Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1315/21.0T8FIG-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: RETENÇÃO ILÍCITA DE CRIANÇA
REGRESSO DA CRIANÇA
Data do Acordão: 06/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DA FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: CONVENÇÃO SOBRE OS ASPECTOS CIVIS DO RAPTO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS
Sumário: É objetivo da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em 25.10.1980 pela Conferência da Haia de Direito Internacional Privado e aprovada pelo Estado Português pelo Decreto do Governo n.º 33/83, de 11.5, contrariar o uso de meios de autotutela em matéria de exercício das responsabilidades parentais.
Decisão Texto Integral:

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:       

            I. Em 11.11.2021, o Ministério Público[1] veio propor a presente providência cautelar de entrega de menor, com vista ao regresso a Inglaterra da criança AA, nascida em .../.../2016, em ... - Inglaterra, e a residir na Rua ..., ..., ..., ..., alegando que a criança nasceu em Inglaterra, sendo filha de BB, solteiro, maior, residente em 16 ..., ... 5TT ..., ..., e de CC, residente na Rua ..., ..., ..., ..., que viviam em união de facto em ..., Inglaterra, onde a criança residia com os pais, atualmente separados.

            Alegou, ainda, nomeadamente: o progenitor autorizou a viagem de férias de verão da menor com a mãe, ficando marcado o regresso da criança a ... em 01.9.2021; a requerida decidiu ficar em Portugal, passando a residir com a filha menor em casa de sua mãe, não regressando a Inglaterra com a filha AA; o exercício das responsabilidades parentais relativamente à menor não se encontra regulado e a mãe pretendeu a sua regulação na ação a que este procedimento está apenso, sem que o pai tenha concordado com a regulação do exercício das responsabilidades parentais da criança em Portugal, pois pretende o regresso da criança a Inglaterra e que aí seja regulado o exercício das responsabilidades parentais, dado que a criança aí residiu até ao Verão deste ano, considerando existir uma situação de retenção ilícita da menor pela mãe; por sentença ainda não transitada em julgado, proferida no processo a que esta providência está apensa, foi declarada a incompetência internacional deste Juízo de Família e Menores ... para a regulação das responsabilidades parentais em Portugal; a retenção ilícita da criança, expressamente prevista nos art.ºs 3º, 4º e 5º, b), da Convenção de Haia de 1980, impõe que o tribunal adote procedimentos de urgência (cf. art.ºs 2º e 11º da CH80), com vista ao regresso da criança à sua residência habitual, tendo a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), autoridade central de Portugal, acionado um procedimento de mediação familiar, tendente a conseguir a reposição voluntária da criança, mas a mãe mostrou-se irredutível na sua decisão de não regressar com a criança ao ....

            Concluiu, pedindo que: a) Se designasse uma conferência de pais urgente, dispensando-se a audição da criança, atenta a sua idade e falta de maturidade; b) Se comunicasse o teor da decisão de regresso a formular, via urgente, à DGRSP - Autoridade Central de Portugal - e ao Serviço de Apoio Técnico aos Tribunais (SATT) da Segurança Social; c) Se determinasse a realização de quaisquer diligências tidas por adequadas e pertinentes, com a urgência que a situação aconselha, tendentes ao regresso da criança ao Estado da sua residência habitual – Inglaterra – sob os cuidados e responsabilidade da DGRSP, por forma a ser entregue ao pai; d) Se determinasse a imediata suspensão da ação de RERP (e prazos em curso), ao abrigo do art.º 16º da Convenção de Haia de 1980, designadamente o prazo de recurso.

            A dita ação de RERP, tal como o prazo de recurso, foram suspensos por decisão judicial, ao abrigo do art.º 16º da Convenção de Haia de 1980.[2]

            Tendo a requerida/progenitora invocado “haver erro na forma de processo”, por se ter seguido a tramitação prevista no art.º 28º do RGPTC (Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08.9), o Mm.º Juiz do Tribunal a quo julgou «improcedente a alegação da progenitora de que estaríamos perante uma excepção dilatória, nomeadamente a nulidade de todo o processo, indeferindo a absolvição dos requeridos face à instância processual, não havendo razão para aplicar ao caso o disposto nos artigos 576º a 578º do CPC» (despacho de 18.11.2021).[3]

            Na impossibilidade de acordo para estabelecimento de um regime de exercício das responsabilidades parentais, designou-se data para audição das testemunhas arroladas pelos pais.

            Foi indeferida a solicitação da progenitora de relatório escrito à Segurança Social, pois o Técnico que o subscreveria também foi ouvido em audiência de produção da prova.[4]

            Finalmente, por sentença de 28.12.2021, o Tribunal a quo decidiu: «(...) nos termos do art.º 13º, al. b), da Convenção de Haia de 1980, decide este Tribunal ordenar o regresso a Inglaterra da menor AA, nascida em .../.../2016, em ... - Inglaterra, filha de BB e de CC, que está retida ilicitamente em Portugal pela mãe, determinando que esta conduza a criança às instalações da Segurança Social na ..., dentro do período que medeia entre 29/12/2021 e 31/12/2021, em dia concreto a acordar, a fim de ser entregue ao pai, com o qual deverá regressar a Inglaterra, atendendo a que a mãe se recusa a tanto, ficando o pai encarregado de comprar a viagem de avião para transporte seu e da filha menor até Inglaterra, sem prejuízo do que vier a ser acordado ou decidido quanto ao reembolso dessa despesa e sem prejuízo da regulação do exercício das responsabilidades parentais que se venha a realizar oportunamente nesse país, com a brevidade possível.»[5]

Inconformada, a progenitora/requerida apelou formulando as seguintes conclusões:

            1ª - O presente processo deveria ter sido autuado como processo tutelar comum urgente, porque ao Tribunal é exigido que conheça de duas questões de mérito.

            2ª - Ao autuar o processo como providência cautelar, o Mm.º Juiz lesou os direitos da menor e da Recorrente, não permitindo que esta última exercesse o contraditório e que fossem realizadas todas as diligências probatórias necessárias para a boa decisão da causa.

            3ª - O Mm.º Juiz a quo devia ter ordenado a junção aos autos do relatório elaborado pelo Serviço de Apoio Técnico aos Tribunais (SATT), omitindo diligência probatória essencial à boa decisão da causa; devia ainda ser considerado na sua plenitude o depoimento do técnico do SATT, porquanto o seu depoimento resulta do cumprimento rigoroso do que lhe foi ordenado pelo Mm.º Juiz a quo.

            4ª - A sentença recorrida usa o Guia de Boas Práticas da Convenção de Haia de 1980 como norma legal, fonte imediata de Direito, o que viola os art.ºs 8º, 18º e 20º da Constituição da República Portuguesa (CRP), e os art.ºs 152º, n.º 1; art.º 154º, n.º 1 e art.º 607º, n.º 3, todos do Código de Processo Civil (CPC), sendo, por isso, nula.

            5ª - A sentença recorrida viola os art.ºs 1º, 28º e 67º do RGPTC; o art.º 986º, n.º 2 do CPC e os art.ºs 2º a 11º da Convenção de Haia de 1980, bem como o art.º 20º, n.º 1 da CRP ao não garantir o pleno acesso da Recorrente (e da menor) à Justiça o que constitui nulidade processual, nos termos do art.º 195º, n.º 1 do CPC.

            6ª - Existem assim, no presente processo, duas nulidades: uma reportada a todo o processo e constituindo excepção dilatória nos termos dos art.ºs 195º, n.º 1; art.º 576º, n.º 1; e art.º 577º, al. b), todos do CPC e que determina a anulação de todos os atos, uma vez que tem origem na petição inicial do MP e a outra nulidade ocorre na sentença, onde o dever de fundamentação é violado, bem como o princípio da legalidade, ao decidir-se com fundamento em norma que não tem força de lei ou equiparada (ou, mas rigorosamente, não constitui fonte imediata de Direito).

            7ª - Em consequência, deve ser julgada procedente, por provada a excepção dilatória de nulidade do processo por erro na forma do processo, e todo o processado ser declarado nulo e a sentença revogada, com as legais consequências.

            8ª - Mesmo que assim se não entenda, ocorreu, na sentença recorrida, errada ponderação dos depoimentos das testemunhas DD; EE e do Sr. Técnico do SATT, Dr. FF, que deveriam ter sido considerados na sua plenitude, na parte em que constituem depoimento de factos que as testemunhas conheceram, acompanhados das respetivas razões de ciência, cumprindo assim com os ditames legais.

            9ª - Considerados estes depoimentos, bem como a demais prova produzida, deve ser alterada a resposta ao ponto 5. dos factos provados que deve passar a ser:

            5. A progenitora decidiu ficar em Portugal, passando a residir com a filha menor em casa da sua mãe (avó materna da criança), na ..., deste concelho, por entender viver uma situação de violência doméstica e não ter a criança condições de segurança para continuar a residir com o pai.

            10ª - Pelos mesmos motivos expostos, deve a al. e) dos factos não provados merecer a resposta de provado, passando a constar dos factos provados que “A união de facto entre pai e mãe terminou há mais de um ano.”.

            11ª - O ponto 10. dos factos provados, merecer a seguinte resposta, por não existir demonstração que o pai pretende a regulação das responsabilidades parentais:

            10. (O pai) Pretende o regresso da criança a Inglaterra, dado que a criança aí residiu até ao Verão deste ano, considerando existir uma situação de retenção ilícita da menor pela mãe.

            12ª - Ponderada integralmente a prova efetivamente produzida, ao ponto 14. dos factos provados deveria ser dada a resposta: 14. Existem factos reveladores de agressões psicológicas do progenitor à menor.

            13ª - “Apoio familiar de retaguarda” é o que consegue garantir a proteção da menor em meio natural de vida, com um modelo positivo, o que implica que em caso de emergência, estando o progenitor sozinho, não é razoável caracterizar pessoas que vivem a três horas de distância, com empregos e vidas familiares, como apoio familiar de retaguarda, que possam socorrer a menor em caso de urgente impedimento do Progenitor.

            14ª - Em consequência, o ponto 23. dos factos provados merece a resposta de “Não provado”.

            15ª - Os pontos 35. e 38. dos factos provados são irrelevantes para a boa decisão da causa pelo que devem ser eliminados.

            16ª - Não existe uma retenção ilícita, por ter sido instaurado o processo de RERP quando o Progenitor ainda havia autorizado a menor a estar em Portugal.

            17ª - Mesmo que assim se não entenda, “residência habitual” é o local onde estão todas as principais conexões afetivas, familiares e sociais da menor.

            18ª - Essas conexões da menor estão todas com a mãe, pelo que a residência habitual da menor é em Portugal, mais precisamente na ..., na ..., nos termos do art.º 5º, n.º 1 da Convenção de Haia de 1996 e do art.º 4º da Convenção de Haia de 1980, por ser esta a solução que melhor acautela os interesses daquela.

            19ª - Sendo a residência da mãe e a residência da menor as mesmas, como devem ser entendidas, de novo, não estamos perante qualquer retenção ilícita, não se preenchendo o pressuposto do art.º 3º da Convenção de Haia de 1980, violando a sentença recorrida aquela norma, bem como as referidas na conclusão anterior.

            20ª - Mesmo que ainda assim se não entenda, perante a matéria de facto provada, resulta que o eventual regresso da menor, desacompanhada da Recorrente, colocá-la-á a viver exclusivamente com o pai, sem qualquer suporte (familiar ou outro), sujeita às agressões descritas.

            21ª - A ser decretado o regresso da menor a Inglaterra, a menor ficaria sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável, em risco grave, preenchendo assim os requisitos do art.º 13º, n.º 1, al. b) da Convenção de Haia de 1980.

            22ª - Ao decidir como decidiu, a sentença recorrida violou também a norma citada na conclusão anterior.

            23ª - Deve, em consequência, ser recusado o regresso, devendo a sentença recorrida ser revogada e ser proferido Acórdão que recuse o regresso, nos termos expostos.

            Remata dizendo que: a) deve ser revogada a sentença recorrida e declarada a nulidade de todo o processo, por erro de forma, b) caso assim se não entenda, deve sempre ser revogado a sentença, determinando-se que a residência habitual da menor é em Portugal ou, subsidiariamente, recusado o regresso da menor por verificação dos pressupostos do art.º 13º, n.º 1, al. b) da Convenção de Haia de 1980.

            O Exmo. Magistrado do M.º Público respondeu concluindo pela improcedência do recurso.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir: a) erro na forma de processo/ nulidade do despacho de 18.11.2021, que determinou a manutenção da tramitação do processo como «providência cautelar»[6]; b) impugnação da decisão sobre a matéria de facto (erro na apreciação da prova); c) decisão de mérito (que ordenou o regresso da criança a Inglaterra), cuja modificação depende do sucesso daquela impugnação.


*

            II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:[7]

            1) CC, solteira, maior, residente na Rua ..., ..., ..., e BB, solteiro, maior, residente em 16 ..., ... 5TT ..., ..., são progenitores da criança AA, nascida em .../.../2016 em ..., ..., todos de nacionalidade portuguesa.

            2) Os progenitores viviam em união de facto em ..., Inglaterra, onde a criança residia com os pais.

            3) O progenitor autorizou a viagem de férias de Verão da menor com a mãe, por via aérea, saindo de ... em 25.7.2021 com destino ao ... e ficando marcado o regresso da criança a ... em 01.9.2021, em viagem do ... para ....

            4) A criança foi inscrita pelo pai numa escola primária em ..., Inglaterra.

            5) Terminada a união de facto, a progenitora decidiu ficar em Portugal, passando a residir com a filha menor em casa da sua mãe (avó materna da criança), na ..., deste concelho.

            6) Não regressou a Inglaterra com a filha AA.

            7) E inscreveu a menor num jardim-escola na área da sua atual residência.

            8) O exercício das responsabilidades parentais relativamente à menor AA não se encontra regulado, nem em Inglaterra, nem em Portugal, e a mãe pretendeu a sua regulação neste ....

            9) O pai não concorda com a regulação do exercício das responsabilidades parentais da criança neste Juízo.

            10) Pretende o regresso da criança a Inglaterra e que aí seja regulado o exercício das responsabilidades parentais, dado que a criança aí residiu até ao Verão deste ano, considerando existir uma situação de retenção ilícita da menor pela mãe.

            11) Na ação de RERP aqui proposta pela mãe foi declarada a incompetência internacional deste Juízo de Família e Menores ... para a apreciar, por sentença ainda não transitada em julgado, com base na Convenção de Haia de 19.10.1996, considerando-se conter normas que apontam para a competência do tribunal da residência habitual da criança para conhecer da ação.[8]

            12) Tal ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais proposta pela progenitora foi declarada suspensa, tal como o prazo de recurso quanto à mencionada decisão de incompetência internacional deste Juízo, em cumprimento do disposto no art.º 16º da Convenção de Haia de 1980.

            13) Não há notícia de existir processo por crime de violência doméstica em Inglaterra.

            14) Não houve agressões de qualquer dos pais à criança.

            15) Quando os pais discutiam, a menor escondia-se debaixo da mesa e atrás dos brinquedos, lembrando-se do tom de voz do pai a gritar com a mãe.

            16) Os progenitores nunca entraram em conflito frente às pessoas que os visitavam em sua casa.

            17) Durante os períodos de férias, por duas vezes, da avó materna da criança em casa dos pais em Inglaterra, em que estava 8 a 15 dias com eles, o pai tinha auscultadores colocados nos ouvidos à refeição, para não ouvir a mãe e a avó materna.

            18) Nessas ocasiões dizia à filha: «se não comeres não há chocolate, ou vais para a cama».

            19) Quando, nessas férias da avó, o pai ficava com a filha, estando mãe às compras, o pai esteve «sempre» a chamar pela mãe.

            20) O pai não queria que a companheira viesse até Portugal para estar com a avó materna.

            21) A casa onde a família residia em ..., Inglaterra, dispõe de quatro quartos, jardins frontal e traseiro.

            22) O progenitor aufere mensalmente cerca de 2 500 libras, após descontos, e espera ser aumentado em breve na sua retribuição laboral.

            23) Como apoio familiar de retaguarda tem a sua irmã e cunhado a residir em ..., a três horas (ou três horas e meia) de viagem (podendo essas viagens ser mais rápidas através de comboio ou avião), tendo o pai também em ... os amigos GG e mulher HH, arquitetos, bem como amigos em ..., que o podem ajudar, caso necessário.

            24) Se precisar de sair para trabalhar, a criança irá para a escola e poderá ficar em horários extracurriculares ou em ocupação de tempos livres (ATL) até o pai a recolher, sendo que o pai tem flexibilidade de horário e possibilidade de ficar em teletrabalho.

            25) Nas suas frequentes visitas a casa dos pais, a irmã e o cunhado do progenitor viram-no dar ajuda à criança para comer.

            26) A AA expressava-se em inglês, quando das visitas dos tios ou dos amigos GG e mulher HH e frente aos tios falava-lhes pouco em português.

            27) Na presença das visitas a criança demonstrava igual ligação a pai e mãe, todavia, interagindo mais com a mãe do que com o pai na presença da amiga II.

            28) A AA era uma criança alegre e feliz, que brincava com a filha, de idade idêntica, dos amigos GG e HH, durante as visitas destes.

            29) Por vezes houve situações de os progenitores entrarem em «stress» normal com a criança (não entre si), frente às visitas.

            30) Não são conhecidos consumos aditivos a qualquer dos progenitores, tanto de álcool como de estupefacientes.

            31) A mãe trabalhava só em casa, devido à sua profissão, queixando-se a HH de que o companheiro não lhe dava apoio em tarefas domésticas e a II de que companheiro era coercivo e controlador.

            32) O pai era mais rigoroso, para si a criança teria de crescer mais rápido e mais independente do que na perspetiva da mãe, protetora e apegada à criança, mas quando saíam de casa, contratavam uma «baby-sitter» para tomar conta da filha.

            33) A situação pandémica em Inglaterra é semelhante à de outros países da Europa.

            34) A progenitora é coordenadora comercial, auferindo cerca de 1 500 libras mensais através de entidade patronal sediada no ..., para a qual trabalha há muitos anos, estando em teletrabalho.

            35) A avó materna iria com a progenitora para Inglaterra e apoiaria monetariamente a mãe para ficar ali com a criança a aguardar a decisão sobre a guarda, mas a progenitora não o quer.

            36) A mãe da criança não está disponível para levar a criança a Inglaterra, caso seja ordenado o regresso da menor, porque tem receio quanto à segurança da criança e de procedimentos judiciais/policiais que lhe possam ser movidos pelas autoridades inglesas, referindo que está sinalizada pelas autoridades inglesas e, caso entre em Inglaterra, ficará aí retida.

            37) O progenitor está disponível para vir a Portugal buscar a criança, caso seja esse o caso.

            38) Virá a Portugal entre os dias 23.12.2021 e 03.01.2022, pretendendo conviver com a criança nesse período, ao que a mãe se opõe, alegando receio de que o pai possa aproveitar a ocasião para levar consigo a criança de Portugal.

            2. E deu como não provado:

            a) O regresso da menor a Portugal, concomitantemente com o regresso da mãe, corresponde àquela que foi sempre a vontade dos seus pais.

            b) Os pais sempre tiveram como plano de vida o regresso definitivo a Portugal.

            c) O regresso da mãe a Portugal deveu-se ao fim da relação com o pai da menor.

            d) A residência habitual da menor é em Portugal.

            e) A união de facto entre pai e mãe terminou há mais de um ano.

            3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            Os processos tutelares cíveis têm a natureza de jurisdição voluntária (art.º 12º, do RGPTC).

            Como tal, nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, tendo a liberdade de se subtrair a esse enquadramento rígido e de proferir a decisão que lhe pareça mais equitativa (mais conveniente e oportuna), a que melhor serve os interesses em causa; salvaguardados os efeitos já produzidos, será sempre possível a alteração de tais resoluções com fundamento em circunstâncias supervenientes[9] (cf. os art.ºs 987º e 988º, n.º 1, do CPC); o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes - só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias (art.º 986º, n.º 2 do CPC).

            4. Do RGPTC importa destacar, ainda, entre outras, as seguintes disposições:

            - O Regime Geral do Processo Tutelar Cível regula o processo aplicável às providências tutelares cíveis e respetivos incidentes (art.º 1º).

            - Para efeitos do RGPTC, constituem providências tutelares cíveis, designadamente: a regulação do exercício das responsabilidades parentais e o conhecimento das questões a este respeitantes; a entrega judicial de criança [art.º 3º, alíneas c) e e)].

            - Os processos tutelares cíveis regulados no RGPTC regem-se pelos princípios orientadores de intervenção estabelecidos na lei de proteção de crianças e jovens em perigo e ainda pelos seguintes: Simplificação instrutória e oralidade - a instrução do processo recorre preferencialmente a formas e a atos processuais simplificados [art.º 4º, n.º 1, alínea a)].

            - Compete especialmente ao Ministério Público instruir e decidir os processos de averiguação oficiosa, representar as crianças em juízo, intentando ações em seu nome, requerendo ações de regulação e a defesa dos seus direitos e usando de quaisquer meios judiciais necessários à defesa dos seus direitos e superior interesse, sem prejuízo das demais funções que estão atribuídas por lei (art.º 17º, n.º 2).

            - Em qualquer estado da causa e sempre que o entenda conveniente, a requerimento ou oficiosamente, o tribunal pode decidir provisoriamente questões que devam ser apreciadas a final, bem como ordenar as diligências que se tornem indispensáveis para assegurar a execução efetiva da decisão (art.º 28º, n.º 1). Para efeitos do disposto no presente artigo, o tribunal procede às averiguações sumárias que tiver por convenientes (n.º 3).

            - O disposto nos artigos anteriores [relativos à “regulação do exercício das responsabilidades parentais e resolução de questões conexas”] é aplicável à regulação do exercício das responsabilidades parentais de filhos de cônjuges separados de facto, de filhos de progenitores não unidos pelo matrimónio e ainda de crianças apadrinhadas civilmente quando os padrinhos cessem a vida em comum (art.º 43º, n.º 1).         

            5. A Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída na Haia em 25.10.1980, aprovada pelo Decreto do Governo Português n.º 33/83, de 11.5, - afirmando os Estados signatários a sua firme convicção de que os interesses da criança são de primordial importância em todas as questões relativas à sua custódia; e desejando proteger a criança, no plano internacional, dos efeitos prejudiciais resultantes de uma mudança de domicílio ou de uma retenção ilícitas e estabelecer as formas que garantam o regresso imediato da criança ao Estado da sua residência habitual, bem como assegurar a proteção do direito de visita - dispõe, nomeadamente:

            - A presente Convenção tem por objecto: a) Assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente; b) Fazer respeitar de maneira efetiva nos outros Estados Contratantes os direitos de custódia e de visita existentes num Estado Contratante (art.º 1º).  

- Os Estados Contratantes deverão tomar todas as medidas convenientes que visem assegurar, nos respetivos territórios, a concretização dos objetivos da Convenção. Para o efeito, deverão recorrer a procedimentos de urgência (art.º 2º).

- A deslocação ou a retenção de uma criança é considerada ilícita quando: a) Tenha sido efetivada em violação de um direito de custódia atribuído a uma pessoa ou a uma instituição ou a qualquer outro organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção; e b) Este direito estiver a ser exercido de maneira efetiva, individualmente ou em conjunto, no momento da transferência ou da retenção, ou o devesse estar se tais acontecimentos não tivessem ocorrido. O direito de custódia referido na alínea a) pode designadamente resultar quer de uma atribuição de pleno direito, quer de uma decisão judicial ou administrativa, quer de um acordo vigente segundo o direito deste Estado (art.º 3º).

- A Convenção aplica-se a qualquer criança com residência habitual num Estado Contratante, imediatamente antes da violação do direito de custódia ou de visita (art.º 4º, 1ª parte).

            - Nos termos da presente Convenção: a) O «direito de custódia» inclui o direito relativo aos cuidados devidos à criança como pessoa, e, em particular, o direito de decidir sobre o lugar da sua residência; b) O «direito de visita» compreende o direito de levar uma criança, por um período limitado de tempo, para um lugar diferente daquele onde ela habitualmente reside (art.º 5º).

- Cada Estado Contratante designará uma autoridade central encarregada de dar cumprimento às obrigações que lhe são impostas pela presente Convenção (art.º 6º, 1ª parte).

            - As autoridades centrais devem cooperar entre si e promover a colaboração entre as autoridades competentes dos seus respetivos Estados, por forma a assegurar o regresso imediato das crianças e a realizar os outros objetivos da presente Convenção (art.º 7º, 1ª parte). Em particular, deverão tomar, quer diretamente, quer através de um intermediário, todas as medidas apropriadas para: a) Localizar uma criança deslocada ou retida ilicitamente; b) Evitar novos danos à criança, ou prejuízos às partes interessadas, tomando ou fazendo tomar medidas provisórias; c) Assegurar a reposição voluntária da criança ou facilitar uma solução amigável; f) Introduzir ou favorecer a abertura de um procedimento judicial ou administrativo que vise o regresso da criança ou, concretamente, que permita a organização ou o exercício efetivo do direito de visita; h) Assegurar no plano administrativo, se necessário e oportuno, o regresso sem perigo da criança  (2ª parte do mesmo art.º).

- Qualquer pessoa, instituição ou organismo que julgue que uma criança tenha sido deslocada ou retirada em violação de um direito de custódia pode participar o facto à autoridade central da residência habitual da criança ou à autoridade central de qualquer outro Estado Contratante, para que lhe seja prestada assistência por forma a assegurar o regresso da criança (art.º 8º, 1ª parte). Pedido que deverá conter, designadamente, a) Informação sobre a identidade do requerente, da criança e da pessoa a quem se atribua a deslocação ou a retenção da criança; b) Se possível, a data de nascimento da criança (2ª parte do mesmo art.º).

            - A autoridade central do Estado onde a criança se encontrar deverá tomar ou mandar tomar todas as medidas apropriadas para assegurar a reposição voluntária da mesma (art.º 10º).

- As autoridades judiciais ou administrativas dos Estados Contratantes deverão adotar procedimentos de urgência com vista ao regresso da criança. Se a respetiva autoridade judicial ou administrativa não tiver tomado uma decisão no prazo de 6 semanas a contar da data da participação, o requerente ou a autoridade central do Estado requerido, por sua própria iniciativa ou a solicitação da autoridade central do Estado requerente, pode pedir uma declaração sobre as razões da demora. (art.º 11º, 1ª parte).

 - Quando uma criança tenha sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do art.º 3º e tiver decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da deslocação ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respetiva deverá ordenar o regresso imediato da criança (art.º 12º, 1º parágrafo). A autoridade judicial ou administrativa respetiva, mesmo após a expiração do período de 1 ano referido no parágrafo anterior, deve ordenar também o regresso da criança, salvo se for provado que a criança já se encontra integrada no seu novo ambiente (2º parágrafo).

            - Sem prejuízo das disposições contidas no artigo anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o regresso da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se opuser ao seu regresso provar: a) Que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efetivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou b) Que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável. A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar-se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto (art.º 13º).

            - Depois de terem sido informadas da transferência ilícita ou da retenção de uma criança no contexto do artigo 3º, as autoridades judiciais ou administrativas do Estado Contratante para onde a criança tenha sido levada ou onde esteja retida não poderão tomar decisões sobre o fundo do direito de custódia sem que seja provado não estarem reunidas as condições previstas na presente Convenção para regresso da criança, ou sem que tiver decorrido um período razoável de tempo sem que haja sido apresentado qualquer requerimento em aplicação do prescrito pela presente Convenção (art.º 16º).

- Qualquer decisão sobre o regresso da criança, tomada ao abrigo da presente Convenção, não afeta os fundamentos do direito de custódia (art.º 19º).

            - O regresso da criança de acordo com as disposições contidas no artigo 12º poderá ser recusado quando não for consentâneo com os princípios fundamentais do Estado requerido relativos à proteção dos direitos do homem e das liberdades fundamentais (art.º 20º).

- Todo o pedido apresentado às autoridades centrais ou, diretamente, às autoridades judiciais ou administrativas de um Estado Contratante ao abrigo da presente Convenção, bem como qualquer documento ou informação a ele anexado ou que seja fornecido por uma autoridade central, deverão ser recebidos pelos tribunais ou pelas autoridades administrativas dos Estados Contratantes (art.º 30º).             - A presente Convenção não impedirá que outro instrumento internacional vigore entre o Estado de origem e o Estado requerido, nem que o direito não convencional do Estado requerido seja invocado para obter o regresso de uma criança que tenha sido ilicitamente deslocada ou retida, ou para organizar o direito de visita (art.º 34º, 2ª parte).

            6. Como noutras situações com alguma similitude, o presente caso suscita a definição dos poderes-deveres dos progenitores em relação à criança, mas também a tomada de diligências inerentes a uma situação de rapto internacional com a intervenção das Autoridades Centrais dos Estados envolvidos, independentemente da necessidade da eventual adoção de mecanismos de gestão e adequação processual.

            Ademais, estando-se no campo dos processos de jurisdição voluntária, regulados nos art.ºs 986º e seguintes do CPC (cf. art.º 12º do RGPTC), mais se reclama uma actuação sábia e ponderada dos juízes, sabendo-se que não têm aqui a missão de resolver uma típica questão de direito, mas, antes, a de encontrar, dentro das várias soluções possíveis, a melhor resposta para um problema.[10]

            7. Atenta a bem definida finalidade dos autos, não se afigura que deva ser dada especial relevância a uma eventual (e aparente) diversidade no plano adjetivo ou, porventura, meramente “designativo” quanto à forma do processo.[11]

            Tratando-se de implementar os necessários procedimentos tendentes à entrega da criança, com urgência, despoletada pelo rapto da menor perpetrada pela requerida[12], releva, sobremaneira, o desiderato de dar a melhor resposta ao problema levado a Tribunal, norteados pelo indeclinável e primeiro princípio do respeito pelo interesse da menor (com vista ao seu desenvolvimento integral e harmonioso); importa a defesa imediata dos interesses e dos direitos das crianças.

            Só assim se poderá executar o objetivo de combater o recurso ao rapto como forma de criar uma situação de facto contrária ao regime do exercício das responsabilidades parentais (cf. art.ºs 1901º e seguintes do CC), em defesa do superior interesse da criança e de acordo com os princípios específicos da jurisdição voluntária.[13]

            8. Ainda que se trate de problemática não isenta de dificuldades, afigura-se, ante o explanado em II. 3. a II. 7., supra, que não será de acolher o vertido nas primeiras sete “conclusões” da alegação de recurso (cf. ponto I., supra).

            Se o presente processo podia ser autuado como ação tutelar cível (comum ou especial) com natureza urgente[14], releva, em qualquer caso, a circunstância de a requerida ter exercitado adequadamente o contraditório ao longo de todo o procedimento de entrega da menor, vendo promovidas e efetivadas todas as diligências probatórias tidas por necessárias e convenientes à boa decisão do procedimento, naturalmente, compatíveis com o seu carácter urgente[15] (v. g., estão claramente explicitadas e evidenciadas, nos autos, as razões que levaram a prescindir da junção de um relatório elaborado pelo SATT[16]).

            Por outro lado, sem quebra do respeito sempre devido por opinião em contrário, não se vê que o Mm.º Juiz do Tribunal a quo tenha dado ao “Guia de Boas Práticas da Convenção de Haia de 1980” relevo diverso do que lhe é inerente (mero “Guia de Boas Práticas”...).[17]

            9. Temos, pois, por correto o entendimento expresso pelo Mm.º Juiz do Tribunal a quo na sentença sob censura (e no dito despacho de 18.11.2021), mormente quando diz: «Tratando-se de uma providência urgente de natureza tutelar cível[18], em que o julgador tem de decidir, a priori, sobre o regresso da criança a Inglaterra, mas pode excecionalmente proferir uma decisão de retenção da criança em Portugal, não ordenando imediatamente o seu regresso ao país da residência habitual [art.º 13º, b), da Convenção de Haia de 1980], a mãe não pode transformar a providência tutelar urgente num processo cível de complexa produção de prova, não se aceitando que seja protelada a decisão do caso e que a mãe pretenda usar o processo em defesa dos seus interesses individuais, pois importa defender o superior interesse da criança num procedimento urgente de jurisdição voluntária (art.º 28º, n.º 3, do RGPTC: o tribunal procede às averiguações sumárias que tiver por convenientes; art.º 12º do RGPTC e art.º 986º, n.º 2, do CPC: só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias). / A criança não deve ficar aqui retida, sem que se vislumbre que tal situação anómala corresponda ao seu superior interesse, pois a menina não convive com o pai há vários meses, devido à atitude unilateral da progenitora de a reter a viver consigo em Portugal. / Atente a progenitora que o Tribunal deve proferir a sua decisão no prazo de seis semanas a contar da data de apresentação do pedido, salvo em caso de circunstâncias extraordinárias que o impossibilitem, usando o procedimento mais expedito previsto na legislação nacional (art.ºs 2º e 11º da Convenção de Haia de 1980).»

            Não existem, assim, quaisquer nulidades processuais ou da decisão recorrida - não ocorre a invocada “excepção dilatória de nulidade do processo por erro na forma do processo”, nem o processado deverá “ser declarado nulo e a sentença revogada” (como melhor se verá adiante).

            10. a) A requerida/recorrente, no que respeita à matéria de facto dada como provada, afirma que os factos 5), 10) e 14) deviam ter as respostas indicadas nas “conclusões 9ª, 11ª e 12ª” (ponto I., supra), o ponto 23) a resposta de “não provado” e os pontos 35) e 38) são irrelevantes para a boa decisão da causa pelo que devem ser eliminados (“conclusões 14ª e 15ª”); diz, ainda, que a matéria das alíneas c), d) e e) dos factos tidos como não provados, também  incorretamente julgada, deve integrar a factualidade provada na forma que indica.

Invoca, sobretudo, os depoimentos de três testemunhas, cuidando que da eventual (e pretendida) modificação da decisão de facto, principalmente, dos pontos de facto 5), 10) 14) e 23) poderá resultar diferente desfecho dos autos.

b) Esta Relação procedeu à audição integral da prova pessoal produzida nos autos, conjugando-a com a prova documental.

c) Pese embora a maior dificuldade na apreciação da prova (pessoal) em 2ª instância, designadamente, em razão da não efetivação do princípio da imediação[19], afigura-se, no entanto, que, no caso em análise, tal não obsta a que se verifique se os depoimentos e as declarações (dos progenitores) foram apreciados de forma razoável e adequada.

            Na reapreciação do material probatório disponível por referência à factualidade em causa, releva igualmente o entendimento de que a afirmação da prova de um certo facto representa sempre o resultado da formulação de um juízo humano e, uma vez que este jamais pode basear-se numa absoluta certeza, o sistema jurídico basta-se com a verificação de uma situação que, de acordo com a natureza dos factos e/ou dos meios de prova, permita ao tribunal a formação da convicção assente em padrões de probabilidade[20], capaz de afastar a situação de dúvida razoável.

d) Da fundamentação probatória apresentada pelo Mm.º Juiz do Tribunal a quo destacamos os seguintes excertos (atento o objeto do recurso):

            «(...) Os factos n.ºs 5 e 6 decorrem do endereço actual de mãe e filha indicado nos autos e das declarações dos pais na conferência do processo de R.E.R.P. e na sua audição em acta de 17/11/2021. / (...) / Os pontos n.ºs 8, 9 e 10 resultam das declarações dos pais na acta da conferência do processo de R.E.R.P. e da sua audição em acta de 17/11/2021. / (...) / Relativamente aos pontos n.ºs ...3 e 14, decorrem das declarações dos pais no processo de R.E.R.P. e na acta de 17/11/2021, referindo-se as testemunhas também ao ponto 14. / (...) O Técnico quis expressar a posição e as mágoas da mãe e da avó materna quando foi ouvido, mas tal não lhe foi permitido, porquanto em vez de produzir um esclarecimento técnico, seria usado pela progenitora na audiência como testemunha de outiva, papel que não cabe desempenhar a um Técnico da Segurança Social, que foi admitido a prestar os seus esclarecimentos baseado no que ouviu à própria criança e em mais elementos objectivos por si percepcionados quando avaliou a situação da menor e da sua família materna, constatando-se que não ouviu o pai em contraditório, como aquele esclareceu na sua audição, o que poderia ter feito por via telefónica ou por algum meio de comunicação à distância por voz e imagem, para o confrontar com a imagem extremamente negativa do progenitor que lhe foi transmitida pela mãe e pela avó materna. / (...) o Técnico só ouviu familiares do lado materno, não tendo contactado o pai ou os avós paternos por via telefónica ou qualquer outro meio de comunicação à distância. Para apreciar a interacção da criança com o progenitor e avós paternos, teria de os ter ouvido e não confiar apenas nas declarações da mãe e da avó materna, tendo a mãe interesse próprio na causa e a avó o mesmo entendimento da progenitora. (...) / No que respeita aos pontos n.ºs 17 a 20 e 35, resultam do que disse a avó materna na sessão de produção de prova, havendo necessidade de «filtrar» os depoimentos dessa avó e da prima da progenitora, DD, que se revelaram hostis ao progenitor, contrariamente às testemunhas JJ, cunhado do pai, GG, HH e II, amigos dos pais, que produziram depoimentos descontraídos, sem mostrar acinte por qualquer dos progenitores. (...) Contrariamente, a avó materna e a prima da progenitora, apresentando «argumentos de autoridade», a primeira por ter sido professora e vereadora no Município de ... e a segunda por ser médica neurologista, esmeraram-se em denegrir o pai, dizendo a avó da criança que ele é negligente, manipulador, impaciente com a criança, tendo com ela atitudes que a avó considera incorrectas, ao passo que a prima da mãe entende que a criança, se regressar, fica em risco de ser negligenciada pelo pai, quer em alimentação, quer em higiene, com prejuízo emocional e psíquico grave para a menina. / Ora, as outras testemunhas não mostraram tal retrato do pai ao Tribunal. Mesmo a testemunha II, arrolada pela mãe, disse que a relação entre pai e filha era boa, não obstante nunca visse muita interacção da criança com o pai e sim com a mãe. / (...) / Os perigos ou riscos intuídos pela prima deixariam de se vislumbrar ficando a criança em Inglaterra com o apoio económico e pessoal da avó materna e também não se provaram visto o que disseram as outras testemunhas ouvidas, visitas de casa dos pais. / (...) / Os pontos n.ºs 21 a 24 resultam do que disse o pai em Tribunal (...). / Os factos não provados resultam da prova produzida acima indicada, com relevo para as declarações dos pais nestes autos. Foi a própria mãe a esclarecer que quando veio para Portugal com a criança não tinha o intuito de aqui permanecer e o pai disse ter consentido no voo de ida e regresso de mãe e filha nas férias de Verão deste ano, verificando-se que a progenitora não quis regressar a Inglaterra com a filha. / A separação do casal ocorreu este ano, como foi admitido pelos pais ao serem ouvidos e é referido pela Autoridade Central inglesa no pedido que nos foi dirigido. / A demais matéria alegada pela mãe perante a D.G.R.S.P. poderá relevar para a regulação do exercício das responsabilidades parentais, por se referir à situação de conflito entre os pais, mas não releva para a apreciação da excepção quanto ao regresso da criança a Inglaterra, prevista na al. b) do art.º 13.º, da Convenção de Haia de 25/10/1980, relativa à existência de risco grave ou de situação intolerável para a criança, em caso do seu regresso a Inglaterra, quer na companhia do pai, quer da mãe. / De todo o modo, tal matéria não se provou. Não há processo por violência doméstica e a própria mãe nunca se apercebeu de estar sujeita a tal situação enquanto viveu em Inglaterra, como disse ao ser ouvida. / É insuportável, para os fins deste processo urgente, que se pretendam esmiuçar pormenores de prova somente do interesse individual da progenitora, apenas relevantes para fins de R.E.R.P., quando é premente dar resposta rápida ao caso, no melhor interesse da criança, respeitando-se tanto quanto possível o prazo legal de seis semanas para prolação da decisão final. (...)»

e) A descrita análise crítica da prova, ainda que contundente, afigura-se correta.

Vejamos alguns excertos dos depoimentos prestados em audiência de julgamento e, agora, especialmente considerados:

            - FF - Técnico do SATT (fls. 98 verso):

            “Não fiz qualquer contacto com o pai. (...) A situação da criança neste momento é perfeitamente estável, está bem enquadrada do ponto de vista familiar e escolar; os dados de eu disponho apontam para uma mãe competente do ponto de vista parental e nos cuidados que tem vindo a prestar à criança; a nível escolar é uma criança perfeitamente enquadrada na dinâmica escolar da creche”. Perguntado sobre se existe algum risco grave, algum perigo, de a criança regressar a Inglaterra, respondeu: “(...) aquilo que eu posso adiantar resulta dos relatos e das informações prestadas pela mãe. (...) Eu não colocaria a questão do risco grave do ponto de vista físico. Eu colocaria as coisas relativamente ao ponto de vista emocional e psicológico da criança. Aquilo que resultou da minha avaliação coloca-me algumas reservas quanto às capacidades parentais do pai e à sua logística em acompanhar a criança no seu dia-a-dia em Inglaterra. É evidente que não (...) há nenhuma avaliação ao contexto paterno, mas o que resulta da auscultação da família da criança é que há aqui alguma reserva quanto à capacidade do pai em acompanhar a criança. (...) Volto a repetir, não falei com o pai, mas o que resulta das declarações de mãe e da avó materna é que poderá haver aqui alguns indícios que podem colocar a criança numa situação de risco, mais do ponto de vista emocional ou psicológico, (...) porque não nos podemos esquecer que a figura principal de referência desta criança é a mãe, isso é inegável, e resulta da conversa que eu tive com a menina. E, portanto, é evidente que neste tempo que tem corrido (...) em que a criança está aqui em Portugal, e uma coisa que tem sido marcante e que a criança procurou exprimir e enaltecer foi essa questão, de que o Sr. Dr. Juiz já falou, tem a ver com a posição do pai em que a criança fale inglês e que a deixa..., isso foi expresso pela menina, e que a deixa perturbada. Isso é um pequeno exemplo, neste momento, daquilo que vai decorrendo no dia a dia (...) e que vem na sequência dos contactos telefónicos que têm sido diários. (...) Era importante saber como é que este pai tem a sua vida profissional, familiar ou pessoal organizada, para acompanhar uma criança de cinco anos. Que horários é que tem? Como é que vai definir uma situação em que a criança precise de ir ao médico? Caso haja necessidade de ter apoio, não sei se tem família, se não tem família, próximo. Aquilo que consta dos autos é tem um conjunto de amigos na localidade onde reside. Isso é uma questão de certa forma vaga. E como é que vai definir e organizar a sua vida numa situação em que a criança precise de alguma coisa? Há aqui algum conjunto de situações que deviam ser clarificadas do ponto de vista do contexto da terra do pai. (...) A única referência que a AA me fez relativamente ao contexto familiar, tem a ver com a relação que foi estabelecida pelo casal; é evidente que houve aqui uma vivência com indicadores de violência doméstica e aquilo que a AA me disse é que nos momentos de discussão entre as figuras parentais, ela se escondia debaixo da mesa e atrás dos brinquedos e, portanto, foi uma situação que ela realçou com algum ênfase relativamente à vivência em Inglaterra; relativamente à vivência aqui em Portugal, a única questão que ela expressou com mais ênfase (...) foi esta questão do pai “obrigar” a criança a falar inglês. A nível da relação, propriamente dita, entre pai/filha, ela (criança) não falou sobre isso, (...) a questão não foi abordada.

            Anteriormente à vinda para Portugal, a menina frequentou a escola em Inglaterra. Perguntado se a língua da criança “era a língua inglesa até vir”, respondeu: “Em contexto escolar posso dizer que sim. Em contexto familiar é a língua portuguesa, a língua materna.” “(...) Ela deu muita relevância ao tom de voz do pai que gritava com a mãe e era nessa sequência que ela se refugiava debaixo da mesa e atrás dos brinquedos.”

            - EE (fls. 100 verso; avó da menor):

            “(...) Eu acho que o pai não é pessoa capaz para ter a filha a seu cargo, porque mostrou sempre ser um pai negligente, pouco cuidadoso e um pai, às vezes, demasiado severo para com a criança; (...) quando eu estava lá em casa, por exemplo, a hora da refeição era uma hora insuportável, o ambiente era um ambiente pesado, o ex-companheiro das minha filha colocava os ´phones` nos ouvidos para não ter que ouvir as nossas conversas e também para não ouvir  a criança a falar connosco; mal acabava de comer não tinha qualquer tipo de conversa connosco, não havia ambiente de família durante as refeições, só falava para criticar a minha filha pelas suas opções, que ele considerava demasiado cuidadosas para com a criança, ou para criticar a própria criança e para lhe dizer ´se não comeres, não há chocolate`, (...) ´se não comeres vens para a cama`, ´se não comeres...`, numa atitude corretiva que não estava correta, que não estava certa, para uma criança de tão pouca idade, e estou a falar entre os 4 e os 5 anos... Mal acabava de comer, levantava-se, continuava com os ´phones´ nos ouvidos e deitava-se ou sentava-se no sofá a ver televisão (...) numa total indiferença pelo facto de estarmos ali, não ajudava absolutamente nada, não levantava um prato, não ia à cozinha pôr as coisas. [sendo-lhe perguntado: “em que termos, se a criança regressar a Inglaterra, isso constitui um risco grave para a criança?”] (...) é um risco grave porque o pai é um pai negligente, é um pai que não sabe tomar conta dela, não sabe falar com ela, que é despótico, que é manipulador; (...) se há diferença entre a palavra pai e a palavra progenitor, ele é um progenitor negligente e manipulador; ele manipulou a mãe e também vai tentar manipular a filha (...); aliás, já o está a fazer (...); quando telefona à filha, por exemplo, fala com a filha só em inglês, diz que deixou de saber falar português; os momentos que podia falar com a filha, e até serem momentos agradáveis, nesta altura, passam a ser momentos complicados para a criança que já não tem tão presente o inglês (...); as conversas com ela são momentos que eu considero, até para nós!, (...) são momentos pesados, complicados, porque a criança deixa o pai pendurado ao telefone, vai para outro lado, não liga, não fala com ele, e ele continua de uma maneira manipuladora a tentar mostrar-lhe os brinquedos que ficaram em Inglaterra para exacerbar a sua... e manipular a sua consciência, tenta colocá-la perante situações como, por exemplo, ´vens passar as férias comigo`, ´queres vir passar, tens os primos, já te arranjei dois amiguinhos, um tem dois anos e o outro seis`, como se a criança precisasse que fosse o pai a arranjar os amigos, (...); tudo o que me foi dado constatar, não só, nestes telefonemas (...), ele é um pai incapaz, não tem uma conversa correta com a criança; (...)”. [à pergunta “Porque é que a mãe não pensa em ir a Inglaterra resolver este assunto?”, respondeu] “Porque ela tem medo. A minha filha tem medo. Nestas circunstâncias tem medo. (...) O pai vai continuar a exercer sobre a mãe o mesmo tipo de violência doméstica e de manipulação que sempre usou até ao momento. A minha filha se for para Inglaterra põe em risco a sua própria vida. E a minha neta, se for para Inglaterra, eu acho que fica em risco (...) o seu crescimento, de alguma forma, e a sua educação e temo muito pelo futuro da minha neta, que vai deixar de ser a criança dócil, meiga, que é hoje graças à atitude da mãe, para passar a ser uma criança revoltada.  (...) A minha filha não tem intenção de regressar ao .... (...) A referência da AA é a mãe, precisa da mãe para tudo ...; (...) o ex-companheiro da minha filha sempre tentou isolar a minha filha de todos os amigos e até de familiares, os mais próximos e os mais distantes, inclusivamente tentou isolar-me a mim própria da minha filha, marcando as minhas idas a Inglaterra, tentando que eu estivesse o menos tempo possível lá, e dizendo-me que eu não era bem-vinda, que eu ia desestabilizar o equilíbrio da família dele ...; (...) o pai não ajudava em nada, em nenhuma tarefa doméstica. [à pergunta “alguma vez viu o pai a brincar com a AA?, respondeu] (...) poucas vezes, quando ela era mais pequenina, ultimamente não via, porque eu também não ia lá, não posso dizer”; “(...) eu acho que o comportamento do meu genro é um comportamento algo esquizoide, ele é um narcisista, ele dá mais importância ao seu ego do que às outras pessoas, (...) é uma pessoa demasiado centrado em si próprio, é uma pessoa que não dá importância aos outros, para ele são sempre pessoas..., são intrusos; (...) a AA pode ficar negligenciada porque ele não quer a filha (...), ele quer sobretudo usar a filha como uma arma de arremesso contra a mãe (...) ele exerceu sobre a mãe violência doméstica e, neste momento, está a usar a filha para continuar a violentar a mãe, e continuar, de alguma forma, a monopolizar a mãe, a exercer sobre ela um poder quase despótico, distorcendo as coisas, distorcendo a realidade, e tentando desestabilizá-la (...).

            - DD (fls. 100 verso; prima da requerida):

            Para a mãe da criança, “neste momento (...), não estão reunidas as condições para regressar ao ..., por uma questão de risco pessoal que é um risco elevado, na minha opinião, daquilo que tenho observado (...) ao longo de vários meses. Acho que o risco de regressar a Inglaterra é um risco muito elevado, não querendo dramatizar muito, não é só o risco de voltar a ser maltratada como foi durante todos estes anos, mas penso que o risco poderá até atingir proporções mais graves, nomeadamente até do ponto de vista da saúde física, para além da saúde mental e psicológica da CC; acho que o risco a que a CC se sujeitaria, voltando, neste caso, com a AA, é um risco que se transmitiria à AA e, portanto, acho que é (...) um risco pessoal e da filha; o risco de ser maltratada não implica necessariamente que tenha de se viver em coabitação, que se tenha de viver na mesma residência. Portanto, os maus tratos emocionais e psíquicos podem ser realizados à distância; esse risco é por demais evidente e não é da imaginação de ninguém, basta ver o que se passou quando coabitavam lá, basta ver o que se passa desde que estão em Portugal e, sabendo que a CC nunca teria condições de ir viver novamente para a mesma casa. Mesmo que estivessem a quilómetros de distância não tenho qualquer dúvida que continuaria a ser maltratada, e mais, depois do que aconteceu nestes últimos tempos, com certeza que os maus-tratos vão atingir proporções nunca antes atingidas. (...) Estivemos, por acaso, em ... quando o meu irmão vivia em ..., em 2015. Passámos um fim de semana todos juntos em casa do meu irmão. Aquilo que fui observando das vezes que estive com eles, primeiro, achei que a minha prima, a CC, era uma pessoa que ficava com um comportamento bastante diferente quando estava com ele, provavelmente numa tentativa de defesa, de esconder das pessoas, (...) de mim e do meu irmão que a conhecemos desde pequenina, esconder, no fundo, o tipo de relação que tinha com o seu companheiro. Era uma pessoa que não estava claramente à vontade, tinha sempre o seu comportamento muito condicionado pelo que conhecia bem as reações que o BB tinha com ela. Claro que, em 2015, a situação estaria provavelmente muito melhor do que a situação dos últimos tempos. A situação piorou muito depois do nascimento da AA. Mas era evidente o medo, acho eu, e essa alteração do comportamento da CC. Era uma pessoa que não estava à-vontade, com receio das reações que o BB poderia ter, eventualmente em situações que ele não dominava ou em situações que não aconteciam exatamente como ele queria. Para além de outra coisa que era evidente, a CC sempre foi uma rapariga alegre, sociável, sempre teve uma boa rede de amigos e uma das coisas que aconteceu desde cedo, entre outras situações bem desagradáveis que para aqui não são chamadas com certeza, o BB tentou sempre isolar desde cedo a CC de qualquer rede familiar e social, sendo até hostil com algumas pessoas que lhe eram muito próximas. É mostrar má cara quando estávamos a falar com ele. Lembro-me de uma vez que estávamos com a minha tia em ... e a CC dizer à minha mãe ´é melhor não entrares que o BB não está lá muito bem-disposto`. Quer dizer, nós sempre convivemos desde crianças, aliás, a CC passava uns meses de verão em casa dos meus pais, sempre tivemos uma relação mito próxima como se fossemos irmãs. (...) Há aqui duas fases relativamente à minha pessoa que eu posso, se acharem bem, descrever. Eu, estes últimos meses, praticamente desde o início de 2021 mantive um contacto telefónico diário e às vezes até mais do que uma vez por dia com a minha prima, porque percebi que a situação se estava a deteriorar enormemente e senti que a CC estava em perigo. De tal forma que cheguei a dar os contactos da polícia inglesa e pedi o contacto de algum vizinho, porque cheguei a temer pela integridade física da CC e percebi também que isso se repercutia na AA porque a CC reportava situações claramente de negligência, enquanto vivam juntos, nomeadamente, nunca estar disponível para a filha. (...) Desde que vieram (...) já assisti a alguns telefonemas, algumas videochamadas do BB com a AA. Dos pontos mais importantes, (...) que não acho adequado, é o pai recursar-se a falar na língua materna com a filha e obrigá-la a falar em inglês, recusando-se, quando a filha começa a falar, que é naturalíssimo, em português, ele diz que não a percebe. (...) tem nacionalidade portuguesa, claro que nasceu lá, mas os pais nem nunca demonstraram vontade de a nacionalizar inglesa, portanto considerado que o português é a língua materna da AA, e o pai, apesar da AA frequentar uma escola inglesa, também gostava que a AA, enquanto lá estava, aprendesse a falar português e (...) insistia para que ela aprendesse a falar português (...). Aquilo que eu testemunhei, nomeadamente das videochamadas e nomeadamente na altura em que a AA entrou aqui no ..., como qualquer criança que está feliz quando entra na escola, gosta de contar aos seus pais, o que fez, que tem um bibe amarelo, que tem uma professora chamada KK, adora a cozinheira que é a EE, que lhe dá bolachas, e a AA tentou dizer isso ao pai variadíssimas vezes e ele desvalorizava, mostrava desinteresse, dizia que esta escola era a brincar, portanto isso é uma forma, (...) tecnicamente até entra naquilo a que nós chamamos ´abuso emocional`. É uma desvalorização que pode ter repercussões na criança, nomeadamente numa idade que é essencial no desenvolvimento emocional e psíquico. Essencialmente o que eu testemunhei foi isso. A insistência em falar inglês. O facto de nunca querer..., a AA, muitas vezes fala na minha filha e em nós, isso eu também assisti várias vezes, e o BB fingia que não ouvia, não tinha interesse. A minha filha chegou várias vezes a ir ter com a AA enquanto estava em videochamada e o BB ignorava completamente a presença da minha filha. São coisas que testemunhei, não me foram transmitidas pela CC. (...) O conceito de abuso emocional é um conceito técnico que inclui estas características que eu disse. Eu disse médicos, mas médicos especificamente ligados à área da saúde mental. (...) Eu sou neurologista. Claro que é a psiquiatria que lida mais com isso, mas nós na neurologia também lidamos. Na minha opinião há um risco enorme do regresso da menor a Inglaterra. Então sem a mãe acho que é um risco enorme. O risco que ela corre é o de ser negligenciada pelo pai, e o conceito de negligência não é só a questão da negligência física, de não permitir a satisfação dos seus cuidados de higiene e de alimentação, é muito mais do que isso, que isso até acredito que o BB tentaria mudar o comportamento que sempre teve no passado porque ele nunca fez isso no passado. Acredito que ele até poderia fazer um esforço, mas além disso não tenho dúvidas que a AA (...) sofreria de negligência emocional e psíquica graves. Não tenho qualquer dúvida, porque todo o comportamento do passado e aquilo que testemunhámos aqui nestes meses indiciam que estes comportamentos do pai vão continuar e vão ter tendência a agravar-se. Porque é que eu digo isso? Porque a AA sempre teve a sua cuidadora, a sua figura de referência, não só a tratar dela de uma maneira que eu considero exemplar, e digo exemplar porque o fez nas condições mais hostis. Enorme insegurança para ela, ela tentou sempre manter um equilíbrio, um ambiente equilibrado, escondendo da filha tudo aquilo a que estavam as duas a ser sujeitas, porque não é só a CC que foi sujeita. A AA também foi. O que me foi transmitido pela CC, mas também pela minha tia não deixam dúvidas relativamente a isso. E para além de outra questão. A AA, sendo uma criança de cinco anos, o que nós lhe provocaríamos com uma separação da sua figura de referência e da sua única e principal cuidadora desde que nasceu, poderia ter repercussões gravíssimas no futuro desta criança. Isto está provado cientificamente. (...) É claro que eu sou prima da CC mas estou a tentar ser o mais imparcial possível, e, muito honestamente, o que me preocupa imenso é se a criança vai ser sujeita a essa separação. Acho que vai ser um traumatismo enorme para a AA e apesar das crianças terem uma enorme capacidade de adaptação não tenho dúvidas que, atendendo ao que se passou até aos cinco anos da AA, separá-la da mãe, mesmo que seja só por algum tempo, e na forma como isto irá acontecer, se for essa a decisão, vai ter consequências gravíssimas, além do risco imediato, vai ter consequências futuras que são indiscutíveis.”

            Explicou que depois da requerida/recorrente regressar com a criança de Inglaterra, consultaram advogados e foi-lhes transmitido que “o ideal seria voltar a Inglaterra e iniciar lá o processo; no entanto, a CC, atendendo ao risco que o regresso a Inglaterra lhe traria a ela e diretamente à filha, concluiu que não estavam reunidas as condições para regressar... (...) não estão reunidas as condições de segurança, (...) a mãe considera que não há condições para regressar em segurança (...); (...) se o BB foi um pai negligente ao longo de todos estes anos, submeteu a mulher e a filha a maus-tratos, a mãe da AA acha que não estão reunidas as condições... Eu acho que a CC não pode regressar a Inglaterra. Eu não reconheci que ela podia regressar...

            f) Salvo o devido respeito por entendimento contrário, e tendo a requerida/recorrente invocado a natureza conclusiva dalguns dos pontos de facto e a irrelevância doutros, afigura-se que também nada adianta/adiantava fazer constar que a requerida tomou determinada decisão “por entender viver uma situação de violência doméstica e não ter a criança condições de segurança para continuar a residir com o pai”.

            O Tribunal a quo deu como provados, entre outros, os pontos de facto 13), 15), 16), 18), 29), 31) e 32).

            Não foram invocados e concretizados/demonstrados nos autos quaisquer “atos de violência e agressão”, mormente no decurso de “discussões” havidas entre os requeridos. Indo porventura de encontro à posição expressa nos autos pela requerida/recorrente, dir-se-á que não foram concretizados ou demonstrados quaisquer outros factos além dos elencados em II. 1., supra.

            Se é importante saber se, como e quando ocorreram situações problemáticas no relacionamento do ex-casal e suas repercussões para o bem-estar da criança - eventualmente relevantes, face aos fundamentos invocados pela recorrente e ao disposto no art.º 13º, n.º 1, alínea b) da Convenção de Haia de 1980 -, tais factos concretos, naturalmente, deviam ser trazidos aos autos, sendo que, reafirma-se, não vemos demonstrados outros factos concretos relevantes além dos atendidos pelo Mm.º Juiz do Tribunal a quo.

            E, por exemplo, não seria correto dizer ou dar como “provado” que “existem factos reveladores de agressões psicológicas do progenitor à menor”, mas não os concretizar, e, salvo o devido respeito, o que existe ou se demonstrou existir, o Mm.º Juiz do Tribunal a quo deu-o como provado.

            Relativamente às testemunhas de algum modo “desconsideradas” em sede de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, também se dirá que não se vê razão para não acolher o atendido e decidido pelo Mm.º Juiz, designadamente quanto ao que veio a integrar o ponto 23) dos factos provados.

            Os pontos de facto 35) e 38) eram relevantes para a boa decisão da causa, pelo menos, à data da prolação da sentença sob censura.

            Quanto ao que se fez constar das alíneas c) a e) dos factos dados como não provados, apenas se poderá atender ao incluído na factualidade provada e correspondentes ilações.

            Acrescenta-se que o Tribunal a quo considerou a prova documental junta aos autos principais e ao apenso A, bem como o consignado na Ata de 17.11.2021 (cf. fls. 88).

            11. Pese embora alguma contundência/veemência na descrita fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, elaborada pelo Mm.º Juiz do Tribunal a quo, afigura-se, pois, que não merece censura.

            Na verdade, face à mencionada prova pessoal e documental, sujeita à livre apreciação do julgador, apenas se poderá dizer que a factualidade dada como provada (e não provada) respeita a prova produzida nos autos e em audiência de julgamento, sendo que, até em razão da exigência de (especial) prudência na apreciação da prova pessoal[21], o Mm.º Juiz não terá desconsiderado regras elementares desse procedimento, inexistindo elementos seguros que apontem ou indiciem que não pudesse ou devesse ponderar a prova no sentido e com o resultado a que chegou, pela simples razão de que não se antolha inverosímil e à sua obtenção não terão sido alheias as regras da experiência e as necessidades práticas da vida[22]

            O Mm.º Juiz analisou criticamente as provas e especificou os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, respeitando as normas/critérios dos n.ºs 4 e 5 do art.º 607º do CPC, sendo que a Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).

            A prova produzida não impõe resposta diversa da encontrada em 1ª instância.

            Improcede a pretensão da apelante quanto à modificação da decisão de facto.

            12. Argumentou o Mm.º Juiz do Tribunal a quo, nomeadamente:

             - A mãe agiu ilicitamente ao reter em Portugal a criança no verão passado, pois deveria tê-la feito regressar a Inglaterra em 01.9.2021 e não o quis fazer, privando o pai do convívio com a criança.[23]

            -  O exercício das responsabilidades parentais pertence a ambos os pais; em caso de separação dos progenitores, as responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho são exercidas em comum por ambos os progenitores, verificando-se que a mudança de residência definitiva da menor foi decidida ilícita e unilateralmente pela mãe, não cumprindo o que fora acordado com o pai relativamente ao regresso da filha a Inglaterra após as férias de verão de mãe e filha (cf. art.ºs 1901º, n.º 1, 1906º, n.º 1 e 1911º do CC).  

            - É do interesse superior da criança que a regulação do exercício das responsabilidades parentais sobre a mesma se efetue no competente Tribunal ..., devendo a menor aí regressar para esse efeito, porquanto não se provaram quaisquer factos que indiciem um risco grave para a criança devido ao seu regresso a Inglaterra, nem que ali regressando, conduzida pela mãe ou pelo pai, fique sujeita a uma situação intolerável, para os fins da excepção prevista na al. b) do art.º 13º, da Convenção de Haia de 1980.

            - A situação de conflito entre os progenitores é habitual em situações de separação ou divórcio, não assumindo a presente contornos que permitam concluir haver algum risco grave ou situação intolerável para a menina devido ao seu regresso. É natural que a criança se assustasse ao ouvir as discussões entre os pais em voz alterada, recordando o tom de voz do progenitor. Contudo, como disseram as testemunhas, era uma criança feliz, não ficando traumatizada por tais conflitos, apenas os recordando.

            - Se o pai deixa de ter a ajuda da mãe para cuidar da filha, terá de adaptar-se à nova situação, como sucede com outros pais em situações idênticas, até decisão, provisória ou definitiva, do competente tribunal britânico, que atribua a guarda da criança a um dos progenitores.

             - Em caso de necessidade, tem familiares e amigos em ..., tal como amigos em ... que o podem ajudar, pode contratar uma «baby-sitter» e tem flexibilidade de horário para tomar conta da criança, podendo estar fora de casa ou em teletrabalho e a filha estar em ATL após o decurso do horário escolar normal.

            - Seria preferível à progenitora acompanhar a criança na viagem para Inglaterra, aguardar a decisão, provisória ou definitiva, sobre a RERP do tribunal inglês, mantendo a sua actividade profissional em teletrabalho, como o faz em Portugal, com a presença e ajuda monetária da avó materna para alojamento e outras despesas.

            - Nos termos do art.º 13º, §1º, al. b), da Convenção de Haia de 1980, o tribunal não é obrigado a ordenar o regresso se existir um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável, exceções que, não ficaram provadas nestes autos.[24]

            - A progenitora não ficará privada de apresentar os seus argumentos em tribunal inglês para que a menor passe a residir consigo em Portugal.

            - A ordem de regresso não viola os princípios fundamentais do Estado Português, relacionados com a proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. O Estado de residência habitual da criança determinará quais são as medidas de proteção adequadas para a criança, tendo já a situação sob a sua vigilância, tanto assim que solicitou o regresso da mesma.

            13. A requerida/recorrente pretendia ver modificada a matéria de facto, o que - veio a concluir - determinaria o decaimento dos “fundamentos plasmados na sentença recorrida” e a prolação de “decisão diferente ao abrigo das mesmas normas com que o Tribunal ´a quo` fundamentou a sua sentença”.[25]

            Inalterada a factualidade dada como provada em 1ª instância, podemos dizer que a própria requerida se conforma com a decisão sob censura.

            A mãe não providenciou pelo regresso da criança à Inglaterra, mantendo-a com ela sem o consentimento e contra a vontade do pai.

            O Mm.º Juiz do Tribunal a quo conclui, e bem, pela existência de uma retenção ilícita, na previsão dos art.ºs 1º, 3º e 12º da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças concluída em 25.10.1980 pela Conferência da Haia de Direito Internacional Privado,  e a não verificação de qualquer das causas de não regresso da criança, previstas no art.º 13º da mesma Convenção (v. g., risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável)[26], pelo que se impunha assegurar o regresso imediato da criança retida indevidamente.

            Ademais, a aludida Convenção teve a finalidade de proscrever o uso de meios de autotutela em matéria de exercício das responsabilidades parentais (que o art.º 16º dessa Convenção, precisamente, manda suspender).[27] [28]

            14. Soçobram, desta forma, as demais “conclusões” da alegação de recurso.


*

            III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida (e o dito despacho interlocutório).          

            Custas pela requerida/apelante.       


    *

28.6.2022       


                       

           


[1] Ao abrigo dos art.ºs 4º, n.º 1, i), e 9º, n.º 1, d), do EMP, 1º, a) e b), 2º, 3º, 4º, 5º, a), 6º, 11º, 12º e 14º, da Convenção dos Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia, em 25.10.1980, ratificada pelo Estado Português pelo DL n.º 33/83, de 15.5, e pelo Reino Unido a 20.5.1986 e aí em vigor desde 01.8.1986, art.º 1887º do Código Civil, por analogia, e art.ºs 17º e 28º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível - por apenso (apenso A) a ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais, instaurada em 31.8.2021 (cf. fls. 55).

[2] Anteriormente, tinham sido ouvidos os progenitores, em conferência, nessa ação de RERP, sem que se conseguisse acordo entre os pais para que a filha permanecesse em Portugal com a mãe, ou regressasse a Inglaterra, com a mãe ou o pai.

[3] Com a manutenção da tramitação como procedimento cautelar.

[4] No relatório da sentença recorrida, expendeu-se: «Não se justifica solicitar ao SATT a remessa de relatório escrito pelo Técnico que verificou a situação da menor e da família materna, contrariamente ao que pretende a progenitora, dado que está finda a produção de prova nesta providência cautelar urgente e o Técnico da Segurança Social foi ouvido em audiência, tendo o MP e o mandatário da mãe produzido as suas alegações finais sobre a prova produzida, ficando os autos a aguardar a sentença no prazo de 15 dias (art.º 986º, n.º 3, do CPC). / Sendo muito urgente o procedimento, a vinda de relatório social escrito conduziria a cumprir o contraditório sobre o mesmo (art.º 25º, n.º 3, do RGPTC), atrasando a prolação da sentença, quando o art.º 130º do Cód. Proc. Civil (aplicável por força do disposto no art.º 33º, n.º 1, do RGPTC) dispõe que não é lícito realizar no processo atos inúteis, como seria ler aquilo que o Técnico já expressou oralmente na diligência de produção de prova, com contraditório, ao abrigo do art.º 25º, n.º 1, do RGPTC, estatuindo o art.º 28º, n.º 3, do mesmo diploma, que para efeitos desta decisão cautelar o Tribunal procede às averiguações sumárias que tiver por convenientes. / Como diz o MP, não se vê utilidade na junção de relatório escrito, até por força do disposto nos art.ºs 4º, n.º 1, al. a) [declarações da assessoria técnica prestadas oralmente e documentadas em ata, mas que foram gravadas – art.º 29º, n.º 3] e 21º, n.º 5, do RGPTC, igualmente aplicável, neste momento, até pela natureza do processo, por se estar em fase de decisão [só há lugar a relatório se forem insuficientes os depoimentos e as informações, mas uns e outros foram esclarecedores na audiência]. Atente-se que a própria Diretora do Núcleo de Infância e Juventude Unidade de Desenvolvimento Social Centro Distrital de Coimbra do ISS, I. P., comunicou a este processo, em 20.12.2021, perante a solicitação da nossa Secção de Processos de 18.11.2021, para elaboração de informação social muito urgente pelo SATT, que:  «Em resposta à solicitação rececionada, uma vez que o técnico indicado, Dr. Victor Silva, foi ouvido presencialmente no passado dia 15.12.2021, a solicitação considera-se respondida

[5] Determinou-se, ainda, designadamente: «Comunique o teor desta decisão de regresso, por via urgente, à D.G.R.S.P. - Autoridade Central de Portugal - e ao Serviço de Apoio Técnico aos Tribunais da Segurança Social de Coimbra, devendo este último articular-se com os pais quanto ao dia concreto e hora de entrega da criança pela mãe e recolha pelo pai nas suas instalações desta cidade, atendendo a que a Associação Viver em Alegria, desta cidade, não tem disponibilidade para o efeito no indicado período, fixado nesta decisão, conforme informação que forneceu aos autos. / Deverá ser remetida à Autoridade Central do Reino Unido, através da D.G.R.S.P., uma cópia desta decisão de regresso

   A menor foi entregue ao seu progenitor/requerido, em 30.12.2021, no Serviço Local da Segurança Social da Figueira da Foz – cf. 116 e seguinte.

[6] Decisão interlocutória cuja impugnação (no recurso interposto da respetiva decisão final) foi admitida por despacho do relator de 28.4.2022, proferido no apenso B (Reclamação/art.º 643º do CPC).
[7] «Ouvidos os progenitores e realizada a audição do Técnico da Segurança Social e das testemunhas arroladas
[8] Cf. a sentença de 02.11.2021, reproduzida a fls. 7.

[9] Isto é, no dizer da lei, tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso (art.º 988º, n.º 1, 2ª parte, do CPC).
[10] Vide Miguel Mesquita, Princípio da Gestão Processual, in RLJ 145º, pág. 95.

[11] Vejam-se, a propósito, de entre vários, os acórdãos do STJ de 09.10.2003-processo 03B2507, da RL de 27.01.2011-processo 2273/07.9TMLSB-A.L1-2 e 15.12.2011-processo 265/10.0TMLSB-B.L1-6 e da RG de 06.6.2019-processo 4864/18.3T8GMR-B.G1, onde a ação foi designada, respetivamente, como “ação com processo especial”,  “ação especial” e “procedimento especial urgente para entrega de menor”.

   Na alegação de recurso, a requerida alude a diversos arestos dos Tribunais da Relação que mencionam, por exemplo, “Processo Urgente de Regresso de Menor (Acórdão da RP de 29.04.2020) e “Processo Especial de Entrega de Menor (Acórdão da RL de 09.01.2020)”.

[12] Cf., a propósito, o acórdão da RC de 22.6.2010-processo 786/09.7T2OBR-A.C1 [assim sumariado: «I - O processo de entrega judicial de menor tem natureza de jurisdição voluntária, pelo que o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita; II - A Convenção Haia de 25 de Outubro de 1980 sobre os aspectos civis do rapto internacional de crianças tem por objectivo assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado-Membro; III - Nos termos do art.º 11º daquela Convenção e do art.º 11º, n.º 3, do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho de 27.11.2003, o tribunal deve adoptar procedimentos de urgência com vista ao regresso da criança; V- Aquele Regulamento pretende desencorajar o rapto de crianças pelos progenitores entre Estados-Membros e, se tal vier a ocorrer, garantir um regresso rápido da criança ao seu Estado-Membro de origem; VI - A deslocação de uma criança de um Estado-Membro para outro sem o consentimento de um dos titulares constitui um rapto da criança ao abrigo do mesmo Regulamento; VII - Este reforça o princípio segundo o qual o tribunal deve ordenar o regresso imediato da criança, limitando ao estritamente necessário as excepções previstas na al. b) do art.º 13º da referida Convenção; o princípio é que a criança deve sempre regressar se estiver garantida a sua protecção no Estado-Membro de origem.»], publicado no “site” da dgsi.

[13] Num estudo publicado na Revista JULGAR - N.º 24 – 2014, de análise da JURISPRUDÊNCIA SOBRE RAPTO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS, Maria dos Prazeres Beleza veio a concluir: «Finalmente, pode suceder que, não obstante ter sido indeferido o pedido de regresso da criança ilicitamente deslocada ou retida, com fundamento nas excepções previstas no artigo 13º da Convenção de Haia de 25.10.1980, o tribunal do Estado onde a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção, competente segundo o Regulamento (CE) n.º 2201/2003, profira “uma decisão posterior que exija o regresso da criança”, de acordo com o disposto no n.º 8 do art.º 11º respectivo. Nessa eventualidade, esta decisão de regresso, devidamente certificada (art.º 42º), goza de força executiva nos demais Estados Membros sem necessidade de ´exequatur`. Trata-se de mais uma medida trazida pelo Regulamento (CE) n.º 2201/2003 com o objectivo de combater o rapto, promovendo o regresso célere da criança que dele foi vítima.»

   Cf., ainda, entre outros, os acórdãos da RP de 08.10.2015-processo 2593/11.8TMPRT-C.P1, proferido num processo de alteração da regulação das responsabilidades parentais [no qual se expendeu e concluiu: «II - Verificada a deslocação ou retenção ilícita de uma criança de um Estado Membro para outro Estado diferente do da sua residência habitual, haverá que providenciar pelo seu imediato regresso, como forma de desencorajar os “efeitos prejudiciais resultantes de uma mudança de domicilio ou de uma retenção ilícitas e estabelecer formas que garantam o regresso imediato da criança ao Estado da sua residência habitual, bem como assegurar a protecção do direito de visita”, cabendo a qualquer pessoa, instituição ou organismo titular do direito de guarda, pedir que sejam accionados os procedimentos adequados para obter o imediato regresso da criança ilicitamente deslocada ou retida.»] e da RC de 30.4.2019-processo 177/18.9T8VLF-A.C1 (subscrito pelo relator e o 1º adjunto do presente acórdão), publicados no “site” da dgsi. 
[14] Cf., por exemplo, os casos aludidos na “nota 11”, supra.

   Como bem refere o despacho recorrido (de 18.11.2021), não deverá relevar a circunstância de “existirem várias interpretações em primeira instância sobre o processo concreto a seguir, depois apreciadas em Tribunais Superiores quanto à questão do regresso e não quanto a formalidades processuais”, sendo que, no caso em análise, “a questão do regresso (tem) natureza cautelar perante a questão de fundo da guarda da criança, a apreciar em Tribunal Inglês, conforme resulta da decisão no processo principal a que esta providência está apensa”. E, depois: “Havendo uma tramitação de urgência prevista no art.º 28º do RGPTC que satisfaz a previsão normativa dos art.ºs 2º e 11º da Convenção, não existe lacuna a preencher com o uso de providências cautelares do CPC, como resulta do art.º 33º, n.º 1, do RGPTC”.
[15] Cf., v. g., o consignado na Ata de 16.12.2021 (fls. 102 verso).
[16] Cuja elaboração havia sido determinada na 2ª parte do despacho de 18.11.2021.
   Cf. ainda, sobretudo, “nota 4”, in fine, supra, e fls. 98 verso.
[17] E ainda que invocado amiúde na fundamentação da sentença, daí não se poderá concluir que tenha sido considerado como “fonte de direito”, qua tale, porquanto, além do mais, nunca o Mm.º Juiz deixou de atender ao que se acha prescrito na Convenção que ditou o desfecho do procedimento.
[18] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.

[19] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 284 e 386 e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. II, 4ª edição, 2004, págs. 266 e seguinte.
[20] Refere-se no acórdão da RP de 20.3.2001-processo 0120037 (publicado no “site” da dgsi): A prova, por força das exigências da vida jurisdicional e da natureza da maior parte dos factos que interessam à administração da justiça, visa apenas a certeza subjetiva, a convicção positiva do julgador. Se a prova em juízo de um facto reclamasse a certeza absoluta da verificação do facto, a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação da justiça.   
[21] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 277 e seguinte.
[22] Vide, nomeadamente, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 192 e nota (1) e Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material), BMJ, 110º, 82.

[23] Citou-se, designadamente, o acórdão da RL de 22.4.2021-processo 2021/20.8T8CSC.L1-6 [assim sumariado: «Sendo na Alemanha o local de residência habitual do menor, em resultado de acordo de ambos os seus progenitores, e aos quais de resto cabia o exercício em conjunto - após a separação de ambos - das responsabilidades parentais, a progenitora incorre na sua retenção ilícita em Portugal se, após um curto e passageiro período de permanência no nosso país, não mais pretende regressar à Alemanha com o menor, assim decidindo unilateralmente e contra a vontade e o acordo do outro progenitor.»], publicado no “site” da dgsi.

[24] Cita-se, nesse sentido, o acórdão da RL de 17.11.2015-processo 761/15.2.T8CSC.L1-7 [tendo-se concluído «VI - O imperativo da ordem de regresso ao país da residência habitual nas situações de retenção ilícita terá de ceder sempre que se considere existir grave risco de a criança, no retorno ao país da sua residência habitual, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável. VII - Na avaliação do preenchimento desta situação de excepção exige-se que seja feito um juízo de ponderação e de conformidade entre o regresso da criança e o seu interesse, ou mesmo a sua vontade (desde que a sua idade e maturidade justifique que se tenha em conta a sua opinião), e a mesma terá de se fundar, inequivocamente, na salvaguarda do interesse da criança, que constitui “a trave mestra” da Convenção.»], publicado no “site” da dgsi.
[25] Cf., sobretudo, a parte inicial da fundamentação da alegação de recurso sob o enquadramento “Do Direito”.

[26] Sendo evidente que não se questiona a verificação de qualquer das situações previstas nos art.ºs 13º, 1º §, alínea a) e 20º da mencionada Convenção.

[27] Cf., nomeadamente, o citado acórdão do STJ de 09.10.2003-processo 03B2507 [assim sumariado: «I - É objectivo da Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em 25/10/80 pela Conferência da Haia de Direito Internacional Privado e aprovada pelo Estado Português pelo Decreto do Governo nº. 33/83, de 11/5, contrariar o uso de meios de auto-tutela em matéria de exercício do poder paternal. II - O princípio ou regra geral nela estabelecido da recondução da criança para o país onde se encontrava antes da actuação ilegítima sofre, no entanto, as excepções previstas no art.º 13º, por certo inspiradas pela prioridade naturalmente conferida aos interesses dos menores nas situações de conflito que os envolvam.»] e o acórdão da RC de 02.12.2014-processo 1045/12.3TBCLD-A.C1 [«IV – Ocorrendo uma deslocação do menor de Portugal para o Brasil, por iniciativa exclusiva da mãe a quem estava confiado, em desrespeito dos termos do acordo celebrado entre os progenitores na regulação do exercício das responsabilidades parentais (que sujeitava expressamente qualquer mudança do país de residência do menor ao acordo prévio desses progenitores), tal deslocação assume a natureza de ilícita, para o efeito da ´Convenção da Haia sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças de 1980`»], publicado no “site” da dgsi, e, ainda, Helena Bolieiro e Paulo Guerra, A Criança e a Família – uma Questão de Direito(s), Coimbra Editora, 2009, págs. 443 e seguinte.
[28] Sobre a problemática da regulação do exercício das responsabilidades parentais, cf., principalmente, a parte final da decisão recorrida e II. 1. 11) e 12), supra.