Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
316/23.8TXCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: CANCELAMENTO PROVISÓRIO DE DECISÃO NO CRC
IMPORTUNAÇÃO SEXUAL
PERÍCIA PSIQUIÁTRICA
Data do Acordão: 05/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO DE EXECUÇÃO DE PENAS DE COIMBRA – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 10º, Nº 6, E 12º DA LEI Nº 37/2015, DE 5 DE MAIO, E 2º E 4º DA LEI Nº 113/2009, DE 17 DE SETEMBRO; 170º DO CÓDIGO PENAL
Sumário: Os tribunais são dotados de aptidão para, tendo em conta as concretas singularidades de cada situação, decidir da necessidade ou não da realização da perícia psiquiátrica a que se refere o art. 4º, n.º 5, da Lei n.º 113/2009.
Decisão Texto Integral: *

Acordam, em conferência, na Quinta Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

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I. RELATÓRIO

No âmbito do Processo de cancelamento provisório do registo criminal nº 316/23..... a correr termos no Juízo de Execução das Penas de Coimbra, (Juiz ...), referente a AA, foi decidido determinar o cancelamento provisório da decisão averbada no seu Certificado de Registo Criminal e mencionada no ponto a) do circunstancialismo dado como provado.

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Desta decisão o Ministério Público interpõe o presente recurso, rematando a respectiva motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

“1. AA, com a finalidade de exercer a actividade de treinador de natação de atletas entre os 14 e 20 anos de idade, veio requerer, ao abrigo do disposto no art. 229º do Código de Execução de Penas e Medidas de Privação da Liberdade, o cancelamento provisório do registo criminal da sentença, proferida no processo 323/19...., transitada em julgado a 10.03.2023, que o condenou, numa pena de multa, já extinta por cumprimento, como autor material de um crime de importunação sexual, p. e p. pelo at. 170º do Código Penal.

2. O tribunal, por decisão de 24.01.2024, julgou procedente o pedido determinando o cancelamento provisório daquela decisão averbada no certificado de registo criminal do requerente.

3. O referido crime inclui-se no capítulo V do título I do livro II do referido compêndio legal.

4. De acordo com o estabelecido nos arts 10º, nº6 e 12º da Lei nº 37/2015, de 5 de Maio, e 2º e 4º da Lei nº 113/2009, de 17 de Setembro, a decisão do cancelamento provisório do averbamento da sentença condenatória aqui em causa terá de ser precedida da realização de uma perícia de carácter psiquiátrico ao requerente, com intervenção de três especialistas.

5. A lei é inequívoca ao estabelecer esse pressuposto.

6. Apesar disso, o tribunal não determinou a realização da referida perícia.

7. Assim, tendo a decisão ora em recurso sido proferida sem a realização da indicada perícia, a mesma feriu as citadas normas legais, designadamente o disposto nos arts. 12.ºda Lei nº 37/2015, de 5 de Maio, e 2º e 4º da Lei nº 113/2009, de 17 de Setembro.

8. Pelo que, não se mostrando verificado o mencionado requisito formal exigível à decisão do cancelamento da inscrição do averbamento constante do certificado de registo criminal do requerente, requer-se que a decisão seja revogada e, consequentemente, determinada a realização da perícia de carácter psiquiátrico exigida pelas normas dos nºs 3, 4 e 5 da Lei nº 113/2009, de 17 de Setembro, e 2º da Lei nº 37/2015, de 5 de Maio.

E como a inobservância do apontado requisito formal (realização de perícia de carácter psiquiátrico, com intervenção de três especialistas) contende com o mérito da decisão em apreço, entende-se que também não se verificam dois dos requisitos substanciais necessários à decisão do cancelamento da inscrição do averbamento constante do certificado de registo criminal do requerente.

9. O cancelamento do averbamento constante no registo criminal do requerente exige que se demonstre que seja fundadamente de esperar que o mesmo conduzirá a sua vida sem voltar a cometer crimes da mesma espécie, sendo sensivelmente diminuto o perigo para a segurança e bem-estar de menores que poderia decorrer do exercício da profissão, emprego, função ou atividade a exercer - (cfr. nºs 3 e 4 do art. 4, da Lei n.º 113/2009, de 17 de Setembro).

10. E impõe que se considere que o requerente se mostra reabilitado - (cfr. nº 3 do art. 4, da Lei n.º 113/2009, de 17 de Setembro, e al. b) do art. 12º, da Lei 37/2015, de 5 de Maio).

11. A decisão ora em recurso deu como certa a verificação das aludidas exigências legais.

12. Tal conclusão reclama especiais conhecimentos técnicos e científicos que o julgador não possui, daí a lei impor um juízo técnico e científico a levar a efeito por três especialistas (psiquiatras) - cfr. nºs 3, 4 e 5 do art. 4º, da Lei n.º 113/2009, de 17/09.

13. Não obstante isso, dispensando o exame e avaliação psiquiátrica do requerente, o tribunal deu como certo que não se descortina uma disfunção de personalidade ou propensão para comportamentos sexuais desviantes do mesmo.

14. A especificidade da situação reclama especiais conhecimentos técnicos e científicos para a apreciação das indicadas circunstâncias e, por isso, o tribunal, desprovido de tais competências, não podia extrair a referida conclusão.

15. Além disso, mesmo equacionando-se a hipótese de que a perícia psiquiátrica não é necessária, a factualidade descrita nos autos não permite reconhecer que os apontados requisitos substanciais, previstos nos nºs 3 e 4 do art. 4, da Lei n.º 113/2009, de 17 de Setembro e al. b) do art. 12º, da Lei 37/2015, de 5 de Maio, se mostram verificados.

16. Dos elementos de prova carreados para os autos, e tal como está descrito na sentença, resulta que o tempo decorrido desde a data do trânsito em julgado da sentença condenatória é pouco, o requerente não tem estado a trabalhar, tem tido acompanhamento psiquiátrico com terapêutica medicamentosa para a ansiedade, deseja obter colocação laboral como coordenador de todos os escalões da equipa de natação e da equipa master e pretende trabalhar directamente com atletas entre os 14 e os 20 anos de idade.

17. Estes factos não indicam que o requerente está reabilitado, que é de esperar que venha a conduzir a sua vida sem voltar a cometer crimes da mesma espécie e que é sensivelmente diminuto o perigo para a segurança e bem-estar de menores que poderia decorrer do exercício da profissão, emprego, função ou atividade a exercer.

18. O tribunal, ao concluir dessa forma, e afirmar que não se descortina uma disfunção de personalidade ou propensão para comportamentos sexuais desviantes do requerente, estribou-se tão só no facto do requerente ser bem considerado no meio social em que vive e tido como membro ajustado e inserido na comunidade, tendo conduzido a sua vida de forma socialmente responsável.

19. Factualidade que, a par da restante dada como certa na sentença, desde logo o pouco tempo decorrido após o trânsito em julgado da sentença condenatória e o acompanhamento psiquiátrico de que beneficiou, não permite depreender, sem mais, pela ausência uma disfunção de personalidade ou propensão para comportamentos sexuais desviantes do requerente.

20. Nenhum elemento clínico do foro psiquiátrico foi apresentado nos autos que suporte tal conclusão.

21. E a percepção e avaliação de tal circunstância requer conhecimentos especiais que o tribunal não detém.

22. Tanto assim é que o legislador, compreensivelmente, estabeleceu a exigência da realização prévia de uma perícia de carácter psiquiátrico, com intervenção de três especialistas, sujeita ao regime previsto no art. 163º do Código de Processo penal, que no caso não se verificou.

23. O tribunal ao deferir o cancelamento provisório do registo criminal do requerente violou o estabelecido nos arts. 4º, nºs 3, 4 e 5, da Lei n.º 113/2009, de 17 de Setembro, e 12º, al. b), da Lei 37/2015, de 5 de Maio.

24. Pelo exposto, requer-se que se revogue a decisão e determine a manutenção em vigor da inscrição constante do certificado de registo criminal do requerente.

Nestes termos, e pelos mais que V. Ex.as, com sabedoria, não deixarão de suprir, concedendo provimento ao recurso farão JUSTIÇA.”

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Por despacho proferido em 12.02.2024 foi o recurso regularmente admitido com regime de subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo - cfr fls 99.

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Respondeu ao recurso o recorrido, concluindo:

“1. Da sentença de fls. que determinou o “cancelamento provisório da decisão averbada no seu Certificado de Registo Criminal e mencionada no ponto a) do circunstancialismo dado como provado.”veio o Ministério Público interpor o presente recurso, invocando, em suma, que o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 4º, n.ºs 3, 4 e 5, da Lei n.º 113/2009, de 17/09 e 12º, al. b), da Lei 37/2015, de 5/05, em virtude de ter incumprido um dos pressupostos formais e dois dos requisitos substanciais indispensáveis à determinação do cancelamento provisório do registo criminal.

2. No que tange ao requisito formal de realização da perícia psiquiátrica, o Tribunal a quo dispensou a realização da perícia psiquiátrica, recusando a aplicação das normas constantes dos n.ºs 3 e 5, do artigo 4º da Lei n. 113/2009, de 17/09, com fundamento na sua inconstitucionalidade, por violação dos artigos 18º, 20º, n.º 1, e 26º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa cf. o douto despacho de fls., datado de 13.11.2023.

3. Tal recusa por parte do Tribunal a quo foi objeto de recurso obrigatório de constitucionalidade do douto despacho de fls. que dispensou a realização da perícia psiquiátrica, impetrado para o Tribunal Constitucional pelo Ministério Público, ao abrigo dos artigos 70º, n.º 1, alínea a), 72º, n.º 3 e 75º-A, todos da LOTC, à data de 16/01/2024,

4. Pelo que, quanto ao eventual (de)mérito da inobservância deste requisito formal, e tendo sido suscitada a questão da conformação constitucional das normas em causa, caberá ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre tal matéria.

5. Tanto mais que do despacho de 13.11.2023 não foi interposto qualquer recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra.

6. Por outro lado, a propósito dos requisitos substanciais previstos nos artigos 4º, n.º 4, in fine, da Lei n.º 113/2009, de 17/05 e artigo 12º, al. b), da Lei 37/2015, de 5/05, o Ministério Público lavra sempre no entendimento de que todos os crimes sexuais são, independentemente da sua natureza, indiciadores ou reveladores de uma predisposição sexual para…menores!

7. Pelo contrário, o raciocínio bem empreendido pelo Tribunal recorrido que legitimou, aliás, a decisão objeto de recurso de constitucionalidade, é o de que a condenação por crime sexual NÃO ENVOLVENDO uma vítima menor, não pode, de per si, sujeitar o condenado ao mesmo tratamento que lhe seria aplicável se o crime envolvesse menores.

8. Ou seja: um condenado por crime sexual não é nem tem de ser, nem se presume que seja, um agressor sexual de menores, efetivo ou em potência.

9. Os autos documentam que:

a) O requerente e recorrido é uma pessoa socialmente inserida, e que, ressalvada a condenação objeto dos presentes autos, não tinha quaisquer antecedentes criminais;

b) O requerente desde a data da prática do crime objeto dos presentes autos (31.12.2018) até à data da decisão condenatória (07.03.2022) não incorreu em qualquer recidiva;

c) O requerente foi condenado há mais de 2 (dois) anos, sem que sobre o mesmo penda qualquer suspeita sequer da prática de qualquer crime;

d) O requerente exerceu funções como treinador de natação por mais de 13 anos, sem qualquer incidente;

10. Constituindo uma manifesta VIOLÊNCIA e DESPROPORÇÃO que o recorrido tenha de aguardar 25 anos pelo cancelamento do seu registo criminal e, assim, na prática, 25 anos para voltar a exercer a sua profissão de treinador de natação,

11. Quando:

a) O crime de importunação sexual é o crime de menor gravidade na escala da criminalidade sexual, punível com pena de prisão até 1 (um) ano ou pena de multa até 120 dias;

b) O requerente foi condenado em pena de multa de 70 (setenta) dias; c) A vítima era maior de idade;

12. Nessa medida, a obrigatoriedade de sujeição do recorrido AA a uma perícia psiquiátrica, a concretizar por três especialistas, como condição sine qua non para o cancelamento do seu registo criminal, revelar-se-ia uma medida inequivocamente opressiva dos seus direitos à integridade moral e à reserva da intimidade da sua vida privada, o que violaria o disposto no artigo 26º da Constituição da República Portuguesa.

13. Tanto mais que, o requerente juntou aos autos, em 13.10.2023, um relatório médico emitido pelo Sr. Dr. BB, Ilustre Psiquiátrica conimbricense, que ao longo dos últimos dois anos tem vindo a acompanhar o recorrido, no qual se pode ler o seguinte: “Também em termos da sua personalidade não me parece ter propensão para comportamentos sexuais desviantes, concretamente com menores”.

14. Elemento que vem desmentir a alegação do Ministério Público de que nenhum elemento clínico do foro psiquiátrico foi junto aos autos que permitisse depreender pela ausência de uma disfunção de personalidade ou propensão para comportamentos sexuais desviantes do requerente.

15. Assim, a conclusão a retirar só poderá ser aquela a que se chegou na douta sentença ora recorrida, i. é., a existência de um prognóstico favorável no sentido de que o recorrido AA conduzirá a sua vida sem voltar a cometer crimes da mesma espécie, sendo sensivelmente diminuto o perigo para a segurança e bem-estar de menores que poderia decorrer do exercício da profissão, emprego, função ou atividade a exercer, e que o comportamento do recorrido AA demonstra que o mesmo se encontra reabilitado.

Termos em que, e melhores de Direito, e sempre com o douto suprimento de V. Exas., deve negar-se provimento ao recurso impetrado pelo Ministério Público, e, consequentemente, confirmar-se o decidido na douta sentença de fls., de 25.01.2024.”

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Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso interposto pelo Ministério Público na 1ª Instância.

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Cumprido o preceituado no art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, nada mais foi acrescentado.

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Colhidos os vistos legais foi o processo à conferência.

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Cumpre apreciar e decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO:

Dispõe o art. 412º, nº 1, do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelos recorrentes, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, consiste em saber:

- se  é necessária a realização da perícia de carácter psiquiátrico exigida pelas normas dos nºs 3, 4 e 5 da Lei nº 113/2009, de 17 de Setembro, e 2º da Lei nº 37/2015, de 5 de Maio;

- se estão verificados os requisitos substanciais, previstos nos nºs 3 e 4 do art. 4, da Lei n.º 113/2009, de 17 de Setembro e al. b) do art. 12º, da Lei 37/2015, de 5 de Maio.

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A decisão recorrida tem o seguinte teor:

“I. RELATÓRIO

Nos presentes autos de Processo de Cancelamento Provisório do Registo Criminal veio AA requerer o cancelamento provisório da condenação que consta no seu Certificado de Registo Criminal tal como derivada do processo n.º 323/19.....

Alegou, para tanto, que é licenciado em motricidade humana, tendo exercido a sua actividade profissional, ao longo de 15 anos e de forma exclusiva, no domínio da natação. No que a sobredita condenação, porque traz consigo o estigma de condenação pela prática de um crime de Importunação sexual, lhe tem colocado dificuldades para efeitos de colocação profissional. Até porque a sua profissão envolve contacto com indivíduos de todas as idades [sejam adultos, adolescentes ou menores de 16 anos]. Mais explicita que, estando próximo o limite temporal do subsídio de desemprego – que lhe irá importar a total perca de rendimentos próprios – logrou obter uma proposta de trabalho junto da A... em .... Necessitando, quer para ingressar nesse País, quer para assegurar a relação de trabalho, de remeter o seu certificado de registo criminal… O qual, a documentar a sobredita condenação, irá inviabilizar a sua colocação laboral!

Mais evidenciou que se encontra inserido familiar e socialmente, ostentando enquadramento laboral e comportamento insusceptível de censura criminal desde a data da condenação.

Para prova do pretendido, juntou aos autos Certificado de Registo Criminal, certidões da decisão condenatória e do despacho de extinção das sanções, declaração referente ao subsídio de desemprego, minuta do contrato de trabalho a celebrar com a A... e documentação para tal efeito peticionada. Mais arrolou testemunhas, as quais não foram inquiridas pois que o Requerente AA delas prescindiu ao ser confrontado com o teor do relatório social sob Ref. 630646.

O Tribunal determinou, oficiosamente, a elaboração de relatório social para aferir do enquadramento social e laboral do Requerente AA. Mais considerou [após recusar, por inconstitucionalidade, a aplicação do critério normativo extraído do artigo 4.º, n.º 3 e 5 da Lei n.º 113/2009, de 17 de Setembro, no sentido da imperatividade de realização da diligência probatória aí prevista para efeitos de cancelamento de toda e qualquer condenação por crime previsto nos artigos 152.º e 152.º-A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal] que não se justificava a realização de perícia psiquiátrica ao Requerente AA atenta a circunstância de o crime praticado se traduzir “numa Importunação sexual, sancionada com pena de multa, em que a vítima figurava como maior de idade e cuja prática não denota qualquer aparente transtorno de personalidade” [Ref. 3523304]

O Ministério Público, no seu elevado critério, pronunciou-se desfavoravelmente à pretensão do requerente [Ref. 3551417] por entender que a diligência probatória que este Tribunal considerou injustificada se mostrava “essencial e determinante para a análise e decisão da situação objecto destes autos, por imperativo legal (…)”. Sucede que, tendo sido proferido o sobredito despacho de recusa de aplicação desse mesmo sentido interpretativo por inconstitucionalidade, temos que, até que aquele seja eventualmente revertido pelo Tribunal Constitucional, aquele se afigura como a decisão que vale nos presentes autos e define a tramitação subsequente [até porque o recurso de constitucionalidade assume efeito devolutivo]. Isto, naturalmente, sem prejuízo da necessária reversão do processado observado a concluir aquele Superior Tribunal pela solvência constitucional da norma afastada [sendo então necessário sujeitar o Requerente AA à propalada perícia psiquiátrica com subsequente anulação dos actos ulteriores].

II. SANEAMENTO

O tribunal é competente.     

O processo é o próprio.

Não há nulidades, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

III. OS FACTOS E O DIREITO

1. Finda a instrução consideram-se provados os seguintes factos, com interesse para a boa decisão da causa:

a) No âmbito do processo n.º 323/19...., por sentença proferida em 7 de Março de 2022 e transitada em julgado em 10 de Março de 2023, foi o Requerente AA condenado pela prática de um crime de Importunação sexual,

b) Condenação que se deu em função da seguinte factualidade

1. O arguido é treinador de natação e, pelo menos durante meados de 2018 e inícios de 2019 foi treinador de natação do “B...”.

2. Entre ../../2018 e ../../2019, o arguido encontrava-se em ..., na ..., a realizar um estágio de natação com o referido clube.

3. CC era atleta de natação de alta competição do referido clube e, à data, era treinada pelo arguido, encontrando-se a realizar o referido estágio na ..., estando hospedada num hotel juntamente com a equipa e técnicos.

4. Na noite de 31/12/2018, no hotel onde se encontrava hospedado, o arguido ingeriu bebidas alcoólicas em excesso e, pelas 00h10 do dia 1/01/2019, ao ver que CC se ausentou para o seu quarto, foi ao encontro desta, questionando-a sobre tal atitude.

5. De seguida, o arguido agarrou no telemóvel de CC e, na posse do mesmo, saiu do quarto desta.

6. Após, fazendo uso do telemóvel de CC e fazendo-se passar por esta, o arguido decidiu enviar mensagens a DD, que se encontrava na sua residência, sita na Rua ...., ..., formulando propostas de teor sexual.

7. DD nasceu em ../../2000 e, à data era também nadadora de alta competição.

8. Assim, pelas 00h17 desse dia 01/01/2019, o arguido enviou a DD as seguintes mensagens escritas:

- Desculpa

- Queres ver o pauzão dele?

- Tenho foto linda.

9. Acto contínuo, entre as 00H20 e as 6h53 desse dia 1/01/2019, o arguido enviou a DD as seguintes mensagens:

- manda uma tua pa mim

- eu ia adorar

- de cuecas

- e dp nua

- tou sozinha

- quero meter dedos

- mas quero foto tua please

- preciso meter dedos com algo bom

- Manda foto tua please

- Ou vídeo

- anda

- tou com um russo

- tem um pau gigante

- só deixa filmar se vir

- já fodi

- ele quer ver-te

- fazemos vídeo depois

- ele tem pau gigante

- vais te passar

- toca um pouco e manda

- acabamos agora

- mostra so a meter dedos

- depois de chupar não é fácil

- fica logo pequena

- faz vídeo

- eu filmo a foda toda

- vou fode lo todo

- faz vídeo so pa me excitar

- E pa ver se fica mais duro

- mas faz c cueca para o lado

- sabes que eu adoro

- vais ver qdo o vires partir me toda não te arrependes

- vou chupar mais um pouco

- anda seu putao

- coça a ratinha

- va DD

- faz la vídeo

- ou tira foto da passarinha

- eu chupei e ele veio se não minha boca

- mas quero me vir com ele dentro de mim

- mas tb quero ver a tua coninha para me excitar um pouco mais

- mas faz um mini filme a esfregar a tua coninha

- DD manda lá vídeo

- Não me obrigues a publicar esta conversa em todo o lado

- vai ao WC e esfregas um pouco

- Olha DD

- Manda foto

- Ou publico a nossa conversa

- Es um putao

- quero ver a tua rata sua vaca de merda

- tens banha por todo o lado

- mas tua ratinha é gostosa

- fico fodida

- não me mostras a tua pachachinha

- DD sua puta

- ou mostras a rata ou amanhã vais ter uma surpresa desagradável

- não sejas a puta que és

- vou adorar ver o mundo a rir de ti seu putao

- metes te com a malta errada

- puta reles

- vou adorar humilhar-te

- puta reles

- vais passar a andar de cabeça para baixo.

10. Pelas 00h42, enquanto enviava as aludidas mensagens a DD, o arguido enviou a esta uma fotografia onde é visível um pénis erecto.

11. Com a descrita conduta, agiu o arguido com o propósito concretizado de importunar DD, praticando actos de carácter exibicionista e formulando propostos de teor sexual, bem sabendo que o fazia contra a vontade daquela, assim pondo em causa a sua liberdade sexual.

12. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente e tinha perfeito conhecimento de que a sua conduta era proibida e punida por lei.

c) O Requerente AA foi condenado, no âmbito da decisão descrita em a), numa pena de 70 dias de multa à taxa diária de € 12,00,

d) A qual foi declarada extinta por despacho proferido em 30 de Maio de 2023;

e) O Requerente AA é bem considerado no meio social em que se vive e tido como membro ajustado e inserido da comunidade,

h) Tendo conduzido, com excepção da situação que motivou a condenação descrita em a), a sua vida de forma socialmente responsável;

i) O Requerente AA reside com a sua progenitora [professora reformada] em ...,

j) Mantendo, por igual forma, laços com o progenitor,

k) Os quais o suportam e apoiam designadamente no plano económico;

l) O Requerente AA é licenciado em Motricidade Humana e tem vindo a exercer a sua actividade profissional, desde os seus 22 anos, no domínio da natação com incidência em atletas de diferentes idades,

m) Não logrando, desde a ocorrência dos factos descritos na sentença mencionada em b), conseguir vínculo de trabalho permanente,

n) Estando, actualmente, desempregado sem lograr colocação laboral em território nacional com término do subsídio de desemprego ocorrido em 11 de Outubro de 2023;

o) Foi oferecido um contrato de trabalho ao Requerente AA para exercer actividade como treinador de natação para um clube designado A... sedeado em ...,

p) Sendo que o Requerente AA, a lograr tal colocação laboral, irá figurar como o coordenador de todos os escalões da equipa de natação e da equipa master,

q) Pretendendo trabalhar directamente com os atletas entre os 14 e os 20 anos que participam já em competições internacionais;

r) O Requerente AA ingressou em estado depressivo em função dos factos vertidos em a) b) e k) a n) do circunstancialismo provado,

s) Tendo sido, nessa sequência, objecto de acompanhamento psiquiátrico regular com terapêutica medicamentosa para a ansiedade;

t) Nada mais consta do certificado de registo criminal do Requerente AA para além da condenação descrita em a).

2. Os factos dados por provados, quanto à condenação sofrida e extinção das penas, tiveram por base o CRC junto aos autos, a certidão das decisões condenatórias e de extinção das penas. Teve-se, por igual forma, em consideração o relatório social junto sob Ref. 631649 em conjugação com as declarações do próprio Requerente AA para efeitos de valoração das condições económicas, sociais e profissionais. Já quanto à perspectiva de colocação laboral do Requerente AA, a mesma flui da cópia do contrato de trabalho junto ao requerimento inicial e, por igual forma, do por aquele exposto quando precisa os moldes em que se irá desenvolver a correspondente actividade. Já o circunstancialismo referente à condição depressiva retratada em r) s), trata-se de quadro que resulta da declaração médica junta aos autos e cujo contexto foi precisado pelo próprio Requerente AA no âmbito das declarações prestadas.

3. Nos termos do disposto no artigo 12.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio [Lei de Identificação Criminal], pode o Tribunal de Execução de Penas determinar, estando em causa qualquer dos fins a que se destina o Certificado de Registo Criminal requerido nos termos dos n.º 5 e 6 do artigo 10.º, o cancelamento total ou parcial das decisões que dele deveriam constar. Exige, para tanto, o preceito em apreço que

a) Tenham sido declaradas extintas as penas aplicadas;

b) O interessado se tenha comportado de forma a que seja razoável supor encontrar-se readaptado;

c) O interessado haja cumprido a obrigação de indemnizar o ofendido, justificando a extinção da obrigação por qualquer meio legal, ou se provar a impossibilidade do seu cumprimento.

Não subsistem dúvidas que os sobreditos pressupostos se encontram verificados no caso sub judice.

Temos, para tanto e desde logo, que a pena aplicada de 70 dias de multa foi já declarada extinta. Resultando da matéria de facto dada como provada que a condenação em apreço resultou de situação pontual ou isolada. Que não é, pois, demonstrativa da forma como o requerente AA pautou e pauta a sua vida. Não lhe é, para tanto, conhecida a prática de qualquer actividade delituosa além daquela que ora curamos e cujo cancelamento provisório se pretende. No que o requerente AA não revela, claramente, uma qualquer tendência criminogénea… Sendo antes evidente que aquele ostenta uma conduta adequada e ajustada às regras de convivência comunitária a partir da condenação.

Por outro lado, o requerente AA está bem inserido socialmente e mostra-se pessoa bem conceituada no meio em que se insere. Igual integração se divisa no plano familiar e laboral, sendo, inclusivamente, necessidades específicas de uma visada ocupação laboral que demandam o presente impulso processual.

Não resultam, pois, quaisquer dúvidas que o requerente AA se encontra perfeitamente integrado, sem notícia de novas condenações ou comportamentos anti-sociais, pautando a sua vida de forma socialmente valorizada e nada resultando em seu desabono.

Concluímos assim que se mostram preenchidos os requisitos legais elencados no artigo 12.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio. Sucede que os n.ºs 3 e 4 do artigo 4.º da Lei n.º 113/2009, de 17 de Setembro, contêm exigência adicional para que se possa operar o cancelamento provisório quando esteja em causa crime previsto “nos artigos 152.º e 152.º-A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal”. Aí se estabelecendo que o TEP pode determinar o cancelamento provisório

(…) desde que já tenham sido extintas a pena principal e a pena acessória eventualmente aplicada, quando seja fundadamente de esperar que o titular conduzirá a sua vida sem voltar a cometer crimes da mesma espécie, sendo sensivelmente diminuto o perigo para a segurança e bem-estar de menores que poderia decorrer do exercício da profissão, emprego, função ou atividade a exercer.

Atente-se que a decisão constante da Ref. 3523304 – ou seja, a recusa de aplicação da norma por contrariedade à Constituição da República Portuguesa – não desonera o Tribunal de sindicar a exigência transcrita. Efectivamente, aquele despacho significa, tão somente, que, em tal ponderação, a sentença a proferir não carece de mobilizar forçosamente a propalada perícia psiquiátrica. Pois que a ponderação do requisito posto em relevo pelo legislador se mostra, in casu, passível de ser alcançada sem recurso a tal tipologia de diligência probatória. Ao ponto de não se ter determinado a realização deste mesmo acto em virtude de não se divisar qualquer relevância ou utilidade na correspondente materialização.

No que cabe aferir se, à luz das especificidades do caso concreto, é fundamentadamente de esperar que o Requerente AA não volte a cometer crimes de espécie equivalente ao que foi objecto da condenação. E, outro tanto, se é sensivelmente diminuto o perigo para a segurança e bem-estar de menores que poderá decorrer do exercício da profissão que envolva contacto regular com aqueles. Note-se que, na lógica e coerência já assumida no despacho de Ref. 3523304, tais raciocínios, se bem que se entrecruzem em determinados vectores, não se identificam entre si! Pois que, como se expendeu oportunamente naquela decisão,

(…)

Mas mostra-se também evidente que nem todo o crime que se manifeste em tal domínio ostenta a mesma gravidade e denota as mesmas tendências ou disfunções de personalidade! Recordemo-nos, para tanto, que os crimes contra a liberdade sexual evidenciam ilícitos tão díspares quanto a Coacção sexual, a Violação, o Abuso sexual, a Fraude sexual, a Procriação artificial não consentida, o Lenocínio e a Importunação sexual. Tipos incriminatórios manifestamente divergentes entre si e cuja única nota comum se cifra [e nem mesmo nisso se divisa total convergência doutrinária] no bem jurídico ofendido a indexar-se à liberdade sexual. A diferente antissocialidade desses ilícitos acha-se, aliás, bem expressa na moldura penal que o legislador reservou para o respectivo sancionamento. Divisando-se crimes que, no seu figurino mais simples, se mostram sancionados com pena de multa até 120 dias ou pena de prisão até 1 ano [como ocorre com a Importunação sexual e, ainda que conhecendo apenas esta última pena principal, a Fraude sexual].

Trata-se, pois, de uma realidade claramente distinta dos crimes positivados contra a autodeterminação sexual. Por referência à qual podemos afirmar que todos os tipos incriminatórios plasmados nos artigos 171.º a 176.º-B do Código Penal projectam uma particular gravidade. Ou, pelo menos, tendem a reflectir a existência de alguma psicopatia ou distúrbio de personalidade por parte do agressor [e daí a importância, em tais casos, de uma avaliação psiquiátrica].

Desta forma, quando o legislador introduz acriticamente todos os ilícitos de natureza sexual numa solução normativa cujo fim se dirige à protecção de menores contra a exploração sexual e abuso sexual de crianças não logra, em nosso entender, acomodar o princípio da proporcionalidade nas dimensões da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito. Pois que, com isso, transpõe efeitos e consequências claramente opressivos pois que direccionados a uma específica tutela e pensados em função de crimes de idêntica natureza e gravidade para uma panóplia de ilícitos de configuração claramente dissonante. E que, nalguns casos, em nada contribuem para aquela protecção…

Continuamos, pois, a afirmar que a prática do crime de Importunação sexual divisado ao Requerente AA não permite, por si, afirmar um qualquer perigo para a segurança e bem-estar de menores. No que o eventual raciocínio que se concretize em matéria de aferição se o Requerente AA «voltará a cometer crimes da mesma espécie» não influencia ou contende, em nada, com esse mesmo risco. Este continuará a ser, para todos os efeitos, equivalente com total independência da réplica a oferecer à temática dos perigos de recidiva no ilícito.

Ainda que assim não fosse, afigura-se que as duas exigências plasmadas nos n.ºs 3 e 4 do artigo 4.º da Lei n.º 113/2009 acolhem resposta positiva quando perspectivada em face do Requerente AA. Já dissemos supra que não é antecipável que este volte a cometer ilícitos! O Requerente AA evidencia um inequívoco enquadramento societário com inegável enquadramento familiar, social e laboral! Sendo, outro tanto, primário ao ponto de não se puder falar de qualquer percurso ou inclinação criminogénea. Até em função das consequências na vida pessoal e profissional que derivaram da condenação e que, estamos crentes, funcionaram como intimação bastante do Requerente AA. Legitimando-se, neste retrato, a conclusão que a condenação censurada resultou de ocorrência fortuita na correspondente vivência. Concretizada num contexto anómalo de ingestão excessiva de bebidas alcoólicas [ponto 4 da sentença mencionada na alínea b)] e sem que, a partir daí, se possa divisar uma qualquer disfunção de personalidade ou propensão para comportamentos sexuais desviantes! Tanto assim é que o mesmo não detinha antecedentes criminais previamente à condenação cujo cancelamento se deseja não obstante trabalhar, na ocasião, há 13 anos como treinador de natação.

Não é, em suma, de esperar que o Requerente AA conduza a sua vida com cometimento renovado de crimes contra a liberdade sexual ou, no que paralelamente releva, contra a autodeterminação sexual.

E também não se afigura que as circunstâncias do ilícito permitam afirmar a existência de um perigo relevante para a segurança e bem-estar de menores. Renova-se, nesta vertente, a constatação que a actuação criminosa pregressa foi dirigida contra maior de idade. Não denotando tal conduta, repete-se, uma psicopatia de natureza sexual que possa vir a ser eventualmente dirigida contra menores de idade. Sendo, pois, sensivelmente diminuto o risco que para estes poderá advir da possibilidade de o Requerente AA retomar profissão em que contacte com faixas etárias mais novas…

Estão, assim e em nosso entender, verificados os requisitos plasmados no artigo 12.º da Lei n.º 37/2015 e no artigo 4.º da Lei n.º 113/2009 para que se possa operar o cancelamento provisório da condenação em apreço. Devendo por isso proceder a pretensão do requerente AA.

IV. DECISÃO

Por todo o exposto, ao abrigo do disposto no art.º 12.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio, e no artigo 4.º da Lei n.º 113/2009, de 17 de Setembro, decide este Tribunal julgar procedente o pedido do requerente AA e, consequentemente, determina-se o cancelamento provisório da decisão averbada no seu Certificado de Registo Criminal e mencionada no ponto a) do circunstancialismo dado como provado.

Adverte-se o requerente AA que o cancelamento provisório supra concedido será revogado, nos termos do artigo 233.º do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade, caso o mesmo incorra em nova condenação por crime doloso e se se vierem a verificar os pressupostos da pena relativamente indeterminada ou da reincidência.

Custas pelo requerente AA, com taxa de justiça pelo mínimo.

Notifique e comunique à DSICCOC.

Proceda ao depósito da presente sentença, nos termos do n.º 5 do artigo 372.º do Código de Processo Civil ex vi artigo 154.º do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade.

..., 24/1/2024.”

*

III - Apreciando:

Por sentença proferida no processo 323/19.... o recorrido AA foi condenado pela prática de um crime de importunação sexual, p. e p. pelo at. 170º, do Código Penal, numa pena de 70 dias de multa, já declarada extinta por pagamento.

Por decisão de 24.01.2024, proferida pelo TEP de Coimbra, foi determinado o cancelamento provisório da referida condenação averbada no certificado de registo criminal de AA.

Discorda o MP de tal decisão, pelos motivos indicados no recurso.

Vejamos.

Dos pressupostos/requisitos para o solicitado cancelamento provisório do certificado de registo criminal:

A questão é regulada pelos seguintes preceitos legais:

Artigo 12.º, da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio - Lei de Identificação Criminal:

Cancelamento provisório

Sem prejuízo do disposto na Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, estando em causa qualquer dos fins a que se destina o certificado requerido nos termos dos n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º pode o tribunal de execução das penas determinar o cancelamento, total ou parcial, das decisões que dele deveriam constar, desde que:

a) Já tenham sido extintas as penas aplicadas;

b) O interessado se tiver comportado de forma que seja razoável supor encontrar-se readaptado; e

c) O interessado haja cumprido a obrigação de indemnizar o ofendido, justificado a sua extinção por qualquer meio legal ou provado a impossibilidade do seu cumprimento.

Artigo 4.º, da Lei n.º 113/2009, de 17 de Setembro

Identificação criminal

1 - Tratando-se de condenação por crime previsto no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, o cancelamento previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, ocorre decorridos 25 anos sobre a extinção da pena, principal ou de substituição, ou da medida de segurança, e desde que entretanto não tenha ocorrido nova condenação por crime.

2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, mantêm-se os critérios e prazos estabelecidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 15.º da Lei n.º 57/98, de 18 de Agosto, exclusivamente para efeito da interrupção prevista na parte final dessa alínea.

3 - Estando em causa o exercício de emprego, profissão ou atividade que envolva contacto regular com menores, o cancelamento provisório de decisões de condenação por crime previsto nos artigos 152.º e 152.º-A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, só pode ocorrer nas condições previstas nos números seguintes e no artigo 12.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio.

4 - Sem prejuízo do disposto no n.º 6 do artigo 10.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, estando em causa a emissão de certificado de registo criminal requerido para os fins previstos no artigo 2.º da presente lei, o Tribunal de Execução das Penas pode determinar, a pedido do titular, a não transcrição, em certificado de registo criminal requerido para os fins previstos no artigo 1.º da presente lei, de condenações previstas no n.º 1, desde que já tenham sido extintas a pena principal e a pena acessória eventualmente aplicada, quando seja fundadamente de esperar que o titular conduzirá a sua vida sem voltar a cometer crimes da mesma espécie, sendo sensivelmente diminuto o perigo para a segurança e bem-estar de menores que poderia decorrer do exercício da profissão, emprego, função ou atividade a exercer.

5 - A decisão referida no número anterior é sempre precedida de realização de perícia de carácter psiquiátrico, com intervenção de três especialistas, com vista a aferir a reabilitação do requerente.

(…) - sublinhados nossos.

O crime de importunação sexual, p. e p. pelo art. 170º, do Código Penal, consta do livro II, titulo I, capítulo V do Código Penal.

*

A - Da perícia de carácter psiquiátrico

Em suma, são requisitos:

- declaração de extinção das penas aplicadas;

- comportamento do interessado que justifique a suposição de que se encontra readaptado;

- cumprimento da obrigação de indemnizar o ofendido - ( comprovando a extinção da obrigação por qualquer meio legal, ou, sendo o caso, provando a impossibilidade do seu cumprimento.)

Acresce a exigência de que:

- seja fundadamente de esperar que o titular conduzirá a sua vida sem voltar a cometer crimes da mesma espécie, sendo sensivelmente diminuto o perigo para a segurança e bem-estar de menores que poderia decorrer do exercício da profissão, emprego, função ou atividade a exercer.

- e que a decisão ( prevista no artigo 4.º, da Lei n.º 113/2009, de 17 de Setembro) seja sempre precedida de realização de perícia de carácter psiquiátrico, com intervenção de três especialistas, com vista a aferir a reabilitação do requerente.

Certo é que o tribunal recorrido dispensou a realização da perícia psiquiátrica, pois com os fundamentos explanados no despacho de fls 66 a 71 que aqui se dão por reproduzidos, declarou a inconstitucionalidade das normas constantes dos n.ºs 3 e 5, do artigo 4º, da Lei n. 113/2009, de 17/09, na interpretação no sentido de que “estando em causa o exercício de emprego, profissão ou atividade que envolva contacto regular com menores, se deverá sempre – e, por conseguinte, sem possibilidade de ponderação da sua pertinência ou utilidade pelo julgador – realizar a perícia de carácter psiquiátrico em todo e qualquer procedimento tendente ao cancelamento provisório de decisões de condenação por crime previsto nos artigos 152º e 152º-A e no capítulo V do título 1 do livro II do Código Penal. E, designadamente, quando tal crime se traduza numa importunação sexual, sancionada com pena de multa, em que a vítima figurava como maior de idade e cuja prática não denota qualquer aparente transtorno de personalidade.” - cfr fls 71.

Deste despacho não foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra. Contudo, foi objecto de recurso obrigatório de constitucionalidade para o Tribunal Constitucional pelo Ministério Público, ao abrigo dos artigos 70º, n.º 1, alínea a), 72º, n.º 3 e 75º-A, todos da LOTC.

Entende também este Tribunal da Relação que não é correcta a obrigatoriedade do exame psiquiátrico a realidades criminais distintas como a importunação sexual e a violação ou o abuso sexual de crianças. Os tribunais são dotados de aptidão para, tendo em conta as concretas singularidades da situação em análise, decidir da necessidade ou não, da realização da dita perícia psiquiátrica.

No caso concreto afigura-se-nos manifestamente excessivo, desproporcional e desnecessário a sujeição do recorrido a tal exame. Veja-se que o recorrido foi condenado numa pena de 70 dias de multa, o que não deixa de traduzir uma diminuta gravidade e a ausência de tendências ou disfunções de personalidade, além de que a ofendida não era uma criança, pois à data DD tinha quase 19 anos de idade (nasceu em ../../2000 e os factos ocorreram em 01/01/2019).

A este respeito perfilhamos o entendimento do tribunal recorrido, quando conclui: “… que a condenação censurada resultou de ocorrência fortuita na correspondente vivência. Concretizada num contexto anómalo de ingestão excessiva de bebidas alcoólicas [ponto 4 da sentença mencionada na alínea b)] e sem que, a partir daí, se possa divisar uma qualquer disfunção de personalidade ou propensão para comportamentos sexuais desviantes! Tanto assim é que o mesmo não detinha antecedentes criminais previamente à condenação cujo cancelamento se deseja não obstante trabalhar, na ocasião, há 13 anos como treinador de natação.” O que surge corroborado pelo relatório médico junto a fs 56, subscrito por BB, psiquiatra, que além do mais declara que o recorrido “em termos da sua personalidade não parecer ter propensão para comportamentos sexuais desviantes, nomeadamente com menores.”

Assim, improcede este segmento do recurso.

B - Dos restantes pressupostos

 “A inscrição de uma condenação penal no registo criminal, ou seja, o registo criminal, visa, desde logo, defender a sociedade dos perigos que estão associados a determinado tipo de delinquência e de delinquentes, pois o acesso ao mesmo permite às autoridades judiciárias conhecer o passado criminal do investigado ou do arguido, dele extraindo as devidas e legais ilações. E permite também aos particulares conhecer o passado criminal das pessoas com quem têm de conviver. Ao conhecer-se o passado criminal, naturalmente que se acautelam ou, no mínimo, podem minimizar-se os referidos perigos” - Ac. da Relação do Porto, 29 de junho de 2022.

E tal como neste aresto se realça, cumpre lembrar que as penas visam também, e principalmente, a ressocialização do delinquente, pelo que necessariamente, tendo embora o registo criminal aquele efeito preventivo, não deve e não pode promover a estigmatização do condenado e não deve ser meio de evitar a sua socialização, contrariando a finalidade das penas.

Isto dito.

De acordo com os factos provados, que não foram impugnados, verifica-se que:

- a pena aplicada ao recorrido  já foi declarada extinta - FP d);

- inexiste condenação em obrigação de indemnização civil - cfr fls 30.

O Requerente AA é bem considerado no meio social em que se vive e tido como membro ajustado e inserido da comunidade - FP e).

Tendo conduzido, com excepção da situação que motivou a condenação descrita em a), a sua vida de forma socialmente responsável - FP h).

AA é licenciado em Motricidade Humana e tem vindo a exercer a sua actividade profissional, desde os seus 22 anos, no domínio da natação com incidência em atletas de diferentes idades- FP l).

Não logrando, desde a ocorrência dos factos descritos na sentença mencionada em b), conseguir vínculo de trabalho permanente - FP m).

Foi oferecido um contrato de trabalho ao Requerente AA para exercer actividade como treinador de natação para um clube designado A... sedeado em ... - FP o).

Sendo que o Requerente AA, a lograr tal colocação laboral, irá figurar como o coordenador de todos os escalões da equipa de natação e da equipa master - FP p);

O Requerente AA ingressou em estado depressivo em função dos factos vertidos em a) b) e k) a n) do circunstancialismo provado FP r).

Tendo sido, nessa sequência, objecto de acompanhamento psiquiátrico regular com terapêutica medicamentosa para a ansiedade - FP s).

Nada mais consta do certificado de registo criminal do Requerente AA para além da condenação descrita em a) - FP t).

Este quadro fáctico apurado legitima a conclusão de que a condenação em apreço resultou de situação pontual ou isolada, não sendo de modo algum demonstrativa da forma como AA vinha regulando a sua vida, sendo certo que também após aquela condenação adoptou uma conduta adequada e ajustada às regras sociais.

É portanto claro e manifesto que não revela qualquer tendência criminógena.

 A ter ainda em consideração que AA está bem inserido familiar e socialmente, sendo pessoa bem conceituada no meio em que se insere. No plano laboral tem perspectivas de celebrar o contrato referenciado no FP o), o que aliás determinou a solicitação do cancelamento.

O que justifica que o tribunal recorrido tenha concluído que o requerente AA “se encontra perfeitamente integrado, sem notícia de novas condenações ou comportamentos anti-sociais, pautando a sua vida de forma socialmente valorizada e nada resultando em seu desabono.”

E por outro lado, os contornos da prática do crime de importunação sexual, acima mencionados, não permitem afirmar “um qualquer perigo para a segurança e bem-estar de menores. Também não é antecipável que volte a cometer ilícitos, “em função das consequências na vida pessoal e profissional que derivaram da condenação e que, estamos crentes, funcionaram como intimação bastante do Requerente”.

Em suma, é fundadamente de esperar que o requerente conduzirá a sua vida sem voltar a cometer crimes da mesma espécie, sendo sensivelmente diminuto o perigo para a segurança e bem-estar de menores que poderia decorrer do exercício da profissão a exercer.

Por fim, importa realçar “a constatação que a actuação criminosa pregressa foi dirigida contra maior de idade”… não denotando tal conduta uma psicopatia de natureza sexual que possa vir a ser eventualmente dirigida contra menores de idade, sendo sensivelmente diminuto o risco que para estes poderá advir da possibilidade de o Requerente retomar profissão em que contacte com faixas etárias mais novas.”

Mostram-se assim verificados os elencados requisitos que são cumulativos.

Consequentemente, improcede o recurso interposto pelo Ministério Público.

*

Advertem-se os intervenientes processuais que o presente acórdão foi proferido porque o recurso de constitucionalidade interposto pelo MP assume efeito devolutivo, sendo que em caso de provimento daquele recurso, o acórdão do TC faz caso julgado nos presentes autos.

IV. Dispositivo

Em face do exposto, acordam os Juízes da quinta secção do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interporto pelo MP, mantendo-se na íntegra a decisão recorrida.

Sem tributação.

Notifique.

Coimbra, 22-05-2024

Elaborado e revisto pela relatora

Isabel Valongo

Paulo Guerra

Alcina da Costa Ribeiro