Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4055/23.1T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: OBRIGAÇÃO DE ALIMENTOS
PRESTAÇÃO DURADOURA PERIÓDICA
MONTANTE DA PRESTAÇÃO ALIMENTÍCIA DETERMINADA EM AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO PAULIANA
CASO JULGADO
Data do Acordão: 10/28/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – LEIRIA – JUÍZO CENTRAL CÍVEL – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 610º AL. A) E 611º, 614.º, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 265.º, N.ºS 2 E 3, 557.º, 588.º, 589.º E 611.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. - A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em ação anterior, com objeto parcialmente coincidente ou prejudicial face ao da ação posterior, visando evitar que a relação ou situação jurídica material definida pela sentença anterior seja definida de modo diverso por outra sentença, não se exigindo a identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir.

2. - Só ocorre autoridade de caso julgado na medida/limite do que foi apreciado e decidido, não obstando a que em novo processo seja decidido aquilo que não ficou definido no caso julgado anterior.

3. - Tendo transitado em julgado, contra os aqui autores, em ação anterior de impugnação pauliana, a decisão de considerar ineficaz, em relação à aqui ré (ali demandante), o contrato de transmissão em que aqueles figuraram como adquirentes, com referência a um crédito por alimentos devidos a menores, com um determinado montante creditório apurado, impõe-se a autoridade de caso julgado, quanto a tal montante, em posterior ação destinada a circunscrever/reconhecer o valor/quantum desse crédito para efeitos de execução.

4. - Na obrigação de alimentos a menores, o devedor não se encontra sujeito a uma prestação instantânea fracionada, em que o respetivo montante global, pré-determinado, fosse dividido em várias frações, a realizar sucessivamente, de molde a configurar uma única obrigação, originariamente constituída, com montante invariável.

5. - Ao invés, trata-se de prestações duradouras periódicas, verificando-se uma pluralidade de obrigações distintas, embora emergentes de um vínculo fundamental, mas em que não pode haver fixação inicial do respetivo montante global, com o decurso do tempo a determinar o próprio conteúdo da obrigação (e o número de prestações a realizar), abrindo a possibilidade de atualização ou alteração futura.

6. - Assim, o obrigado a alimentos só deve, em cada momento, as prestações já vencidas – circunscrevendo o crédito da contraparte –, e não as futuras, que somente se tornarão consistentes ulteriormente (no tempo próprio), não podendo ter-se por devidas de antemão.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

*

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

AA e BB, ambos com os sinais dos autos,

intentaram a presente ação declarativa, com processo comum, contra

CC, também com os sinais dos autos,

pedindo que:

a) Seja reconhecido que o valor do crédito da ré é de 21.515,84 euros;

b) Uma vez efetuado o pagamento à autora seja ordenado o cancelamento no registo predial, com referência à fração B do prédio sito na Rua ..., em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...18, da freguesia ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...68.º, da freguesia ..., das inscrições correspondentes à AP. ...36 de 2014/04/01 - Acção e ao AVERB - AP. ...47 de 2021/06/25 - Conversão em Definitiva, Decisão.

Alegaram, para tanto, que:

- por decisão judicial, transitada em julgado (confirmada pela 2.ª instância), foi julgada procedente ação de impugnação pauliana deduzida pela aqui R. (na qualidade de credora e ali A.) contra os aqui AA., enquanto adquirentes de direito sobre imóvel, alienado pelo devedor, também demandado em tal ação, na qual tal ora R. (ali demandante) alegou ser credora do devedor/alienante, por alimentos devidos a seus filhos, então menores, do montante de € 21.515,84, assim pedindo a declaração de ineficácia da venda impugnada;

- assim, o valor do crédito da ora R. é de € 21.515,84;

- porém, em execução instaurada pela aqui R. contra o devedor, onde se peticiona a quantia de € 86.509,15, foi penhorado o direito objeto de aquisição pelos aqui AA., para garantia do pagamento daquele montante exequendo, bem como juros e custas;

- os ora AA. deduziram embargos de terceiro, que foram a final julgados procedentes, determinando o levantamento daquela penhora;

- pretendem, por isso, os demandantes que seja fixado judicialmente o montante do crédito a considerar em € 21.515,84, com cancelamento de registos existentes, uma vez efetuado o pagamento daquele valor.

A R. contestou, deduzindo diversa matéria de exceção, para além de defesa por impugnação, tudo para concluir:

«Nestes temos, devem:

a)- ser julgadas procedentes, por provadas, as exceções supra deduzidas e em consequência ser a ré absolvida da instância;

b)- ou, se assim não se entender, deve a presente instância ser suspensa;

c)- caso, porém, assim não se decida, deve a ré ser absolvida do pedido ou, se assim não se entender, deve a ação ser julgada improcedente, por não provada, e em consequência ser a ré absolvida do pedido.

d)- ainda por mera cautela, procedendo algum dos pedidos formulados na douta p.i., deve a reconvenção ser julgada procedente, por provada, e em consequência serem os autores condenados a reconhecer que o crédito da autora é de 92.578,64 euros.

e)- em qualquer caso, e por mera cautela, deve ser deferido o incidente de intervenção provocada de DD, para o mesmo intervir nestes autos como auxiliar na defesa, com todas as legais consequências.

f)- Para tanto, ouvidos autor[e]s, requer a citação de DD, (…) seguindo-se os demais termos do artº. 322º e segs. do Cód. Proc. Civil.

Em qualquer dos casos, devem os autores ser condenados como litigantes de má fé, em multa do quantitativo que V. Exª. entender fixar e em indemnização a favor da ré no montante de 2.000,00 euros.».

Observado cabalmente o princípio do contraditório, foi proferido, em 08/01/2025, saneador-sentença, julgando:

a) Improcedente a matéria de exceção deduzida pela R., incluindo a exceção dilatória do caso julgado;

b) Admissível a reconvenção;

c) Inadmissível o incidente de intervenção principal provocada;

d) Em de conhecimento de mérito, «a acção parcialmente procedente, reconhecendo o valor do crédito da ré, perante os autores, em € 21.515,84 (vinte e um mil, quinhentos e quinze euros e oitenta e quatro cêntimos)» e «improcedente o pedido reconvencional, absolvendo os autores do mesmo».

Inconformada, a R. recorre do assim decidido – quanto às decisões, desfavoráveis, de procedência da ação e improcedência do pedido reconvencional e do pedido de condenação por litigância de má-fé –, apresentando alegação recursiva, onde formula as seguintes

Conclusões ([1]):

«1ª- Vem a presente apelação interposta da douta sentença proferida nos autos à margem identificados, julgou a ação parcialmente procedente, reconhecendo o valor do crédito da ré perante os autores, em € 21.551,84 (vinte e um mil, quinhentos e quinze euros e oitenta e quatro cêntimos), e julgou improcedente o pedido reconvencional, absolvendo os autores do mesmo.

2ª- Depois de mais de 10 anos de pleitos judiciais, para uma pessoa ter uma decisão transitada em julgado que declarasse a ineficácia, em relação à aqui recorrente, o negócio jurídico celebrado entre DD e os aqui recorridos e que a escritura de 28.07.2008 formalizou, no que à constituída fração autónoma designada pela letra “B”, condenando os aí réus, a reconhecer tal ineficácia do negócio em que participaram, relativamente à aí autora e, consequentemente, os segundo e terceiros réus a não se oporem à execução da fração “B” do prédio urbano descrito na C. R. Predial sob o n.º ...18 da freguesia ..., concelho ..., no seu património e que a mesma autora pratique, sobre a aludida fração autónoma, os atos de conservação de garantia patrimonial autorizados por lei, na medida necessária à satisfação dos seus interesses, tudo nos termos do artº. 616º e segs. do Código Civil.

3ª- Vieram os aqui recorridos pedir que se reconheça que o valor do crédito da aqui recorrente é de € 21.515,84 (vinte e um mil quinhentos e quinze euros e oitenta e quatro cêntimos), o que, em cerca de um ano, o Tribunal a quo decide que, afinal, na impugnação pauliana, a existência do crédito da aqui recorrente, foi liquidado em tal valor, sendo este esse o valor pelo qual poderia executar o património dos ora recorrido, adquirido ao devedor de alimentos (ainda que passados todos esses anos).

4ª- De acordo com a douta sentença em crise, o Tribunal a quo considerou com relevância para a decisão da causa, que resultam, da certidão junta com o requerimento de 09.09.2024, referente ao processo 2157/09.... que correu termos no Juízo Local Cível de Lisboa J2 e da certidão e peças juntas com a p.i. do processo executivo 7614/05...., os factos que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os legais efeitos.

5ª- Considerou o Tribunal a quo que com base dos factos dados por provados quer na sentença descrita em 3, quer na execução referida em 8 resulta de alimentos devidos por DD, o qual assume a posição de executado nesta última, sendo os autores, ora recorridos, são alheios à referida execução, sendo certo que a ré, ora recorrente, com base na sentença proferida na ação 2157/09...., tinha título bastante para instaurar contra os autores e contra DD o correspondente processo executivo, apesar de os primeiros não serem devedores dos alimentos. E se o tivesse feito poderia ter executado o património adquirido por aqueles a DD, mediante a escritura de 28.07.2008, por força da ineficácia reconhecida pela sentença proferida na ação 2157/09...., na medida do crédito, cuja existência também ali foi verificada.

6ª- Fundamentou aí o Tribunal a quo, que qualquer outro valor que o exceda a quantia de € 21.515,84, a ré, ora recorrida, só poderá reclamar do devedor principal, pois que sendo os autores, ora recorridos, alheios a tal obrigação, apenas se lhes impõe o crédito ali reconhecido, o que determina a procedência do pedido formulado por estes e a improcedência do pedido reconvencional.

7ª- Salvo o devido respeito e melhor opinião, entende a ora recorrente que andou mal o Tribunal recorrido ao assim ter decidido, porquanto a ação pauliana foi instaurada a 14.04.2009, cuja sentença veio a ser proferida a 14.02.2020 (muito além de um prazo razoável).

8ª- Em 14.04.2009 o crédito (vencido) da aqui recorrente, resumia-se a € 21.515,84, valor esse que aumentou significativamente ao longo dos vários anos de pleito judicial.

9ª- Não obstante, ter sido ultrapassado tal prazo razoável, verifica-se que os aqui recorridos interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, por considerarem que o douto tribunal não fixou o montante do crédito da aqui recorrente, à data em que a sentença foi proferida, o qual foi julgado improcedente e confirmada a sentença (por acórdão de 05.11.2020).

10ª- Assim, sumariando o dito e douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa no proc. n.º 2157/09...., resumidamente que na impugnação pauliana o conceito de má fé basta consciência do prejuízo em ambos os contratantes, que não podiam ignorar ou deixar de ter consciência do prejuízo que causaram aos restantes credores do alienante, que todos sabiam que existiam, tal como sabiam que o devedor não dispunha de outros bens aptos a satisfazer os seus créditos, procurando com o negócio salvaguardar o único bem que existia no património do devedor de vir a ser penhorado.

11ª- Em face disso, foi instaurada execução especial contra DD para pagamento da quantia de € 86.509,19, tendo os aqui recorridos aí deduzido embargos de terceiro, os quais foram julgados procedentes, por no caso, a execução ter sido instaurada apenas contra o devedor, tendo sido penhorado um bem imóvel propriedade dos terceiros, ai embargantes, bem esse que responde pela dívida em face da procedência da ação pauliana, sem que estes tenham sido executados.

12ª- Encontrando-se, até à presente data, por liquidar o crédito da aqui recorrente, crédito esse por alimentos devidos aos filhos enquanto foram menores, e que em 2008 era já de valor superior a € 20.000,00 (vinte mil euros), ao que se somaram as prestações vencidas e não contabilizadas em tal valor, por a aqui recorrente não poder satisfazer o direito até decisão transitada em julgado.

13ª- Sendo o crédito da aqui recorrente à data da apresentada contestação/reconvenção de € 92.578,64, o que os recorridos sabem e sempre souberam, ademais, porque foram parte/intervenientes quer na ação pauliana e na execução especial por alimentos nos próprios autos no valor de 86.509,15 euros à data da apresentação do requerimento executivo – 24-06-2021, valor esse que não foi impugnado e que os próprios atribuíram aos apresentados embargos de terceiro.

14ª- A recorrente opõe-se frontalmente ao resultado interpretativo feito pelo douto Tribunal a quo, no que respeita à fixação e liquidação do montante do crédito, designadamente no que concerne à interpretação do que foi decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no facto 7.

15ª- Não pode a recorrente deixar de invocar que, no seu entendimento, a sentença aqui posta em crise, desrespeita o princípio do trânsito em julgado da decisão que configura o título executivo, porquanto o segmento condenatório em causa é claro e sem qualquer contradição ou ambiguidade, reconhecendo-se à aqui recorrente executar o património alienado aos aqui recorridos para pagamento do crédito, sendo que tal condenação lhe permite obter através daquele património, não apenas o crédito aludido no facto 2, mas ainda, as prestações que se venceram ao longo dos anos e que ainda não foram pagas.

16ª- Com o devido respeito, o Tribunal recorrido interpretou e aplicou erradamente esse instituto e ainda o disposto no artº. 621º do CPC e os contornos da ação de impugnação pauliana melhor descritos nos factos 2 a 7, na medida em que entendeu que, para além do reconhecimento da existência de um crédito (requisito prévio), também entendeu que o montante exato desse crédito seria naturalmente relevante para apreciação da relevância do ato impugnado, o contrato de compra e venda de 28.07.2008, na impossibilidade para o credor de obter a satisfação plena do seu crédito ou agravamento dessa impossibilidade.

17ª- E não sendo essa a questão central, considerou o Tribunal recorrido, que não deixou o Tribunal que julgou a referida ação pauliana de o analisar e fixar em função do pedido formulado pela ali autora (o crédito que liquidou na p.i.), o que não se aceita.

18ª- In casu, quando da sentença proferida em sede de ação de impugnação pauliana resulta não só o reconhecimento do crédito da aí autora, aqui recorrente, sobre o aí co-reú DD (devedor) por alimentos devidos aos seus filhos, à data menores, mas também a declaração da ineficácia, em relação à autora (credora) do negócio jurídico celebrado entre os aí réus e que a escritura de 28.07.2008 formalizou, no entanto à constituída fração autónoma designada pela letra “B” do prédio sito na Rua ..., em ..., condenando os réus a reconhecer tal ineficácia do negócio em que participaram, relativamente à autora e, consequentemente, os segundo e terceiros réus a não se oporem à execução da fração “B” do prédio urbano descrito na C. R. Predial sob o n.º ...18 da freguesia ..., concelho ..., no seu património e a que a mesma autora pratique, sobre a aludida fração autónoma, os atos de conservação de garantia patrimonial autorizados por lei, na medida necessária à satisfação dos seus interesses, tudo nos termos do artº. 616º e segs. do C. Civil.

19ª- O crédito reconhecido à autora, ora recorrente nessa dita e douta sentença é o que resulta, do incumprimento do poder paternal verificado no proc. n.º 7614/05...., que correu termos pelo 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Leiria (que para a promoção da execução quanto à quantia a que nela foram condenados, e a obrigação por ela titulada é certa (qualitativamente determinada), (i)líquida (quantitativamente determinada e determinável) e exigível (porque vencida), em observância do prescrito no artº. 713º CPC, pelo que dever-se-á concluir pela suficiência de título executivo, o qual, por eficaz, poderá dar vida à ação executiva – que aliás é referido pela sentença.

20ª- Para além disso, o valor do crédito da credora, corresponde ao crédito detido sobre a devedor principal e reconhecido na ação de impugnação pauliana que em 2009, era já de € 21.515,84, ao que terá de somar-se o valor das prestações que se fossem vencendo quer ao longo do pleito judicial acrescido dos juros de compulsórios e moratórios, uma vez que estando em causa o incumprimento reiterado da obrigação do pagamento da pensão de alimentos devida a filhos menores, não está o outro obrigado a recorrer a sucessivos incumprimentos da mesma decisão.

21ª- Assim sendo valor liquidado na dita ação pauliana terá de abranger quer os valores em dívida à data da propositura da mesma, como todas as prestações vencidas na sua pendência e as vincendas, juros moratórios e compulsórios, salvo prova de pagamento.

22ª- Assim, face ao teor das decisões proferidas, designadamente na aludida ação pauliana, a aqui recorrente tem título executivo que permita fundar a instauração de uma ação para pagamento de quantia certa, relativamente ao seu crédito, o que que esvazia de conteúdo o objetivo destes autos, porque inútil e desnecessário, pelo que mal andou o Tribunal a quo ao considerar verificada a existência do crédito da ré, autora na ação de impugnação pauliana, liquidado em € 21.515,84, sendo esse o valor pelo qual poderia executar o património dos autores, adquirido ao devedor de alimentos.

23ª- No nosso modesto entender, da análise critica e objetiva de todos os elementos carreados para os autos, levaria a proferir decisão diversa, sendo que à quantia de € 21.515,84 acresce o valor prestações vencidas e vincendas até efetivo e integral pagamento, bem ainda dos juros moratórios e compulsórios devidos (nem podia ser, salvo o devido respeito, de outra forma, tendo em conta a duração de mais de 10 anos desse pleito judicial).

24ª- A douta sentença ora em crise na apreciação do caso merece censura porquanto, da matéria dada como provada e da respetiva fundamentação, é de concluir que é o resultado de uma incorreta apreciação/interpretação e da necessária valoração crítica do conjunto das doutas sentenças, pelo que, com o devido respeito, é entendimento da aqui recorrente que essa prova foi indevidamente analisada, ponderada, conjugada de forma contraditória, imprecisa e confusa, tal como consta da douta sentença.

25ª- São dois os requisitos gerais exigidos pela lei para que o credor possa lançar mão da impugnação pauliana: a) que o ato impugnado cause prejuízo à garantia patrimonial do crédito; b) que o crédito seja anterior ao ato impugnado. Factos que foram comprovados pelas decisões do processo declarativo.

26ª- A sentença proferida em sede de ação pauliana, em que o seu objeto é a da reconstituição da garantia patrimonial do crédito da impugnante na medida do interesse da autora naquela ação, é o que resulta da reconvenção formulada pela ré, que à data era de € 92.578,64.

27ª- Significa isto que a referida sentença proferida no processo n.º 2157/09...., comprova que existia, nessa data, um crédito de € 21.515,84, mas tal referência destina-se apenas a delimitar, por referência a essa data, a extensão da ineficácia do negócio (2009) relativamente à aí autora e, consequentemente, os segundo e terceiros réus a não se oporem à execução da fração “B” no seu património e a que a mesma autora pratique, sobre a aludida fração autónoma, os atos de conservação de garantia patrimonial autorizados por lei, na medida necessária à satisfação dos seus interesses.

28ª- A medida do interesse da aí autora, no caso, é o pagamento do crédito por referência ao qual foram verificados os pressupostos da impugnação pauliana e, em direta decorrência da verificação desses, declarada procedente essa mesma impugnação, que à data da instauração da já era superior a € 20.000,00, cuja sua atualização, terá de decorrer de um simples cálculo aritmético – devendo o valor ser determinado e titulado, pelo menos, à data da prolação da sentença que julgou procedente a ação de impugnação pauliana.

29ª- Foi para reconstituir a garantia patrimonial desse crédito que foi interposta, e que foi declarada procedente a ação de impugnação pauliana, que permite ao credor executar, no património dos obrigados, o imóvel objeto dessa aquisição na medida do interesse (do crédito) do impugnante, caso contrário, ocorrerá o “esvaziamento” incompreensível da sentença dessa ação.

30ª- Ademais, o art.º 614.º, n.º 1, do C. Civil admite que o credor, cujo crédito já se constituiu, mas ainda não se venceu, possa recorrer à impugnação pauliana e também o titular de crédito simplesmente ilíquido tem o direito de utilizar a impugnação pauliana (cfr. VAZ SERRA, em Responsabilidade patrimonial, no B.M.J. e Almeida Costa, em Direito das obrigações) uma vez que nesta situação o crédito já é certo e exigível, faltando apenas determinar o seu exato montante (cfr. João Cura Mariana, em Impugnação pauliana, 2.ª edição Revista e Aumentada, págs. 166 a 168).

31ª- Efetivamente, tal como sucedeu seguramente no caso vertente, aquando da constituição do crédito, o credor toma normalmente em consideração a situação patrimonial do devedor, pelo que é com essa situação que deve poder contar para efeitos da garantia geral, e como tal admite-se que o credor possa reagir contra posteriores atos do devedor que afetem essa garantia (escritura de compra e venda de 28.07.2008, pois que, como se viu, um crédito derivado do incumprimento do poder paternal no processo n.º 7614/05....), não dispondo o co-réu DD de qualquer outro bem, o que impossibilita a cobrança do crédito da ora recorrente.

32ª- Não era necessário, o concreto conhecimento do valor em dívida do devedor pelos terceiros, bastando a mera consciência, por parte desses sujeitos, de que do ato resulta prejuízo para os seus credores, consciência essa que, in casu, se encontra provada na douta sentença de impugnação pauliana.

33ª- O argumento de que na data da instauração da impugnação pauliana se tenha procedido à liquidação por apenas € 21.515,84 terá de ser analisado e interpretado por esse esse o valor das prestações em dívida nessa data, acrescendo as todas as que nessa data ainda não eram exigíveis, mas que os ora recorridos sabiam disso e que o negócio celebrado entre o devedor e os ora recorridos resultava na impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito sobre o devedor por este, em suma, não ter mais bens.

34ª- Acresce ainda, que o titular de crédito simplesmente ilíquido tem direito de utilizar a impugnação pauliana, uma vez que nesta situação o crédito já é certo e exigível, faltando-lhe apenas determinar o seu exato montante.

35ª- Pelo que, mal andou também, o Tribunal a quo na parte em que decidiu que qualquer outro valor que o exceda só o poderá reclamar do devedor principal, pois sendo os autores alheios a tal obrigação, apenas se lhes impunha o crédito ali reconhecido, o que determinou a procedência do pedido formulado pelos autores e a improcedência do pedido reconvencional, padecendo a douta decisão do vício de excesso de pronúncia, previsto na alínea d), segunda parte, do nº 1 do artº. 615º do CPC, devendo, nesta parte, ser declarada nula.

36ª- Tendo em conta que a decisão recorrida expressa o entendimento de que a sentença proferida no âmbito da ação de impugnação pauliana constitui título executivo que permita ao credor fundar, uma ação executiva para pagamento da quantia certa, condenou, salvo o devido respeito, não só no reconhecimento do crédito da aí autora, mas também a declaração da ineficácia, em relação à autora (credora) do negócio jurídico celebrado a 28.07.2008, condenando os réus a reconhecer tal ineficácia do negócio em que participaram, relativamente à autora e, consequentemente, os segundo e terceiros réus a não se oporem à execução da fração “B” no seu património e a que a mesma autora pratique, sobre a aludida fração autónoma, os atos de conservação de garantia patrimonial autorizados por lei, na medida necessária à satisfação dos seus interesses, podendo o bem ser executado no património dos segundos réus adquirentes (cfr. facto 4) , tudo nos termos do artº. 616º e segs. do C. Civil

37ª- A sentença contém, portanto, um comando condenatório quanto aos adquirentes, porque implicitamente os condena a suportar a execução do bem no seu património, e condena a reconhecer o crédito demonstrado pelas decisões mencionadas nos factos dados por provados quer na sentença descrita em 3, quer na execução referida em 8 que resulta de alimentos, e declara essa ineficácia e permita a afetação do património do adquirente faça caso julgado quanto ao devedor para que o adquirente possa atuar contra ele para exercer os direitos que lhe faculta o art.º 617º C. Civil.

38ª- Não se percebe o entendimento perfilhado pelo douto Tribunal, porquanto salvo o devido respeito, nessas exatas circunstâncias, o crédito encontra-se perfeitamente definido no seu objeto e quanto aos respetivos sujeitos em termos de se poder determinar os limites da pretensão executiva exigidos pelo n.º 5 do artº. 10º do CPC, nomeadamente para os efeitos da execução do bem a penhorar no património dos adquirentes, de harmonia com o disposto nos atrºs. 616º, n.º 1, e 818º, 2ª parte do C. Civil e do artº. 735º, n.º 2 do CPC, impondo-se que seja considerado a totalidade do valor liquidado na reconvenção deduzida pela aqui recorrente, o qual deveria ter sido julgado totalmente procedente.

39ª- Caso assim não se entenda, ainda que na ação pauliana o apuramento da existência do crédito do impugnante (cuja prova lhe cabe) seja pressuposto da sua procedência (cfr. artºs. 610º al. a) e 611º do C. Civil), então a sentença não condena, sequer implicitamente, o devedor no pagamento de qualquer valor. A referência ao crédito destina-se apenas a delimitar a extensão da ineficácia da alienação do imóvel realizada pelo devedor ao adquirente (nessa data) e, inerentemente, a delimitação da garantia real e limite até ao qual pode ser atingido o bem do adquirente.

40ª- É certo que a sentença da impugnação pauliana proferida a 14.02.2020 faz referência a um crédito da autora no valor de € 21.515,84, mas tal referência destina-se apenas a delimitar a extensão da ineficácia da alienação do imóvel em causa, à data da instauração dessa mesma ação, ainda que o respetivo valor fosse aumentando ao longo do tempo, ascendendo atualmente, a, pelo menos, € 94.033,53, valor que foi liquidado a 10.09.2024, no processo executivo que corre sob o n.º 7614/05...., do Juízo de Família e Menores de Leiria, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, cuja cópia desse requerimento executivo (superveniente à data da contestação/reconvenção valendo como prova documental adicional, juntando-se com a motivação de recurso por não ter sido possível antes) afigura-se necessária a junção para inferir-se que contrariamente ao sentenciado, o valor do crédito da ora recorrente reconhecido na ação pauliana é liquidado (à data da apresentação) dessa execução (10.09.2024), que desde já se requer, nos termos do disposto no artº. 651º, n.º 1, do CPC, que ora se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.

41ª- Os factos alegados nesse requerimento executivo são do conhecimento dos aqui recorridos, que tiveram conhecimento dos mesmos à data dele, já que também aí apresentaram oposição à execução por embargos nos termos dos artºs. 728º e segs. do CPC.

42ª- Sendo absolutamente essencial a consideração dos factos e fundamentos constantes desse documento, que de forma cabal concretiza os exatos termos e extensão desse procedimento executivo, apelando ao doutamente decidido, designadamente nas decisões proferidas no incumprimento do poder paternal e na ação de impugnação pauliana.

43ª- Nunca se perdendo de vista que o crédito sub judice não é um crédito qualquer, trata-se de um crédito de alimentos devidos a menores, reconhecido na ação de incumprimento do poder paternal, crédito esse que se vence automaticamente sem necessidade de intentar sucessivos incumprimentos, ou seja, no decurso dessa ação, o referido crédito continuou a vencer-se, apesar do valor não ter sido atualizado como fez na reconvenção deduzida nos presentes autos.

44ª- Olvidou o douto Tribunal a quo, que o crédito é apenas um, o que separa a ré da douta decisão ora recorrida, é que esta decide os presentes autos, como se se tratasse de um crédito diferente dos presentes autos. A exequibilidade da referida sentença pauliana, quanto ao crédito ali reconhecido, embora não resulte diretamente do dispositivo dessa sentença, decorre claramente do contexto da respetiva fundamentação não só no respeitante à existência do crédito, mas também a atestação na incorporação da sentença proferida no processo de incumprimento do poder paternal n.º 7614/05...., o qual constitui, também título executivo nos termos do artº. 703º, n.º 1, al. a) do CPC.

45ª- Ou, caso assim não se entenda, sempre ressalvando o devido respeito, sendo a sentença da ação de impugnação pauliana, no caso, dirigida apenas para a obtenção dos efeitos previstos no artº. 616º do C. Civil.

46ª- Face ao que se evidencia, é patente que a aqui recorrente cumpriu o reconhecimento e titulação do crédito, anterior à impugnação pauliana e no decurso da mesma, que é reconhecida e declarada na sentença da ação pauliana cuja execução se visa, no processo executivo com o n.º 7614/05...., que corre termos pelo Juízo de Família e Menores de Leiria, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, apresentado em juízo em 10.09.2024, no valor de € 94.033,53, valor que está assegurado pela douta decisão proferida nos autos de ação pauliana e cuja execução não podem os aqui recorridos se oporem à execução da mencionada fração “B”, no seu património na medida necessária à satisfação dos interesses da aqui recorrente, tudo nos termos do artº. 616º e segs. do C. Civil.

48ª- A douta sentença em crise violou, por erro de interpretação e de aplicação, o disposto, nomeadamente, nos normativos dos 704º, 709º, 735º do CPC, e dos artºs. 616º e segs. e 818º do C. Civil.

49ª- Pelo exposto, pede-se e impõem-se a revogação da sentença recorrida, proferindo-se, em seu lugar, acórdão que julgue improcedente a ação dos autores, ora recorridos, e julgue procedente o pedido reconvencional formulado pela ré, ora recorrente, condenando os autores no mesmo, bem ainda, condenando-os como litigantes de má fé por saberem que o crédito da recorrente se encontra já reconhecido, e que durante 15 anos tudo têm feito têm feito para inviabilizar esse pagamento à recorrente, assim se fazendo a melhor justiça aplicável ao caso.

Nestes termos, deve ser concedido provimento à apelação, decidindo-se como se propugna nas presentes conclusões, se fará a necessária e costumada

JUSTIÇA!».

Foi apresentada contra-alegação pelos AA./Recorridos, concluindo estes pela total improcedência do recurso.

O recurso foi admitido como de apelação, com o regime e o efeito fixados no processo ([2]), tendo sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido tal regime fixado. 

Nada obstando, na legal tramitação recursiva, ao conhecimento do mérito da apelação, cumpre apreciar e decidir, sendo certo que, por decisão do relator de 07/07/2025, foi rejeitada a “junção da documentação apresentada pela Recorrente com a sua peça recursiva, ordenando-se, por isso, o seu desentranhamento”, do que não foi apresentada reclamação.

II – ÂMBITO DO RECURSO

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo fixado nos articulados das partes – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que definem o objeto e delimitam o âmbito recursivo ([3]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, está em causa na presente apelação conhecer das seguintes questões ([4]):

a) Nulidade da decisão recorrida, por vício de excesso de pronúncia (conclusão 35.ª);

b) Não impugnação da decisão de facto (conclusão 24.ª);

c) Erro de julgamento de direito, quanto ao montante do crédito da R. a considerar, com implicações na (im)procedência da ação e da reconvenção, e, bem assim, quanto à não condenação dos AA./Recorridos como litigantes de má-fé (conclusões 25.ª a final).

III – FUNDAMENTAÇÃO

A) Nulidade da sentença

Vem a Apelante esgrimir, em matéria de nulidade do saneador-sentença recorrido, que ali se conheceu de questão(ões) de que não deveria ter-se conhecido, incorrendo-se, assim, no vício de excesso de pronúncia (conclusão 35.ª, em conjugação com o expendido a ps. 21 da motivação de recurso, correspondente a fls. 217 v.º do processo físico).

Trata-se, pois, da invocação da causa de nulidade da sentença a que alude o art.º 615.º, n.º 1, al.ª d), do NCPCiv., que comina com a nulidade da decisão judicial o vício que se traduz em o juiz deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou, ao invés, conhecer de questões de que não pudesse tomar conhecimento, sendo esta última vertente a aqui em causa.

Na 2.ª parte do n.º 2 do art.º 608.º do mesmo NCPCiv. prescreve-se que não pode o juiz ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras, questões essas que, naturalmente, deverá apreciar, a não ser que devam ter-se por prejudicadas.

Vem sendo entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência o de que somente as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o thema decidendum, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista nesse preceito legal.

De acordo com Amâncio Ferreira, “trata-se de nulidade mais invocada nos tribunais, originada na confusão que se estabelece com frequência entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos no decurso da demanda” ([5]).

E, segundo Alberto dos Reis, “são na verdade coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” ([6]).

Ora, no caso dos autos a Apelante não esclarece – e competia-lhe fazê-lo, com vista à demonstração do vício, fosse nas suas conclusões ou, ao menos, no âmbito da sua antecedente motivação – em que se traduz, concretamente, a causa de invalidade, não circunscrevendo nem identificando qual a questão que foi conhecida e que não o poderia ter sido.

Com efeito, o normativo do art.º 639.º, n.º 1, do NCPCiv. é claro ao impor à parte recorrente o ónus de alegar e formular conclusões, âmbito em que lhe cabe, inexoravelmente, o dever de fundamentar “por que pede a anulação da decisão”, a respetiva invalidade.

Não o fazendo, logo decairá, por isso, na correspondente arguição.

Ora, como referido, in casu a Apelante não o fez: não fundamentou o vício invocado de excesso de pronúncia, ao não circunscrever, nem sequer identificar, a questão em sentido técnico que tenha sido indevidamente conhecida.

Termos em que improcede, sem necessidade de outras considerações, a invocação de nulidade da sentença em crise.

B) Da não impugnação da decisão relativa à matéria de facto

         Embora aludindo, na sua conclusão 24.ª, a prova (documental/“doutas sentenças”) que “foi indevidamente analisada, ponderada (…)”, a Recorrente não mostra, na realidade, ser sua intenção impugnar a decisão relativa à matéria de facto, não expressando essa vontade impugnatória na sua peça recursiva.

         Com efeito, em parte alguma declara pretender proceder a essa impugnação, ter na mira recursiva a decisão de facto proferida.

Assim, não afirma, nem mostra pretender, impugnar a decisão de facto.

Mas, se assim não se entendesse, certo é que não teria cumprido os ónus a cargo do impugnante da decisão de facto: (i) não diz/especifica quais os factos erradamente julgados; (ii) nem qual a diversa decisão a proferir, de molde a corrigir o erro de julgamento de facto; (iii) nem à luz de que concretas provas e por qual caminho argumentativo.

Termos em que, se impugnação houvesse, a mesma estaria forçosamente votada à liminar rejeição, de acordo com a norma imperativa do art.º 640.º, n.º 1, do NCPCiv..

No mais, tendo a Recorrente pretendido juntar prova documental na fase recursiva, seguro é que a prova pretendida não foi admitida, termos em que também por esta via frustrada ficou qualquer eventual pretensão de alteração da decisão de facto (com base em tal tardia prova documental).

Nada, pois, a alterar à decisão de facto do saneador-sentença em crise.

 

C) Do quadro fáctico da causa

Na 1.ª instância foi julgada assente a seguinte matéria de facto ([7]):

«1- A aqui ré instaurou, entre outros, contra os aqui autores a referida acção [processo 2157/09....] pedindo:

a) que seja declarado nulo, por simulação absoluta, o contrato de compra e venda formalizado pela escritura pública celebrada entre os Réus, no dia 28.7.2008, exarada a fls. 46 a 47, verso, do Livro de Notas para Escrituras Diversas nº ...5 do Cartório Notarial da Notária Drª EE, sito em ..., restringindo-o à fracção autónoma designada pela letra “ B “ e,

b) que seja ordenado o cancelamento do registo de aquisição da fracção “ B “ do prédio urbano descrito na C. R. Predial ... sob o n.º ...18 da freguesia ..., concelho ..., efectuado pelos segundo e terceiros Réus com base na escritura aludida em a) bem como todos os que venham eventualmente a fazer.

Subsidiariamente e para a hipótese de não ser julgado procedente o pedido formulado em a) e inerente pedido elencado em b):

c) a declaração de ineficácia, em relação à Autora, do negócio jurídico celebrado entre os Réus e que a escritura de 28.7.2008 formalizou;

d) a condenação dos segundo e terceiros Réus a reconhecer a ineficácia do negócio em que participaram, relativamente à Autora e, consequentemente, a não se oporem à execução da fracção “ B” do prédio urbano descrito na C. R. Predial sob o n.º ...18 da freguesia ..., concelho ..., no seu património e ainda que a mesma Autora pratique os actos de conservação de garantia patrimonial autorizados por lei, na medida necessária à satisfação dos seus interesses, tudo nos termos do artº 616 e segs. do C. Civil.

2- Para fundamentar os pedidos referidos em 1, na mesma acção, entre o mais, alegou a aqui ré ser credora do ali primeiro réu, por alimentos por este devidos a seus filhos, então menores, da quantia de € 21.515,84 e que este, por escritura de 28.7.2008, declarou vender aos demais réus (aqui autores) 1/3 do prédio aludido supra quando, na verdade, tal venda foi simulada, por nem o ali primeiro réu lhes ter querido vender nem os aqui autores lhe terem querido comprar tal quota do prédio, não tendo sido pago o preço, como declarado em sede da referida escritura.

Mais alegou que, ao efectuarem a referida venda, os aqui autores pretendiam subtrair o prédio do património do ali primeiro réu, para impedir a aqui ré de satisfazer, por força do mesmo, o seu direito de crédito sobre o primeiro demandado; que o preço declarado como pago é inferior ao valor real do imóvel e sua quota parte; que os aqui autores sabiam que o ali primeiro primeiro réu tinha uma dívida para com a aqui ré e estava desempregado; e que, face àquela venda, não conseguiria a demandante lograr a realização coactiva do seu crédito.

3- Na referida acção foram dados por provados, entre outros, os seguintes factos:

1- Correu termos no 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Leiria o processo de incumprimento do poder paternal nº 7614/05...., relativo aos três menores FF, GG e HH, no qual eram partes a mãe e ora Autora, CC e o pai, ora 1º Réu, DD.

2- A fls. 109 a 111 desses autos, em 3 de Dezembro de 2007, em audiência de discussão e julgamento, houve conciliação das partes, fixando-se o montante em dívida, até final de Novembro de 2007, a cargo do ora 1º Réu, na quantia de 14.435,84 Euros ( catorze

mil, quatrocentos e trinta e cinco euros e oitenta e quatro cêntimos ) e reduzindo-se a pensão de alimentos para 500,00 Euros ( quinhentos euros ).

3- Acordaram, ainda nessa audiência, que o ora 1º Réu, DD, pagaria a dívida de 14.435,84 Euros em prestações mensais de 100,00 Euros cada, acrescendo à pensão mensal de alimentos de 500,00 Euros, o que perfaz a quantia de 600,00 € ( seiscentos euros )/ mês, com início em Dezembro de 2007.

(…)

5- No entanto, o Réu DD não cumpriu a obrigação que em 3.12.2007 assumiu, não pagando desde o início.

6- Por decisão judicial, proferida em 7.11.2008, de fls. 181 a 193 dos autos de incumprimento do poder paternal acima identificados, o pai dos menores foi condenado ao pagamento das prestações de alimentos em atraso que, nessa data, perfaziam a quantia de 6.000,00 € ( seis mil euros ), acrescida do valor de 14.435,84 € ( catorze mil, quatrocentos e trinta e cinco euros e oitenta e quatro cêntimos ) referente à condenação de 3.12.2007 a fls. 109 – 111 no mesmo processo, o que totalizava 20.435,84 € ( vinte mil, quatrocentos e oitenta e cinco euros e oitenta e quatro cêntimos ).

7 - O Mmº Juiz determinou ainda na sua decisão de 7 de Novembro de 2008 que o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores deveria pagar à ora Autora, CC, a título de alimentos devidos aos três menores, a quantia global de 384,00 € (trezentos e oitenta e quatro euros ), correspondente à pensão de 128,00 € ( cento e vinte e oito euros ) para cada um.

8 - A partir de Dezembro de 2008 a Autora começou a receber mensalmente 384,00 € (trezentos e oitenta e quatro euros ) do FGADM.

9 - O primeiro Réu tinha a obrigação de pagar 500,00 € por mês à Autora de pensão de alimentos para os seus filhos e, deduzido o valor mensal de 384,00 € pago pelo Fundo, o progenitor das crianças ficou com a obrigação de, a partir de Dezembro de 2008, entregar mensalmente à ora Autora a quantia de 116,00 € ( cento e dezasseis euros ).

10 - Além do mais, a quantia de 500,00 € referente à pensão de alimentos da responsabilidade do ora 1º Réu DD relativa a ao mês de Novembro de 2008, não contabilizada na decisão judicial de 7.11.2008, encontra-se também em dívida.

11 - Conforme consta da decisão judicial de 7.11.2008, provou-se que DD não pagou qualquer prestação, voluntária nem coercivamente, o mesmo não exercia qualquer actividade profissional remunerada declarada, sendo desconhecida a existência de bens penhoráveis em seu nome.

(…)

15- Veio a apurar-se que por escritura lavrada no dia 28.7.2008, exarada a fls. 46 a fls. 47, verso do Livro de Notas para Escrituras Diversas nº ...5 do Cartório Notarial da Notária Drª EE, sito na Av. ..., ..., em ..., o 1º Réu, DD, representado pelo procurador Dr. II, declarou vender um terço do imóvel urbano sito na Rua ..., em ..., concelho ..., inscrito na matriz urbana sob o artº ...56 da freguesia ... e descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...18 da freguesia ....

16- A venda referida em 15 foi efectuada da seguinte forma: um sexto do prédio urbano declarou vender ao 2º Réu AA e outro sexto do mesmo imóvel declarou vender ao 3º Réu BB, ambos

representados pelo procurador Dr. JJ.

(…)

22- Aquando da escritura referida em 15 a 17 e 21, o primeiro Réu quis, mediante a declaração de venda em causa, dar aos Réus AA e BB, em pagamento, a sua quota-parte de 1/3 do prédio em causa, por lhes dever dinheiro referente aos encargos com a sua aquisição e, designadamente, com a amortização do mútuo para o efeito contraído, seguros, taxas e despesas correntes e com a intenção de evitar uma eventual penhora, por terceiros, seus credores, do seu direito sobre o imóvel e os Réus AA e BB quiseram receber tal quota-parte do primeiro Réu no prédio em pagamento do que aquele lhes devia e evitar uma eventual penhora sobre o direito do Réu.

(…)

46- No âmbito do Procº Comum que correu seus termos no 1º Juízo Criminal de Leiria sob o nº 2394/08.... foi o aqui primeiro Réu e aí arguido DD condenado - por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 6.4.2010, transitado em julgado – como autor material de um crime de violação da obrigação de alimentos, p. e punido pelo artº 250, nº 3 do C. Penal, na redacção decorrente da Lei nº 61/2008, de 31/8, na pena de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, coma condição de o aí arguido começar e continuar a pagar à mãe dos seus filhos menores (imediatamente a partir do trânsito em julgado dessa decisão ), pelo menos, a prestação de 600,00 Euros mensais, sendo 500,00 Euros a título de alimentos e 100,00 Euros a título da dívida atrasada.

4- A final foi proferida sentença, confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, e transitada em julgado em 09.12.2020, do seguinte teor:

A)

Julgar parcialmente improcedente, por não provada, a acção, no que ao(s) pedido(s) formulado(s) formulados pela Autora e referidos em I -, a) e b) se refere e, consequentemente, absolver os Réus de tal pedido.

B)

Julgar parcialmente procedente, por provada, a acção e, consequentemente, declarar ineficaz, em relação à Autora, o negócio jurídico celebrado entre os Réus e que a escritura de 28.7.2008 formalizou, no que à entretanto constituída fracção autónoma designada pela letra “ B “ do prédio sito na Rua ..., em ..., condenando os Réus a reconhecer tal ineficácia do negócio em que participaram, relativamente à Autora e, consequentemente, os segundo e terceiros Réus a não se oporem à execução da fracção “ B” do prédio urbano descrito na C. R. Predial sob o n.º ...18 da freguesia ..., concelho ..., no seu património e a que a mesma Autora pratique, sobre a aludida fracção autónoma, os actos de conservação de garantia patrimonial autorizados por lei, na medida necessária à satisfação dos seus interesses, tudo nos termos do artº 616 e segs. do C. Civil.

5- A decisão referida em 4 teve por fundamento a verificação dos requisitos da impugnação pauliana, aí se dizendo quanto à verificação do crédito da aqui ré:

Da indagação da eventual existência de um crédito da Autora face ao primeiro Réu

Atentos os factos considerados como provados em III -, A), e discriminados em 1 - a 11 – e 47 -, crê-se não existirem quaisquer dúvidas de que a demandante é credora do primeiro Réu, por alimentos devidos pelo mesmo a seus filhos, à data menores, crédito que, em 2008 era já de valor superior a 20.000,00 Euros, não se mostrando que o demandado o tenha liquidado, até ao presente.

Com efeito e apesar da condenação em sede criminal do primeiro Réu, conforme III -, A), 46 - e ainda que tivesse sido demonstrado, pelo Réu, o pagamento, desde então e mensalmente, da quantia de 100,00 Euros mensal para pagamento da dívida à demandante atrasada à demandante, tal apenas significaria cerca de metade, até hoje, do seu crédito ( 100,00 € x 120 ).

Com efeito, era ao primeiro demandado que cumpriria provar ter efectuado o pagamento do débito em causa nos autos, por este se não presumir – artº 799 do C. Civil -, prova essa pelo mesmo não efectuada, por o primeiro Réu nem sequer ter contestado a acção, também não tendo essa prova sido efectuada pelos demais Réus, como poderia ter ocorrido, embora tal ónus lhes não competisse.

6- Inconformados com a decisão referida em 4, os aqui autores recorreram, tendo sido proferido acórdão julgando improcedente o recurso interposto, confirmando aquela.

7- Um dos fundamentos do recurso prendia-se com a fixação do montante do crédito da aqui ré, mencionando-se no aludido acórdão a este propósito:

Começam os Recorrentes por dizer que o tribunal não fixou o montante do crédito da A., por ela liquidado na p.i. pelo valor de € 21.515,84 por não ter levado em conta o que consta do ponto 46 dos factos provados, que revela que no âmbito do processo crime que correu termos o 1.º R. ficou obrigado por acórdão de 6 de abril de 2010 a amortizar mensalmente a dívida, como condição da suspensão da pena de prisão que lhe foi aplicada. Referem que não havendo conhecimento de que o 1.º R. cumpriu pena de prisão tem de concluir-se que o mesmo tem vindo a pagar a dívida, o que tem de ser indagado.

Não têm os Recorrentes qualquer razão com a questão suscitada.

De acordo com o art.º 611.º do C.Civil incumbe ao credor a prova do montante da dívida, o que a A. logrou fazer nos autos, conforme resulta dos pontos 2 a 11 da decisão de facto, que não foi impugnada pelos Recorrentes, assim provando deter sobre o 1º R. o crédito que liquidou na p.i.

Não há qualquer elemento concreto nos autos que o tribunal a quo pudesse ter levado em consideração para concluir que à data da prolação da sentença uma parte ou a totalidade daquele crédito invocado pela A. já havia sido liquidado, designadamente em cumprimento da condição imposta ao 1.º R. no âmbito da sentença criminal proferida, o que os RR. nem sequer alegam ter ocorrido.

Sobre esta questão da implicação do eventual cumprimento da condição prevista na sentença criminal a que alude o ponto 46 dos factos provados, a sentença recorrida até se pronunciou expressamente, quando diz: “Com efeito e apesar da condenação em sede criminal do primeiro Réu, conforme III -, A), 46 – e ainda que tivesse sido demonstrado, pelo Réu, o pagamento, desde então e mensalmente, da quantia de 100,00 Euros mensal para pagamento da dívida à demandante atrasada à demandante, tal apenas significaria cerca de metade, até hoje, do seu crédito ( 100,00 € x 120 ). Com efeito, era ao primeiro demandado que cumpriria provar ter efectuado o pagamento do débito em causa nos autos, por este se não presumir – artº 799 do C. Civil -, prova essa pelo mesmo não efectuada, por o primeiro Réu nem sequer ter contestado a acção, também não tendo essa prova sido efectuada pelos demais Réus, como poderia ter ocorrido, embora tal ónus lhes não competisse.”

Sobre esta questão importa apenas referir que a A. fez prova nos autos da existência do crédito que invocou ter sobre o 1.º R., nos termos previstos no art.º 611.º do C.Civil, como decorre dos factos provados mencionados, tendo nessa medida procedido na totalidade o pedido por ela formulado nestes autos, não tendo sido alegado e provado, por nenhum dos RR. que aquele crédito reclamado foi pago entretanto, conclusão que manifestamente não se pode extrair do simples facto de ter sido proferida a sentença criminal em causa, sujeitando a suspensão da pena de prisão aplicada ao pagamento da dívida, como pretendem os Recorrentes.

Em qualquer caso, e tendo em conta os efeitos da impugnação pauliana previstos no art.º 616.º n.º 1 do C.Civil, que dá a possibilidade ao credor de executar o bem restituído apenas na medida do seu interesse, é evidente que se uma parte daquele crédito da A. já tiver sido entretanto satisfeito, tal será com certeza tido em conta em sede de execução, onde o Exequente tem de informar qualquer quantia que receba por conta da quantia exequenda, estando por isso salvaguardada a ponderação de algum eventual pagamento que possa entretanto ter ocorrido.

8- Por apenso à acção referida em 1 do facto 3, a aqui ré instaurou execução especial por alimentos contra DD para pagamento da quantia de € 86.509,15.».

D) Aspeto jurídico do recurso

1. - Da exceção da autoridade do caso julgado

Os aqui AA. vieram intentar ação declarativa com vista a obter o reconhecimento/fixação, no essencial, do valor do crédito da R. suscetível de execução sobre o património destes em consequência da procedência da ação de impugnação pauliana.

Tal crédito reporta-se a alimentos devidos a menores, filhos do devedor alienante, ou seja, aquele que alienou aos aqui AA. o direito imobiliário a que se reporta a penhora já obtida pela credora (a aqui R., mãe dos menores credores de alimentos) em ação executiva.

Nesse âmbito, é notório o dissídio entre as partes, com os AA. a pretenderem cingir o valor do crédito com eficácia perante si ao montante (constante do seu pedido) de € 21.515,84 e a R./Recorrente a pretender uma determinação em valor muito superior, o de € 92.578,64 (cfr. pedido reconvencional).

Sabido é também que o Tribunal recorrido, conferindo razão aos ora AA. (RR. na pauliana), atendeu ao valor reportado na decisão da ação de impugnação pauliana, ou seja, o de € 21.515,84, a esse quantitativo restringindo a possibilidade de execução/penhora sobre o património dos AA., enquanto adquirentes no contrato impugnado naquela ação pauliana, por força da autoridade de caso julgado decorrente da decisão final daquela ação.

A R./Reconvinte/Recorrente não se conforma, aludindo agora a um montante creditício de € 94.033,53, que considera “assegurado pela douta decisão proferida nos autos de ação pauliana” (cfr. conclusão 46.ª da sua alegação recursiva).

Nesse horizonte, esgrime que a Apelante que à quantia de € 21.515,84 acresce o valor das prestações vencidas e vincendas até efetivo e integral pagamento, bem como dos juros moratórios e compulsórios devidos, não podendo ser “de outra forma, tendo em conta a duração de mais de 10 anos desse pleito judicial”.

Por isso, sendo objeto da sentença proferida em sede de ação pauliana a “reconstituição da garantia patrimonial do crédito da impugnante na medida do interesse da autora naquela ação”, fica comprovado “que existia, nessa data, um crédito de € 21.515,84, mas tal (…) destina-se apenas a delimitar, por referência a essa data, a extensão da ineficácia do negócio (2009)” (sublinhado aditado), sem contender com o montante (global) do crédito, assim não obstando à “sua atualização, [que] terá de decorrer de um simples cálculo aritmético”, incluindo tudo o que se venceu posteriormente até à data da instauração da execução, sob pena de «“esvaziamento” incompreensível da sentença dessa ação».

Aduz ainda, argumentando nesse âmbito, que «o art.º 614.º, n.º 1, do C. Civil admite que o credor, cujo crédito já se constituiu, mas ainda não se venceu, possa recorrer à impugnação pauliana e também o titular de crédito simplesmente ilíquido tem o direito de utilizar a impugnação pauliana».

Ou seja, considera que a situação do crédito em discussão é semelhante à de um crédito constituído mas ainda não vencido ou de um crédito ilíquido (constituído mas ainda carecido de liquidação). Precisa, neste conspecto, que «o titular de crédito simplesmente ilíquido tem direito de utilizar a impugnação pauliana, uma vez que nesta situação o crédito já é certo e exigível, faltando-lhe apenas determinar o seu exato montante».

Caso assim não se entendesse, «ainda que na ação pauliana o apuramento da existência do crédito do impugnante (cuja prova lhe cabe) seja pressuposto da sua procedência (cfr. artºs. 610º al. a) e 611º do C. Civil), então a sentença não condena, sequer implicitamente, o devedor no pagamento de qualquer valor», destinando-se a referência ao crédito «apenas a delimitar a extensão da ineficácia da alienação do imóvel realizada pelo devedor ao adquirente (nessa data) e, inerentemente, a delimitação da garantia real e limite até ao qual pode ser atingido o bem do adquirente» (sublinhado aditado).

Apreciando.

Em causa não está, pois, a força/autoridade do caso julgado, obtido na impugnação pauliana, como projeção sobre os presentes autos – uma ação declarativa posterior, referente à delimitação quantitativa do crédito de alimentos a que também se reporta a pauliana –, posto nenhuma das partes questionar – antes aceitar, expressa ou implicitamente – a vinculação destes autos ao ali decidido com trânsito em julgado.

A divergência, tal como trazida aos autos e ao recurso, reporta-se, em vez disso, à interpretação do dispositivo (em conjugação com a respetiva fundamentação) da transitada decisão da ação pauliana: saber se esse dispositivo deve ser restringido, para efeitos de garantia (permitindo a execução patrimonial), ao montante de € 21.515,84, aludido expressamente na respetiva fundamentação de direito, ou compreender, a mais disso, o de € 92.578,64 (agora até € 94.033,53), contemplando todas as prestações futuras e demais acréscimos.

Vejamos quem tem razão.

Não há dívida de que estamos perante uma obrigação de alimentos de pai a filhos menores, assimilável a uma “pensão alimentar jure sanguinis”, a que aludem Pires de Lima e Antunes Varela ([8]) e a que se reporta a al.ª f) do art.º 310.º do NCPCiv., contemplando, para efeitos prescricionais, as “pensões alimentícias vencidas”.

E também é seguro que, não se reportando o dispositivo da sentença de procedência da impugnação pauliana a um qualquer valor de crédito da impugnante (ali não mencionado), a respetiva fundamentação jurídica – mormente, no Ac. TRC que conheceu do respetivo recurso – vem reportada ao montante invocado pelos aqui AA./Apelados (e não a outro).

Para melhor compreender e interpretar a respetiva decisão judicial importa atentar na natureza do crédito de alimentos em discussão, o que nos remeta para as modalidades das obrigações, especificamente quanto à respetiva classificação em função dos tipos de prestação.

Assim, no caso não haveria dúvidas se estivéssemos perante obrigação de prestação instantânea, o que, todavia, não ocorre na situação dos autos.

Com efeito, importa distinguir, neste campo, entre obrigações de prestação instantânea e prestações duradouras.

Nas primeiras a execução da prestação devida ocorre num só/único momento, como se passa com a entrega da coisa vendida ou com o pagamento do preço da venda se entregue num único ato.

Já, diversamente, as prestações duradouras “são aquelas cuja execução se prolonga no tempo, em virtude de terem por conteúdo ou um comportamento prolongado no tempo ou uma repetição sucessiva de prestações isoladas por um período de tempo”, como se passa com “as prestações relativas aos contratos de locação”, de “mútuo, de trabalho, ou contratos de fornecimento como os de gás ou eletricidade” ([9]). Nestas a realização global da prestação depende “sempre do decurso de um período temporal, durante o qual a prestação deve ser continuada ou repetida”, podendo (sub)distinguir-se entre as prestações (duradouras) continuadas ou periódicas: nas continuadas a prestação não sofre qualquer interrupção, como ocorre no fornecimento de energia elétrica; nas periódicas, por seu lado, “a prestação é sucessivamente repetida em certos períodos de tempo”, como no pagamento da renda pelo locatário ou de juros pelo mutuário ([10]).

De notar que estas prestações – as duradouras periódicas – não se confundem com as prestações instantâneas fracionadas, “em que o seu montante global é dividido em várias fracções, a realizar sucessivamente (ex: o pagamento do preço na venda em prestações, referido no art.º 934.º)”, muito embora se trate de “uma única obrigação cujo objeto é dividido em fracções, com vencimentos intervalados”. Ou seja, há uma só obrigação (de prestação instantânea), com uma “definição prévia do seu montante global e o decurso do tempo não influi no conteúdo e extensão da prestação, mas apenas no seu modo de realização”, como no caso típico da compra e venda a prestações, em que o preço é fixado previamente e em globo, “servindo o decurso do tempo apenas para escalonar a sua divisão em partes” ([11]).

Já nas prestações periódicas “verifica-se uma pluralidade de obrigações distintas, embora emergentes de um vínculo fundamental que sucessivamente as origina, pelo que, por definição, não pode haver qualquer fixação inicial do seu montante global, já que é o decurso do tempo que determina o número de prestações que é realizado. Assim, o locatário só deve as rendas correspondentes ao tempo de duração do contrato de locação, sendo sempre em função do decurso do tempo que se determina o conteúdo da sua obrigação”. Por isso, o decurso do tempo determina o próprio conteúdo da obrigação quando se trata de prestações (duradouras) periódicas, e não apenas o momento em que esta deve ser realizada, como nas prestações instantâneas ([12]).

Transpondo estes ensinamentos para o caso dos autos, é indiscutível que estamos perante obrigação – a de alimentos a filhos menores – de prestações duradouras periódicas ([13]) e não de prestação instantânea fracionada no tempo.

Não se trata, pois, de uma única prestação, que fosse globalmente determinada na origem (como o preço de um contrato de compra e venda, fixado na celebração do mesmo e inalterável), a satisfazer por diversas vezes (em frações/partes), mas, ao invés, de diversas prestações, sem dependência umas das outras, que podem ser objeto de atualização ou alteração futura.

Há, pois, nas obrigações de alimentos, uma pluralidade de obrigações distintas, embora emergentes de um mesmo vínculo fundamental, que sucessivamente as origina, não havendo fixação inicial do respetivo montante global, por somente o decurso do tempo poder determinar o número de prestações que será realizado.

Tal como o locatário só se constitui devedor das rendas correspondentes ao tempo de duração do contrato de locação (em cada momento), sendo o decurso do tempo que permite determinar o conteúdo da respetiva obrigação, o devedor de alimentos, do mesmo modo, só deve, em cada momento, as prestações já vencidas, e não as futuras, que somente se tornarão consistentes ulteriormente (no tempo próprio), não podendo ter-se por devidas de antemão (mas apenas no momento próprio, por o decurso do tempo influir no conteúdo e extensão da obrigação, cujo montante global não resulta determinado na origem).

Determinando, no caso, o decurso do tempo o próprio conteúdo e a extensão da obrigação, tem de concluir-se que nenhum direito havia, ao tempo da instauração da ação pauliana, tal como ao tempo da respetiva decisão, sobre quaisquer prestações futuras, cuja obrigação, para além de não ser exigível, ainda não adquirira sequer consistência creditória.

Assim como o senhorio, no contrato de arrendamento, não tem direito à prestação da contraparte quanto às rendas futuras, por ainda não devidas/vencidas, inexistindo um crédito que possa ter-se por constituído, também o credor de alimentos não tem direito ainda às prestações a formar e vencer no futuro.

Quanto a tais prestações futuras, não há, pois, em suma, ainda um direito de crédito que já esteja formado/firmado na esfera jurídica do titular do direito aos alimentos.

Por isso é que tem de concluir-se que a aqui R./Recorrente não tinha, ao tempo da ação pauliana, um direito de crédito, que já estivesse consolidado, quanto a quaisquer prestações futuras, mas apenas às já formadas/vencidas.

Como, por outro lado, a mesma reconhece – e é pacífico –, a procedência da ação pauliana depende da demonstração da existência de um crédito (já constituído/formado/consubstanciado), mesmo que ainda não vencido ou ainda ilíquido ([14]), cabendo ao demandante/impugnante o ónus da prova da factualidade demonstrativa “do montante das dívidas” (cfr. art.ºs 610.º e 611.º, ambos do CCiv.) ([15]).

A invocada “duração de mais de 10 anos desse pleito judicial” não obsta ao que vem de ser exposto, circunstância em que caberia à demandante, na ação pauliana, se assim o entendesse, desencadear a atualização ou ampliação do pedido, quanto ao montante do crédito invocado, ao abrigo do disposto nos art.ºs 265.º, n.ºs 2 e 3, 557.º, 588.º, 589.º e 611.º, n.º 1, do NCPCiv..

Se não o fez, sibi imputet, sem prejuízo da possibilidade de ser intentada nova ação pauliana, com referência ao muito elevado montante excedente (o remanescente a € 21.515,84) a que se reporta a reconvenção ([16]).

Termos em que, salvo o respeito devido, não pode dar-se razão à R./Recorrente, mas aos AA./Recorridos: o montante do crédito de alimentos a considerar é o aludido na fundamentação decisória da ação pauliana (€ 21.515,84), para que remete, ao menos implicitamente, o respetivo dispositivo, com exclusão de prestações alimentícias futuras (as que se constituíram depois, ao longo dos anos, até ao presente).

Como referido em Ac. TRC de 14/11/2017 ([17]):

«I - A excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo uma total identidade entre ambas as causas.

II - A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença (razão de certeza ou segurança jurídica), não se exigindo a tríplice identidade.».

É certo também que a “autoridade de caso julgado de uma sentença só existe na exata correspondência com o seu conteúdo e daí que ela não possa impedir que em novo processo se discuta e dirima aquilo que ela mesmo não definiu”, por falta de “um pronunciamento judicativo” ([18]).

No caso, definido, na anterior ação pauliana, o montante do crédito, impõe-se a autoridade do caso julgado ali formado, como decidido na 1.ª instância.

2. - Da litigância de má-fé

Resta a matéria incidental, também impugnada na apelação, da decidida não condenação dos AA./Recorridos como litigantes de má-fé (conclusões 25.ª a final).

Ora, apreciando, cabe dizer que o pressuposto elementar em que assentava a pretensão incidental era o de que vingaria a tese no sentido de que o crédito em causa se encontra reconhecido pelo montante visado na reconvenção – valor total de mais de noventa mil euros, em vez dos € 21.515,84 a que se reportam os aqui AA..

Porém, essa tese não vingou, deixando, desde logo e sem necessidade de outras considerações, sem suporte a pretendida condenação dos AA. por litigância de má-fé.

Com efeito, quem obtém ganho de causa – na ação e no recurso – neste particular são os AA., com decaimento da R./Apelante, o que obriga à total improcedência da almejada condenação por litigância de má-fé, cujos pressupostos em nada se mostram verificados.

Termos em que também nesta parte falece o recurso.

Donde a improcedência da apelação in totum, cabendo as respetivas custas à Recorrente, perante o seu decaimento (art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.), sem prejuízo do concedido benefício do apoio judiciário.

 

IV – SUMÁRIO (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.): (…).


***

V – DECISÃO

Pelo exposto, na improcedência da apelação, acorda-se em manter a decisão recorrida.

Custas da apelação pela R./Recorrente, sem prejuízo do concedido benefício do apoio judiciário.

Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.


Coimbra, 28/10/2025

        

Vítor Amaral (relator)

Luís Cravo

Alberto Ruço


([1]) Cujo teor se deixa transcrito (com destaques retirados).
([2]) Subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
([3]) Excetuadas, naturalmente, questões de conhecimento oficioso, desde que não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([4]) Seguindo uma ordem lógico-sistemática de precedência e caso o conhecimento de alguma delas não resulte prejudicado pela decisão quanto a outras.

([5]) Cfr. Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª ed., p. 57.
([6]) Vide Código de Processo Civil, Anotado, vol. V, p. 143.
([7]) Com base na «certidão junta com o requerimento de 09.09.2024, referente ao processo 2157/09.... que correu termos no Juízo Local Cível de Lisboa J2 e da certidão e peças juntas com a p.i do processo executivo 7614/05....».
([8]) Cfr. Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 278.
([9]) Cfr. Luís de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2008, p. 137.
([10]) Luís de Menezes Leitão, op. e loc. cits..
([11]) Idem, p. 138.
([12]) Ibidem, p. 138.
([13]) Sobre o tema, cfr. também Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11.ª ed., Almedina, Coimbra, 2008, ps. 699 e segs..
([14]) Vide Mário Júlio de Almeida Costa, op. cit., p. 862.
([15]) Na doutrina pode ver-se, por todos, Almeida Costa, op. cit., ps. 860 a 863.
([16]) Cfr. Ac. STJ de 09/05/2023, Proc. 16678/16.0T8LSB.L1.S2 (Cons. Isaías Pádua), em www.dgsi.pt.
([17]) Proc. 826/14.8T8GRD.C1 (Rel. Jorge Arcanjo), em www.dgsi.pt.
([18]) Assim o Ac. TRC, de 12/12/2017, Proc. 3435/16.3T8VIS-A.C1 (Rel. Isaías Pádua), em www.dgsi.pt.