já não estava o direito de propriedade sobre os prédios, mas o direito à meação e à herança ilíquida titulada pelo meeiro (1º R.) e herdeiros (AA); o 1º R. ao vender os prédios por si ou por procurador vendeu bens alheios, o que por si gera nulidade, não podendo tais contratos produzir quaisquer efeitos.

A 4ª R. contestou, invocando a ausência de legitimidade dos AA para arguirem a simulação, assim como invocou que o bem que lhe foi vendido foi herdado pelo 1º R. de seus pais, não sendo pertença da mencionada herança indivisa. Mais, negou a versão dos factos apresentada pelos AA, pugnando pela improcedência da acção, e requereu a condenação dos mesmos como litigantes de má-fé.

O 3º R., também contestou, invocando ser parte ilegítima por não ter sido demandado o seu cônjuge, invocando não serem da indicada herança indivisa os imóveis que lhe foram vendidos, antes foram herdados pelo 1º R. de seus pais, pelo que são bens próprios, bem como impugnou os factos alegados pelos AA.

Os AA replicaram, respondendo às excepções deduzidas pelos RR.

Foi admitida a intervenção principal provocada da esposa do 3º R., M (…)

Foi junta aos autos cópia da relação de bens autenticada apresentada por óbito da mãe dos AA.

*

Por se ter entendido que era possível conhecer de imediato das questões suscitadas, foi proferido saneador, em que se julgou:

- o 3º R. parte legítima passivamente.

- os AA parte ilegítima activamente, quanto aos pedidos indicados em 1) e 3) da p.i., e, como tal, os RR e chamada absolvidos da instância.

- os pedidos deduzidos pelos AA, indicados em 2), 4), 5), 6) e 7) da p. i., improcedentes, deles se absolvendo os RR e chamada.

 - absolver os AA de serem condenados como litigantes de má-fé.

*

2. Os AA recorreram, concluindo que:

(…)

3. Inexistem contra-alegações.

II – Factos Provados

Os factos provados são os que dimanam do relatório supra.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Nulidade da decisão.

- Ilegitimidade dos AA.

- Nulidade das vendas, por falta de legitimidade do 1º R. para as vender e respectivas consequências.

2. Defendem os AA que a sentença é nula, nos termos do art. 615º, nº 1, b) a d), do NCPC (suas conclusões de recurso 18. A 22.). 

Sobre a referida ilegitimidade, escreveu-se na decisão recorrida que:

“A ilegitimidade de alguma das partes é uma exceção dilatória, nos termos do artigo 577.º, al. e) do CPC e que, a verificar-se, obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa e conduz à absolvição da instância (cfr. artigo 576.º, n.º 2 do mesmo Código).

Trata-se de um pressuposto cuja verificação depende o conhecimento do mérito da causa (artigo 278.º, nº 1, al. d), do CPC) - que se não confunde com a denominada legitimidade substantiva, requisito da procedência do pedido - afere-se pelo interesse direto do autor em demandar e pelo interesse direto do réu em contradizer (artigo 30.º, nº 1, do mesmo diploma), sendo certo que, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor (n.º 3 do citado artigo 30.º). Assim, "ao apuramento da legitimidade interessa apenas a consideração do pedido e da causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram a última". (cfr. José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, pág. 52).

Efetivamente, "a relação controvertida, tal como a apresenta o autor e forma o conteúdo jurídico da pretensão deste é que é - em orientação jurídica - o objeto do processo, em face do qual (e, por isso, quase sempre determinável por simples exame da petição inicial) se aferem a legitimidade e os outros pressupostos que desse objeto dependam" (Castro Mendes, Manual de Processo Civil, II Vol., Coimbra, 1987, pág. 212).

(…)

Descendo agora ao caso que nos ocupa, quanto à invocação de um erro na declaração da vontade do pai dos autores, aqui 1.º réu e na arguição da simulação dos negócios pelo mesmo celebrados, os autores carecem de legitimidade processual (e substantiva) para a sua arguição visto existir norma que expressamente atribui ao autor da declaração e da simulação a legitimidade para a sua arguição. De facto, nos termos do artigo 30.º, n.º 3 do CPC, apenas na falta da indicação da lei em contrário é que há que indagar se as partes são consideradas titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor. O pai dos autores não foi declarado interdito e dados os factos invocados pelos autores o mesmo goza de plenos direitos, podendo demandar e ser demandado numa ação judicial, como aliás sucede in casu, assumindo a qualidade de réu. Como tal, e como decorre dos artigos 242.º, n.º 1, 246.º, 247.º, 254.º, 257.º e 287.º do CC, apenas o mesmo pode invocar qualquer eventual erro na sua declaração de vontade ou a simulação dos negócios e não os autores, sendo certo que, nem quanto à simulação, estes últimos a podem invocar visto não terem alegado que os negócios foram feitos com o intuito de os prejudicar. Não são os autores quem juridicamente pode fazer valer um erro na declaração da vontade ou a simulação dos negócios (apesar da sua ostensiva contradição) contra os réus, mas apenas o 1.º réu, sendo este o titular do interesse que as normas referidas salvaguardam.

Porquanto, e por os autores não terem legitimidade processual (e substantiva que aqui se não cuida), por existência de normas que regulam quem tem o interesse em demandar, invocando o erro na declaração de vontade e a simulação de negócios, como decorre do artigo 30.º, n.º 3, 1.ª parte do CPC e dos artigos 242.º, n.º 1, 246.º, 247.º, 254.º, 257.º e 287.º do CC, já que essa legitimidade apenas cabe ao 1.º réu, são os autores declarados parte ilegítima para a sua arguição e, como tal, os réus e chamada absolvidos da instância quanto aos pedidos indicados em 1) e 3) formulados pelos autores na petição inicial, o que se decide”.

E sobre as remanescentes questões, deixou-se dito na mesma decisão que:

“Ora, para dar resposta a tais questões importa tão só apreciar e decidir se os prédios vendidos pelo 1.º réu faziam ou não parte do acervo hereditário da sua falecida esposa.

E a resposta a essa questão é necessariamente negativa.

E isto porque, como evola do assento de casamento do 1.º réu, a fls. 169 dos autos, o mesmo casou com M (…) em 30/08/1969, sem convenção antenupcial. Porquanto, e como decorre do artigo 1717.º do CC, em vigor desde 01/06/1967 (cfr. artigo 2.º, n.º 1 do Decreto-Lei nº 47 344 de 25/11/1966), o casamento foi celebrado sob o regime da comunhão de adquiridos, por ser o regime de bens supletivo.

Assim, sendo os bens vendidos pelo 1.º réu, filho único (cfr. habilitação de herdeiros a fls. 100 a 102), bens que o mesmo herdou por óbito de seus pais, podia fazê-lo, sem a intervenção dos filhos, visto serem próprios seus, como decorre do artigo 1722.º, n.º 1, als. a) e b) do CC.

Note-se que, a invocação dos autores de que os bens eram da herança baseou-se no facto de o 1.º réu, seu pai, ser casado com a sua falecida mãe no regime da comunhão geral. No entanto, tal resultou infirmado pelo assento de casamento daqueles.

Destarte, urge concluir-se que os bens vendidos eram bens próprios do pai dos autores.

Nos termos do artigo 892.º, n.º 1 do CC, é nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar.

In casu, o 1.º réu era o proprietário dos bens e direito de compropriedade que foram transmitidos aos 3.º e 4.º réus, pelo que, não podem os negócios de compra e venda ser declaradas nulos com fundamento na venda de bens alheios.

Do exposto resulta que não pode reconhecer-se que os autores e o 1.º réu são donos e legítimos proprietários de parte ilíquida dos prédios id. no artigo 89.º da pi uma vez que esses prédios não faziam parte do acervo hereditário da mãe dos autores. E também não pode ser declarada a nulidade dos contratos de compra e venda celebrados e objeto destes autos por os bens transmitidos pelo 1.º réu não serem alheios, mas próprios do mesmo. Nessa sequência, sendo esses pedidos, quer o principal, quer o subsidiário, julgados totalmente improcedentes por falta de fundamento legal, são julgados igualmente improcedentes os pedidos de condenação dos réus a restituírem os prédios vendidos à herança livres e desocupados de pessoas e coisas e o cancelamento das inscrições e descrições dos prédios a favor dos 2.º, 3.º e 4.º réus na CRPredial da Batalha, bem como a anulação e o cancelamento do registo da respetiva propriedade a favor destes.

Em suma, são os pedidos dos autores julgados improcedentes”.

Segundo tal norma, a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão - b); os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível – c); ou o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento – d).

Ao juiz cabe especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão (art. 607º, nº 3, do NCPC). Há nulidade quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão. Não a constitui a mera deficiência de fundamentação (vide Lebre de Freitas, CPC Anotado, Vol. 2º, 2ª Ed., pág. 703).

Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para uma determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correta, a nulidade verifica-se (autor e ob. cit., pág. 704).

O tribunal deve conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e ainda todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art. 608º, nº 2, do NCPC). O não conhecimento de pedido, causa de pedir ou excepção, cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão, constitui nulidade (ibidem).

Ora, na decisão proferida o tribunal indicou os fundamentos factuais e jurídicos em que ancorou a sua decisão. Questão diferente é saber se tal fundamentação é suficiente ou se procedeu a uma correta subsunção dos factos ao direito, mas tal não influi na nulidade da sentença a que alude o citado 615º, nº 1, b).

Quanto à referida c), não se depreende em que se ancoram os recorrentes para invocar tal nulidade, não justificando tal arguição. De todo o modo, sempre se diga que os fundamentos não estão em oposição com a decisão, nem ocorre nenhuma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível. Referente à apontada d), o tribunal pronunciar-se sobre todos os pedidos e causas de pedir que lhe foram postas, sobre todas as questões que devia apreciar.

Inexistem, por isso, as arguidas nulidades.

3. No que respeita à questão da ilegitimidade, a decisão sob recurso não merece censura.

Os apelantes objectam (cfr. conclusões de recurso 6. a 8.), que como herdeiros legitimários podem arguir a simulação, desde que o negócio simulado os haja prejudicado, ainda que não se demonstre essa intenção, bem como podem arguir a anulabilidade dos negócios jurídicos celebrados pelo 1º R.

Sobre o erro na declaração de vontade e arguição da sua anulabilidade, sobre esta última argumentação dos recorrentes, já a decisão recorrida deu a devida resposta. Por sua vez, os apelantes limitam-se a dizer que têm legitimidade, mas sem mais acrescentar. Na verdade, não apresentam (no corpo das alegações) um único fundamento que seja para justificar essa sua conclusão, não passando a sua impugnação, a sua discordância, disso mesmo, de uma mera conclusão.

Quanto à argumentação apresentada sobre a simulação, defendem os recorrentes que o art. 242º, nº 2, do CC - que dispõe que a nulidade da simulação pode ser invocada pelos herdeiros legitimários em vida do autor da sucessão contra os negócios por ele simuladamente feitos com o intuito de os prejudicar – deve ser interpretado, como dispensando esta intenção, na esteira de Carvalho Fernandes (na nota II ao CC Anotado).

Essa interpretação não pode ser aceite face ao texto expresso da lei. E é a que é seguida pela maioria esmagadora da doutrina, acompanhada pela jurisprudência. Vejamos.

Sem querer pôr em causa a citação dos recorrentes reportada a Carvalho Fernandes (sendo certo que desconhecemos qualquer CC Anotado do mesmo), o que conseguimos saber relativamente à posição deste autor é diferente, pois o mesmo o que afirma (em Estudos Sobre A Simulação, 2004, págs. 95/97) é que as razões de fundo que estão subjacentes a tal normativo “se prendem com a particular natureza dos direitos sucessórios que lhe são reconhecidos…”, considerando que “a consistência prática do seu direito à legítima poderia ser posta em causa se não lhes fosse reconhecido o poder de, em vida do autor da sucessão, reagir contra actos simulados celebrados com a intenção de os prejudicar”. Afirmando, ainda, que o que está aqui em causa não é um direito realmente existente, mas “a expectativa jurídica que aos herdeiros legitimários a ordem jurídica reconhece, em vista da tutela preventiva dos interesses que a atribuição da quota legitimária visa assegurar. Por isso, estes terceiros só são admitidos a intervir nos actos simulados do autor da sucessão, em vida deste, quando eles forem praticados com a intenção de os prejudicar. É uma excepção ao princípio da irrelevância da distinção entre a simulação inocente e fraudulenta, neste domínio”. Esclarecendo, ainda, que não é exigido um prejuízo efectivo, o que, de resto, em vida do autor da sucessão seria difícil, senão impossível, de demonstrar (em nota de rodapé 60). Portanto, posição aparentemente bem diferente do que a invocada pelos apelantes.

Mas, ainda, que assim não seja, e mesmo que se dê por boa a citação dos recorrentes, ainda assim a tal posição seria isolada na doutrina, pois, como dissemos, a esmagadora maioria vai em sentido contrário, defendendo ser necessária essa intenção.

Cite-se o Prof. Mota Pinto (em TG Direito Civil, 3ª Ed., pág. 482), que refere que a disposição referida (o nº 2 do art. 242º do CC) não deve ser aplicada por analogia à hipótese de o acto simulado, embora sendo fonte de graves prejuízos, não ter sido praticado com o intuito de lesar os legitimários.

O mesmo é defendido por Castro Mendes (em TG Direito Civil, Ed. da AAFDL, 1973, pág. 275), por Oliveira Ascensão (em TG Direito Civil, Vol. II, 2ª Ed., pág. 228). E por Capelo de Sousa D. sucessões, Vol. I, 3ª Ed., pág. 225) professando este que a simulação pode ter lugar apenas com o intuito de enganar sem que se vise prejudicar (animus decipiendi) ou pode ser fraudulenta, em que há o intuito de prejudicar terceiros (animus nocendi), só esta última sendo relevante no que toca à legitimidade dos sucessíveis legitimários. Sendo que por outro lado, se exige um intuito ou dolo de prejudicar especificamente os herdeiros legitimários (não bastando a mera culpa ou negligência).

Na jurisprudência, pode ver-se no mesmo sentido da exigência da intenção de prejudicar, o Ac. do STJ, de 17.4.2007, Proc. 07A702, e o Ac. da Rel. Lisboa, de 22.6.2010, Proc.1236/09.4TVLSB, ambos em www.dgsi.pt).

Nesta conformidade, o citado nº 2 do art. 242.º estabelece uma norma especial de legitimidade activa quanto aos herdeiros legitimários, mas restrita às situações em que o negócio simulado tenha sido feito com o intuito de os prejudicar, como decorre inequivocamente do texto legal.

Assim sendo, a legitimidade dos herdeiros legitimários terá de ser aferida em função do que o autor alegue na petição inicial, em particular quanto ao intuito dos contraentes em prejudicá-los, não necessitando que alegue a existência de um prejuízo efectivo.

Ora, como resulta da leitura da petição inicial, com relevo neste particular, e como já foi salientado na decisão recorrida, nada se alegou quanto à intenção de o 1º R. prejudicar os seus filhos AA, herdeiros legitimários.  
Nesta linha de entendimento, tal como vem configurada a pretensão, na petição inicial, os AA não se apresentam nela como titulares de um interesse que possa ser afectado por contrato celebrado com intuito de os prejudicar, daí que lhes faleça legitimidade para arguir a simulação, na qualidade de herdeiros legitimários, como foi bem decidido.

Não procede esta parte do recurso.

4. Relativamente à última questão posta pelos apelantes no seu recurso (conclusões 10. a 16.), não pode acompanhar-se a argumentação jurídica apresentada.

Efectivamente tal decisão, que transcrevemos, parte de um pressuposto incorrecto, cujo trecho vamos isolar: “Assim, sendo os bens vendidos pelo 1.º réu, filho único (cfr. habilitação de herdeiros a fls. 100 a 102), bens que o mesmo herdou por óbito de seus pais, podia fazê-lo, sem a intervenção dos filhos, visto serem próprios seus, como decorre do artigo 1722.º, n.º 1, als. a) e b) do CC.”.

Cabe agora perguntar, com que base é que se assevera que os bens vendidos eram próprios do 1º R. vendedor, por os ter herdado por óbito dos seus pais ?

Nada há nos autos que permita sustentar tal factualidade. Na realidade, a apontada habilitação de herdeiros não atesta isso, nem podia atestar, limitando-se a declarar que o 1º R. é o único herdeiro de seus pais, nada mais. Por outro lado, os RR alegaram tal circunstância fáctica, mas não a demonstraram por enquanto (podendo vir a prová-la). Por seu lado os AA alegaram que os bens eram da já referida herança indivisa (aberta por óbito de sua mãe e ex-esposa do 1º R.). E até juntaram aos autos cópia da relação de bens apresentada por óbito da ex-esposa e mãe dos AA (estando junta aos autos uma cópia certificada pela repartição de finanças, assinada pelo 1º R.) em que se declara que 3 dos 4 bens imóveis identificados na presente acção e objecto de posterior venda eram bens conjugais da comunhão geral.

Assim, sendo tal facto controvertido, e absolutamente relevante para decidir o mérito da causa, a decisão proferida no despacho saneador é prematura, pois decidiu sem prova suficiente, importando, por isso, submeter tal factualidade ao crivo probatório, a fim de permitir uma decisão conscienciosa de direito. Efectivamente o estado do processo não permitia conhecer de imediato, no despacho saneador, do mérito da causa, sem necessidade de mais provas, como se pressupõe no art. 595º, nº 1, b), do NCPC, pelo que se impõe a prossecução dos autos, com a consequente revogação do decidido.    

5. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) O art. 242º, nº 2, do CC, estabelece uma norma especial de legitimidade activa quanto aos herdeiros legitimários, impondo que nas situações em que o negócio simulado tenha sido celebrado em vida do autor da sucessão o mesmo tenha sido feito com o intuito ou dolo de os prejudicar; não se exigindo contudo a alegação da existência de um prejuízo efectivo;  

ii) Assim, a legitimidade dos herdeiros legitimários terá de ser aferida em função do que o autor alegue na petição inicial, respeitantemente ao intuito em prejudicá-los.

iii) Só é possível conhecer imediatamente do mérito da causa no despacho saneador se o estado do processo permitir a apreciação (total ou parcial) do ou dos pedidos, sem necessidade de mais provas; o que não se verifica quando factualidade essencial para decidir o mérito da causa é controvertida.

 

IV – Decisão

 

Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, e, em consequência:

- mantém-se a decisão recorrida, no que à ilegitimidade activa dos AA diz respeito, quanto aos pedidos indicados em 1) e 3) da p.i.

- revoga-se a decisão recorrida, relativamente aos pedidos deduzidos pelos AA, indicados em 2), 4), 5), 6) e 7) da p. i., ordenando a prossecução dos autos.

*

Custas a cargo dos AA, relativamente aos pedidos formulados sob 1) e 3), e pela parte vencida a final, relativamente aos demais pedidos.   

*

  Coimbra, 9.1.2017

  Moreira do Carmo ( Relator )

Fonte Ramos

Maria João Areias