Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
830/04.4TBCLD-C.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELENA MELO
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
CONTRATO-PROMESSA COM TRADITIO
PAGAMENTO INTEGRAL DO PREÇO
PENHORA
POSSE DO PROMITENTE COMPRADOR
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ALCOBAÇA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 342.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 1285.º, 1251.º E 1253.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – No contrato de permuta os contraentes atribuem-se coisas presumivelmente de igual valor, adquirindo e perdendo correspetivamente a propriedade sobre elas, nisto se consumando o contrato.
II – Se a atribuição da coisa à contraparte é para pagar um preço, não há uma permuta ou troca.

III – No contrato de compra e venda o pagamento do preço pode ser efetuado mediante a entrega de um prédio.

IV – Nos casos em que o promitente comprador beneficiou da entrega do imóvel em data anterior à celebração do negócio translativo, a qualificação da natureza da sua posse, dependerá de uma ponderação casuística que revele o exercício de poderes de facto sobre o bem penhorado, como posse em nome próprio, como nos casos excecionais em que já se encontra paga a totalidade do preço.

V – Tendo-se apurado que houve pagamento integral do preço e tradição da coisa e que os atos praticados no imóvel foram realizados à vista de toda a gente, ininterruptamente, sem oposição de ninguém e na convicção dos embargantes serem donos do imóvel, estão reunidos os elementos integrantes da posse: corpus e animus, pelo que lhes assiste o direito de beneficiarem da tutela da posse, mediante embargos de terceiro.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral: Relator: Helena Melo
Adjuntos: Catarina Gonçalves
José Avelino Gonçalves

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

AA e BB vieram, por apenso à execução para pagamento de quantia certa em que é exequente CC e executada DD, deduzir os presentes embargos de terceiro, pedindo o reconhecimento de que são legítimos possuidores da fração G, correspondente ao primeiro andar, porta sete, do Bloco “A”, para habitação e estacionamento nº 29 na cave, do prédio urbano sito na Rua ... e Rua ..., ..., freguesia ... – ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...52 da freguesia ... – ... e o cancelamento da penhora que incide sobre a identificada fração.

Para tanto, alegaram, em síntese, que são possuidores da fração autónoma penhorada na execução desde 27 de abril de 2007, data em que o embargante celebrou com a executada um Contrato Promessa de Compra e Venda com Eficácia Real no Cartório Notarial ..., tendo esta prometido vender tal fração e aquele pago a totalidade do preço. Desde essa data os embargantes comportam-se como verdadeiros proprietários, apesar da executada nunca se ter disponibilizado para outorgar a escritura definitiva de compra e venda, não obstante ter sido instada para o efeito por diversas vezes. Assim, permitiram que o seu filho instalasse na fração a sua residência e da família desde princípios do ano de 2008, sendo lá que dormem, comem, recebem familiares e amigos, bem como a correspondência. O filho dos embargantes e a sua companheira pagam os consumos da água e luz, bem como as despesas de condomínio. Acresce que o filho dos embargantes utiliza o lugar de estacionamento para parquear o seu veículo, mobilou o apartamento e tem feito obras de manutenção, como pinturas interiores e arranjos na canalização, para além de ter procedido ao fecho das varandas. Tais atos são praticados em nome e sob permissão dos embargantes, à vista de toda a gente, ininterruptamente, sem oposição de ninguém, de boa fé e na convicção que tal exercício corresponde ao direito de propriedade.

A exequente apresentou contestação, na qual impugnou a factualidade vertida nos embargos e alegou estar em causa a mera detenção do imóvel e que a posse nunca seria titulada, motivo pelo qual não decorreu o prazo de usucapião. Com efeito, os embargantes sempre souberam que era necessária a realização da escritura definitiva de compra e venda e que até lá o imóvel não lhes pertencia, não tendo alegado qualquer facto do qual decorra a inversão do título da posse.

Teve lugar a audiência de julgamento, com observância da formalidade legal.

Realizada a audiência final, os embargos foram julgados improcedentes.

Os embargantes não se conformaram e interpuseram o presente recurso de apelação, tendo concluído as suas alegações da seguinte forma:

1º- Os apelantes não concordam com a decisão "a quo" pois entendem que a mesma deveria ser no sentido de julgar procedentes os embargos, declarando-se os apelantes legítimos possuidores do imóvel penhorado.

2º- Em primeiro lugar, e quanto à matéria de facto, os apelantes entendem, relativamente ao "Tema de Prova 1º- Pagamento da totalidade do preço do imóvel " que este facto deve ser julgado provado.

3º- Os documentos juntos aos autos, designadamente, os de fls 116v a 126, conjugados e relacionados entre si, como se explicitou no requerimento de fls 114v e segs - e que não sofreram qualquer impugnação ou reserva - impõem tal conclusão.

4º- E demonstram à saciedade que o que a embargada DD recebeu, prédio rústico no valor de € 200.000,00, é muito superior ao valor do andar dos autos - € 120.000,00.

5º- O depoimento das testemunhas também é no sentido, unânime, de se concluir que o preço do apartamento se encontra pago.

6º- Dá a impressão que a douta sentença "a quo", neste particular, se agarra tão só ao facto de na Escritura do Contrato Promessa de Compra e Venda junta a fls 8v e segs constar que o preço " foi entregue hoje na totalidade à promitente vendedora", o que não aconteceu.

7º- Aliás, em bom rigor, o preço já tinha sido pago antes dessa data, com a outorga da escritura de compra e venda do prédio rústico recebido pela embargada DD em troca do apartamento.

8º- Porém, a redação dessa escritura competiu inteiramente ao Cartório Notarial ... a mesma foi outorgada, não se tendo os embargantes apercebido de tal circunstância, para além de não terem cultura e literacia suficientes para entenderem o alcance de certas expressões.

9º- Ao contrário do que consta na douta sentença - último parágrafo de fls 180 – nunca foi alegado que o preço do apartamento "foi liquidado integralmente em dinheiro".

10º- Porém, e sempre com o devido respeito, o que releva e é importante para a apreciação do caso sub judice é saber se o preço está efetivamente pago, na medida em que esse factor condiciona os elementos da posse, quer no " corpus", quer essencialmente no "animus".

11º- Toda a prova testemunhal é no sentido de os embargantes agirem, para com o apartamento e perante todas as pessoas, como verdadeiros donos do mesmo.

12º- E a própria douta sentença "a quo" no ponto de facto 14, in fine, considera que toda a atuação dos embargantes é "na convicção de serem donos do imóvel".

13º- Naturalmente, se não tivessem pago a totalidade do preço do imóvel, era improvável agirem na convicção de serem donos do imóvel, como a sentença reconhece (ponto 14).

14º- Assim, dúvidas não restam de que o preço do andar se encontra integralmente pago,

15º- Sendo que o que causa estranheza, e estupefação neste negócio, patente nos comentários ao longo do julgamento, é como é que os embargantes e o seu filho EE "embarcaram" neste negócio com a embargada DD, em que lhe entregaram um prédio rústico, livre de ónus e encargos, que ela passado pouco tempo permutou com um terceiro, por € 350.000,00 e em troca receberam um apartamento de muito menor valor, e repleto de ónus e encargos, elevados, que ainda hoje se mantém - o que, naturalmente, o deprecia grandemente.

16º- Mas, infelizmente, foi assim, e hoje veem-se confrontados com a presente situação.

17º- Quanto à aplicação do Direito aos factos, a douta sentença em apreciação enferma do vício de, em última instância, considerar que tem de se analisar se os embargantes são ou não proprietários do andar penhorado.

18º- E considera mesmo que, não sendo proprietários, a penhora não pode afetar a sua posse - v.d 2º parágrafo da douta sentença, a fls 181v.

19º-É indubitável que a penhora e a normal subsequente venda que se seguiria com o prosseguimento dos autos principais de execução, quanto ao imóvel penhorado, ofende a posse dos embargantes sobre o mesmo.

20º- Com o devido respeito, não está aqui em causa o direito de propriedade dos embargantes, que nunca por si foi invocado para fundamentar os embargos, mas antes o direito de posse sobre o apartamento.

21º- E os elementos integradores do direito de posse - o corpus e o animus – mostram-se

totalmente evidenciados e verificados no caso sub judice.

22º- A douta sentença "a quo", ao entender, como o faz no parágrafo 6º de fls 181 - "Contudo, mesmo considerando que os embargos deduzidos se fundam igualmente na posse, a acção sempre estaria votada ao insucesso - inquina ab initio a decisão, o que se alega sempre com o devido respeito.

23º- Com este entendimento, a douta sentença em análise viola o disposto nos artºs 342º, nº 1 e 348º, nº 2 do C.P.C., e bem assim os artºs 1.285º e 1.251º, do Código Civil.

24º- Quanto ao facto de a mesma douta peça considerar provado que "os embargantes reconhecem expressamente ter conhecimento da necessidade da celebração da escritura definitiva de compra e venda", como facto impeditivo da posse, tal não tem a mínima razão ou fundamento.

25º- A necessidade da escritura refere-se tão só a transmissão de propriedade, - sendo até um conceito do conhecimento geral da comunidade não jurídica - mas nada tem a ver com a existência e prova da posse.

26º- Devem, assim, os presentes embargos ser julgados procedentes.

II - Objeto do recurso

De acordo com as conclusões da apelação as quais delimitam o objeto do recurso, as questões a decidir são as seguintes:

. se deve ser dado como provado que os embargantes pagaram o preço do imóvel; e,

. em caso afirmativo, se os embargos devem ser julgados procedentes.

III – Fundamentação

Discutida a causa, foram julgados provados na 1ª instância os seguintes factos:

1 – Nos autos principais, encontra-se penhorada a fração G do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o n.º ...52, freguesia ... – ... (cfr. auto de penhora junto aos autos de execução em 9-08-2021, que aqui se dá por integralmente reproduzido).

2 – A aquisição do imóvel descrito em 1) foi registada a favor da executada em 23-03-2006, por compra.

3 – Por escritura outorgada no Cartório Notarial ... em 27 de abril de 2007 e intitulada “Promessa de Compra e Venda com Eficácia Real”, a executada prometeu vender ao embargante a fração autónoma descrita em 1), mais tendo sido acordado, nomeadamente:

Que promete vender ao segundo outorgante pelo preço de cento e vinte mil euros, a identificada fração autónoma, livre de quaisquer ónus ou encargos, promessa esta a que atribui eficácia real.

Que a posse da referida fração só se transmite na data da celebração da escritura definitiva de compra e venda a qual se realizará no prazo de cinco anos. (…)

Pelo segundo outorgante foi dito:

Que o preço da venda foi entregue hoje na totalidade à promitente vendedora.

Declarou a primeira outorgante:

Que dá quitação da referida quantia entregue no presente acto” (cfr. doc. de fls. 8 dos autos de execução, que aqui se dá por integralmente reproduzido).

4 – Na data referida em 3), as chaves do imóvel foram entregues ao embargante.

5 – A executada nunca se disponibilizou para outorgar a escritura de compra e venda, apesar de instada para tal.

6 – Os embargantes permitiram que o seu filho, EE, passasse a residir no imóvel com a sua família desde o início de 2008,

7 – Família que é constituída pela sua companheira, as duas filhas de ambos e a filha da companheira.

8 – É no imóvel que dormem, comem, recebem os seus familiares e amigos e recebem correspondência.

9 – O filho dos embargantes e a companheira pagam os consumos de água e luz, bem como as despesas de condomínio.

10 – Utilizam o lugar de estacionamento na garagem para parquear um dos seus veículos.

11 – O filho dos embargantes mobilou o apartamento e adquiriu eletrodomésticos para o mesmo.

12 – E colocou um balcão em pedra, na cozinha.

13 – Procedeu ao fecho das varandas, com armações em alumínio e vidros.

14 – Os atos acima referidos foram praticados com permissão dos embargantes à vista de toda a gente, ininterruptamente, sem oposição de ninguém e na convicção de serem donos do imóvel.

Resultou não provado que:

a) O embargante pagou a totalidade do preço (€ 120.000) à executada;

b) EE tem feito obras de manutenção como pinturas

interiores e arranjos na canalização.

Da impugnação da matéria de facto

Entendem os apelantes que ocorreu erro de julgamento do tribunal a quo ao não dar como provado que os embargantes pagaram o preço da casa.

Alegam que nunca invocaram que o preço tivesse sido pago em dinheiro, como parece resultar da sentença recorrida, mas sim que o preço estava integralmente pago, tendo o preço sido pago mediante a venda do prédio rústico sito nos ..., freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...94 da freguesia ... e inscrito na respetiva matriz sob o artº ...25, tudo conforme os dois contratos-promessa que juntaram com o seu requerimento de 27 de março de 2023.

Mais invocam os apelantes:

.Pelo primeiro dos referidos contratos juntos ( de 26 de Março de 2007- fls116 V e segs ) a embargada DD prometeu vender ao embargante AA a fração autónoma objeto dos autos, pelo valor de € 120.000,00.

.Pelo segundo contrato, ( de 26 de Março de 2007-fls 119 V e segs ) os aqui embargantes, AA e mulher BB, prometeram vender o seu direito de usufruto e o seu filho EE o seu direito à nua propriedade, sobre o prédio rústico sito em ...,  à embargada, DD.

.Este segundo contrato inicialmente  era para ter por objeto apenas 10.000 m2 do prédio sito em Chães- ... cláusula 5ª a fls 120 V - devendo ser desanexada uma parcela de terreno com a área de 2.930 m2 onde o filho dos embargantes EE estava a construir uma casa de habitação – cfr. cláusulas 3ª e 4ª do mesmo contrato (fls 120).

.O preço acordado destes 10.000 m2 era de € 80.000,00 – cfr. cláusula 6ª do mesmo contrato.

 .Acontece que, passados alguns dias da assinatura destes contratos promessa, o EE desistiu da desanexação da parcela de 2.930 m2, acordando todos que a embargada DD ficaria com todo o prédio sito nos ..., incluindo a parcela onde estava a ser construída a casa de habitação já referida.

.O preço acordado de todo o prédio sito em ..., incluindo a parcela de 2.930 m2, passou então de 80.000,00 para € 200.000,00.

.A embargada DD,  entregou a fração autónoma pelo valor de 120.000,00, recebendo em troca o prédio rústico sito em ... e ficou ainda devedora de  € 80.000,00.

.Na data da celebração do contrato promessa com eficácia real celebrado em 27.04.207, tendo por objeto a fração penhorada – doc. nº 1 junto com a p.i. - e que substituiu o contrato promessa celebrado em 26.03.2007, já a embargada DD tinha na sua titularidade o prédio rústico "...", com toda a sua área, incluindo a parcela de 2.930 m2 onde o filho dos apelantes se encontrava a construir uma casa de habitação,  conforme escritura de Retificação e Compra e Venda, outorgada no mesmo Cartório Notarial ... em 16 de Abril de 2007, ou seja, antes da data de 27 de Abril de 2007;

.Esta escritura de 16 de Abril de 2007 só foi descoberta pelos apelantes imediatamente antes do julgamento de 12 de Junho p.p. e  por uma fotocópia simples, pelo que já não foi junta aos autos, mas a sua existência foi referida no julgamento, tendo sido posta a disposição da Mma. Juíza para os fins que muito bem entendesse, mas a Mma Juíza não ordenou a sua junção. Em virtude destes negócios o preço ficou totalmente pago, pelo que se declarou no contrato promessa de compra e venda do andar em causa que o preço estava totalmente pago.

Os apelantes, além de se basearem nos documentos referidos, fundamentam-se ainda nas declarações da executada/embargada DD e no depoimento das testemunhas EE, FF, GG, HH e II.

Procedemos à audição integral da prova produzida.

Prestou declarações a embargada DD e prestaram depoimento as seguintes testemunhas:

.EE – filho dos embargantes e a pessoa que reside com a sua família na fração penhorada, desde 2008;

.FF – irmão da testemunha EE e filho dos embargantes;

.JJ – cunhado dos embargantes;

.KK – ex cunhado do filho dos embargantes, irmão da sua ex-mulher;

.LL – amiga dos embargantes que disse conhecer há vários anos, sendo os pais do compadre da sua filha.

A Mma. Juíza a quo deu como não provados os factos constantes da alínea a), porque considerou os depoimentos contraditórios sobre tal factualidade, não sendo, em seu entender,  possível concluir nesse sentido com a necessária segurança.

Referiu a propósito na fundamentação da decisão de facto:

“Relativamente à questão do pagamento do preço, temos que na escritura referida no ponto 3), tanto o embargante como a executada declararam que aquele havia já pago a esta a totalidade do preço acordado (€ 120.000), versão que foi desmentida quer pela executada, quer pelas testemunhas ouvidas em sede de audiência.

Assim, a executada negou perentoriamente ter recebido qualquer quantia pelo apartamento, tendo antes declarado que a ideia seria permutá-lo por um terreno rústico pertencente a EE e do qual o embargante era usufrutuário (cfr. contrato-promessa de fls. 119v e certidão permanente de fls. 125v).

Já a testemunha EE referiu que o pagamento do apartamento seria feito através da troca do terreno rústico, ficando ainda a executada de pagar à sua ex-mulher o montante de € 60.000.

Por outro lado, a testemunha FF afirmou que, em contrapartida do apartamento, a executada recebia o prédio rústico e comprometia-se ainda a pagar € 150.000 a EE, para liquidação de dívidas, e € 50.000 à ex-mulher deste, sendo que a testemunha desconhece se tais montantes chegaram efetivamente a ser pagos.

Já as testemunhas HH e II apenas tinham conhecimento que o apartamento foi pago com entrega do prédio rústico.

Temos, assim, que todas as versões apresentadas diferem entre si, coincidindo apenas no facto de o apartamento não ter sido liquidado integralmente em dinheiro (sendo precisamente esta a versão que foi alegada nos embargos).”

Vejamos:

Tal como referem os apelantes, no requerimento inicial os apelantes não alegaram que o preço foi pago mediante entrega ou transferência de numerário. Os embargantes limitaram-se a afirmar que o preço foi pago, não dizendo como.

Mas também é certo que os apelantes no requerimento inicial de embargos “não contaram a história toda”, não tendo referido que o negócio feito envolvia a venda de outro prédio do qual os embargantes eram usufrutuários e o seu filho, a testemunha EE, titular da nua propriedade.

Foram juntos pelos embargantes dois contratos promessa com a mesma data -  26.03.2007 (requerimento de 27.03.2023).  Um contrato promessa de compra e venda da fração autónoma penhorada, sem atribuição de eficácia real, em que figura como promitente vendedora a executada DD e como promitente comprador o embargante  e um contrato promessa, nos termos do qual, o filho dos embargantes e mulher, titulares da nua propriedade sobre um prédio rústico, prometem vender a nua propriedade e os embargantes, titulares do usufruto prometem vender o usufruto,  à executada/embargada, ambos os contratos com assinaturas reconhecidas na data de 26 de março de 2007.

Posteriormente, foi celebrado um outro contrato promessa – em 27.04.2007 -   junto com a petição inicial, ao qual as partes atribuíram eficácia real, figurando o embargante como promitente comprador e a embargada como promitente vendedora, tendo por objeto o mesmo prédio urbano referido no contrato de 26.03.2007 – a fração penhorada -  novo contrato que é explicado pelas testemunhas como celebrado para dar mais segurança ao promitente comprador, uma vez que a escritura não iria ser realizada brevemente, devido aos ónus e encargos que recaiam sobre o prédio, tendo a promitente vendedora se obrigado a liquidar os mesmos até à data da outorga da escritura a realizar no prazo de 5 anos, a contar do 2º contrato promessa, conforme do mesmo consta.

Mas todas as testemunhas e a embargada/executada são unânimes em referir que foi efetuada uma “permuta” de prédios, embora nem todas conhecessem os seus contornos específicos.

Os três depoentes que melhor conheciam as condições dos negócios envolvidos – DD (interveniente nos dois contratos), EE (interveniente no contrato promessa de compra e venda do prédio rústico)  e FF (irmão do EE e filho dos embargantes, a quem acompanhou nas negociações), foram também unânimes em declarar que a executada nenhuma quantia entregou diretamente ao EE e aos embargantes, por força da compra do prédio rústico, tendo a diferença de preço, entre o valor da venda da fração autónoma e o valor de venda do prédio rústico  – 80.000,00 -  sido regularizada através do acerto de contas entre a DD e o EE.

A depoente DD não concretizou quais eram essas contas/dívidas, tendo o EE falado em pagamentos à sua ex-mulher por força do divórcio iminente ( resulta da certidão predial junta aos autos e do contrato promessa de compra e venda do  prédio rústico sito em ... que à data dos contratos promessa o EE era casado com MM), o que foi confirmado pela testemunha FF, acrescentando este ainda que também  se pretendeu com os negócios celebrados, regularizar as contas de um negócio entre o EE e a executada relativamente à exploração de uma discoteca, sendo o seu irmão devedor, pelo que os depoimentos se mostram em consonância. Verifica-se, no entanto, uma discrepância sobre o valor que a executada  terá pago à ex-mulher do EE, tendo este referido que rondava os 60.000,00, embora não tenha sido muito seguro nessa indicação e a testemunha FF referido 50.000.00.

Resultou também do depoimento da declarante DD e da testemunha EE, filho dos embargantes, pessoa que reside desde 2008 no prédio em causa, conjuntamente com a sua atual companheira, duas filhas e uma enteada (o que foi corroborado por todas as demais testemunhas) e também da testemunha FF, igualmente filho dos embargantes, que inicialmente o negócio apenas incidiu sobre 10.000 m2 do prédio descrito como rústico, ficando de fora 2.930 m2 onde se situava uma moradia que tinha sido construída para residência da testemunha EE e da sua ex-mulher, mas que não teria ainda licença de utilização. Como inicialmente a aquisição apenas abrangia o terreno sem a construção existente, o preço acordado foi de 80.000,00, tendo sido aumentado para 200.000,00 quando o EE optou por vender todo o prédio à executada, onde se incluía a construção existente. Esta versão é também corroborada pelo contrato promessa de 26 de março de 2007, onde na cláusula 5ª é mencionado que o objeto do contrato é uma parcela de 10.000, ficando fora da compra e venda uma parcela de 2.930, onde se encontra implantado um prédio urbano ainda não concluído, indo proceder-se à sua desanexação (cláusulas 3ª e 4ª do contrato promessa). Posteriormente, constata-se que foi vendido todo o prédio e não apenas a fração de 10.000 m2, conforme resulta da descrição predial junta com o requerimento dos embargantes de 27.03.2023.

As testemunhas explicaram porque razão foi concretizada a compra e venda do prédio cuja nua propriedade pertencia ao EE (a aquisição da propriedade pela DD encontra-se registada com data de 01.06.2007 - cfr. certidão predial junta), antes da escritura da fração autónoma prometida vender, referindo que a executada precisava do mesmo para angariar dinheiro para liquidar os ónus que incidiam sobre o prédio prometido vender aos embargantes, o que encontra respaldo no contrato promessa de compra e venda da fração autónoma, onde, no considerando 5º as partes consignaram  “que a expurgação da hipoteca que incide sobre a fração autónoma, ora prometida vender, passa necessariamente pela transmissão prévia a favor da 1ª outorgante da nua propriedade e usufruto que na citada cláusula 5ª se alude”.

Refere ainda a Mma. Juíza a quo não se percebe porque é que EE entregaria à executada o prédio rústico de que era proprietário em troca do apartamento que ficaria para o seu pai (que depois lhe permitiria utilizá-lo), ao invés de todo o negócio de permuta ser feito entre a executada e EE.

No entanto, embora os embargantes não o tenham referido, tal poderá ser explicado pelo facto do EE ser casado à data da outorga do contrato promessa e não se ter pretendido que esse bem integrasse o património a partilhar, uma vez que estavam em vias de se divorciarem.

Por fim dir-se-á que se verifica de algum modo uma contradição entre o afirmar-se na decisão recorrida não se ter conseguido formar uma  convicção no sentido de que o preço tinha sido pago, e ter-se, por outro lado dado como provado que os embargantes praticaram todos atos descritos na matéria de facto com a convicção de serem proprietários da fração autónoma. O pagamento do preço na totalidade é um elemento determinante para a convicção de que se é proprietário de um prédio.

“O contrato de permuta (ou de troca ou escambo) não se encontra especificamente regulamentado no Código Civil, sendo-lhe aplicáveis, ainda assim, e dada a sua natureza de contrato oneroso, as disposições relativas ao contrato de compra e venda (art. 939.º do CC).

Porém, os normativos próprios da compra e venda não são aplicáveis incondicional e automaticamente, mas apenas e na medida em que se harmonizem com a natureza específica da permuta e a ela adaptados.

 Do mesmo modo, as normas da compra e venda ter-se-ão por inaplicáveis à permuta quando forem contrárias ou incompatíveis com as regulações concretamente queridas pelas partes” (cfr. se defende no Ac do STJ de 16.09.2008, proc.2344/08, do qual se retirou o texto transcrito entre aspas).

No caso, não está em causa um contrato de permuta, mas sim uma promessa de compra e venda com entrega do bem e pagamento do preço, não em dinheiro, mas por entrega de outro prédio.

Trata-se de forma convencionada e específica de pagamento do preço diversa da espécie corrente (que é o dinheiro ou pecunia, o comum intermediário geral das trocas). No contrato de permuta os contraentes atribuem-se coisas presumivelmente de igual valor, adquirindo e perdendo correspetivamente a propriedade sobre elas,  nisto se consumando o contrato. Se a atribuição da coisa à contraparte é para pagar um preço, não há uma permuta ou troca (cfr. se defende no Ac. do TRG de 01.10.2009, processo 2688/07.2TBVCT.G1). Nada na lei impede que o pagamento do preço de uma fração autónoma, elemento essencial da compra e venda (artº 879º, do CC), seja efetuado pela entrega de outro bem imóvel. Dos contratos juntos aos autos resulta a correlação existente entre ambos os contratos promessa realizados em 26.07.2007, como é evidente nos considerandos que antecedem a cláusula 1ª do contrato promessa de 26 de março de 2007, relativo à fração G, onde é mencionado que na mesma data foi celebrado um contrato promessa com EE e os outorgantes do contrato promessa de compra e venda da fração, o qual é junto e faz parte integrante do mesmo e que existem obrigações recíprocas entre os outorgantes.    

Concluímos assim que os depoimentos prestados, em conjugação com os documentos referidos, permitem a convicção segura de que o preço da fração penhorada foi pago através da venda do prédio rústico à executada DD.

Consequentemente, entende-se que ocorreu erro de julgamento e altera-se a matéria de facto, considerando-se os factos dados como não provados na alínea a), como provados.

 Da aplicação do direito aos factos

Em princípio o contrato promessa não é suscetível de, só por si, transmitir a posse ao promitente comprador.

No caso, embora o contrato promessa tenha sido celebrado com eficácia real, não está demonstrado que o contrato promessa tenha sido registado, o que é exigível (artº 2º, 1, alínea f) do CRP), pelo que tudo se passa como  não tivesse sido dotado de eficácia real, tendo apenas eficácia obrigacional. Quando o contrato promessa tem eficácia meramente obrigacional, a eventual venda da coisa prometida a um terceiro não perde por isso a sua validade e tal circunstância implicará a impossibilidade de cumprimento do contrato promessa.

A jurisprudência  tem, no entanto admitido que, nos casos em que o promitente comprador tenha beneficiado da entrega do imóvel anterior à celebração do negócio translativo, a qualificação da natureza da sua posse, dependerá de uma ponderação casuística que revele o exercício de poderes de facto sobre o bem penhorado, como posse em nome próprio, como nos casos excecionais em que já se encontra paga a totalidade do preço ou em que as partes têm o deliberado e concertado propósito de não realizar a escritura pública, para evitar despesas, e a coisa foi entregue ao promitente-comprador em definitivo, como se dele fosse já (cfr. se defende no Ac. do TRL de 05.04.2022, processo 15619/17.2T8LSB-C.L1-7, Ac. do STJ de 12.03.2009, processo e Ac. do STJ de 12.04.2018, processo  584/12.0TCFUN-B.L1.S1).

           Nos casos em que, como se verifica nos autos,  houve pagamento integral do preço e tradição da coisa e em que os atos praticados no imóvel foram realizados à vista de toda a gente, ininterruptamente, sem oposição de ninguém e na convicção dos embargantes serem donos do imóvel, estão reunidos os elementos integrantes da posse: corpus e animus. No caso o início da posse é anterior à penhora que recai sobre a fração autónoma a qual só foi realizada em 13.07.2021 (cfr. auto junto ao processo principal em 13.07.2021).

E tendo os promitentes compradores a posse da fração G, assiste-lhes o direito  de beneficiarem da tutela da posse, mediante recurso aos embargos de terceiro, pelo que os embargos devem proceder.

                       

            Sumário:

(…)

           

            IV – Decisão

           Pelo exposto, acordam os juízes desta 1ª secção em julgar procedente a apelação,  e, consequentemente, revogam a sentença recorrida e julgam procedentes os embargos de terceiro, ordenando o levantamento da penhora realizada em 13.07.2021 que recai sobre a fração G, correspondente ao primeiro andar, porta sete, do Bloco “A”, para habitação e estacionamento nº 29 na cave, do prédio urbano sito na Rua ... e Rua ..., ..., freguesia ... – ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...52 da freguesia ... – ....

Custas pelas apeladas.

Coimbra, 21 de maio de 2024