Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1830/04.0PBAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: INQUÉRITO
QUEIXA DO OFENDIDO
TESTEMUNHAS
NOTIFICAÇÃO
INSTRUÇÃO
SEGREDO DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 12/19/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ÁGUEDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 48º A 52º, 89º, Nº. 2, E 120º, Nº. 2, AL. B), DO C. P. PENAL
Sumário: 1. Nos crimes semi-públicos e particulares o objecto do inquérito limita-se ao estrito âmbito da queixa apresentada pelo ofendido, queixa que não pode estender-se a qualquer outro crime que não tenha relação de identidade factual com o crime participado.

2. Não é exigível a notificação ao assistente do despacho que determina a inquirição de testemunhas na fase de instrução.

3. Com a dedução de acusação pelo Ministério Público ou com a apresentação, pelo assistente, de requerimento de abertura de instrução, embora permaneça o segredo de justiça externo, cessa o interno, passando os sujeitos processuais a ter acesso pleno aos autos.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.
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I – Relatório.
1.1. A..., mais tarde admitida a intervir na qualidade de assistente nos autos e já neles melhor identificada, demandou criminalmente B..., também aí com os seus sinais e entretanto constituído arguido, tudo como sobressai da participação policial que integra fls. 1 e 2.
Após subsequente tramitação do correspondente inquérito, determinado o cumprimento do disposto pelo artigo 285.º, n.º 1 do Código de Processo Penal [diploma de que serão os normativos doravante a citar, sem menção da origem], seguiram-se acusação particular e pública contra o visado B....
Através da primeira, que constitui fls. 78 e segs., imputando-lhe a assistente a prática de um crime de injúrias; de um crime de ameaças; de um crime de ofensas à integridade física e de um crime de furto, previstos e punidos, respectivamente, pelos artigos 181.º, n.º 1; 153.º; 143.º e 207.º, todos do Código Penal [vulgo CP].
Pela segunda, como resulta de fls. 100/101, assacando-lhe o Ministério Público a autoria de um crime de ofensas à integridade física, previsto e punido pelo citado artigo 143.º, n.º 1. Ministério Público que, por outro lado, não acompanhou aquela primeira na parte atinente aos falados crimes de injúrias e furto.
Com o intuito de comprovar judicialmente as ditas decisões de acusar, o arguido requereu a abertura da instrução que, deferida e processada, culminou com a realização do pertinente debate instrutório e despacho da sua não pronúncia relativamente a ambas (cfr. fls. 195 e segs.).
1.2. É na discordância da assistente com tal decisão que vem interposto o presente recurso, sendo que a mesma do requerimento respectivo, após motivação, extraiu a formulação das conclusões seguintes:
1.2.1. Não foram investigados ou não foram convenientemente investigados os crimes em causa nos autos sendo ou constituindo esse facto causa da sua nulidade insanável, que ora se invoca, nos termos do disposto no artigo 119.º, alíneas b) e d).
1.2.2. A falta de comunicação da inquirição de testemunhas havida e por isso a impossibilidade de a recorrente exercer um seu direito são fundamento de anulabilidade nos termos do artigo 120.º, n.º 2, alínea b), que também se argúi.
1.2.3. Também quer o inquérito quer a instrução foram insuficientes, bem como a omissão posterior pelo M.mo Juiz de Instrução do disposto no artigo 302.º, n.º 1, conhecimento essencial à recorrente para requerer a produção de eventual prova suplementar, são fundamento e causa da nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d).
1.2.4. Acresce, e ao contrário do sufragado na decisão recorrida, que se verificam indícios suficientes da prática pelo arguido do crime de ofensas corporais na pessoa da assistente.
Na verdade, a assistente não teve a possibilidade de contraditar a credibilidade dos depoimentos, e, sempre, é outra a realidade dos factos pois que se mostram documentadas as lesões e existem as declarações da própria.
1.2.5. O facto de se vedar à assistente o conhecimento dos actos de instrução, bem como a prova deles resultantes, quando se permitiu a consulta completa dos autos ao arguido no inquérito, é uma flagrante violação legal do princípio da igualdade de armas e das disposições constitucionais contempladas nos artigos 127.º; 289.º e 291.º, além dos artigos 13.º; 202.º; 203.º e 204.º, estes todos da Constituição da República Portuguesa [CRP].
Terminou pedindo que se decrete a nulidade da instrução processada, ou, concedendo, e no mínimo, a pronúncia do arguido pelo indicado crime de ofensas á integridade física.
1.3. Admitido o recurso, e notificados os demais sujeitos processuais, seguiram-se respostas de ambos defendendo a subsistência do decidido.
1.4. Com implícito despacho de manutenção da dita decisão, remeteram-se os autos para este Tribunal.
Aqui, o Exmo. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer conducente a igual subsistência do despacho impugnado.
Cumpriu-se com o disposto pelo artigo 417.º, n.º 2.
No exame preliminar a que alude o n.º 3 deste normativo, consignou-se nada obstar ao conhecimento de meritis.
Realiza-se conferência, cabendo apreciar e decidir.
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II – Fundamentação.
2.1. O âmbito do recurso é-nos facultado através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. Na verdade, e sem prejuízo do conhecimento das questões que assumam carácter oficioso, decorre do estatuído pelo artigo 412.º, n.º 1 que são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que este Tribunal tem de apreciar.
Isto dito, inexistindo alguma (s) de conhecimento oficioso, temos que no caso sub judice as questões que reclamam a nossa ponderação, por ora, são:
- Ocorreu, in casu, falta de promoção do processo pelo Ministério Público ou falta de inquérito, e, na afirmativa, consequências?
- Verifica-se nulidade decorrente da falta de notificação à recorrente para presença em acto cuja comparência lhe era obrigatória?
- Bem como de omissão pelo M.mo JIC do disposto pelo artigo 302.º, n.º 1, 1.ª parte?
- Sempre contêm os autos indícios suficientes para que o arguido seja submetido a julgamento, isto é, pronunciado, ao menos pela prática de um crime de ofensas à integridade física?
- O conhecimento facultado ao arguido dos actos de instrução, bem como da prova daí adveniente, em contrário do sigilo que deles foi imposto à recorrente, viola normativos constitucionais, maxime o princípio da igualdade de armas daí adveniente?
Vejamos:
2.2. Se ocorreu, in casu, falta de promoção do processo pelo Ministério Público ou falta de inquérito, e, na afirmativa, consequências.
Procurando convocar a nulidade resultante do estatuído pelo artigo 119.º, alíneas b) e d) [Falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º; e falta de inquérito, respectivamente], a recorrente começa por fazer um “histórico” dos actos praticados ao longo do inquérito, para depois, muito concretamente no artigo 20.º da motivação oferecida, realçar os que em seu entender foram indevidamente omitidos integrando a nulidade ora em causa: quanto a um crime de ameaças denunciado a fls. 2 não foi realizada qualquer diligência, nem solicitada à ofendida a indicação de meios de prova ou, inclusive, a sua própria inquirição sobre o sucedido; idem sobre um crime de injúrias cometido pelo arguido e relativamente ao qual jamais foi ela inquirida; também quanto a um crime de furto praticado pelo arguido não foi ela inquirida, nem solicitada a indicar meio complementar de prova; no que concerne ao crime de ofensa à sua integridade física, além da junção dos relatórios médicos, também não foi verificada da existência de outra prova acrescendo à que ofereceu.
Esta alegação da recorrente assente numa equívoca interpretação sobre os actos que hão-de integrar um inquérito, mormente quando estão em causa crime (s) que assuma (m) natureza semi-pública ou particular.
Nos termos do artigo 262.º, n.º 1, “O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem á decisão sobre a acusação, (…)”.
Inquérito cuja direcção, por força do disciplinado no subsequente artigo 263.º, n.º 1, “ (…) cabe ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal”, sendo, aliás, tal legitimidade decorrente do antecedente artigo 48.º, pois como aí se define, “O Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49.º a 52.º”.
No caso dos autos, relevam os apontados artigos 49.º e 50.º.
Na verdade, e como é consabido, um dos princípios basilares do nosso ordenamento processual penal é o da oficialidade, isto é, aquele em cujos termos a promoção das infracções criminais é tida como tarefa que incumbe ao Estado, tutelador, assim, dos valores essenciais da sociedade em cada época histórica. Tal princípio não tem, porém, natureza absoluta, antes comporta excepções. Ao que releva, por ora, as decorrentes dos crimes semi-públicos e particulares prevenidos nos preceitos ultimamente citados, ou seja, daqueles crimes em que a legitimidade do Ministério Público para exercer a acção penal necessita de ser integrada ou só com uma queixa (os primeiros), ou, para além dela, de uma acusação particular (os segundos).
Em tais casos, o objecto do inquérito limita-se, cinge-se, ao estrito âmbito decorrente da queixa apresentada pelo ofendido. Sendo condição de procedibilidade relativamente a esse tipo de crimes, a queixa ou participação feita relativamente a um crime não pode estender-se a qualquer outro que com aquele não tenha qualquer relação de identidade factual. Apenas a apresentação (se ainda possível) de nova queixa ou participação possibilita a perseguição penal.
Revertendo concretamente ao caso dos autos, importa mencionar algumas incidências processuais:
- A fls. 2, foi efectuada denúncia pela (ora) assistente pretextando ter sido vítima de agressões físicas, determinantes de ferimentos, e “frases ameaçadoras” por parte do arguido (“eu não respondo por mim; tu não sabes do que eu sou capaz; não sais daqui inteira”).
- Autuado o inquérito no Ministério Público, o mesmo delegou no OPC a conclusão da investigação, no decurso da qual o arguido usou do direito ao silêncio (fls. 20/1); foram juntos relatórios médicos periciais (fls. 7; 8; 11/13; 39/41) e a assistente foi igualmente inquirida (fls. 46).
No decurso desta diligência, a assistente mencionou não existir qualquer prova testemunhal do relatado e reportou-se tão-somente às ofensas físicas aludidas.
- Foi entretanto apenso ao inquérito génese destes autos, um outro até então autuado sob o n.º 245/04.4 GCAGD, em cujo âmbito a mesma assistente denuncia ter sido vítima de um crime de furto de uma câmara digital fotográfica, perpetrado também pelo arguido B..., com quem vivia à data de todo o relatado em condições análogas ás dos cônjuges.
Também aqui o denunciado usou do direito ao silêncio e a denunciante não arrolou prova testemunhal.
- Determinado o cumprimento do disposto pelo artigo 285.º, n.º 1: a) A assistente formulou a apontada acusação particular de fls. 78 e segs., cominando o arguido com a prática de um crime de ameaças; de um outro de injúrias; de um de ofensas à integridade física e, por fim, de um de furto. Factualidade consubstanciadora, o arguido ter-se-lhe dirigido dizendo: “Sua vaca! onde é que vais? Isto não fica assim, sua vaca! Grande vaca, eu vou para a cadeia mas tu vais ter o que mereces!”; na mesma altura, o arguido havê-la agarrado e depois empurrado, causando-lhe as lesões que descreve; e ter-lhe subtraído, sem sua autorização e contra sua vontade, a dita câmara. b) O Ministério Público deduziu a também reportada acusação pública, pela alegada prática de um crime de ofensa à integridade física da assistente; consignou não acompanhar a acusação particular relativamente aos indicados crimes de injúrias e de furo e nada disse relativamente ao crime de ameaças.
Ora, de todo o relatado sobressai a não configuração da nulidade primeiramente invocada.
Na verdade, existe desde logo inquérito. O vício a que se reporta a mencionada alínea d) é respeitante à sua inexistência absoluta, total. O que manifestamente não é a situação presente.
Também que não ocorre falta de promoção do processo pelo Ministério Público. Do relatado resulta antes que a ofendida participou a eventual ocorrência de um crime de ofensa à sua integridade física e um de furto. Só com muitas reservas se pode conceder que na denúncia destes autos principais também participou um provável crime de ameaças. Nunca participou a ocorrência de um crime de injúrias.
Como assim, e considerando ademais os termos em que decorreram as inquirições produzidas, mormente da assistente, temos que nada mais restava ao Ministério Público fazer e que se moveu ele estritamente dentro dos poderes-deveres que lhe impõe o citado artigo 262.º, n.º 1.
A integração que o mesmo depois entendeu ser a devida sobre a recolha probatória realizada, é coisa distinta da apontada falta de promoção do processo que, reafirma-se, não subsiste no caso dos autos e determina a improcedência do primeiro fundamento da impugnação.
2.3. Se ocorre nulidade decorrente da falta de notificação à recorrente para presença em acto cuja comparência lhe era obrigatória.
Insurge-se a recorrente contra a circunstância de não ter sido notificada da realização da inquirição de testemunhas no decurso da fase de instrução, nem do próprio requerimento em que a abertura desta foi solicitada, sendo que embora presente àquele acto lhe foi vedada qualquer participação no mesmo.
Em consequência, estariam os autos cominados com o vício decorrente do artigo 120.º, n.º 2, alínea b) invocado.
Comina este preceito que integra nulidade, dependente de arguição, a ausência, por falta de notificação, do assistente nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência.
O alegado pela recorrente neste circunspecto, falece por uma dupla ordem de razões:
Uma primeira, porque não corresponde à realidade que não haja a assistente sido notificada da data de realização da inquirição das testemunhas no decurso da fase de instrução, nem do teor do requerimento com base no qual foi ela considerada aberta.
Com efeito, a assistente mostra-se representada por advogado nos autos desde 11 de Fevereiro de 2005 (vd. fls. 31 e 37), a quem, portanto, passaram a ser feitas as notificações devidas (não estão em causa actos para os quais a assistente devesse ser pessoalmente notificada). No dia 5 de Maio de 2006, a assistente (por intermédio do seu mandatário) foi notificada para um debate instrutório a realizar no dia 2 de Junho de 2006 (cfr. fls. 162), o que pressupunha, naturalmente, a apresentação prévia de um requerimento de instrução. Mas, tal notificação foi realizada com “cópia do Despacho proferido”, cujo é o de fls. 159/160, e menciona, nomeadamente, que nessa mesma data se procederá à inquirição das testemunhas indicadas a fls. 151 (as que a assistente agora controverte).
Mas, uma segunda ordem de razões faz naufragar este fundamento invocado pela recorrente.
Como anota Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, págs. 160/161), “Os actos de instrução não estão sujeitos ao princípio do contraditório. Na instrução apenas o debate instrutório é contraditório. Resulta, com efeito, de todos os artigos que aos actos de instrução se referem que o juiz pode realizar ou ordenar a prática de actos de instrução sem deles dar conhecimento ao MP, ao arguido e ao assistente e, em consequência, sem que estes sujeitos processuais possam estar presentes à sua pratica. (…) Os actos de instrução são, pois, praticados de modo unilateral, em forma inquisitória, pelo juiz ou pelos órgãos de polícia criminal por delegação do juiz, sem que o arguido, o Ministério Público ou o assistente tenham qualquer intervenção activa na sua prática nem sequer a eles podendo assistir, salvo quando se tratar de actos em que a lei expressamente admita a sua presença”. (sublinhados nossos).
Seja, nem sequer se mostrava exigível a reclamada notificação.
Indaguemos, de seguida:
2.4. Se igualmente omitiu o M.mo JIC o disposto pelo artigo 302.º, n.º 1, 1.ª parte.
Segundo tal normativo, “O juiz abre o debate com uma exposição sumária sobre os actos de instrução a que tiver procedido…”.
Vendo-se a acta que é fls. 193, dela consta, nomeadamente, uma tal menção.
Do que decorre, então, que mesmo concedendo-se não corresponder o relatado ao sucedido, sempre estaríamos sempre perante uma mera irregularidade, entretanto já sanada, pois que estando presente o interessado, a não arguiu até ao terminus do acto (disposições conjugadas dos artigos 118.º, n.º 2 e 123.º, n.º 1).
2.5. Se contêm os autos indícios suficientes para que o arguido seja submetido a julgamento, isto é, pronunciado, ao menos pela prática de um crime de ofensas à integridade física.
A decisão recorrida contém simples, mas bastantes, considerações sobre a noção que nos é legal, doutrinal e jurisprudencialmente imposta, sobre o mencionado conceito de “indícios suficientes”, donde que, sem mais, aqui as abracemos, igualmente.
O que permite aquilatar, sem demora, da resolução a dar à questão assim suscitada.
Relembra-se e precisa-se que a exigência então colocada ao julgador é a da simples apreciação das provas recolhidas até esta fase preliminar do processo, mas sem que entre já numa sua apreciação de mérito, antes que tão-só numa decisão processual tendente a verificar da viabilidade do prosseguimento da lida até à fase final de julgamento.
Numa linguagem chã, pode dizer-se que cada caso é um caso.
No presente, a versão apresentada pela denunciante ocorreu sem a presença de qualquer testemunha, o que, manifestamente, tornava difícil (mas, concede-se, não impossível) a sua prova indiciária.
Ora, vendo-se os autos, deles decorre que a própria assistente foi, sem que disso resulte explicação plausível, variando de versão ao descrever os factos que imputou ao arguido B....
Como afoitamente se menciona na decisão recorrida, se quando apresentou queixa relativamente aos alegadamente ocorridos em 18 de Setembro de 2004 foi peremptória em afirmar que os mesmos teriam ocorrido às 20h.30m (cfr. fls. 2), já na acusação particular que deduziu refere que tudo se teria passado entre a parte da tarde (cfr. item 1.º de fls. 78) e o fim do dia (vd. fls. 125).
Também que, enquanto na aludida queixa afirmou que após o sucedido o arguido abandonou o local para parte incerta, já na dita acusação diz que o mesmo se fechou em casa (cfr. fls. fls. 79 e 98).
Acresce que segundo elementares regras da experiência e da normalidade do acontecer não deixa de ser estranho que tendo sido agredida, padecendo de dores e estando privada de aceder à sua própria residência, acabe apenas por comunicar com a PSP de uma cidade vizinha nesse mesmo dia (às 23.31 horas), percorra a distância de vários Km que separam as duas localidades para formalizar a queixa (cfr. fls. 2) e apenas pelas 1.39 horas se dirija a uma unidade hospitalar, também numa cidade vizinha, onde nenhuma lesão física lhe é detectada na zona de que se queixa de dores a seja no dia seguinte (cfr. fls. 192), sendo certo que já o seja no dia seguinte (cfr. fls. 12).
Inquirido, o arguido remeteu-se ao silêncio.
A fim de infirmar a possibilidade de ocorrência do relatado pela denunciante apresentou testemunhas que, ouvidas, e sem interesse no desfecho da lide, disseram que ele passou o dia em causa na região da Guarda e de Viseu, sendo que pelas 20.30 horas se encontrava a, pelo menos 75 Km de distância do local da pretensa agressão. Em deslocação daquela para este necessitaria de cerca de 1 hora de viagem (fls. 179 a 182).
No que diz respeito ao apontado crime de furto, além das declarações da denunciante, nenhuma outra prova foi produzida.
Tudo conjugado, e coligindo-se o reconhecido princípio do in dúbio pro reo, decorre, manifestamente, que da prova carreada para os autos não decorria uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena em julgamento. Bem pelo contrário, se afigura muito mais plausível a sua isenção de qualquer responsabilidade pelos factos denunciados.
O que tudo se traduz na certeza da sua não pronúncia e, decorrentemente, do improvimento também deste fundamento do recurso.
2.6. Se o conhecimento facultado ao arguido dos actos de instrução, bem como da prova daí adveniente, em contrário do sigilo que deles foi imposto à recorrente, viola normativos constitucionais, maxime, o princípio da igualdade de armas daí adveniente.
Esta alegação da recorrente só pode conceber-se como fruto de uma inadequada compreensão do que é o “segredo de justiça” ou de uma evasiva no sentido de não assumir omissões próprias.
Algumas considerações demonstrarão do infundado desta sua conclusão.
Como se escreveu na obra Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Livraria Almedina, págs. 75 e segs., o CPP vigente acolheu um modelo processual de matriz essencialmente acusatória, inte-grado por um princípio de investigação. A separação material e funcional entre acusação e julgamento é nele praticamente absoluta, com a consequente separação de funções entre quem investiga e acusa (artigos 262.º e 283.º), por um lado, e quem julga (artigos 311.º e segs.), por outro. Separação ainda garantida pelo princípio da acusação [artigos 283.º, 284.º, 285.º e 119.º, alínea b)] e pelo princípio da vinculação temática (artigos 303.º, 309.º, 359.º e 379.º), que limitam quer os poderes de cognição do tribunal de julgamento, quer o próprio princípio da investigação quando invocado na fase de instrução ou julgamento.
Para materializar essa separação mas, simultaneamente, garantir a assunção séria do princípio da acusação, o legislador criou e regulou duas fases processuais distintas no mesmo modelo processual: uma fase dedicada à investigação e instrução do processo (artigos 262.º e segs.), que antecede a possível acusação (artigos 283.º ou 285.º), e uma dedicada ao julgamento (artigos 311.º e segs.), na qual toda e qualquer investigação a realizar está limitada (artigos 358.º e 359.º) pelo âmbito da acusação (ou da pronúncia, se a mesma existir) e em que não é possível dispor unilateralmente do objecto do processo (artigo 359.º, n.º 2, a contrario).
As duas fases referidas – a fase de inquérito e a fase de julgamento – são ambas peças essenciais do modelo de processo penal acolhido no actual CPP (de 1987). A primeira (o inquérito) procura garantir que a decisão de submeter uma causa a julgamento por via duma acusação (uma acusação pública ou uma acusação particular), seja materialmente fundada (ao nível dos factos, do Direito e da prova recolhida) e a segunda (o julgamento) visa garantir a realização da justiça penal, através dum Tribunal independente que não vai apenas confirmar ou infirmar a pretensão acusatória, mas antes decidir o conflito depois de realizado um debate pleno e contraditório sobre a causa.
Num sistema de matriz acusatória só existe um julgamento independente se a instrução material do processo estiver no essencial realizada em momento anterior, sendo o princípio da investigação uma forma de a completar em nome da verdade material e da dialéctica própria duma audiência com contraditório pleno. Ou seja, a estrutura acusatória exige na plenitude uma instrução material do processo consistente e anterior ao julgamento, cristalizada na eventual acusação. Mas para tanto não pode existir qualquer ilusão sobre as condições em que essa instrução do processo anterior à acusação deve ser feita: não há investigação criminal bem sucedida, em especial na criminalidade organizada, complexa ou sofisticada, sem uma envolvente mínima de segredo e não pode haver uma acusação seriamente sustentada se, antes de a mesma ser deduzida, a investigação de apoio tiver sido confrontada com manipulação ou destruição das provas, adulteração dos factos e ocultação de eventuais testemunhas.
Que a primeira fase (a do inquérito) seja tendencialmente secreta e a segunda (a do julgamento) seja tendencialmente pública é, pois, algo compreensível em função dos propósitos e das finalidades de cada uma delas. Mas sem que se possa dizer que, no processo penal português, a publicidade é a regra e o segredo a excepção, pois na verdade a publicidade é a regra só para a fase de julgamento, não sendo razoável descrever como excepção o regime que vigora para uma fase de natureza e função completamente distintas. O que temos, pois, é um modelo de processo penal racionalmente estruturado em duas fases com finalidades distintas e regimes diferentes. Duas fases que, cada uma a seu modo e com as suas carac-terísticas, contribuem para a realização da justiça penal.
A vigência do segredo de justiça nas fases preliminares do pro-cesso penal é plurisignificativa no plano axiológico: trata-se, por um lado, de um mecanismo destinado a garantir a efectividade social do princípio da presunção de inocência do arguido, durante fases processuais que ainda estão cronologicamente distantes do julgamento, julgamento esse que pode, inclusivamente, nem vir a ter lugar por força dum arquivamento do processo (artigo 277.º) ou duma não pronúncia (artigo 308.º, n.º 1, in fine); noutro plano, é uma forma de garantir condições de eficiência da investigação e -de preservação de possíveis meios de prova, quer a prova obtida quer a eventual prova a obter; finalmente, como variante específica deste aspecto, o segredo de justiça pode assumir igualmente uma função de garantia para pessoas que intervêm no processo – em particular as víti-mas e as testemunhas – que, de outra forma, poderiam ficar numa fase preliminar -do processo expostas a retaliações e vinganças de arguidos ou pes-soas que lhes sejam próximas.
Sendo esta a vertente axiológica positiva que enforma a figura do segredo de justiça, não se pode excluir, no entanto, que na prática o insti-tuto seja também ilegitimamente invocado para dar cobertura a fins ilegítimos, como sejam o propósito de não expor as deficiências ou debilidades da investigação, a falta de meios, de competências ou de empenho dos aplicadores do Direito ou a preservação de fontes de informação associadas às quebras ilícitas do segredo de justiça.
A natureza tendencialmente secreta da fase de inquérito assenta, por um lado, numa regulação processual do sigilo (artigo 86.º), do acesso ao conteúdo dos autos (artigo 89.º) e da divulgação dos actos processuais (artigos 86.º e 88.º) e, por outro, na tutela penal que a alguns destes aspectos é conferida pela incriminação contida no artigo 371.º do CP.
De uma forma geral, pode dizer-se que a regulação processual do segredo de justiça contida no artigo 86.º tem, por um lado, um âmbito material mais vasto do que o âmbito material do tipo incriminador previsto no artigo 371.º do CP, mas, por outro, o âmbito subjectivo deste tipo incriminador pode ser mais vasto do que o âmbito subjectivo traçado no artigo 86.º.
O segredo de justiça consiste na sujeição de certos actos proces-suais a um regime de reserva temporalmente balizado. A lei é clara quanto ao momento até ao qual vigora o segredo de justiça: retira-se a contrario do artigo 86.º, n.º 1, que o segredo de justiça vigora durante todo o inquérito até ao momento em que não pode ser requerida instrução (o que no processo comum corresponde ao prazo de 20 dias após a notificação da acusação ou do arquivamento (artigo 287.º, n.º 1); no processo abreviado o prazo será de 10 dias, de acordo com o artigo 391.º-C, n.º 1). Se for requerida ab-ertura de instrução só pelo assistente, pelo arguido e pelo assistente simultaneamente ou só pelo arguido, declarando este que se opõe à publicidade, o processo continua em segredo de justiça na fase de instrução, até ser proferida a decisão instrutória (artigo 86.º, n.º 1, segunda parte). Na fase de instrução, portanto, o regime de segredo de justiça cessa apenas quando esta fase é requerida apenas pelo arguido e este não declarar oposição à publicidade do processo que, em tal caso, passa a vigorar a partir desse momento.
O âmbito subjectivo do segredo de justiça num caso e noutro é, contudo, d-iferente: enquanto durante o inquérito vigora um segredo de justiça interno e externo, durante a instrução só vigora o segredo de justiça externo, pois que por força do artigo 89.º, n.º 1 (e 89.º, n.º 2, a contrario) os sujeitos processuais passam a ter acesso aos autos. O que bem se compreende, pois ao contrário do que acontece com a fase de inquérito, onde o contraditório é limitado e só vale em relação a actos especí-ficos, a fase de instrução contempla obrigatoriamente um debate oral e contraditório (artigos 289.º, n.º 1 e 297.º e segs.) que exige e pressupõe o conhecimento integral dos autos onde se debatem todas as questões de facto e de direito (artigo 298.º) e onde também se procura identificar verdade material (artigo 299.º), embora nos limites da natureza e função da fase processual em causa (artigo 298.º). Solução que se aplica quer tenha havido ou não acusação do Ministério Público, pois para todos os efeitos o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente é material e funcionalmente equiparado a uma acusação, quer quanto às exigências que tem de respeitar (artigo 287.º, n.º 2), quer quanto ao regime de constituição de arguido (artigo 57.º, n.º 1), quer ainda quanto à vinculação temática do Tribunal de Instrução Criminal (artigos 303.º, n.º 1 e 309.º, n.º 1).
Dito de forma sintética, com a dedução de acusação pelo MP ou com a apresentação do requerimento de abertura de instrução pelo assistente cessa o segredo de justiça interno, embora permaneça o segredo externo, e os sujeitos processuais passam a ter acesso pleno aos autos (artigos 89.º, n.º 2, a contrario).
Na posse destes considerandos, mostra-se possível apreciar o caso concreto.
E dele decorre que a recorrente/assistente podia ter consultado o processo ainda na fase de inquérito, a partir das notificações datadas de 25 de Janeiro de 2006, documentadas a fls. 72 e 73.
Não o tendo feito, sibi imputet.
Ainda conforme último normativo mencionado, também ao arguido passou a ser facultado o acesso aos autos a partir de então (notificação de 24 de Fevereiro de 2006, documentada a fls. 107), o que ele fez, mas, sem que tal circunstância se funde em qualquer atitude discriminatória. Antes que apenas decorrente de opção do sujeito processual concreto.
Acresce que o arguido quando requereu a abertura da instrução não fez menção de se opor à respectiva publicidade. Ora, também desde então podia a recorrente ter consultado livremente o processo, vendo o teor do requerimento apresentado, o teor da prova nele indicada, diligências requeridas, etc.
Mais uma vez não o havendo feito, sibi imputet.
Do exposto a conclusão de que não existe em abstracto qualquer distinção entre o estatuto processual atribuído aos sujeitos processuais intervenientes, configurando-se tão-somente um uso (ou omissão) distinto dos poderes nele conferido aos mesmos por opção que apenas a eles próprios deve ser assacada.
Em todo o caso, e com o recorrido, cabe ainda dizer que nenhum dos pretensos vícios vem definido como “nulidade insanável”, legalmente tipificadas como é sabido.
Como assim, tendo sido cometidas, e quer concebendo-se como “nulidades sanáveis” ou “meras irregularidades”, deveriam ter sido arguidas no próprio acto, caso a assistente ou seu mandatário nele estivessem presentes, ou, até ao encerramento do debate instrutório [artigos 120.º, n.º 3, alíneas a) e b) e 123.º].
Ora, a assistente e seu mandatário intervieram em vários actos subsequentes; o segundo recebeu diversas notificações e ambos estiveram pessoalmente presentes no debate instrutório realizado, sem que suscitassem o que quer que fosse.
Vale por dizer do infundado da motivação e conclusões apresentadas a propósito e, consequentemente, do naufragar absoluto do recurso interposto.
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III – Decisão.
São termos em que perante todo o exposto, se nega provimento ao recurso interposto e se mantém, na íntegra, a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 7 UCs.
Notifique.