Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
99/21.6GTLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA ALEXANDRA GUINÉ
Descritores: CONCURSO DE CRIMES
DESOBEDIÊNCIA
RESISTÊNCIA E COAÇÃO SOBRE FUNCIONÁRIO
Data do Acordão: 05/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LEIRIA – J1)
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 348º, N.º 1, AL. A), 347º, N.º 1, DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I. Num caso em que o crime de resistência e coação sobre funcionário foi praticado após a perfetibilização do crime de desobediência, não se justifica que aquele seja considerado um crime meio deste: as condutas são sequenciais e distinguem-se quanto ao modo de atuação e à inerente resolução.
II. Em suma, não se justifica a aplicação das regras da consunção, nem resulta indiciada uma unidade de sentido global suscetível de afastar a condenação em concurso real.
Decisão Texto Integral: *

Acordam, em conferência, na 5.º Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


I–RELATÓRIO

Nos autos de processo comum com intervenção do Tribunal Singular, a correr os seus termos sob o n.º 99/21.6GTLRA, no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, no Juízo Local Criminal de Leiria, foi proferida sentença, condenando o arguido AA, pela prática autoria material, sob a forma consumada, e em concurso efetivo, de:

1.1. um crime de desobediência, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 69.º, n.º 1, al. c), e 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, e 152.º, n.ºs 1, al. a), e 3, do Código da Estrada, nas penas de:

i. Na pena de 60 (sessenta) dias de multa à razão diária de €6,00 (seis euros), num total de €360,00 (trezentos e sessenta euros);

ii. nos termos do artigo 69.º, n.º 1 al. c) do C.P., na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de 4 (quatro) meses 15 (quinze) dias devendo o mesmo, após trânsito em julgado desta decisão, entregar, no prazo de 10 dias, o título de condução que possui na secretaria do tribunal ou em qualquer posto policial, sob pena de praticar um crime de desobediência;

1.2. um crime de resistência e coação sobre funcionário, p.p. pelo artigo 347.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão substituída por 240 (duzentos e quarenta dias) de multa, à razão diária de €6,00 (seis euros), num total de €1440,00 (mil quatrocentos e quarenta euros).

Inconformado, recorreu o arguido apresentando as seguintes conclusões:


«CONCLUSÕES:

(…)

Notificado, respondeu o Ministério Público apresentando as seguintes Conclusões:

«1. Pela douta sentença proferida no âmbito dos autos, foi condenado o arguido, AA, pela prática, em autoria material, sob a forma consumada e em concurso efetivo, de 1 (um) crime de desobediência, na pena de 60 (sessenta) dias de multa à razão diária de €6,00 (seis euros), e na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de 4 (quatro) meses 15 (quinze) dias, e de 1 (um) crime de resistência e coação sobre funcionário, na pena de 8 (oito) meses de prisão, substituída por 240 (duzentos e quarenta dias) de multa, à razão diária de €6,00 (seis euros);

2. O mesmo vem recorrer da matéria de direito, restringido à respetiva condenação, pela prática do crime de resistência e coação sobre funcionário, do qual pretende ser absolvido, bem como da medida de cada uma das penas aplicadas, que considera excessivas;

3. As alegações do recorrente, de que apenas deve ser condenado pela prática de um crime de desobediência e não, também, pela prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário, assumindo a prática dos factos provados, mas alegando que: “a tentativa de evitar a algemagem e o desferir unhadas na cara de BB foram meios usados pelo arguido com o fim último de evitar a realização do teste de pesquisa de álcool no sangue, acções que foram meramente instrumentais ou crime- meio que não devem ser punidas autonomamente como o foram na douta sentença recorrida”, em nosso modesto entender e com o devido respeito, não têm qualquer fundamento, apresentando-se, ainda, como desprovidas de sentido, perante o direito aplicável;

4. Atentos os factos assentes como provados, pela douta sentença recorrida, como é claro, encontram-se verificados os elementos objetivos e subjetivos do crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1 do Código Penal, pelo que só podia o arguido ter sido condenado pela prática do mesmo crime, tal como o foi, e bem, pela mesma decisão;

(…)

Nesta Relação, o Digno Procurador Geral Adjunto emitiu parecer podendo ler-se, designadamente, o seguinte:

«Visto tal recurso, verifica-se ser o mesmo relativo, para além do mais, à impugnação da medida das penas de multa e de prisão substituída por multa que foram aplicadas ao arguido pela prática de crimes de desobediência no âmbito de fiscalização da condução sob efeito de álcool e de resistência e coacção sobre funcionário – vindo arguido alegar que tais penas seriam exageradas, em moldes susceptíveis de violar, se bem se percebe, normas e princípios relativos à justificação e à necessidade das penas, nomeadamente no que se refere ao quantitativo diário da multa em que foi condenado.

Procura ainda o arguido impugnar a sua condenação em concurso efectivo pela prática dos referidos crimes, alegando que apenas deveria ter sido condenando por desobediência – concluindo que, mesmo a não ser acolhida tal pretensão, lhe deveria ter sido aplicada uma pena única, ao abrigo do disposto no art. 77º, nº 1, do C. Penal, em lugar das duas penas fixadas pelo Tribunal recorrido.

Perante estas alegações do arguido, apenas se oferece acrescentar ao referido na sentença impugnada, bem como na Resposta apresentada pelo Ministério Público em 1ª instância, ser manifesto que os crimes pelos quais o arguido foi condenado foram praticados em momentos distintos, ainda que sequencialmente, sendo assim tal prática fruto de igualmente distintas resoluções criminosas – pelo que, mesmo sendo o bem jurídico protegido em ambos esses crimes parcialmente idêntico, nunca poderíamos considerar ter neste caso existido um concurso meramente aparente de infracções, nos termos e para os efeitos que são regulados no art. 30º, nº 1, do C. Penal.

Assim, afigurando-se despiciendo acrescentar algo mais ao alegado nas referidas peças processuais, parece-nos dever a decisão impugnada ser mantida na íntegra».

Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido exercido o contraditório.

Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

ÂMBITO DO RECURSO

Nos termos das disposições conjugadas dos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.

Encontra-se, ainda, o tribunal obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como sejam, as nulidades insanáveis que afetem o recorrente, nos termos dos art.º s 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).

No caso em apreço são questões a resolver:
1. Do concurso aparente de crimes e do crime continuado;
2. Do excesso das penas de multa e da pena acessória de proibição de conduzir;
3. Do cúmulo jurídico da pena de multa aplicada a título principal e da pena de multa aplicada em substituição da pena de prisão.


*

II. Sentença recorrida (transcrita na parte ora relevante)

*

«1. FACTOS PROVADOS

Discutida a causa, e com relevância para a mesma, deu o Tribunal como provados os seguintes factos:

1. No dia 28 de Novembro de 2021, BB e CC, ambos cabos da GNR integravam uma patrulha de fiscalização de trânsito, em ..., ..., devidamente uniformizados.

2. Naquele local, pelas 3h15, DD deu ordem de paragem, ao veículo de matrícula ..-..-PN que passava no local e que era conduzido pelo arguido, o que fez levantando o bastão luminoso vermelho.

3. O arguido viu o sinal de paragem e quem lho transmitia, ficando ciente da obrigatoriedade de parar.

4. Não obstante, o arguido prosseguiu a marcha pela Rua ... mudou de direção à esquerda para a Travessa ... e novamente à direita parando o veículo atrás do edifício da Unidade de Saúde Pública de ....

5. BB e CC seguiram no encalço do arguido parando atrás do veículo que aquele conduzia.

6. BB abordou o arguido e solicitou-lhe a apresentação dos documentos relativos ao veículo e a si próprio respondendo o arguido:

“Eu não presto contas a ninguém! Muito menos a guardas! Deixem-me ir embora!”

7. BB solicitou ao arguido que realizasse teste de despistagem de álcool no sangue, informando-o que a sua recusa fazia-o incorrer na prática de crime de desobediência;

8. Em resposta, o arguido disse: “ Não faço teste nenhum!”.

9. Mediante a recusa em fornecer a identificação, os documentos do veículo e em realizar o teste de despistagem de álcool no sangue, os militares advertiram-no de que, enquanto condutor, estava obrigado a submeter-se àquela prova e que aquela recusa o fazia incorrer na prática do crime de desobediência.

10. Porém, manteve-a, não obstante saber que a ordem era legal, que provinha de autoridade com competência para a dar e que na qualidade de condutor estava obrigado a submeter-se ao aludido exame.

11. BB e CC deram voz de detenção ao arguido aproximando-se dele para o algemarem e conduzi-lo ao posto para identificação e realização de teste de pesquisa de álcool no sangue.

12. Nesse momento, o arguido desferiu unhadas na cara de BB, causando-lhe dor e mau estar físico e provocando 5 dias de doença, sem incapacidade para o trabalho, assim pretendendo opor-se à sua algemagem e condução ao posto, sabendo que quem lhe dava aquela ordem era um agente da autoridade em exercício de funções.

13. Agiu sempre de forma livre, consciente e deliberada, com intenção de não realizar o teste de despistagem de álcool no sangue e assim obstar a sua eventual responsabilização criminal bem como, usou da força física, para se opor à sua algemagem e condução ao posto, após a sua detenção, ciente que agia contra militar da GNR em exercício de funções.

14. Sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

(…)

4 – ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL DOS FACTOS

O arguido vem acusado da prática em autoria material, sob a forma consumada, e em concurso efetivo, de um crime de desobediência, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 69.º, n.º 1, al. c), e 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, e 152.º, n.ºs 1, al. a), e 3, do Código da Estrada e um crime de resistência e coação sobre funcionário, p.p. pelo artigo 347.º, n.º 1 do Código Penal. Vejamos individualizadamente.

Dispõe o referido artigo 348.º, nº1 a) que: “Quem, faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se (…) al. a) uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples”.

Ora, o art. 152.º, n.º1 al. a) e n.º 3 do Código da Estrada estatui que: - “1- Devem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas: a) Os condutores; b) Os peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito; c) As pessoas que se propuserem iniciar a condução. 2 - Quem praticar atos suscetíveis de falsear os resultados dos exames a que seja sujeito não pode prevalecer-se daqueles para efeitos de prova. 3 - As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência. 4 - As pessoas referidas na alínea c) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são impedidas de iniciar a condução. 5 - O médico ou paramédico que, sem justa causa, se recusar a proceder às diligências previstas na lei para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas é punido por crime de desobediência.”

O aludido crime protege o bem jurídico da autonomia intencional do Estado “…de forma particular, a não colocação de entraves à atividade administrativa por parte dos destinatários dos seus atos.” 2 De modo telegráfico, dir-se-ia serem os seguintes os elementos do tipo de crime são os seguintes:

- legitimidade da ordem ou mandado;

- competência da autoridade ou funcionário competente;

- regularidade da comunicação;

- cominação do crime (por disposição legal ou funcionalmente)

- elemento subjetivo: dolo

Vejamos, pois, a subsunção dos factos concretos dos autos aos elementos do tipo de ilícito vindos de elencar.

b.1. legitimidade da ordem ou mandado

Como se compreenderá, ninguém deve obedecer a ordens ilegítimas (note-se que o próprio art. 36.º, n.º2 do Código Penal refere que “O dever de obediência hierárquica cessa quando conduzir à prática de crime”). A ordem só é legítima quando não afrontar o ordenamento jurídico na sua globalidade. In casu resultou provado que o arguido não quis fazer o teste de despistagem de álcool no sangue.

Nos termos do disposto no art. 152.º, n.º1 al. a) e n.º 3 do Código da Estrada o condutor pode ser submetido a exame de despistagem de álcool no sangue.

Assim, a ordem foi legítima.

b.2. competência da autoridade ou ordem ou funcionário competente

Refere PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, a propósito deste elemento do tipo que “(…) a ordem e mandado devem ser emanados de autoridade ou funcionário competente. A autoridade é a entidade abstrata, a pessoa coletiva.

O funcionário é a pessoa física. A autoridade é uma autoridade “pública” como resulta da inserção do tipo no capítulo dos crimes contra a autoridade pública e a teleologia da incriminação. A autoridade e funcionário são competentes quando têm o poder legal para proferir a ordem ou mando. Portanto, no caso previsto no n.º 1 al. b) como no caso da al. a) é condição sine qua non do crime a previsão legal do poder da autoridade pública ou do funcionário para dar uma ordem ou emitir um mandado, residindo a diferença entre uma e outra alínea apenas na circunstância de essa mesma lei prever ou não prever a consequência jurídica criminal para o destinatário da ordem que não obedeça.”

O presente requisito mostra-se cumprido já que, nos termos dados como provados, a ordem foi emanada de um agente de um órgão policial (militar da GNR)

b.3. Regularidade da comunicação

Ainda que seja afirmação lapalissiana, dir-se-á que a regularidade da comunicação se afere pelo respeito dos requisitos legais de tal comunicação.

Note-se que, nos termos dos factos provados os agentes da G.N.R. comunicaram ao arguido que se deveria submeter ao exame de despistagem de álcool no sangue.

b.4. Cominação do crime

Estamos perante a imputação da al. a) do art. 348.º do C.P., ou seja, cominação legal do crime, sendo certo que de todo o modo o arguido foi advertido de tal consequência.

Mais uma vez reiteramos que o art. 152.º, n.º3 do Código da Estrada comina com desobediência a conduta de quem se não submete ao teste de despistagem de álcool após lhe ter sido dado ordem para tanto, como foi o caso.

Assim, face aos factos provados 6 a 10 estão reunidos os elementos objetivos do tipo legal de crime

b.5. dolo

O tipo de crime em análise é doloso (em qualquer das modalidades de dolo – cfr. art. 14.º do Código Penal).

Ora, nos termos dos factos n.º 13 e 14 resultou provado que o arguido atuou de forma livre, voluntária e consciente, recusando-se a fazer o teste de pesquisa de álcool no sangue consciente de que incorria em responsabilidade criminal.

Agiu pois, com dolo direto – art. 14.º, n.º1 do Código Penal.

Por todo o exposto, importa também quanto a este crime concluir que o arguido cometeu em autoria material (art. 26.º do Código Penal) o crime em análise, inexistindo qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa a atender, assim se impondo a condenação pela prática do mesmo.

c) Um crime de resistência e coação, p. e p. pelo art. 347.º, n.º1 do Código Penal.

Dispõe o artigo 347.º, n.º 1 do Código Penal que: “1 – Quem empregar violência, incluindo ameaça grave ou ofensa à integridade física, contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique ato relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique ato relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres, é punido com pena de prisão até cinco anos.

(…)

 bem jurídico subjacente à tipificação do crime de resistência e coação sob funcionário, é precisamente “(...) a autonomia intencional do Estado, protegida de ataques vindos do exterior da Administração pública (...)” punindo-se assim as condutas de não-funcionários que ponham “(...) entraves à livre execução das “intenções” estaduais, tornando-as ineficazes.”.

Para a sua verificação, ou seja, para que se ponha em causa tal valor jurídico de forma penalmente relevante, têm que estar objetivamente reunidos os seguintes elementos constitutivos:

a) emprego de violência (incluindo a ofensa à integridade física ou a ameaça grave);

b) dirigida a funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança;

c) com a finalidade de se opor à prática de um acto relativo às suas funções e no exercício delas, ou de o constranger a praticar acto relativo às suas funções, mas contrário aos deveres delas decorrentes;

Concretizando: do texto legal resulta que se trata de um crime de execução vinculada, uma vez que “[s]e não há o emprego de violência (vis physica, vis corporalis) ou de ameaça (vis compulsiva), [...] limitando-se o indivídu o à inação, à atitude ghândica, à fuga ou tentativa de fuga, à oposição branca, à manifestação oral de um propósito de recalcitrância, à simples imprecação de males (praga), não se integra a resistência (...)”

A violência, quer seja na modalidade de ofensa à integridade física, quer se traduza numa ameaça grave, deve ser entendida do mesmo modo que no tipo legal de coação (cfr. artigo 154.º, do Código Penal), assim se fazendo a aproximação ao conceito de “ameaça com mal importante”, mas com uma nuance: é de considerar que os destinatários da coação possuem especiais qualidades no que diz respeito à capacidade de suportar pressões e ao facto de estarem munidos de instrumentos de defesa que vulgarmente não assistem ao cidadão comum.

Assim, como comenta CRISTINA LÍBANO MONTEIRO, “[o] grau de violência ou de ameaça necessários para que se possa considerar preenchido o tipo não há-de medir-se, por conseguinte, pela capacidade de afetar a liberdade física ou moral de ação de um homem comum. A utilização do critério objetivo-individual (...) há-de assentar na idoneidade dessa violência ou ameaça para perturbar a liberdade de ação do funcionário (...)

Em todo o caso, para o preenchimento deste tipo legal de ilícito, necessário se torna que o agente do crime pratique atos violentos ou profira ameaças sérias que se revelem adequadas a afetar a liberdade de determinação e ação do funcionário ao qual se dirigem. No entanto, isto não significa que o conceito de violência abranja somente agressões físicas, tratando-se antes de uma noção abrangente, incluindo atos hostis de diversa natureza, desde que sejam idóneos a coagir, impedir ou dificultar a atuação legítima do funcionário.

O que importa é a idoneidade para a exclusão da liberdade de atuação que sofre o funcionário ou membro daquelas forças, não sendo necessário que tenham sido afetados diretamente na sua integridade corporal.

Decorre ainda do tipo legal, que se trata de um crime comum, no que concerne ao sujeito ativa, mas no que toca ao sujeito passivo, exige-se que o visado seja um funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, cuja definição se encontra prevista no artigo 386.º, do Código Penal.

Ademais, é qualificado como um crime de perigo abstrato e não de dano, uma vez que pune condutas que tenham por objetivo interferir coativamente na atividade funcional do Estado, independentemente de atingir ou não esse objetivo, exigindo-se apenas para a sua consumação a prática da ação coatora adequada a anular ou comprimir a capacidade de atuação do funcionário ou afim e já não a verificação desse concreto resultado.

Por fim, a conduta do sujeito ativo tem de ser direcionada a um de dois objetivos: opor-se a que o funcionário pratique ato relativo ao exercício das suas funções, ou constrangê-lo a que pratique ato relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres.

Ora, no caso sub judice, tendo em consideração a factualidade assente, resulta estarem preenchidos todos estes elementos objetivos. Senão vejamos (sobretudo factos provados n.ºs 12 a 15):

- o arguido empregou de violência: Com efeito, provou-se que, o arguido, não querendo que os militares o detivessem (algemassem) acabou por dar unhadas na cara de um agente da autoridade;

- o arguido atuou da forma descrita dirigindo-se diretamente a militares da GNR que se encontravam no exercício das suas funções, devidamente fardados;

- com tal conduta pretendia o arguido que os agentes da GNR não exercessem as suas funções legais quanto à detenção para condução ao posto para realizar teste de despistagem de álcool e quanto à algemagem;

- Por outro lado, quanto ao elemento subjetivo, o artigo 347.º exige a “perfeita congruência entre o tipo objetivo e o tipo subjectivo”. Trata-se assim de um ilícito punível apenas a título de doloso, nos termos do artigo 13.º, do Código Penal, sendo certo que esse dolo pode assumir uma das intensidades previstas no artigo 14.º, daquele diploma.

Necessário é que se verifique quer o elemento intelectual, quer o elemento volitivo do dolo. Ou seja, o dolo deve abranger todos os elementos objetivos do tipo de ilícito e a vontade de agir do arguido deve ser no sentido de os preencher por completo. In casu, e face ao que se deu como provado sob os factos n.ºs 13 e 14 importa afirmar que o arguido atuou com dolo direto (cfr. artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal).

Assim, face todo o exposto, a conduta do arguido subsume-se à tipicidade objetiva e subjetiva do crime previsto no n.º 1 do art. 347º do Código Penal não se verificando o preenchimento de qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, pelo que o arguido se constituiu autor material (art. 26.º do Código Penal) e na forma consumada de um crime de resistência e coação de funcionário.

(…)


III. Apreciando e decidindo

Suscita o recorrente as questões do concurso aparente de crimes e do crime continuado; do excesso das penas de multa e de proibição de conduzir; e do cúmulo jurídico da pena de multa aplicada a título principal e da pena de multa aplicada em substituição da pena de prisão.

Vejamos.

1. Do concurso aparente de crimes e do crime continuado

1.1. Insurge-se o recorrente contra a sua condenação pela prática de um crime de um crime de resistência e coação sobre funcionário p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1 do Código Penal em concurso efetivo com a prática de um crime de desobediência, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 69.º, n.º 1, al. c), e 348.º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma legal.

Alega o recorrente que «(…) o arguido, primeiramente desobedeceu às ordens do Sr. Militar da GNR para parar e depois procurou evitar a algemagem e condução a posto, tudo com o objectivo único de evitar a submissão ao teste de pesquisa de álcool no sangue; na dinâmica do sucedido, a tentativa de evitar a algemagem e o desferir unhadas na cara de BB foram meios usados pelo arguido com o fim último de evitar a realização do teste de pesquisa de álcool no sangue, acções que foram meramente instrumentais ou crime meio que não devem ser punidas autonomamente como o foram na douta sentença recorrida».

Conclui recorrente que haveria de ter sido condenado pela prática de um crime de desobediência, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 69.º, n.º 1, al. c), e 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, e absolvido da prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário de um crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1 do Código Penal, sem prejuízo de os factos correspondentes a este último ilícito virem a ser considerados na medida final da pena (ao invés do que sucedeu na sentença recorrida).

Apreciando.

1.2 Dispõe o n.º 1 do art.º 30.º do Código Penal (ou CP) que, o número de crimes determina-se pelo «número de tipos de crime efetivamente cometidos ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente».

A consideração do bem jurídico e da pluralidade de juízos de censura, determinada pela pluralidade de resoluções (ou pela renovação de resoluções), como referente da natureza efetiva da violação plural, tem sido indicada na jurisprudencialmente como essencial para determinar se, em casos de pluralidade de ações ou pluralidade de tipos realizados, existe, efetivamente, concurso legal ou aparente ou real ou ideal, na linha do pensamento de Eduardo Correia, com a consideração de elementos da posição doutrinária de Figueiredo Dias.

Para este Professor, a consunção equaciona-se não em termos de concurso de normas ou de unidade de lei (a que reconduz o concurso aparente), mas de «unidade de facto», em função do «sentido do ilícito dominante».

O chamado «concurso impuro ou impróprio» corresponde aos casos em que, «apesar do concurso de tipos legais de crime efetivamente preenchidos pelo comportamento global» (artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal), «se deva ainda afirmar que aquele comportamento é dominado por um único sentido autónomo de ilicitude», «que a ele corresponde uma predominante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos -típicos praticados».

«A referida dominância de um dos sentidos dos ilícitos singulares pode ocorrer em função dos diversos pontos de vista: seja, em primeiro lugar e decisivamente, em função da unidade de sentido social do acontecimento ilícito global; seja em função da unidade de desígnio criminoso; seja em função da estreita conexão situacional, intercedente entre as diversas realizações típicas singulares homogéneas; seja porque certos ilícitos singulares se apresentam, como meros estágios de evolução ou de intensidade da realização típica global» - Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral d Crime, 3.º edição, Gestlegal, pp. 1179 e 1180.

No caso, pese embora a alegação do recorrente nos remeta pareça remeter para a referida doutrina de Figueiredo Dias, o que é certo é que a norma expressamente invocada no recurso é a do n.º 2 do art.º 30.º do CP que dispõe que «Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente»).

O crime continuado consiste numa unificação jurídica de um concurso efetivo de crimes que protegem o mesmo bem jurídico, fundado numa culpa diminuída - Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código Penal, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, pág. 240.

São requisitos do crime continuado:

a) a plúrima violação do mesmo tipo legal de crime ou de vários que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico;

b) a execução por forma essencialmente homogénea;

c) uma situação exterior que diminua sensivelmente a culpa do agente.

A diminuição sensível da culpa supõe a menor exigibilidade da conduta, que é, afinal o que vem a justificar a figura.

«A diminuição sensível da culpa só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição. É o que sucede quando o agente depara repetidamente com um meio facilitador da prática do crime, como uma janela ou uma porta aberta. Isto é quando a ocasião se proporciona e não quando ele activamente a provoca. No caso do agente provocar a repetição da ocasião criminosa, por exemplo, procurando de novo a vítima no local onde ela se encontra, não há diminuição sensível da culpa. Também não há diminuição sensível da culpa quando o agente engendra ou fabrica o meio apto para realizar o crime (…). Em todos estes casos a culpa pode até ser mais grave, por revelar firmeza e persistência do propósito criminoso.

Também afasta a culpa diminuta a circunstância de o agente ter sido advertido por algum órgão do estado ou particular durante a repetição dos factos, uma vez que ele não se deixou motivar pelos valores da ordem jurídica apesar de eles lhe terem sido lembrados» - Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código Penal, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, pág. 244.

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1.3 No caso, os crimes pelos quais o arguido foi condenado são o crime de resistência e coação sobre funcionário p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1 do Código Penal em concurso efetivo com um crime de desobediência, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 69.º, n.º 1, al. c), e 348.º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma legal.

O crime de desobediência (tal como o crime de resistência sobre funcionário) apresenta-se na parte especial do CP – Secção I do Capítulo II do Título V – «Dos crimes contra a autoridade pública».

O bem jurídico que aqui se pretende proteger – tal como no crime de desobediência – é a autonomia intencional do Estado, protegida de ataques vindos do exterior da Administração Pública.

Pratica o crime de desobediência, previsto no n.º 1 al. a) do art.º 348.º Código Penal, quem (dolosamente, nos termos dos art.ºs 13.º e 14.º do CP)  faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente» «se uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples».

Por sua vez, dispõe o Código da Estrada no seu art.º 152.º, n.ºs 1 al. a) que «devem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas:a) os condutores», estatuindo o n.º 3 do mesmo artigo que as «pessoas referidas na alínea a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência».

1.4 Comete o crime de resistência e coação sobre funcionário, nos termos do n.º 1 do art.º 347.º do Código Penal quem (dolosamente, nos termos dos art.ºs 13.º e 14.º do CP) «empregar violência, incluindo ameaça grave ou ofensa à integridade física, contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique acto relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres. "

O bem jurídico protegido neste tipo legal é a autonomia intencional do Estado, no sentido em que se protege o interesse Estadual em ver os seus agentes desempenhar livremente as funções que lhe competem, e em ver respeitadas essas atribuições e atos legítimos.

Reflexamente protege-se a pessoa do funcionário, incumbido de desempenhar determinada tarefa, isto é, protege-se reflexamente a sua “liberdade na medida em que representa a liberdade do Estado (...)” – vide Cristina Líbano Monteiro, em anotação ao art. 347.º, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2000, pág. 339.

Genericamente, «violência» é todo o ato de força e hostilidade idóneo a coagir o funcionário, considerando-se «grave a ameaça» aquela que afete a segurança e tranquilidade da pessoa a quem se dirige e seja suficientemente séria para produzir o resultado pretendido.

Trata-se, pois, de um crime de perigo, no sentido em que a sua consumação se basta com a prática efetiva da ação coatora adequada a anular ou comprimir a liberdade de atuação do agente, independentemente do agente atingir ou não o resultado.

Entende-se ainda como integrante do tipo objetivo, a adequabilidade da conduta para lesar ou mesmo pôr em perigo aquela atividade funcional do Estado. Os meios utilizados são considerados como meios tendentes a uma finalidade específica e dela não podem ser dissociados.


1.5 Revertendo ao caso dos autos.

Provou-se que, num primeiro momento:

- Militar da GNR, no exercício das suas funções, solicitou ao arguido que realizasse teste de despistagem de álcool no sangue, informando-o que a sua recusa fazia-o incorrer na prática de crime de desobediência;

- Em resposta, o arguido disse: “Não faço teste nenhum!”;

- Mediante a recusa em fornecer a identificação, os documentos do veículo e em realizar o teste de despistagem de álcool no sangue, os militares advertiram-no de que, enquanto condutor, estava obrigado a submeter-se àquela prova e que aquela recusa o fazia incorrer na prática do crime de desobediência.

- Porém, o arguido manteve a recusa, apesar de saber que a ordem era legal, que provinha de autoridade com competência para a dar e que na qualidade de condutor estava obrigado a submeter-se ao aludido exame.

Ora, não há dúvidas que a ordem dada ao arguido de que deveria submeter-se a teste de despistagem de teor de álcool no sangue através de ar expirado é legítima por provinda de um militar da GNR no exercício das suas funções de fiscalização de trânsito.

E também é claro que o arguido com o seu comportamento desobedece a ordem de autoridade ou de agente de autoridade de submissão a exame de pesquisa de álcool no sangue.

Tendo-se demonstrado que a emissão da ordem inobservada foi precedida de um ato de condução praticado pelo visado, verificou-se o pressuposto previsto na al.a) do nº 1 do art.152º do Cód. da Estrada, razão pela qual se impunha a observância do procedimento previsto no referido dispositivo, o que, por seu turno, conduz a que se afirme a validade substancial da ordem emanada.

Além de substancial e formalmente válida, a ordem a que nos referimos foi transmitida de forma regular, acompanhada da respetiva cominação.

Quanto à cominação, não resultou dúvidas ao Tribunal atentando na factualidade provada que a mesma foi efetuada, mas sempre diremos, que nos termos da alínea a) do preceito em referência estando a desobediência prevista em disposição legal, como é o caso (art.º 152º do CE), a cominação não faz parte do tipo penal, pelo que mesmo que dúvidas houvessem, sempre o tipo penal estaria preenchido em face da atuação do arguido.

Acresce, que se provou que o arguido bem sabia que ao não efetuar o teste de alcoolemia cuja realização lhe fora ordenada pelo Militar da GNR incumpria uma ordem legítima, que lhe fora regularmente comunicada por agente de autoridade que lhe fez a correspondente cominação legal. Sabia igualmente que a sua conduta era criminalmente punível.

O ato a cuja prática, por imposição legítima, ficou obrigado o arguido, foi por este omitido de forma consciente e livre, com conhecimento de que devia obediência ao comando que lhe havia sido transmitido e de que, caso o não acatasse, incorreria na prática de um crime de desobediência.

Mostram-se perfectibilizados todos os elementos constitutivos do crime de desobediência.

Num segundo momento:

- Os militares da GNR deram voz de detenção ao arguido aproximando-se dele para o algemarem e conduzi-lo ao posto para identificação e realização de teste de pesquisa de álcool no sangue;

- Foi então que o arguido desferiu unhadas na cara de BB, causando-lhe dor e mau estar físico e provocando 5 dias de doença, sem incapacidade para o trabalho, assim pretendendo opor-se à sua algemagem e condução ao posto;.

- O arguido como, usou da força física, para se opor à sua algemagem e condução ao posto, após a sua detenção, ciente que agia contra militar da GNR em exercício de funções.

E se é verdade que o arguido não conseguiu impedir a sua detenção - o que não releva para a consumação do crime - tentou obstar à mesma, através de atos de violência contra o referido militar da GNR.

Consequentemente, neste segundo momento, em face do que se deixa dito, não pode deixar de se concluir que a conduta do arguido, tal como ficou demonstrada, preenche os elementos objetivos e subjetivos do crime de resistência e coação sobre funcionário que lhe vinha imputado, p. e p. pelo art.º 347 n.º 1 do CP.

1.6 Aqui chegados.

É certo que, como já aludimos, o crime de resistência e coação sobre funcionário da mesma maneira que o crime de desobediência, são apresentados na parte especial do CP – Secção I do Capítulo II do Título V – «Dos crimes contra a autoridade pública».

E que o bem jurídico que aqui se pretende proteger – tal como no crime de desobediência – é a autonomia intencional do Estado, protegida de ataques vindos do exterior da Administração Pública.

Não sofre ainda dúvida que se provou que o arguido, agiu sempre de forma livre, consciente e deliberada, com intenção de não realizar o teste de despistagem de álcool no sangue e assim obstar a sua eventual responsabilização criminal.

No entanto, não há como deixar de considerar que o crime de resistência e coação sobre funcionário veio a ser cometido após o preenchimento de todos os elementos típicos do crime de desobediência; e depois de ser dada voz de detenção.

Ora, uma vez que o crime de resistência e coação sobre funcionário foi praticado após a perfetibilização do crime de desobediência, então, inversamente à pretensão recursiva, não se justifica que aquele seja considerado um crime meio deste.

E posto que o crime de resistência e coação sobre funcionário foi praticado depois de ser dada voz de detenção, então aos dois crimes corresponde uma distinta resolução dirigida, no segundo momento, à violência contra funcionário para se opor a que ele pratique ato relativo ao exercício das suas funções.

Aliás, ao crime de resistência e coação sobre funcionário corresponde uma moldura penal mais grave, pelo que nunca se justificaria (contrariamente à pretensão recursiva) que o sentido global do ilícito fosse dominado pelo crime de desobediência e que a medida da pena aplicada ao arguido fosse encontrada dentro da moldura penal menos grave correspondente ao crime de desobediência.

As condutas são sequenciais e distinguem-se quanto ao modo de atuação e à inerente resolução.

Não se revela possível concluir que o agente se propôs uma realização típica de certa espécie, como meio para lograr o desiderato típico de outra.

Pese embora a proximidade contextual das condutas típicas (seja espacial, seja temporal) não se indicia a unidade de sentidos do ilícito global.

Em suma, não se justifica a aplicação das regras da consunção, nem por outra via, resulta indiciada uma unidade de sentido global, suscetível de afastar a condenação em concurso real.

Improcede, ainda, a invocação do n.º 2 do art.º 30.º do CP.

Pese embora seja no essencial, idêntico o bem jurídico protegido por ambos os crimes, e apesar de ser evidente a proximidade temporal e espacial de condutas, não se deteta a execução essencialmente homogénea das mesmas, nem tão-pouco que nos encontramos perante uma situação exterior que diminua (e muito menos) consideravelmente a culpa do agente.

Os fatores exteriores não surgiram por acaso, em termos de facilitarem ou arrastarem o agente para a nova conduta criminosa, que, pelo contrário, não se deixou motivar pelos valores da ordem jurídica, não obstante eles lhe terem sido lembrados.

Sem diminuição de culpa e sem a correspondente envolvência externa ao agente não existe crime continuado.

No caso, a violência exercida contra de um dos militares sempre suscitaria dificuldades acrescidas para a unificação da conduta num crime continuado (atento o disposto no n.º 3 do art.º 30.º do CP).

Em suma, há pluralidade criminosa e não há que fazer aplicação do disposto no artigo 30º, nº 2 do Código Penal, não merecendo, nesta parte, qualquer censura a sentença recorrida.

Resta acrescentar que não se reconhece razão ao recorrente quando invoca a violação, pela sentença recorrida, do princípio ne bis in idem, consagrado no art.º 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, com base na alegação de que autonomizar o conteúdo do crime de resistência e coação sobre funcionário  significaria uma dupla valoração do mesmo substrato de facto.

Com efeito, o que esse preceito constitucional proíbe é que alguém seja julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime, o que não ocorre na situação dos presentes autos, uma vez que, como vimos, os factos que justificam a punição pelos dois crimes são distintos, a que correspondem duas resoluções criminosas igualmente distintas.

Concluímos, nesta parte, pela improcedência da defesa.

(…)


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IV. DISPOSITIVO

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Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo arguido recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC´s (513.º do CPP e tabela III anexa ao RCP).

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pela relatora e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).


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            Coimbra, 08.05.2024

            Alexandra Guiné (relatora)

            João Novais (1.º adjunto)

            José Eduardo Martins (2.º adjunto)