Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
217/15.3PBCLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: COMISSÃO POR OMISSÃO
DEVER DE GARANTE
NEGLIGÊNCIA
Data do Acordão: 10/25/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JL CRIMINAL DE CALDAS DA RAINHA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 10.º E 15.º DO CP
Sumário: I - A actividade de ama, apesar de não se encontrar juridicamente regulamentada no nosso Direito, cria-lhe o dever jurídico próprio do garante, de evitar a verificação de um evento danoso para a vida e a saúde de quem está ao seu cuidado e precisa de toda a sua atenção e assistência.

II - Para a verificação do crime por omissão, exige-se a ausência de acção, como ato voluntário, a capacidade fáctica de acção (excluindo as situações em que inexistam, por parte do agente, as características físicas ou intelectuais, os conhecimentos ou instrumentos que lhe permitam evitar a concretização do perigo), o nexo de causalidade adequada (possibilidade do agente desencadear um processo causal idóneo a evitar a concretização do perigo, sendo essa possibilidade conhecida ou cognoscível do agente), e, finalmente, o conhecimento da posição de garante.

III - O agente será responsável penalmente se, através de uma acção ou omissão, motivada por uma falta de cuidado a que estava obrigado no exercício da sua função, provocar um resultado, in casu, uma ofensa à integridade física que era objectivamente previsível e passível de ser evitada.

IV - A arguida, ao permitir que o menor de 27 meses de idade permanecesse dentro do espaço destinado aos animais, sem qualquer protecção para os mesmos, violou o dever objectivo de cuidado consistente na permissão de permanência do menor dentro daquele espaço.

V - O art.º 15º do CP (sob a epígrafe “Negligência”) formula um juízo de dois graus:

- Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, conforme as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, não chega sequer a representar a possibilidade de realização típica (negligência inconsciente).

- Age ainda negligentemente, quem, de forma ilícita e censurável, representa como possível a realização típica, mas atua sem se conformar com essa realização (negligência consciente).

VI - Quando o agente, nas circunstâncias em que se encontrava, podia ou devia, segundo as regras da experiência comum e as suas qualidades e capacidades pessoais, ter representado como possíveis as consequências da sua conduta, poder-se-á afirmar o conteúdo da culpa própria da negligência e punir-se o agente que, não obstante a sua capacidade pessoal, não usou o cuidado necessário para evitar o resultado cuja produção ele teve como possível ou podia ter previsto.

Decisão Texto Integral:





Acordam no Tribunal da Relação do Porto, Secção Criminal.


***

No processo supra identificado, após a realização de audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que decidiu:

- Conhecer oficiosamente da nulidade da acusação contra o arguido A... e, consequentemente, declarando a mesma, declarou extinto o procedimento criminal relativamente ao mesmo, assim determinando o arquivamento dos autos, nesta parte.

- Sem custas criminais quanto ao arguido A... .

No mais, julgou integralmente procedente por provada a acusação e, em consequência:

- Condenou a arguida B... pela prática, em autoria material e na forma consumada, do crime de ofensa grave à integridade física negligente, p. e p. pelos art.ºs 148.º, n.ºs 1 e 3, com referência ao art.º 144.º, al. a) do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de 5,00€ (cinco euros), no total de 500,00€ (quinhentos euros).

- Julgou parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo CHO e, em consequência, condenou a arguida B... a pagar a este demandante a quantia de 89,50€ (oitenta e nove euros e cinquenta cêntimos), acrescida dos juros moratórios vencidos desde a data da prestação dos cuidados médicos ao menor G... (31.10.2014) e até efectivo e integral cumprimento, calculados à taxa supletiva legal fixada em Portaria própria. e) Julgo parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo CHLN e, em consequência, condenou a arguida B... a pagar a este demandante a quantia de 2.636,76€ (dois mil seiscentos e trinta e seis euros e setenta e seis cêntimos), acrescida dos juros moratórios vencidos desde a data da prestação de cada um dos cuidados médicos ao menor G... até efectivo e integral cumprimento, calculados à taxa supletiva legal fixada em Portaria própria.

- Julgou parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo ofendido G... e, em consequência, condenou a arguida B... a pagar a este demandante a quantia de 20.000,00€ (vinte mil euros,) a título de danos morais, acrescida da quantia que vier a apurar-se necessária para a aquisição de próteses e de reconstituição cirúrgica do pavilhão auricular esquerdo, a calcular em execução de sentença.

- Absolveu o demandado A... dos pedidos de indemnização civil contra si formulados.

- Custas criminais e cíveis a cargo da arguida B... .

Desta sentença interpôs recurso a arguida B... .

São do seguinte teor as conclusões, formuladas na motivação do recurso, interposto pela arguida:

                                                                                      31º

Em momento algum, a arguida violou o dever de cuidado a que estava obrigada.


32º

Não houve qualquer atitude da arguida diferente ou descuidada em relação a outros dias ou a outros menores.

33º

Para os detentores de animais de companhia, o contacto direto destes com crianças é algo normal, onde não se perspectiva qualquer acidente,

34º

Ou, ainda que se perspectiva essa possibilidade, a situação é equivalente a cozinhar com crianças na cozinha, ou lavar o chão com crianças a circular, ou um sem número de situações do dia-a-dia que previsivelmente não irão originar qualquer acidente (ainda que efectivamente possa acontecer).

35º

Ora, todas essas situações não deverão ser entendidas como factos ilícitos mas sim como situações comuns do dia-a-dia.

36º

Ora, na nossa sociedade é aceite o contacto direto entre as crianças e os animais de estimação – exceptuados os casos de animais considerados perigosos ou animais de grande porte.

37º

Não podendo, por isso, a defesa aceitar que no caso dos autos exista qualquer responsabilidade criminal da arguida, ainda que por negligência inconsciente.

38º

Sucede, ainda, que a condenação do nº 1 alíneas d) e e) da douta sentença, condena a arguida em montante superior ao peticionado.


39º

Ora, na alínea d) do nº 1 da douta decisão foi a arguida condenada ao pagamento ao demandante cível Centro Hospitalar do Oeste, em juros moratórios vencidos até integral pagamento.

40º

Não tendo este demandante civil peticionado qualquer quantia a título de juros.

41º

Termos em que a douta sentença recorrida viola o disposto no artigo 609º nº 1 do Código de Processo Civil.

42º

Também a alínea e) do nº1 da decisão da douta sentença condena a arguida no pagamento de juros vencidos desde a data da prestação de cada um dos cuidados médicos.

43º

Tendo, apenas, sido pedido pelo demandante Centro Hospitalar Lisboa Norte o pagamento de juros desde a notificação.

44º

Termos em que a douta sentença recorrida, também nesta parte, viola o disposto no artigo 609º nº 1 do Código de Processo Civil

 

Pelo exposto requer-se a absolvição da arguida por pois só

                                                           Assim será feita justiça!


O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.

Respondeu o Digno Procurador Adjunto, manifestando-se pela improcedência do recurso, defendendo a manutenção da decisão recorrida.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta no sentido da improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência, cumpre agora decidir.

O recurso abrange matéria de direito e de facto já que a prova se encontra documentada.

Da discussão da causa resultaram provados os factos seguintes constantes da decisão recorrida:

- Na parte criminal
1. O menor ofendido G... nasceu a 13 de Julho de 2012 e é filho de H... e de F... .
2. Desde o mês de Maio ou de Junho de 2013 que o menor se achava aos cuidados da arguida no período do dia compreendido entre as 9 horas e as 18 horas.
3. Naquele período, a arguida cuidava do menor, proporcionando-lhe a alimentação, a higiene e o descanso.
4. Por aquele serviço, os progenitores do menor pagavam à arguida a quantia mensal de € 150,00.
5. A arguida tomava conta do menor e de outras crianças na residência sita na Rua (...) , em Caldas da Rainha.
6. Em 31 de Outubro de 2014, a irmã da arguida, C... , era detentora de um cão, a quem chamava N (...) , o qual não se achava registado, nem vacinado.
7. Normalmente o referido animal achava-se recolhido num canil que confronta com o quintal da residência referida no parágrafo anterior.
8. Naquele dia, pelas 10 horas, A... , companheiro da irmã da arguida, foi lavar o canil e, para o efeito soltou o referido canídeo no quintal da citada residência, colocando, previamente, uma cerca de vedação impedindo a passagem dos canídeos para a zona do quintal.
9. Nessa ocasião, a arguida deixou que o referido animal contactasse com as crianças, nada fazendo de forma a evitar tal situação.
10. Nesse momento, e porque a arguida não tomou as devidas cautelas de forma a impedir que o animal acima referido se aproximasse das crianças, o mesmo lançou-se ao menor G... e mordeu-lhe o pavilhão auricular esquerdo, pelo que este teve necessidade de receber assistência médica.
11. Em consequência da mordedura do animal, o menor ofendido sofreu amputação traumática do pavilhão auricular esquerdo, após ter sido submetido, naquele dia, a anestesia geral, a desbridamento cirúrgico, revestimento com retalhos locais e enxerto de pele parcial colhido do couro cabeludo.
12. À data do exame médico, em 02/04/2015, o menor G... apresentava status pós-amputação do pavilhão auricular esquerdo, cicatrizado, estruturas restantes do canal auditivo externo sem particularidades observáveis, o que integra o conceito de desfiguração grave
13. Tais lesões determinaram-lhe um período de 20 dias para a consolidação médico-legal, todos com afectação da capacidade para o trabalho geral.
14. A arguida tinha o dever de cuidar do menor G... e impedir que o mesmo fosse atacado pelo animal acima referido.
15. A arguida, não procedendo com o cuidado a que estava obrigada e de que era capaz, violou o dever de vigilância que sobre si impendia, enquanto ama do menor G... , permitindo que o animal acima referido se aproximasse do mesmo e lhe mordesse o pavilhão auricular esquerdo como aconteceu, apesar de se achar ciente do dever que tinha de cuidar e de vigiar o menor de forma a evitar, como podia e era capaz, que o mesmo visse a sua saúde afectada, como veio ocorrer, considerando as lesões acima descritas, muito embora não tivesse previsto a possibilidade de concretização destas.
16. A arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei criminal.
17. Nada consta do Certificado de Registo Criminal da arguida.
18. B... é a mais velha de três filhos de um casal de modesta condição socio-económica.
19. Associa o seu processo de desenvolvimento ao investimento afectivo e educativo, recordando os pais como figuras protectoras e modeladores de conduta prosocial.
 20. No plano escolar apresenta um percurso pouco investido, abandonado o sistema de ensino com 12 anos de idade, após a conclusão do 1º ciclo, por desmotivação e dificuldades económicas dos pais.
21. Após o abandono escolar aprendeu costura, sendo que aos 23 anos de idade inicia actividade como empregada fabril, que desenvolveu de forma quase ininterrupta durante mais de 20 anos A partir dos 47 anos de idade começou a tomar conta de crianças, na sua habitação.
22. Esta actividade é referida como muito gratificante, atendendo ao alegado envolvimento afectivo que manteve com várias dezenas de crianças que, ao longo dos anos, estiveram sob os seus cuidados.
23. No plano afectivo, iniciou uma relação marital aos 31 anos de idade, que terminou volvidos 8 anos.
24. Em 2011 contraiu matrimónio com a pessoa com quem vive na actualidade.
25. data dos factos pelos quais se encontra indiciada B... integrava o agregado familiar constituído pelo cônjuge, actualmente aposentado, com que mantinha e mantém, na actualidade, um relacionamento descrito como gratificante.
26. No plano profissional a arguida tomava conta de duas crianças, actividade que refere como muito gratificante do ponto de vista afectivo, auto-avaliando-se como uma pessoa atenta às necessidades das crianças e preocupada com o sem bem-estar.
27. A arguida, face ao agravamento do estado de saúde da mãe – dependência de terceiros –acabaria por se ver na necessidade de permanecer na habitação daquela durante o dia, assegurando-lhe os cuidados necessários e passando a desenvolver aí também a sua actividade de cuidadora de crianças, harmonizando assim as duas tarefas. Ao fim do dia regressava á sua própria habitação, sendo substituída no apoio à mãe, por uma irmã.
28. Os pais das crianças por si cuidadas conheciam as características da habitação, sendo nesse local que as colocavam de manhã e iam buscar ao fim do dia.
29. Na actualidade B... apresenta o mesmo quadro familiar e rotinas, continuando a assumir um papel de relevo na prestação de cuidados à mãe e ao cônjuge, também ele com problemas de saúde e com alguma dependência do ponto de vista físico (sequela de AVC).
30. De igual modo, mantém à sua guarda diária uma criança aí colocada pelos progenitores durante os dias úteis.
31. B... refere uma situação económica difícil, apresentando como fontes de rendimento a reforma do cônjuge (€700) e o valor de €150 pago pela mãe da criança que cuida durante o dia. Como principais despesas indica o pagamento da renda do imóvel que habita (€280), infra-estruturas do mesmo (€150) e despesas com a medicação do cônjuge (€100).
32. Na comunidade de residência beneficia de uma imagem social positiva, sendo referenciada como uma pessoa educada e respeitadora, com uma postura pro- social e responsável no desenvolvimento das suas actividades de cuidadora, quer da mãe e cônjuge, quer de crianças.
33. Este entendimento é partilhado também pelos progenitores da criança a quem presta serviço como cuidadora.
34. Segundo os órgãos policiais a arguida, para além do presente processo, não teve outras ligações ao sistema de justiça.
35. Do ponto de vista do seu funcionamento pessoal, B... apresenta capacidade para se autodeterminar e para avaliar causas e consequências do seu comportamento.
36. Surge como uma pessoa, ponderada e cautelosa aquando da tomada de decisões, compreendendo e valorizando o cumprimento de responsabilidades.
37. B... apresenta-se muito preocupada e ansiosa face a eventuais consequências decorrentes do envolvimento na actual situação jurídicoprocessual.
38. No plano profissional considera não ter havido especial impacto da actual situação jurídico-penal, mantendo a sua actividade.
39. Socialmente, não são igualmente constatáveis repercussões que, de algum modo, alterem a imagem positiva de que goza.
40. Revela capacidades para efectuar uma análise crítica relativamente a factos similares àqueles pelos quais se encontra indiciada, reconhecendo a sua ilicitude e identificando consequências em eventuais vítimas.
41. Confrontada com uma hipotética sanção penal, manifesta receptividade para cumprir uma medida penal na comunidade.
- Na parte civil
42. Na sequência dos factos descritos supra em 10 e 11, o demandante Centro Hospitalar Lisboa Norte, E.P.E. prestou a seguinte assistência ao menor G... : - cuidados de saúde em episódio de internamento no serviço de Cirurgia Pediátrica (GDH 63 – outros procedimentos no ouvido, nariz, boca e/ou garganta em B.O.) entre os dias 1.11.2014 e 4.11.2014 (3 dias) importando o valor de 1.567,31€. cuidados de saúde em episódio de internamento no serviço de Cirurgia Pediátrica (GDH 207 – outros procedimentos na pele, no tecido subcutâneo e/ou na mama, sem C.C.) entre os dias 17.11.2014 e 18.11.2014 (1 dia) importando o valor de 723,65€. - Assistência em regime de ambulatório nas Consultas de Cirurgia Plástica e Rec. Maxilo Facial realizadas em 14.11.2014 e 7.11.2014 no valor de 62,00€. - Outros actos médicos (extracção de agrafes e penso simples) realizados em 14.11.2014 e 7.11.2014 no valor de 14,10€. - Assistência em regime de ambulatório na Consulta de Cirurgia Plástica e Rec. Maxilo Facial realizada em 18.12.2014 no valor de 31,00€. - Assistência em regime de ambulatório nas Consultas de Otorrinolaringologia I realizadas em 20.04.2015, 18.11.2015 e 1.06.2015 no valor de 93,00€. - Outros actos – MCDT’s (meios complementares de diagnóstico e terapêutica) realizados em 12.05.2015 e 1.06.2015 no valor de 114,70€. - Assistência em regime de ambulatório na Consulta de Cirurgia Plástica e Rec. Maxilo Facial realizada em 19.03.2015 no valor de 31,00€.
43. Também no seguimento dos factos descritos supra em 10 e 11, o demandante Centro Hospitalar do Oeste, E.P.E., prestou cuidados de saúde ao ofendido G... que se consubstanciam no episódio de urgência n.º 14129715, de 31.10.2014, no valor de 89,50€.
44. À data dos factos o menor G... tinha apenas 27 meses de idade, como tal, era incapaz de se defender e proteger de perigos que o rodeiam.
45. Por tal razão, o menor ficava entregue à guarda e cuidados da arguida B... enquanto os seus pais trabalhavam.
46. A arguida B... permitiu que o cão se aproximasse do menor.
47. A mordedura do cão atingiu o pavilhão auricular esquerdo do G... .
48. Em consequência directa e necessária da conduta da arguida, designadamente da mordedura efectuada pelo cão, sofreu o G... fortes dores e careceu de receber tratamento hospitalar.
49. Sofreu, ainda, amputação traumática do pavilhão auricular esquerdo, após ter sido submetido a anestesia geral, desbridamento cirúrgico, revestimento com retalhos locais e enxerto de pele parcial colhida do couro cabeludo.
50. Apresenta, ainda hoje, cicatriz grossa e feia.
51. Tais lesões determinaram-lhe um período de 20 dias para a consolidação médico-legal, com afectação da capacidade para o trabalho geral.
52. O pavilhão auricular esquerdo apresenta-se actualmente cicatrizado e coim estruturas restantes do canal auditivo externo sem particularidades observáveis, integrando o conceito de desfiguração grave.
53. Dos factos ocorridos resulta consequência de carácter permanente.
54. Nos primeiros 5 a 6 dias, o menor acordava frequentemente durante a noite com fortes dores.
55. Durante cerca de 15 dias, teve a cabeça com ligadura a envolver a mesma, o que lhe causava incómodo e calor.
56. Após tirar a ligadura o menor ficava a olhar-se ao espelho, mais concretamente para o local onde deveria estar o pavilhão auricular esquerdo e chorava.
57. O menor estava triste.
58. Passou a querer tapar a face esquerda, por ter vergonha e desgosto pelo facto de não ter pavilhão auricular esquerdo.
59. Os pais tiveram de lhe deixar crescer o cabelo para que este ocultasse a zona lesada.
60. Os outros meninos com quem o G... convivia e convive gozavam com este.
61. O G... foi sujeito a anestesia geral.
62. Até aos 16/17 anos de idade o G... terá de usar prótese que será actualizada de 4 em 4 anos.
63. Só após atingir tal idade poderá efectuar reconstrução cirúrgica do pavilhão auricular, através de cirurgia com anestesia geral.
64. O menor irá viver o resto da sua vida com desgosto por ter perdido a sua orelha.
 65. O G... tem receio de alguns animais.
66. Ao agir como descrito, a arguida B... violou o dever de vigilância que sobre si recaía relativamente ao menor G... , permitindo que o cão se aproximasse deste.
*
Factos não provados
- Na parte criminal
Não se provou que:
a) Naquele dia, pelas 10 horas, A... decidiu lavar o canil.
b) Para o efeito soltou o referido canídeo no quintal da citada residência, onde já se achavam o menor ofendido e mais duas ou três crianças, que se encontravam na companhia e aos cuidados da arguida
- Na parte civil
Não se provou que:
c) O demandado A... abriu o canil soltando o cão, permitindo que o mesmo se aproximasse do menor G... , apesar de ser capaz de prever que o mesmo o poderia morder e estar obrigado também a prever que o G... , atenta a sua idade de 27 meses, seria incapaz de se defender.
d) O demandado nada fez para evitar a mordedura do cão ao menor G... .
e) Bem sabia o demandado que, ao soltar o cão no quintal, que sobre si recaía o dever jurídico de vigiar o cão de molde a que o mesmo não causasse lesões na integridade física e na saúde de outras pessoas, tomando as providências adequadas a tal fim, o que aliás lhe era imposto legalmente, assim omitindo o dever objectivo de cuidado que, segundo as circunstâncias, lhe era exigível, se impunha que observasse e que era capaz, para evitar o resultado.
f) Durante algum tempo o G... chorava quando tinha de ir para a creche para não ter que ser confrontado com as restantes crianças.
g) Ainda hoje o G... não quer ficar na creche.
h) O G... ficou com pavor de todos os animais de quatro patas, ficando em pânico quando se cruza com algum, o que é revelador da memória que o menor tem dos factos e que permanecem bem vivos.
*
Motivação da matéria de facto
Chegados a este ponto, analisemos, separadamente, a formação da convicção do tribunal quanto à matéria criminal e à matéria dos pedidos de indemnização civil.

- quanto à matéria criminal
No que a este aspecto respeita, importa aqui sublinhar e esclarecer que a convicção formada pelo tribunal assentou, exclusivamente, no exame e análise das declarações prestadas pela arguida B... .
Na verdade, esta pretendeu prestar declarações sobre os factos, o que fez de forma muito emotiva e claramente transtornada, sendo patente a sua conformidade com a realidade e as regras da experiência da vida comum e da normalidade.
Sem pretender eximir-se de uma eventual culpabilidade (responsabilização) sobre os factos, a arguida, de modo claro e preciso relatou ao Tribunal o modo como os mesmos terão ocorrido, sempre repetindo que tudo não passou de um acidente (acidente este que, como veremos em momento e sede própria tem, ainda assim, consequências penais).
Resulta das declarações da arguida (as quais foram, nesta parte, corroboradas por todas as testemunhas arroladas pela acusação) que nenhuma outra pessoa assistiu aos factos. Por isso se louva o comportamento da arguida, prestando declarações sobre os mesmos e, assim, contribuindo activamente para a descoberta da verdade material.
Confirmou a arguida que, efectivamente, naquela data e hora, tinha o menor G... (criança a quem era dado o diminutivo de “ GG... ” aos seus cuidados o que, aliás, já sucedia desde que este tinha escassos meses de idade.
Referiu que, nesta data, a mãe do menor lho entregou quando regressava a casa vinda do café, tendo-o levado consigo e com a outra menina que tinha aos seus cuidados para casa.
Esclareceu que, neste trajecto, as crianças viram o seu cunhado ( A... ) a lavar o canil dos cães, querendo ir ter com os mesmos. Mais disse que, diariamente e pela manhã, o seu cunhado lava o canil dos cães, soltando-os para uma zona do quintal em que, previamente, coloca uma vedação a todo o comprimento, impedindo a passagem dos cães desse espaço vedado para o restante quintal, onde normalmente ficam as crianças.
Mais referiu que é usual o contacto das crianças com os animais, através desta vedação, facto que é do conhecimento dos pais das mesmas e nunca foi menção de oposição por estes (este facto note-se que foi confirmado por várias testemunhas inquiridas, designadamente, pelas testemunhas C... , D... e E... e, inclusivamente, pela mãe do ofendido, F... ). Esclareceu que, nesse dia e após o A... ter colocado a outra menina no interior daquela vedação (em contacto directo com os cães) e mediante as insistências do menor G... que também ali queria estar, colocou o mesmo no chão, no interior da vedação e em contacto directo com os animais, altura em que decidiu apoderar-se do seu telemóvel e filmar a interacção das crianças com os animais. Esclareceu, ainda que, foi nesta altura e porque o G... tinha uma bolacha na mão (sendo que era usual as crianças darem bolachas aos cães, o que costumavam fazer através da vedação – no que foi confirmada pelas testemunhas já identificadas, C... , D... e E... e igualmente a testemunha I... ) que, em circunstâncias que não soube esclarecer de forma cabal, o cão se “atirou” ao menor, pretendendo apoderar-se da bolacha, assim efectuando a mordedura em causa nos autos.
Mais esclareceu que, noutras ocasiões, o menor tinha estado no interior do canil, consigo, ao final do dia, a dar de comer aos animais, facto que era do conhecimento da mãe do mesmo (e que foi por esta negado).
Ora, conforme acima referido, as declarações prestadas pela arguida foram claras, concisas e coerentes, razão pela qual o tribunal lhes atribuiu credibilidade plena.
Nenhuma outra testemunha assistiu aos factos descritos e, refira-se, que nenhuma outra prova necessitava de ser produzida para se chegar à convicção da forma supra descrita, sendo que todos os depoimentos se vieram a revelar desnecessários e irrelevantes para a formação da convicção quanto aos factos constantes da acusação.
Efectivamente, a testemunha F... , mãe do menor, confirmou que o seu filho se encontrava à guarda e cuidados da arguida B... há mais de um ano, pagando-lhe mensalmente a quantia de 150,00€, confirmou que, nessa data, entregou o seu filho à ora arguida, como habitual, por volta das 9.30H, apenas sabendo do acidente o que lhe foi relatado.
Confirmou que sabia da existência dos cães no canil anexo à residência, desconhecendo se as crianças tinham contacto directo com os mesmos o que, aliás, referiu ter proibido caso de tal soubesse. Todavia, confirmou ter conhecimento de que as crianças conviviam com os animais através da vedação, tendo referido desconhecer que as crianças costumavam dar bolachas aos cães nesta circunstância e negado ter alguma vez levado bolachas para serem dadas pelo seu filho aos cães (muito embora esta circunstância tivesse sido referida, quer pela arguida, quer pela testemunha C... ). Todavia, em face da irrelevância da questão, não nos deteremos na sua análise.
Já a testemunha J... referiu que chegou a deixar o seu filho aos cuidados da arguida B... por algumas vezes, desconhecendo a existência dos cães, os quais não se viam da rua nem da porta de acesso à habitação, onde costumava deixar o seu filho, o que não nos parece improvável, dado que a mesma pouco ou quase nenhum convívio teve com a arguida, apenas tendo deixado o seu filho ao cuidado desta por duas vezes.
A testemunha L... prestou um depoimento totalmente irrelevante, incoerente e incompreensível, razão pela qual não foi valorado pelo tribunal, sendo que os depoimentos das testemunhas D... , E... e I... , apenas incidiram sobre a circunstância do conhecimento do convívio das crianças coim os animais através da vedação, o que nunca lhes gerou sentimento de desconforto ou desagrado.
Assim, conjugando toda a prova que foi produzida nesta parte da matéria criminal, ficou no tribunal a convicção de que, efectivamente, as crianças costumavam ter contacto com os cães, propriedade da irmã da arguida, os quais estariam habituados a este convívio e sempre se tinham revelado dóceis. Contudo, este contacto desenvolvia-se sempre através da vedação, sendo nesta circunstância que os menores, por vezes, davam bolachas aos cães. Naquele dia, por razões inexplicadas, a arguida B... decidiu colocar o menor G... no interior da vedação, onde se encontravam os animais soltos e, confiante de que nada de mal sucederia, muniu-se do seu telemóvel com o objectivo de filmar a interacção das crianças com os animais. Todavia, o G... tinha em seu poder uma bolacha e o cão “N (...) ”, habituado a receber bolachas, dirigiu-se ao menor e abocanhou a mesma, tendo arrancado, neste seu movimento, a orelha ao menor. Tudo o mais que foi referido (se a mãe do menor tinha conhecimento do convívio do mesmo com os animais, se autorizava este convívio, se sabia que eram dadas bolachas ao cão, se o cão era ou não de uma raça ou de outra) é, quanto a nós, supérfluo e nada importa no exame e decisão da causa.
A convicção quanto aos antecedentes criminais da arguida foi formada com base no exame do teor objectivo do seu certificado de registo criminal junto a fls. 265 e a relativa às suas condições pessoais, com base na conjugação das declarações que prestou a esta matéria e que se revestiram de aparente credibilidade com o teor do relatório social de fls. 273 e ss..
- quanto à matéria do pedido de indemnização civil
O tribunal alicerçou a sua convicção com base na análise crítica e ponderada do conjunto da prova pericial, documental e testemunhal produzida nos autos, complementada pelo confronto com as declarações prestadas pela arguida.
Nos presentes autos, para além da matéria constante da acusação, há que analisar os factos vertidos nos três pedidos de indemnização civil pelo que, por razões de sistemática e melhor compreensão da apreciação das respectivas matérias, se procederá a um exame separado de cada um deles.

No que respeita ao pedido de indemnização civil deduzido pelo Centro Hospitalar do Oeste, E.P.E. (doravante designado abreviadamente por CHO) e constante de fls. 163 e ss. dos autos, não restam dúvidas quanto à prova plena dos factos alegados por esta demandante: efectivamente e desde logo, a arguida B... confirmou que, na sequência da mordedura de que foi vítima o menor G... , ela própria, acompanhada do seu cunhado A... , acompanharam o menor ao CHO a fim de o mesmo ali ser prontamente assistido. Do mesmo modo se pronunciou a testemunha F... , mãe do menor, a qual confirmou que foi chamada ao CHO porque o seu filho ali estava a receber cuidados e tratamentos médicos. Este atendimento em episódio de urgência encontra-se, igualmente, documentado a fls. 166 dos autos e importou na quantia de 89,50€ (oitenta e nove euros e cinquenta cêntimos), quantia esta que vem peticionada por esta demandante e que, de acordo com o documento que juntou aos autos, corresponde aos tratamentos efectuados no menor, na data do sinistro e motivados por este.
Estão, deste modo, globalmente provados os factos alegados pelo CHO e que sustentam o pedido de indemnização civil que este demandante apresentou nos autos.

Do mesmo modo e no que respeita ao pedido de indemnização civil formulado pelo Centro Hospitalar Lisboa Norte, E.P.E. (doravante designado abreviadamente por CHLN) e constante de fls. 135 e ss. dos autos, não restam também dúvidas quanto à prova plena dos factos alegados por esta demandante: efectivamente e desde logo, a arguida B... confirmou que, na sequência da mordedura de que foi vítima o menor G... , ela própria, acompanhada do seu cunhado A... , acompanharam o menor ao CHO a fim de o mesmo ali ser prontamente assistido e daqui o menor teve de ser transportado para o Hospital de Santa Maria, onde recebeu diversos tratamentos e foi submetido a cirurgia. Do mesmo modo se pronunciou a testemunha F... , mãe do menor, a qual confirmou que foi chamada ao CHO porque o seu filho ali estava a receber cuidados e tratamentos médicos, tendo sido transferido desta unidade hospitalar para o Hospital de Santa Maria, nessa mesma data, local onde esteve internado e foi submetido a cirurgia e tratamentos diversos. Estes serviços e cuidados de saúde prestados pelo CHLN encontram-se, igualmente, documentados a fls. 139-146 dos autos, os quais descrevem e quantificam, unitariamente, os tratamentos efectuados ao menor G... e que importaram na quantia global de 2.636,76€ (dois mil seiscentos e trinta e seis euros e setenta e seis cêntimos), quantia esta que vem peticionada por esta demandante e que, de acordo com os documentos que juntou aos autos, corresponde aos tratamentos efectuados no menor, na data do sinistro e seguintes, todos eles motivados por este.
Estão, deste modo, também globalmente provados os factos alegados pelo CHLN e que sustentam o pedido de indemnização civil que este demandante apresentou nos autos.

Por fim e no que respeita ao pedido de indemnização civil formulado pelos progenitores do menor em representação deste e constante de fls. 159 e ss., também se dirá que, no essencial, os factos alegados pelo demandante se encontram globalmente provados (com excepção dos supra referidos e que, no fundo, pouco ou nada contendem com os montantes peticionados na sua generalidade).
Resulta da matéria de facto provada pela prova produzida quanto à acusação (cfr. factos n.ºs 45, 46 e 66), que ocorreu a mordedura na orelha esquerda do menor, a qual determinou a amputação total do pavilhão auricular esquerdo do mesmo. Esta circunstância, como decorre aliás das regras da experiência da vida comum e da normalidade e é facto notório, por outro lado (assim carecendo, nesta medida, de prova), determinou sofrimento e dores no menor. Encontra-se testemunhal e documentalmente provado nos autos que o menor teve de ser submetido a diversos tratamentos hospitalares, intervenção cirúrgica com submissão a anestesia geral e teve vários dias de internamento (factos n.ºs 47, 48, 49, 50 e 61).
Resulta igualmente demonstrado, pelo exame dos fotogramas de fls. 51-57, o “antes” e o “depois” do G... , sendo patente na fotografia de fls. 54 o estado de dor e sofrimento do mesmo. Igualmente esta circunstância é observável pelo exame do fotograma de fls. 57, o qual revela, não só o estado em que o menor ficou imediatamente após a intervenção a que foi sujeito, como, igualmente, a dor e sofrimento que esta situação lhe causou.
O fotograma de fls. 287 demonstra, claramente, o estado actual do menor e como se encontra, neste momento, a nível estético, o pavilhão auricular do mesmo.
Quanto à idade do menor aquando da data da prática dos factos, foi tido em conta o teor objectivo da certidão do assento do seu nascimento, constante de fls. 87 em conjugação com a data em que ocorreram os factos, constante dos autos.
No que se refere à natureza e consequências das lesões sofridas, a prova de tais factos foi obtida pelo exame dos documentos de fls. 11, 13, 34, 35 e 61 e ainda pelo teor do exame pericial de fls. 9-10, 43-44 e 65-66.
No mais, designadamente no que concerne ao estado de espírito do menor após os factos, no período de convalescença e na actualidade e, bem assim, como poderá ser feita a sua recuperação estética no futuro, foram tidos em conta os depoimentos prestados pelas testemunhas M... (amigo da família e padrinho do G... , que revelou ter com o mesmo contacto próximo e frequente) e J... (amiga da mãe do menor há cerca de 6 anos e que este convive, também, com regularidade, tendo uma filha com idade próxima do mesmo), as quais, de forma aparentemente isenta, credível e sem quaisquer hesitações ou contradições, demonstrando conhecer bem o menor e ter com este contacto frequente, descreveram o seu estado de espírito quanto aos mesmos, o modo como se relaciona com outras crianças e com animais “de quatro patas” e ainda quais os tratamentos a que o mesmo terá de ser submetido no futuro.
É, por fim, notório que dos factos ocorridos resulta consequência de carácter permanente (facto n.º 53) e, bem assim, resulta das regras da experiência da vida comum que o menor irá viver o resto da sua vida com o desgosto de ter perdido a orelha (facto n.º 64).
 No que respeita à matéria do pedido cível que foi dada como não provada, tal resulta da circunstância de tais factos terem sido expressamente negados pela testemunha F... , mãe do menor.
*
Cumpre, agora, conhecer do recurso interposto.

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação (Ac do STJ de 19/6/96, no BMJ 458-98).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr Germano marques da Silva, in “Curso de Processo penal”, III, pg 335).

Questões a decidir:
- Se a arguida actuou sob a forma de negligência inconsciente;

B... , inconformada com a sentença proferida nos presentes autos que a condenou pela prática de um crime de ofensa á integridade física negligente, p. e p. pelo artº 148º nº 1 e 3, com referência ao artº 144º, al a) do CPenal, sustenta que se tratou de um mero acidente, que não houve qualquer negligência, nem sequer inconsciente, por parte da arguida.
Dispõe o artº 148º nº 1 do CPenal que “quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”.
E o nº 3 estipula que “se do facto resultar ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias”.
“Constituindo este ilícito um crime de resultado, abrange não só a acção adequada a produzi-lo, mas também a omissão de acção adequada a evitá-lo, só sendo esta punível quando sobre o omitente recaia o dever jurídico de evitar a verificação de um evento danoso para a vida e para a saúde, em virtude do estatuído no art.º 10º do Código Penal”(AcRPorto 22/03/2017 relatado pela Exma Desembargadora Eduarda Lobo).
Ora, no caso vertente e como muito bem é referido na sentença recorrida estamos a falar da actividade de ama. Actividade que, efectivamente, não se encontra juridicamente regulamentada no nosso Direito e que, por isso teremos que observar “os usos e costumes próprios da função, que sejam comuns ao profissional prudente, ao profissional-padrão e, ainda, ao cuidado objectivamente imposto pelo concreto comportamento socialmente adequado”.
Assim, sem qualquer dúvida, esse dever existe inevitavelmente, pois cria para a ama o dever jurídico, próprio do garante, de evitar a verificação de um evento danoso para a vida e a saúde de quem está ao seu cuidado e precisa de toda a sua atenção e assistência.
“O art.º 15º do Código Penal (sob a epígrafe “Negligência”) formula um juízo de dois graus, na medida em que se dirige a quem não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e é capaz, consagrando, nestes termos e pelo menos aparentemente, a consideração de um dever de cuidado objectivo, situado ao nível da ilicitude, a par de um dever subjectivo, situado ao nível da culpa.
Assim, age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, conforme as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, não chega sequer a representar a possibilidade de realização típica (negligência inconsciente). Age ainda negligentemente, quem, de forma ilícita e censurável, representa como possível a realização típica, mas atua sem se conformar com essa realização (negligência consciente).
Trata-se de um tipo legal de crime cujo bem jurídico protegido é o corpo ou a saúde e, como já referimos supra, é um crime de resultado, na medida em que é necessária a verificação de um determinado evento para que ocorra a sua consumação.
Em sede de tipo de ilícito negligente para que exista crime é necessário que se verifique:
a) A violação de um dever objectivo de cuidado que pode ter origem legal autónoma, se derivar de certas normas que visem prevenir perigos ou tão-somente derivar de certos usos e costumes ou da experiência comum.
b) A produção de um resultado típico.
c) A imputação objectiva do resultado à acção: a violação do dever de cuidado tem que ser causa adequada do resultado, sendo-o quando, de acordo com um juízo de prognose póstuma, segundo a experiência normal, for idóneo a produzir aquele resultado que é uma consequência normal e típica daquela acção.
d) A imputação subjectiva ou previsibilidade e evitabilidade do resultado. Para o Homem médio colocado naquelas circunstâncias e segundo a experiência normal, há-de ser previsível que da violação do dever objectivo de cuidado resulte a produção do resultado típico que seria evitável através do cumprimento do dever objectivo de cuidado.
Quando o agente, nas circunstâncias em que se encontrava, podia ou devia, segundo as regras da experiência comum e as suas qualidades e capacidades pessoais, ter representado como possíveis as consequências da sua conduta, poder-se-á afirmar o conteúdo da culpa própria da negligência e punir-se o agente que, não obstante a sua capacidade pessoal, não usou o cuidado necessário para evitar o resultado cuja produção ele teve como possível ou podia ter previsto.
De outra forma, deparando-nos perante um crime negligente de resultado há que atender que, para o preenchimento do tipo de ilícito, não basta que se verifique o resultado e que se verifique a violação do dever objectivo de cuidado, pois que não se pode prescindir da imputação objectiva do resultado. Assim, temos, também, que a imputação objectiva se limita com o fim da protecção da norma, não sendo imputáveis ao agente os resultados que não caem na esfera de protecção da norma de cuidado violada pelo agente. Deste modo, mesmo que se verifique a violação de um dever objectivo de cuidado, não se pode imputar a responsabilidade ao agente se a norma de onde esse dever de cuidado emanava não tinha por finalidade evitar resultados como o produzido.
Como já o dissemos, este crime também pode ser cometido por omissão – crime omissivo impróprio ou impuro -, sendo que para a sua verificação se exige a ausência de acção, como ato voluntário, a capacidade fáctica de acção (excluindo as situações em que inexistam, por parte do agente, as características físicas ou intelectuais, os conhecimentos ou instrumentos que lhe permitam evitar a concretização do perigo), o nexo de causalidade adequada (possibilidade do agente desencadear um processo causal idóneo a evitar a concretização do perigo, sendo essa possibilidade conhecida ou cognoscível do agente), e, finalmente, o conhecimento da posição de garante.
Inegável, portanto, que o ilícito em análise tanto pode ser cometido por acção, ao desencadear um processo causal que cria ou aumenta o perigo de verificação de uma lesão, como por omissão, consubstanciada na circunstância de não desencadear ou interromper um processo causal que evite ou diminua a concretização de um perigo preexistente de lesão. Como refere Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, ”Nos crimes comissivos por acção o agente cria o perigo para o bem juridicamente relevante tutelado ou lesa esse bem, nos delitos por omissão impura (como em todos os crimes omissivos), por via de regra, tal perigo é anterior à acção esperada e estranho ao agente e é tal perigo que origina a espera de uma conduta que o esconjure.
Assim, para que o agente possa ser punido temos que averiguar se se verifica:
- violação do dever de cuidado (imprudência ou criação de um risco não permitido) que é aquele que é apto a causar a lesão e for exigível e possível ao agente a sua evitação. “(...) para que o resultado possa ser atribuído ao agente (médico) (...) é necessário, no plano objectivo, que o resultado a imputar constitua a realização ou um aumento de um risco juridicamente relevante ou risco proibido (...) cuja evitabilidade do resultado nefasto seja, precisamente, a finalidade (...) da norma infringida pelo agente, nisto se traduzindo a doutrina do âmbito de tutela da norma. Em caso de dúvida razoável, a questão decide-se pela regra universal do direito probatório in dubio pro reo (...)”;
- a representação ou representabilidade do facto (previsão ou previsibilidade do facto): “(...) de resto, é justamente em função dessa previsibilidade que se poderá falar de imputação subjectiva nos crimes negligentes de resultado (homicídio negligente, ofensas à integridade física por negligência, ...) só havendo tal imputação nos casos em que o concreto resultado seja previsível, com a qualificação do agente e colocado nas mesmas circunstâncias deste”.
- a não aceitação do resultado (evitabilidade do facto ilícito previsível), sendo exigível ao agente todo o esforço possível e adequado a evitar o resultado danoso, o que equivale a dizer que ao mesmo apenas se exige a diligência necessária a evitar o evento desde que seja evitável de acordo com a lei e demais normas jurídicas e extrajurídicas, universalmente aceites, de cautela, prudência e ponderação.
Em suma, o agente será responsável penalmente se, através de uma acção ou omissão, motivada por uma falta de cuidado a que estava obrigado no exercício da sua função, provocar um resultado, in casu, uma ofensa à integridade física que era objectivamente previsível e passível de ser evitada” (Ac. Rel Porto acima cit.).
Face a tudo o exposto, cumpre, agora, apreciar se a recorrente com a conduta que lhe é imputada incorreu efectivamente na prática de um crime de ofensa à integridade física negligente, pela qual veio a ser condenada.
Dos factos apurados resulta que a arguida há vários anos, que tomava conta de crianças. Nesta sua actividade, várias foram as crianças que estiveram aos seus cuidados enquanto pequenas, sendo a arguida descrita pelas respectivas mães como uma pessoa cuidadosa e de confiança. A arguida sempre permitiu o contacto das crianças com os cães, havendo uma espécie de “ritual” das crianças darem bolachas aos cães. Todavia, esta interacção ocorria, invariavelmente, por intermédio de uma vedação, ficando os cães de um dos lados da vedação e as crianças do outro lado, não havendo, por assim dizer, contacto directo entre uns e outros. Na data dos factos, porém, a arguida decidiu colocar o menor G... em contacto directo com os cães, tendo este uma bolacha na sua mão, certa de que nenhum mal dali decorreria. Porém, não foi o esperado pela arguida o desfecho da situação, mas sim a trágica mordedura na orelha do menor.
Também há que considerar que os cães em causa não são animais domésticos, isto é, pese embora se trate de animais que estão, aparentemente, habituados ao convívio com humanos, não são animais que vivam no interior da habitação e que, como tal, convivem no mesmo espaço que os humanos. No caso vertente, são animais que estão num canil anexo à residência e que, quando são soltos do mesmo, ficam num espaço de quintal vedado, em que o convívio com as crianças é feito por intermédio de uma rede de vedação. No dia dos factos, o menor G... , vítima nos autos, estava no espaço destinado aos animais, por assim dizer, no “território” deles, com uma bolacha, sem estar devidamente protegido por aquela que tinha a obrigação de zelar pela sua segurança e saúde por virtude da relação que existia entre ambos, por um lado (de ama e criança cuidada) e da idade do menor aquando dos factos (contava apenas com 27 meses de idade, o que o impedia de, por si, ter capacidade para se defender).
Portanto, a arguida, ao permitir que o menor de 27 meses de idade permanecesse dentro do espaço destinado aos animais, sem qualquer protecção para os mesmos, violou do dever objectivo de cuidado consistente na permissão de permanência do menor dentro daquele espaço.
Na verdade, para que se mostre preenchido o tipo de ilícito negligente, tem de existir entre a acção e o resultado uma relação de adequação, ou seja, é necessário que o resultado possa ser objectivamente imputado à acção descuidadamente praticada. E, sem qualquer dúvida, que o facto verificado deveu-se apenas á violação do dever de cuidado que impendia sobre a arguida a qual, como ama, devia impedir o contacto directo dos animais com o menor, a fim de evitar o resultado que veio a ocorrer, mesmo que a arguida não o tenha sequer previsto e querido.
Assim, bem andou o Tribunal ao condenar a recorrente pela prática de um crime de ofensa grave à integridade física negligente.

A recorrente, B... vem, também, questionar o pedido de indemnização civil respeitante á demandante cível Centro Hospitalar do Oeste e Centro Hospitalar Lisboa Norte.
É de notar que o valor do pedido cível é inferior a € 5.000,00 (cinco mil euros) e o valor da alçada do tribunal recorrido é de 5000,00 euros – art 24 da Lei 3/99. Assim sendo, não é admissível recurso da parte da sentença relativa à indemnização que aos mesmos respeita como resulta do disposto no art 400 nº 2 do Código Processo Penal.
Desta forma, este Tribunal não conhece do recurso quanto à matéria civil.


Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juizes do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a douta sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 4 ucs a taxa de justiça.

Coimbra, 25 de outubro de 2017

(Alice Santos – relatora)

(Abílio Ramalho – relator)