Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
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| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | PAULO GUERRA | ||
| Descritores: | CRIME DE ABUSO SEXUAL DE CRIANÇA AGRAVADO CRIME DE ABUSO SEXUAL DE MENORES DEPENDENTES AGRAVADO PENA DE PRISÃO EFECTIVA INDEMNIZAÇÃO | ||
| Data do Acordão: | 03/26/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - JUÍZO CENTRAL CRIMINAL - JUIZ 3 | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Legislação Nacional: | ART.S 171.º, N.º 1 E 177.º, N.º 1, AL. A) DO CÓDIGO PENAL; ART.ºS 172.º, N.º 2 (POR REFERÊNCIA AO N.º 1 DO MESMO PRECEITO E AO ART. 171.º, N.º 3 AL. A)) E 177.º, N.º 1 AL. A) DO CÓDIGO PENAL; ART.S 16.º N.º 2 DO ESTATUTO DA VÍTIMA E ART.82.º-A N.º 1 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, ART 50º DO CP; ARTIGOS 494.º, 496.º E 566.º, DO CÓDIGO CIVIL. | ||
| Sumário: | 1 - Não se verifica o pressuposto material da suspensão da execução da pena porque a personalidade revelada pelo arguido nos factos e na atitude que relativamente a eles assumiu posteriormente, afastam a possibilidade de formular um juízo de prognose favorável relativamente à possibilidade de a mera ameaça de prisão o afastar de futuros crimes.
2 - Efectivamente, o facto de ter sido confrontado pela mulher com os abusos denunciados pela menor, não impediram o arguido de repetir o ilícito. 3 - O arguido revelou total falta de empatia para com a vítima, não só à data dos factos, como actualmente, pois que, mesmo em audiência, em momento algum demonstrou estar consciente do impacto que os seus comportamentos têm e ainda virão a ter na menor. 4 - Numa postura consistentemente auto-centrada, o arguido apenas cuidou de satisfazer os seus desejos e interesses, quer aquando da prática dos crimes, quer na atitude que tomou na sequência da denúncia, já que, em lugar de proteger o ambiente de crescimento salutar das filhas, optou por se manter confortavelmente no agregado que compunha com a mãe das menores, aceitando a retirada destas para uma instituição, onde ainda hoje permanecem. 5 - E refugiando-se na problemática da dependência do álcool, não estruturou – ao longo dos 3 anos já decorridos – um projecto sério e consistente para se afastar dos consumos, que aponta como a única razão para ter praticado os factos, assim sobrepondo, mais uma vez, os seus interesses, aos direitos das menores suas filhas a crescerem num ambiente familiar saudável. 6 - O cumprimento efectivo da pena de prisão aplicada ao arguido permitir-lhe-á interiorizar o desvalor da sua conduta e interromper o ciclo de consumo de bebidas alcoólicas, podendo sujeitar-se, se assim o entender e se tal se revelar necessário, a tratamento ao alcoolismo de que padece, com efectivo controlo da abstinência do mesmo, acrescendo ainda que esta reclusão permitirá às suas filhas beneficiar da alteração da medida de promoção e protecção para apoio junto da sua mãe (no caso da mais nova). 7 - A opção por uma pena de substituição traduziria um claro sinal de impunidade. 8 - É adequada a reparação fixada em 15.000 euros, atento o teor dos factos em causa, face à enorme ilicitude dos factos cometidos contra uma menina de 13-14 anos de idade e à condição económica do agressor que está longe de ser muito difícil. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra: I - RELATÓRIO 1. A CONDENAÇÃO RECORRIDA No processo comum colectivo nº 35/21.0T9CDR.C1 do Juízo Central Criminal da Comarca de Viseu (Juiz 3), por acórdão datado de 23 de Outubro de 2024, foi decidido[1]: 1. «Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material e concurso efectivo, de: a) um crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos art.os 171.º, n.º 1 e 177..º, n.º 1 al. a) do Código Penal [praticado em 31/12/2019], na pena de 3 (três) anos de prisão; b) um crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos art.os 171.º, n.º 1 e 177..º, n.º 1 al. a) do Código Penal [praticado em 25/01/2020], na pena de 3 (três) anos de prisão; c) um crime de abuso sexual de menores dependentes agravado, p. e p. pelos art.os 172.º, n.º 2 (por referência ao n.º 1 do mesmo preceito e ao art. 171.º, n.º 3 al. a)) e 177..º, n.º 1 al. a) do Código Penal (crime para o qual se convola o crime de abuso sexual de criança agravado que lhe vinha imputado na acusação) [praticado em 25/03/2021], na pena de 4 (quatro) meses de prisão. Em cúmulo jurídico das penas parcelares indicadas em a) a c), condenar o arguido AA na pena única de 4 (quatro) anos de prisão. 2. Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de exercício de profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 10 (dez) anos. 3. Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de confiança de menores, em especial a adopção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 10 (dez) anos. 4. Condenar o arguido AA na pena acessória de inibição do exercício das responsabilidades parentais, pelo período de 10 (dez) anos. 5. Ao abrigo do disposto nos art.os 16.º n.º 2 do Estatuto da Vítima e art.82.º-A n.º 1 do Código de Processo Penal, condenar o arguido AA a pagar à vítima BB, a quantia global de € 15.000,00 (quinze mil euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais». 2. O RECURSO Inconformado, o arguido AA recorreu do acórdão, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição): «1. Recorre o arguido da parte do douto Acórdão que o condenou numa pena efetiva de 4 anos de prisão e no pagamento à vítima da quantia de 15.000€. 2. O douto Acórdão de que se recorre teve voto parcialmente de vencido, precisamente por discordância em relação ao que constitui o objeto do presente recurso, e que vai ao encontro do que em sede de alegações o arguido defendeu em audiência de discussão e julgamento. 3. Com a devida vénia também nestas conclusões se dá como transcrito na íntegra os fundamentos da discórdia do MM Juiz Diogo Ferreira em relação à parte do Acórdão de que o arguido recorre, constituindo esses fundamentos os mesmos que suportam o presente recurso e não conseguiria o arguido expor as suas razões de discórdia de melhor forma. 4. A suspensão da pena, como referido pelo MM Juiz “Concederia uma oportunidade de ressocialização em liberdade do arguido”, o que, salvo melhor entendimento, não é conseguido com a pena de prisão. 5. Suspendendo-se a pena de 4 anos de prisão pelo mesmo período de 4 anos e determinando-se que essa suspensão fosse acompanhada de regime de prova, como defende o Digníssimo Magistrado, a delinear pela DGRSP, contendo, além de outras obrigações consideradas necessárias, expressamente a sujeição do Arguido a acompanhamento médico e psicológico em relação ao álcool e à depressão de que padece, bem como condicionada à obrigação de pagamento à Ofendida de quatro prestações anuais no montante de 2.000,00 EUR (dois mil euros). 6. A assim suceder faria com que o arguido interioriza-se a gravidade dos factos por si praticados e tornariam-no responsável por possibilitar à vítima a fruição de circunstâncias de vida que a esta agradem – e que o dinheiro tem a possibilidade de satisfazer – que lhe permitissem fazer esquecer a vulnerabilidade com que viveu as experiências sexuais deformadas que o arguido lhe impôs. 7. Estas circunstância constituem ainda um reforço do estatuto da vítima e contribuiriam de forma direta e ativamente para que esta possa almejar um projeto de vida autónomo e feliz (o que é possível em face do património e rendimentos do Arguido, motorista de pesados internacional, e que corresponde a pouco mais de cinco euros diários), e de modo a atenuar/contrabalançar as elevadas exigências de prevenção geral associadas a crime sexuais na comunidade. 8. A prisão efetiva terá como repercussão imediata a impossibilidade de obtenção de rendimentos ao arguido, sendo que, a assim acontecer, mesmo tendo sido este condenado no pagamento a título de indemnização à vítima do valor de 15000€, nenhuma garantia terá a vítima de que alguma vez possa vir a receber esse valor, pois que, com alguma probabilidade até, não mais o arguido, após cumprir a pena de prisão, conseguiria refazer a sua vida, ao ponto de vir a obter rendimentos suficientes e necessários para indemnizar a vítima e mesmo que o conseguisse vir a fazer, tal apenas sucederia após o cumprimento da pena de prisão de 4 anos, ficando a vítima, possivelmente na altura em que mais necessita, privada de uma valor que lhe pertence e lhe é devido. 9. Como ficou provado, atendendo à depressão de que padece e por ser viciado no álcool, só com o arguido em liberdade, e através de imposições de condutas na sequência de uma decisão de suspensão de pena de prisão, se conseguiria promover a sua recuperação, a qual é socialmente desejável e se pretende também em prol da defesa dos interesses da vítima, pois que, naturalmente, a vítima ficará mais desprotegida tendo o seu pai preso e sem trabalhar, do que em liberdade, a fazer recuperação e tratamentos ao álcool e à depressão, por forma a ressocializar-se e a poder ser um contributo para a vida da vítima e da sua irmã. 10. No caso, a penalização do arguido em pena de prisão efetiva constitui ela própria uma penalização para a vítima, não sendo, no caso, de todo necessário e tendo como suporte o princípio da proporcionalidade na sua tríplice vertente de necessidade, adequação e proibição do excesso, que a pena de prisão de 4 anos em que foi condenado seja cumprida o arguido. 11. Cumprindo o arguido as regras de conduta que deverão ser aplicadas e condição da suspensão nos termos e moldes defendidos pelo MM Juiz que fez voto de vencido, com muito maior probabilidade seria possível recuperar o arguido e ajudar a vítima a recuperar do mal que este lhe infligiu. 12. A pena de prisão, com grande certeza, nenhuma dessas virtudes conseguirá acrescentar à vida dos envolvidos, arguido, vítima e família. 13. Nos termos supra referidos, defende assim o arguido que o valor indemnizatório a atribuir à vítima deverá ser fixado em 8.000€, a liquidar anualmente, em prestações de 2000 euros ano e com a obrigação de comprovar esse pagamento nos autos anualmente como condição para a suspensão da pena de prisão. 14. O valor de 15.000€ é excessivo. 15. Por uma questão de equidade, ponderação do concreto circunstancialismo efetivamente apurado em relação à vítima e do primado da justiça relativa para com as demais vítimas crianças de crimes sexuais noutros processos deste Juízo cujos acórdãos já transitaram em julgado, em respeito ao princípio de que “a danos idênticos devem corresponder indemnizações idênticas, principalmente em matéria de danos não patrimoniais”, entendimento exposto pelo Juiz Conselheiro João Bernardo MarquesBernardo, in ebook intitulado “O Dano na Responsabilidade Civil”, artigo “A indemnização pela perda do direito à vida”, Centro de Estudos Judiciários, outubro de 2014, p. 78 e 84, o qual sufragamos. 16. Em particular, (i) Processo n.º 2499/18.... (dois crimes de violação agravada, na forma consumada, Arguido beneficiário do rendimento social de inserção e economicamente precário, indemnização à vítima fixada em 7.500,00 EUR); (ii) Processo n.º 493/19.... (cinco crimes de abuso sexual de crianças agravado, quatro na forma consumada e um na forma tentada, Arguido com salário líquido aproximado de 3.100,00 EUR, indemnização à vítima fixada em 10.000,00 EUR); (iii) Processo n.º 143/23.... (três crimes de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada, vítima automutilou-se, Arguido com património e reformado, auferindo aproximadamente 1.035,00 EUR, indemnização à vítima fixada em 10.000,00 EUR); (iv) Processo n.º 1499/21.... (dois crimes de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada, Arguido com salário líquido variável em função de estar a laborar no estrangeiro e em Portugal, entre 850,00 EUR e 1.850,00 EUR, indemnização à vítima fixada em 5.000,00 EUR), sem prejuízo de outros fatores tidos em consideração nos processos a que supra se alude. TERMOS EM QUE, pelos fundamentos exposto, deverá ser revogado o douto Acórdão, na parte em que condena o arguido na pena de prisão efetiva de 4 anos e no pagamento à vítima do valor de 15.000€, devendo ser proferido Acórdão que determine a suspensão da pena de prisão de 4 anos por idêntico período, determinando-se que essa suspensão seja acompanhada de regime de prova, a delinear pela D.G.R.S.P., em função da factualidade, do tipo de criminalidade e da concreta situação pessoal do Arguido, e que deverá conter, além de outras obrigações consideradas necessárias, expressamente a sujeição do Arguido a acompanhamento médico e psicológico em relação ao álcool e à depressão de que padece, bem como condicionada a suspensão à obrigação de pagamento à ofendida BB de quatro prestações anuais no montante de 2.000,00 EUR (dois mil euros), com junção anual do respetivo comprovativo». 3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, opinando que ele não merece provimento, defendendo o sentenciado em 1ª instância. 4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se neles, corroborando as contra-alegações do Magistrado do Ministério Público de 1ª instância, sendo seu parecer no sentido da negação de provimento ao recurso. 5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea c) do mesmo diploma. II – FUNDAMENTAÇÃO 1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [cfr. artigos 119º, nº 1, 123º, nº 2, 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242, de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271 e de 28.4.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193, explicitando-se aqui, de forma exemplificativa, os contributos doutrinários de Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335 e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113]. Assim, é seguro que este tribunal está balizado pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso. Também o é que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar - se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões. Mas também é grave quando o recorrente apresenta fundamentação nas conclusões que não tratou de modo nenhum na motivação. Estas conclusões (deduzidas por artigos, nas palavras da lei) não devem trazer nada de novo; os fundamentos têm de estar no corpo motivador e são aqueles e só aqueles que são resumidos nas conclusões. Desta forma, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, são estas as questões a decidir por este Tribunal: a. A pena de prisão de cúmulo deveria ter sido suspensa na sua execução? b. A indemnização arbitrada foi excessiva? 2. DA DECISÃO RECORRIDA 2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, com interesse para a decisão deste recurso (transcrição): 1. «O arguido é pai da vítima BB, nascida a ../../2006. 2. No dia 31/12/2019, a hora não apurada, mas já de noite, o arguido disse à sua filha BB, na data com 13 anos de idade, para o acompanhar numas visitas que ia fazer a amigos da zona de ..., ..., onde residiam. 3. A menor acedeu ao pedido e foi com o seu pai numa carrinha Toyota de 3 lugares na cabine e com caixa aberta. 4. Depois de terem passado por casa de alguns amigos e conhecidos, quando já se dirigiam a casa, sita na Rua ..., ..., em ..., ..., ..., o arguido parou a carrinha que conduzia num local denominado de ..., na povoação do ... e começou a perguntar à sua filha BB: “- Preferes aprender em casa? - Ou preferes ter relações sexuais e apareceres grávida?” – sic. Como BB não respondeu e permaneceu calada, o arguido, seu pai, começou a tocar-lhe com as mãos no corpo, primeiro sobre a roupa que lhe cobria o peito e vagina, depois sob a roupa, desnudando-a aos poucos, tirando-lhe as calças e as cuecas, deitando-a sobre os bancos da carrinha. 5. Depois de ter despido as calças e as cuecas à sua filha e de a ter deitado nos bancos da carrinha, o arguido abriu-lhe as pernas e acariciou-lhe a vagina, durante cerca de 10 minutos, até que a menor lhe pediu para parar, dizendo: “- Pára pai, está a doer!” Sic 6. O arguido parou o que estava a fazer. BB vestiu-se e seguiram viagem até casa na carrinha, tendo o arguido pedido desculpa à filha durante a viagem, pedindo-lhe também que não contasse o sucedido à mãe. 7. No dia 25/01/2020, o arguido disse à filha para ir de bicicleta ter com ele ao mesmo local denominado de ..., na localidade do ..., onde a encaminhou até um palheiro que o arguido aí possui. Aí chegado, o arguido deitou a vítima, sua filha, ao chão e perguntou-lhe novamente, se pretendia aprender em casa ou aparecer grávida, ao mesmo tempo que lhe tirava as calças e as cuecas. Depois o arguido acariciou-lhe a vagina com as mãos enquanto lhe dizia: “- Estás a gostar? – Gostas?” A vítima cruzou as pernas para impedir tal acto e o arguido parou. A vítima vestiu-se e regressou a casa com o arguido, tendo-lhe este pedido para não contar nada a ninguém. 8. Em data não concretamente apurada do mês de Março de 2020, a vítima contou à mãe o sucedido e ela mostrou-se surpreendida, tendo confrontado o marido, que referiu não se recordar de nada. 9. No dia 25/03/2021, quando estavam sozinhos no 1º andar da casa onde viviam, sita na Rua ..., ..., em ..., ..., ..., o arguido beijou a menor BB na boca (encostando os seus lábios aos dela por escassos segundos), tendo igualmente pedido desculpa e referido que não tornaria a fazê-lo. 10. Nas duas primeiras situações descritas em 4), 5) e 7), o arguido havia bebido bebidas alcoólicas em demasia. 11. No dia 06/05/2021, em consequência de comportamentos auto-lesivos e crises de ansiedade, a menor BB ficou internada no Serviço de Pediatria do Centro Hospitalar ... por “perturbação depressiva desenvolvida em contexto de alegadas tentativas de abuso sexual por parte do pai”. 12. Aquando das suas actuações o arguido estava consciente e conhecedor da gravidade dos seus actos, sabendo que com as suas condutas violava a liberdade e autodeterminação sexual da vítima sua filha, com evidente aproveitamento resultante do ascendente do arguido para com a menor para lograr atingir os seus intentos. 13. O arguido, em cada uma das suas descritas condutas, tinha perfeita noção da idade da vítima, do grau de parentesco entre ambos e do seu ascendente parental perante ela, bem como da confiança a que esta o votava pelo facto de ser seu pai, circunstância de que se aproveitou para melhor lograr os seus intentos. 14. O arguido, em cada uma das suas descritas condutas, tinha consciência do laço familiar que o unia à vítima sua filha de 13/14 anos de idade, e, apesar disso, não se coibiu de praticar os actos supra descritos, ofendendo assim o sentimento de criança, de inocência e de vergonha da menor, bem como a integridade física e psicológica daquela. 15. Ao agir como acima se descreveu, o arguido, em cada uma das suas descritas condutas, procedeu de forma deliberada, livre e consciente, praticando actos sexuais com menor, sua filha, a fim de satisfazer a sua lascívia e os seus desejos sexuais, o que conseguiu. 16. Sabia o arguido, em cada uma das suas descritas condutas, que os factos que praticou, com e sobre a menor, eram adequados a prejudicar o livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade desta, designadamente na sua esfera sexual, violando a sua autodeterminação e liberdade sexual, denotando total desprezo pelo bem-estar da menor e pelos laços de parentesco existentes entre ambos. 17. Apesar disso, o arguido não se inibiu de actuar sobre a sua filha BB, com vista à sua satisfação sexual pessoal, bem sabendo que o fazia violando a liberdade e autodeterminação sexual de uma criança com 13/14 anos de idade de quem sabia ser pai. 18. O arguido agiu sempre livre, voluntária e conscientemente e sabia as suas condutas previstas e punidas por lei penal.. Provou-se ainda que: 19. No período que sucedeu os factos em apreço, a menor BB apresentou um agravamento das crises de ansiedade e passou a assumir comportamentos auto-lesivos, cortando-se nas pernas, braços e ombros. 20. Na sequência da denúncia dos factos, logo que teve alta médica do internamento descrito em 11., foi a própria, juntamente com a irmã, no âmbito de medida de promoção e protecção, acolhidas na Casa de Acolhimento Residencial da Santa Casa da Misericórdia de ..., medida que, perfeitos os 18 anos de BB, foi, quanto a ela, substituída por medida de apoio para a autonomia de vida. Mais se provou que: 21. Do certificado do registo criminal do arguido nada consta. 22. O arguido é oriundo de um agregado familiar composto pelos pais e três irmãos, dos quais 2 mais velhos e 1 irmã mais nova. Descreve o ambiente familiar de origem como muito violento por parte do pai, o qual, tal como a mãe, também abusava de bebidas alcoólicas. Referiu ainda ter sido vítima de abuso sexual durante algum tempo por parte de 3 rapazes, mais velhos, abusos que terão iniciado por volta dos 9 anos de idade. 23. Com 12 anos, após concluir o 6.º ano de escolaridade, fugiu de casa dos pais, para junto do irmão mais velho, então residente em ..., iniciando de seguida actividade profissional numa pedreira, em ..., ..., ficando então alojado em casa do patrão. 24. Há 17 anos, a mãe faleceu na sequência de cirrose hepática, aos 44 anos de idade, tendo a irmã mais nova sido acolhida em instituição. 25. Com 18 anos fez contratos sazonais em França, na apanha da fruta, durante dois anos, vindo a retomar o trabalho na pedreira até aos 33 anos. Nesta altura, teve que cessar esta actividade devido a problemas pulmonares (silicose). Tirou então a carta de condução de pesados e passou a trabalhar como motorista de pesados. 26. Casou aos 22 anos, após 3 a 4 anos de namoro, estando então a esposa grávida, no final da gestação, da filha mais velha do casal, a menor BB. 27. À data dos factos, o arguido residia com a esposa, as duas filhas do casal e a sogra, então com 40, 13, 8 e 76 anos de idade respectivamente, em habitação propriedade da sogra do arguido da qual a esposa é também herdeira. 28. Após a denúncia dos factos, as filhas do arguido foram acolhidas em instituição, no âmbito de processo de promoção e protecção, deslocando-se aos fins-de-semana a casa da mãe, tendo recentemente, a vítima, agora com 18 anos, passado a medida de autonomização, com apoio da segurança social. 29. Nos fins-de-semana e/ou outros períodos de férias em que as filhas do arguido estão em casa, este permanece, ou no camião, ou desde há algum tempo em casa cedida por um amigo, uma vez que se encontra de baixa médica. Nos períodos em que as filhas estão na Instituição, o arguido permanece na habitação da família, com a esposa e sogra, actualmente com 45 anos, auxiliar de transporte escolar em ... e 80 anos, viúva, reformada. 30. O arguido tem mantido contactos telefónicos e visitas pontuais com as filhas na instituição, sendo estas devidamente autorizadas e realizadas com supervisão. A esposa do arguido ficou revoltada aquando da denúncia dos factos, mas mantém o relacionamento, e apoio ao arguido, ainda que condicionado, uma vez que este não pode permanecer na habitação em simultâneo com as filhas. 31. O arguido trabalha como motorista para a empresa A..., Lda., sendo a patroa, cunhada (irmã da esposa). Tem como rendimento líquido médio € 1800,00/mês, que recebe numa conta conjunta com a esposa, a que esta também recorre para fazer face às despesas. O arguido apresenta como encargos fixos, o pagamento de 3 créditos automóveis, num total aproximado de € 550,00, a prestação da televisão e telecomunicações, cerca de € 140,00 e o seguro do carro. Desde há cerca de 3 meses que se encontra de baixa médica devido aos efeitos da medicação antidepressiva que lhe foi, entretanto, prescrita, os quais interferem com a capacidade para conduzir. 32. O arguido encontra-se em acompanhamento no CRI ..., para onde foi encaminhado após um episódio de urgência no Centro Hospitalar ..., para tratamento da problemática aditiva de bebidas alcoólicas, tendo estado internado durante duas semanas na Unidade de Alcoologia de Coimbra em Dezembro de 2022, para desabituação. Os consumos abusivos de bebidas alcoólicas remontam aos 13 anos de idade e revela dificuldades em se manter abstinente, tendo por isso pedido eventual integração em comunidade terapêutica, encontrando-se a aguardar a sua efectivação. Para além da medicação dirigida a esta problemática, o arguido faz também toma diária de medicação para os pulmões. 33. Resulta do relatório social que: “Perante o presente processo e factos subjacentes, o arguido apresenta alguma apreensão e constrangimento dada a natureza dos factos em causa. Em abstrato, reconhece a censurabilidade do comportamento que lhe é imputado. No caso em concreto, alega não se lembrar da ocorrência dos alegados factos, mencionando em contrapartida, que a filha teria sido alvo de comportamentos abusivos por parte de outros indivíduos. Na sequência da denúncia, registou-se, para além do afastamento físico, um afastamento emocional da parte do arguido, denotando pouca empatia para com esta.”» 2.2. Inexistem factos não provados e decide-se colocar a motivação da matéria de facto feita pelo tribunal, apesar de não haver recurso de facto (transcrição): «A convicção do tribunal assentou no conjunto da prova produzida nos autos, criticamente analisada à luz de regras de experiência e segundo juízos de normalidade. O arguido prestou declarações em audiência de julgamento. Referiu que se fez o que consta da acusação, era porque se calhar não deveria estar em si, não se vê a fazer uma coisa dessas, até porque ele próprio já passou por isso quando era criança e sabe que num estado consciente nunca faria uma coisa dessas. Na altura bebia demasiado, se isso aconteceu (que a filha diz que é verdade), o declarante não tem memória dos factos. A partir daí pediu ajuda para fazer um tratamento ao álcool, mas se ela diz que aconteceu, o declarante também não desmente a palavra dela. Desde aí tem andado sempre a tomar medicação e angustiado. Confirmou que, se isso é verdade, é grave, mas não se recorda. Se isso aconteceu, é porque tinha bebido demais, de certeza absoluta. É motorista internacional há cerca de 6 anos. Confirma que a filha chegou a falar consigo sobre isso e o declarante disse-lhe a mesma coisa a ela, que não se lembra de nada. Quanto ao primeiro episódio, negou lembrar-se sequer de sair de casa. Disse que nunca teve uma Toyota de 3 lugares de caixa aberta, mas antes de 5 lugares. Só muito mais tarde (há cerca de 2, 3 anos) é que teve uma Toyota de 3 lugares, mas era uma carrinha maior. Confirma que a mulher também o confrontou e também lhe disse que não se lembrava de nada.. O palheiro tem uma cobertura em madeira, mas metade é só alpendre. Não se recorda de ter dito à filha para ir lá ter. Também não se recorda da situação do beijo. Se ela diz que fez uma coisa dessas, tinha de estar (alcoolizado). Quando tinha 9 anos, até aos 12, foi abusado por 3 rapazes e sempre disse a si próprio que nunca ia fazer uma coisa dessas a ninguém. Ainda para mais às filhas, que são a coisa que mais preza na vida “Deus me livre de fazer uma coisa dessas conscientemente”. Só soube que a filha dizia isto quando a mãe o confrontou, já tinham acontecidos as situações. Questionado sobre as medidas que tomou nessa sequência, disse que quando vinha de viagem ia dormir nas pensões, ou dormia no camião e passou assim um bom bocado desse tempo. Quanto ao álcool, inicialmente deixou de beber sozinho, depois com os supostos amigos continuou a beber outra vez, depois foi fazer um tratamento a Coimbra, andava sem beber. E tanto lhe chatearam a cabeça a dizer que andava a beber, que o declarante com o stress voltou a beber. Actualmente está a “beber controladamente”. Referiu já ter tido outros episódios em que não se lembrava de coisas que fazia (por exemplo cair em casa). Não tem explicação para a filha afirmar que após cada situação lhe pedia para não dizer a ninguém. Fazer coisas de que se esquecia, só ocorria quando bebia mesmo demasiado, quando chegava ao ponto de passar em sítios que não se lembrava sequer que tinha passado. Actualmente bebe 3 a 4, 5 copos de vinho por dia, no máximo. Está a tomar medicação (para o álcool) desde 2020, andou 1 ano e meio sem beber, depois voltou a beber e depois foi fazer um tratamento ao álcool a Coimbra. Depois andou sem beber durante algum tempo e quando a senhora da Segurança Social começou a teimar consigo a dizer que tinha provas de que andava a beber, recaiu. É acompanhado pelo CRI e está à espera que o chamem para uma comunidade terapêutica, estando disponível para efectuar o tratamento e voltar para a sua família. Actualmente tem contactos telefónicos com a filha Questionado refere não se recordar de ter falado com a filha sobre isto, sóbrio não o terá feito. Confrontado com o facto de existirem áudios nos autos, acabou por dizer que é possível que tenha pedido à filha para não contar. Já a menor BB, ouvida em declarações para memória futura, relatou os factos em termos coincidentes com os descritos na acusação, afirmando que: Na passagem de ano de 2019 para 2020, já tinha bebido uns copos a mais e eu nessa altura andava mais agarrada ao telemóvel, ele dizia para ir com ele a algum lado para não estar tão agarrada ao telemóvel. Na passagem de ano disse para ir com ele, foram a várias casas e cafés em várias localidades, ele bebeu mais e a certa altura na viagem para casa, na localidade do ..., ele começou com as conversas a dizer se queria aprender em casa ou se queria aparecer grávida, porque ele só começava com essas conversas quando bebia demais. A depoente ficou calada, ele começou a tocar por cima da roupa, depois foram para perto de um terreno, e ele conseguiu tirar-lhe as calças e as cuecas e começou a tocar-lhe por dentro da roupa. Como a depoente estava a fazer força, pensa que o aleijou na zona íntima dele, ele parou, e a depoente chegou a casa com os olhos muito vermelhos, a mãe perguntou o que é que tinha acontecido e a depoente não disse o que tinha sido, disse apenas que tinha estado a ver uns vídeos no telemóvel. A 25/01/2020, ele tinha enchido os pneus da bicicleta da depoente, disse para ela ir ter a um terreno e a depoente foi. Ele disse para ir buscar qualquer coisa ao palheiro, ele entrou atrás de si, deitou-a ao chão, e fez a mesma coisa da passagem de ano. Em 25/03/2021, tentou beijá-la. Questionada sobre o primeiro episódio, afirmou que seriam perto das 23:30 horas, porque quando ele chegou a casa deitou-se e já nem conseguiram acordá-lo para deitar os foguetes. Ele tocou-lhe na vagina e nas mamas, por cima e por baixo da roupa. Questionada se lhe tocou por baixo das cuecas, referiu que o arguido lhe tirou mesmo a roupa, conseguiu tirar as calças e as cuecas, a camisola e o soutien, não. No peito tocou-lhe por cima do soutien. Negou que o arguido lhe tivesse introduzido algum dedo na vagina. Tanto quanto se recorda ele estava vestido. A depoente presume que o tenha aleijado porque a depoente estava sempre a tentar fechar as pernas. Foi nos bancos da carrinha (era uma carrinha de caixa aberta e só tinha bancos na frente). Ele deitou-a e ele estava à sua frente, não chegou a deitar-se em cima de si. Confirmou que lhe pediu para parar dizendo que estava a doer, porque ele ia meter o dedo na vagina, e nessa altura ele parou e só continuou a mexer. Disse-lhe que estava a doer quando ele estava a tentar meter, numa altura em que estava a fazer pressão, mas não meteu nada. Quanto ao segundo episódio, concretizou que depois de a deitar ao chão, ele como que se ajoelhou à sua frente, confirmando que a depoente tentava fechar as pernas e mexer as mãos, ele até lhe agarrou as mãos e prendeu-lhas em cima da cabeça, para a depoente não estar a mexer com as mãos. Confirmou que nessa altura ele fez exactamente a mesma e também proferiu as mesmas expressões. Questionada, confirmou que nesta altura ele também tinha bebido, mas não estava tão embriagado como na passagem de ano, mas estava “um pouco acelerado”. Também lhe tirou as calças e as cuecas e, que se recorde, ele não tirou a roupa dele. Confirmou que por várias vezes ele tentou pegar na sua mão (agarrava com força no pulso) e encostá-la na zona das calças (do pénis dele), mas a depoente fazia força e ele acabava por desistir. Questionada sobre se o pai lhe perguntava se estava a gostar, disse que sim, que enquanto lhe mexia na vagina, perguntou se a depoente estava a gostar, mas a depoente “simplesmente estava a chorar, a dizer ó pai, pára” e sempre a fechar as pernas. Questionada, confirmou que isto foi em Janeiro de 2020, “vai fazer um ano agora”. No terceiro episodio, estavam em casa com a mãe, a irmã e um senhor, o pai veio ao 1.º andar, disse à mãe e irmã para descerem, que queria falar com a depoente, e começou a dizer que estava a pressentir que era a última viagem que ia fazer (como camionista), que só lhe pedia um beijo. Abraçou a depoente e deu-lhe um “bate-chapa”, só um encosto de lábios, só que a depoente não retribuiu e ele dizia “dá, dá” e a depoente virava a cara e dizia que não. Questionada sobre se contou à mãe, disse que as situações da passagem de ano e de Janeiro do ano passado, contou em Março do ano passado, mas que do beijo deste ano, só contou há 2 ou 3 semanas. A mãe ficou chocada, confrontou o pai com isso e ele só dizia que não se lembrava. Contou também à CC, sua ex-namorada (acabaram no dia 24/01/2020), contou à DD, ao EE, ao FF e ao GG, seu ex-namorado. Contou à directora de turma. À mãe contou num dia em que estava a responder mal ao pai e ele deu-lhe uma bofetada. Quando a mãe lhe perguntou porque é que tinha falado mal para o pai, a depoente disse-lhe que tinha as suas razões e acabou por lhe contar. À directora de turma contou-lhe porque teve 3 crises de ansiedade mais fortes em uma semana, ela ficou preocupada e a depoente contou-lhe, até porque os amigos também já tinham dito para contar. Questionada, a depoente esclareceu que já tinha ansiedade (dores no peito, falta de ar), só que estas 3 crises de ansiedade foram mais fortes, todos os sintomas juntos, que até ficou a tremer durante bastante tempo. Questionada sobre se associa esses ataques a estes factos, respondeu afirmativamente, porque o tema que estavam a dar na aula de inglês era bullying e relacionamentos abusivos, o professor disse que a educação vem de casa e a depoente, na sua cabeça, associou ao que tinha acontecido. Depois na aula de ciências estavam a dar a pele, falou-se dos cortes na pele com papel, nessa dor irritante, e a depoente começou a pensa nos seus cortes. Confirma que (principalmente quando fecharam as escolas em Janeiro deste ano) fazia cortes no ombro, joelho, com x-acto, quando estava mais ansiosa. Em ambos os episódios o pai lhe pediu para não dizer nada à mãe, que prometia que não voltava a acontecer. Confirmou que também pedia desculpa. Disse ainda que o pai prometeu não ia beber, que ia procurar ajuda, que ia arranjar um psicólogo ou psiquiatra para lidar com os problemas dele do passado (porque ele sempre disse que o pai o agredia a si, aos irmãos e à mãe), e que não está certa que a mãe tenha perdoado o pai, porque ela disse que ia pedir o divórcio até ele se tratar. Questionada, confirmou que o pai lhe disse que se contasse, a irmã e a mãe da depoente iam sofrer mais, e que a depoente iria para uma instituição, que por vontade do pai, a depoente não tinha ido ao hospital, tinha ido a um médico privado por no hospital iam apertar consigo para dizer a verdade, mas a depoente falou na mesma porque a directora de turma já tinha feito a denúncia Foram ainda inquiridas as testemunhas: - HH, mãe da menor, que referiu ter tomado conhecimento dos factos passado algum tempo, soube pela filha, que lhe contou que o pai a tinha levado para um lugar na carrinha e que lhe tocou nas partes íntimas. Só lhe contou uma vez. Não lhe contou sobre um beijo na boca. Confirmou que marido tem problemas com o álcool e que ele continua a beber em excesso, mas não é todos os dias. Questionada sobre se quando o marido bebe tem algum problema de memória, referiu que já aconteceu umas duas vezes, ele beber demasiado, cair e depois não se lembrar. Só se apercebeu de situações em que ele perdeu a memória essas duas vezes. Confirmou que confrontou o marido e que ele disse que não se lembrava, que se fez alguma coisa à filha não era para ter feito. Confirmou que na passagem de ano de 2019/2020 ele estava alcoolizado. Confirmou que ele saiu, como era hábito, para ir ao café, antes da meia-noite. Nesse dia ele já tinha bebido alguma coisa, mas não estava muito alcoolizado. Disse que só há cerca de um ano é que o marido começou a falar sobre o facto de ter sido vítima de abusos sexuais. Mais tarde, quando a filha se começou a cortar, é que viu que ela não estava bem. Que saiba nunca se cortou antes disto. Confirmou que começou a ter ataques de ansiedade, mas já antes tinha feito exames ao coração e achou que era disso. Confirmou que a filha ficou internada. Confirmou também que por causa desta situação, tanto a menor como a irmã foram institucionalizadas. A depoente ia lá visitá-las e o pai fala com elas por telefone e esteve com elas no dia do aniversário. Pensa que em 2019 ele saiu com a carrinha do trabalho, uma Toyota dyna de 3 lugares. A filha contou passado alguns meses. Nessa altura ela só contou a situação da passagem de ano, a situação do palheiro só lhe contou já depois de estar internada. Quando ela contou estava nervosa e chorou. A depoente ficou incrédula. Nunca lhe contou do beijo, e não era normal ela dar beijos na boca ao pai. Confirmou que a filha se cortava na perna e no ombro. No dia em que ela contou estavam os 4 em casa, o marido tinha ido deitar-se e a depoente foi deitar as filhas e a BB estava muito nervosa, a depoente perguntou-lhe o que se passava e ela contou que não se sentia bem ao pé do pai e contou o que se tinha passado - II, professora e directora de turma da menor entre o 7.º e o 9.º ano, que referiu que a BB apresentava sinais de ansiedade, pedia para sair da aula e um dia em que isso aconteceu, abordou a depoente no final da aula e disse que precisava de falar com alguém, que andava a automutilar-se porque estava a ser vítima de abusos sexuais por parte de alguém. A depoente disse-lhe que ela tinha de falar com os pais, mas ela disse que não podia fazer isso e não podia dizer quem era porque a irmã mais nova ia sofrer muito. A depoente perguntou se era alguém assim tão próximo da irmã para ela sofrer tanto, e a BB disse “é o pai dela”. A depoente disse-lhe “olha, nem sabia que eram filhas de pais diferentes” (porque na cabeça da depoente tinha mais lógica ser um padrasto do que um pai) e ela caiu no ombro da depoente a chorar e disse que não eram filhas de pais diferentes. A depoente perguntou: “então é o teu pai” e ela respondeu que sim. A depoente disse-lhe que tinha de agir e perguntou se podia falar com a mãe, e ela disse que a mãe já sabia, pelo que convocou a mãe, que foi à escola nesse mesmo dia. A BB pediu à depoente para não dizer à mãe que tinha dito à depoente quem era. A depoente disse então que a BB contou que estava a ser vítima de abusos por alguém próximo (não penetração, mas tentativa de beijos, de mexer). BB disse que acontecia quando o pai estava alcoolizado e que tinha medo de estar em casa com o pai e que quando ele estava em casa, dormia de fato de treino com a irmã. A BB disse que o pai a tinha tentado beijar à força numa altura em que até tinha visitas em casa, que ele dizia que era melhor iniciar as relações sexuais com ele, porque quando tivesse um namorado já sabia melhor o que fazer, e que tinha apalpado a zona genital, sem a magoar, mas que tinha mexido. Ela disse que estava com medo nesse dia, porque o pai chegaria nesse dia. A depoente tentou marcar consulta com o médico de família. Depois de falar com o médico, ele disse que ia encaminhá-la para a urgência de pediatria para a admitirem rápido. Como os pais não levaram a BB no dia em que foi encaminhada pelo médico, a depoente disse à BB que tinha de comunicar à CPCJ. Confirma que a BB chegou a entregar ficheiros contendo conversas entre ela e o pai. Esclareceu que nesta sequência começaram a trocar mensagens e a dado passo ela começou a mandar ficheiros áudio, que a depoente encaminhou para quem estaria com o processo. Quando ela pedia para sair das aulas, apresentava tremores. Segundo ela a irmã não tinha sido vítima, mas ela não queria que a irmã soubesse, sempre se assumiu como muito protectora com a irmã. Inicialmente, pensa que a BB não tinha medo de que o pai pudesse fazer o mesmo à irmã, mas depois sim. Relatou que inicialmente, quando os pais optaram por não a levar ao hospital, terão levado a menor a passear e a fazer uma tatuagem, tendo a própria BB dito que estava a perceber que os pais ou o pai estavam a tentar que ela não contasse.. Nunca passou pela cabeça da depoente que a BB pudesse estar a mentir, não notou contradições, e nunca ponderou tal possibilidade. A BB disse que já tinha contado a um colega e uma colega, os quais já lhe tinha dito para falar com a depoente. No dia em que contou, pensa que a BB se teria sentido mais agitada porque o pai estava para chegar. Acompanhou a BB durante 3 anos e inicialmente ela era uma miúda participativa, alegre, faladora, mas nos últimos tempos ela não era assim, era cabisbaixa, não interagia com os colegas, isolava-se mais e não participava. Não identificou quaisquer outros problemas que pudessem ter contribuído para esta mudança. Confrontada a prova produzida em audiência (acima resumida) com os demais elementos constantes dos autos, temos que: O facto descrito em 1., decorre do assento de nascimento junto a fls. 34. Os factos dados como provados em 2. a 10. assim se consideraram no confronto das declarações do arguido com o depoimento da menor, este último reforçado pelos demais elementos probatórios juntos aos autos. Efectivamente, a menor descreveu os factos de que foi vítima de forma clara, segura e coerente, concretizando as circunstâncias de tempo e lugar em que ocorreram e a específica forma de actuação do arguido. Fê-lo num relato que denotou precisão em cada resposta (por exemplo referindo que o pai lhe tirou as calças e as cuecas, mas não a camisola e o soutien; que lhe mexeu na vagina, mas não chegou a introduzir qualquer dedo, que no segundo episódio também estava embriagado, mas não tanto como no primeiro, apenas “acelerado), descrevendo, de forma congruente a posição de cada um dos intervenientes no decurso dos actos. Fez referência a pormenores, quer de forma espontânea, quer na sequência das questões que lhe eram colocadas (como a conversa do pai que precedia os abusos – se preferia aprender em casa ou aparecer grávida –; como o facto de ter chegado a casa com olhos vermelhos de chorar, que disfarçou com a desculpa de que tinha estado a ver uns vídeos; ou como o facto de estimar que o primeiro episódio teria decorrido às 23:30 horas, porque logo de seguida o pai adormeceu e já nem conseguiram acordá-lo a tempo dos foguetes da passagem de ano), que apontam no sentido de se tratar de um relato fidedigno de acontecimentos efectivamente por si vividos. Acresce que nem do depoimento da menor, nem dos demais depoimentos recolhidos nos autos, se retira qualquer benefício secundário que a menor pudesse pretender alcançar com a denúncia dos factos. Antes pelo contrário, ressalta do depoimento de II, directora de turma a quem revelou os factos, que a primeira preocupação manifestada pela menor foi relativamente ao sofrimento que tal denúncia poderia causar à irmã mais nova. E mais se constata que o relato da menor foi sempre consistente ao longo dos vários momentos em que o fez, pois que a descrição dos factos efectuada em declarações para memória futura é coincidente com o relato aquando da revelação dos factos à professora (como decorre do depoimento desta e da informação pela mesma efectuada para sinalização na CPCJ e cuja cópia consta de fls. 4 e ss.), com o teor das mensagens trocadas por WhatsApp com a directora de turma e juntas a fls. 10 a 14, com o relato feito à mãe (inicialmente apenas do primeiro episódio, como descrito por esta) e com a descrição feita ao perito de pedopsiquiatria que elaborou o relatório pericial junto a fls. 351 e ss. Importante foi também o contexto em que ocorreram as sucessivas revelações. A primeira que teria sido feita à mãe, numa ocasião em que teria havido uma discussão com o pai e que tanto a menor como a mãe descrevem de forma idêntica. E a segunda, à directora de turma, já depois do 3.º episódio, sendo certo que tanto a mãe como a professora afirmam que no período que antecedeu a revelação a menor se vinha mostrando cada vez mais ansiosa, apresentando comportamentos auto-lesivos (cortava-se nas pernas, braços e ombros) e que foi na sequência de uma sucessão de 3 crises de ansiedade que a menor acabou por desabafar. Crises que a menor esclarece terem ocorrido numa altura em que nas aulas se abordavam temáticas de bullying e relacionamentos abusivos, e de cortes na pele e que a directora de turma complementou terem coincidido com uma altura em que o pai da menor estaria para regressar de uma viagem. Quer a mãe, quer a directora de turma descreveram estes momentos de revelação como emotivos, apresentando a menor uma expressão física (nervosa e a chorar) inteiramente compatível com a gravidade do relato e sem que, a qualquer das duas, tivesse deixado dúvidas quanto à sua veracidade. Aliás, também o relatório pericial de fls. 351 e ss. aponta para um humor congruente ao conteúdo do discurso, revelando-se a menor segura e congruente ao longo da narrativa, não existindo sinais de coacção ou instrumentalização por terceiros. Será de referir, por último, que o próprio arguido não nega os factos, afirmando que se a filha os relata, o declarante não a desmente, refugiando-se na afirmação de que não se recorda deles, porque estaria alcoolizado. E na verdade, só a consciência de que os factos correspondem à verdade justifica as conversas que depois teve com a filha e que constam transcritas a fls. 319 e ss., onde é de salientar que o arguido não lhe pede para dizer que os actos não ocorreram, mas apenas para omitir que foi o próprio o autor dos mesmos, para não mencionar o seu nome (veja-se, a este propósito, a parte final de fls. 327 v.º, fls. 328, a parte final de fls. 329 v.º, fls. 330, 331 e 333). Todos estes elementos, conjugados entre si, não podem senão reforçar a veracidade do depoimento da menor, sustentando a convicção segura do Tribunal, no sentido de que os mesmos ocorreram nos exactos termos por ela descritos. O teor do ponto 11. dos factos provados é quanto decorre dos depoimentos de HH e II, respectivamente mãe e directora de turma da menor, que conjugados com o depoimento por esta prestado para memória futura, sustentam que a menor BB vinha assumindo comportamentos auto-lesivos e sofrendo crises de ansiedade, bem como do teor da documentação clínica de fls. 231, designadamente o teor da nota de alta onde consta o motivo do internamento. No tocante aos pontos 12. a 18. da factualidade provada, atendeu-se, desde logo, aos factos que objectivamente se provou ter o arguido praticado sobre a sua filha e cuja natureza ilícita é evidente e inequívoca, sendo não apenas altamente reprovável em termos éticos e sociais, como penalmente censurável e sancionável. É certo que o arguido se refugiou, ao longo das suas declarações, no facto de alegadamente não se lembrar dos factos por estar alcoolizado. E a circunstância de o arguido estar embriagado aquando dos factos, foi mencionada pela menor, que, contudo, também referiu que no segundo episódio o arguido não estava tão alcoolizado como no primeiro, estando apenas algo “acelerado”. Todavia, nada nos autos sustenta que o arguido não tivesse consciência dos actos que praticava e da sua reprovabilidade. Antes pelo contrário, o que se constata, é que apesar de estar alcoolizado, o arguido continuava em condições de conduzir (o que terá feito antes e depois dos factos respeitantes ao primeiro episódio). Mais se constata que em todas as ocasiões, o arguido, após os factos, pedia desculpa à filha e pedia-lhe para não contar à mãe ou a ninguém, o que demonstra que o arguido tinha plena consciência da natureza dos factos em apreço e da respectiva censurabilidade social e penal, apenas procurando, dessa forma, eximir-se a sua responsabilização pelos mesmos. Dir-se-á, ainda que, a ser verdade que o arguido não tinha consciência dos factos que estava a praticar, e que – como o próprio afirma – só por estar alcoolizado admitiria poder ter feito à filha, algo que ao próprio tanto repugnava, não se compreende que, após ter sido confrontado pela mulher, o arguido voltasse a colocar-se em situação que potenciaria a prática de tais actos. E o que se verifica é que já após essa confrontação, em 25/03/2021, o arguido voltou a abordar a filha, beijando-a na boca (quando, de acordo com o depoimento da mãe, esse não era um cumprimento normal no seio familiar), o que fez, de acordo com o depoimento da menor, depois de ter dito à mulher e à filha mais nova para descerem, de forma a permanecer a sós com a ofendida no 1.º andar da habitação. Mais uma vez, denotando estar ainda capaz de compreender a natureza proibida do acto que iria praticar, dispondo de recursos psicológicos para o fazer às ocultas e mediante pressão emocional sobre a menor, argumentando que iria partir para aquela que pressentia ser a sua última viagem. Razão pela qual todo o contexto em que os factos ocorreram e o comportamento posterior do arguido, não deixaram dúvidas quanto à inteireza das capacidades cognitivas e volitivas do arguido no momento da prática dos factos e à consciência da sua ilicitude e sancionamento penal. O facto descrito em 19. decorre do teor das declarações para memória futura da menor, sendo corroborado pelos depoimentos da mãe, HH e da Directora de JJ, que referiu que, sendo professora da menor há 3 anos, desde há algum tempo que vinha notando alterações na sua maneira de ser, concretizando-as em conformidade com humor depressivo de que a menor sofreria. Relativamente ao facto descrito em 20., atendeu-se aos depoimentos unânimes das testemunhas inquiridas (incluindo a menor), às declarações do arguido e ao teor da informação de fls. 269 (por confronto com a nota de alta de fls. 231) e do relatório social junto aos autos. Quanto ao facto dado como provado em 21., o Tribunal louvou-se no certificado de registo criminal junto aos autos. E relativamente aos pontos 22. a 33., atendeu-se ao teor do relatório social junto aos autos». 3. APRECIAÇÃO DO RECURSO 3.1. SOBRE A PENA PRINCIPAL Assente os factos, no plano do DIREITO, insurge-se o recorrente contra o facto de não ter sido suspensa a execução dos 4 anos de prisão aplicados pela prática destes 3 crimes em causa. A qualificação jurídica dos 3 crimes foi a correcta. O tribunal fez as seguintes condenações: · um crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos art.os 171.º, n.º 1 e 177..º, n.º 1 al. a) do Código Penal [praticado em 31/12/2019], na pena de 3 (três) anos de prisão; · um crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos art.os 171.º, n.º 1 e 177..º, n.º 1 al. a) do Código Penal [praticado em 25/01/2020], na pena de 3 (três) anos de prisão; · um crime de abuso sexual de menores dependentes agravado, p. e p. pelos art.os 172.º, n.º 2 (por referência ao n.º 1 do mesmo preceito e ao art. 171.º, n.º 3 al. a)) e 177..º, n.º 1 al. a) do Código Penal (crime para o qual se convola o crime de abuso sexual de criança agravado que lhe vinha imputado na acusação) [praticado em 25/03/2021], na pena de 4 (quatro) meses de prisão; · Em cúmulo jurídico das penas parcelares indicadas em a) a c), condenou o arguido na pena única de 4 (quatro) anos de prisão (que decidiu não suspender na sua execução). 3.2. Defendeu-se assim, quanto a essa não suspensão: «O art. 50.º do Código Penal prevê a suspensão da execução da pena de prisão quando, consideradas a personalidade e condições de vida do agente, se concluir que a censura do facto e a ameaça da prisão, realizam de forma adequada as finalidades da punição. Como se lê no Acórdão da Relação de Coimbra de 11/03/2015 (proc 81/13.7GHCTB.C1; Rel. Luís Ramos) acessível em www.dgsi.pt: “o que a lei visa com o instituto em termos de finalidade político-criminal “é o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correcção», «melhora» ou – ainda menos — «metanóia» das concepções da vida e o mundo (…) ou como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência” (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, § 519), sendo certo que, como se escreve no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Novembro de 1999, processo n.º 823/99 “não são considerações de culpa que interferem na decisão sobre a execução da pena, mas apenas razões ligadas às finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização, estas acentuadamente tidas em conta no instituto da suspensão, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral, ligadas à necessidade de correspondência às expectativas da comunidade na manutenção da validade das normas violadas”. Podemos dizer que a suspensão da pena assenta na formulação de um juízo de prognose favorável quanto ao futuro comportamento do arguido, ou seja, na formulação de um juízo de que ele não praticará novos crimes. Temos assim que na ponderação da personalidade do agente, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e circunstâncias do mesmo, o tribunal terá que ter em mente que a suspensão da execução da pena de prisão apenas poderá ser aplicada se sustentar e viabilizar os desígnios de prevenção especial — apoiando e promovendo a reinserção social do condenado — e geral — na perspectiva em que a comunidade não encare a suspensão, como um sinal de impunidade.” No caso dos autos, afigura-se-nos que nem os fins de prevenção geral, nem os fins de prevenção especial sairiam adequadamente acautelados com a aplicação ao arguido de uma pena de prisão suspensa na sua execução. No tocante aos primeiros, é de referir que nas circunstâncias do caso, com a violação intensa do bem jurídico tutelado por crimes desta natureza – mais ainda quando praticados no seio familiar e por um progenitor da vítima; e em particular porque praticados em meio social de pequenas dimensões tendo os factos chegado ao conhecimento do universo de pessoas já significativo, a opção por uma pena de substituição traduziria um claro sinal de impunidade. A repugnância que envolve factos desta natureza, associada aos contornos concretos do caso – estando os crimes na base da decisão retirada das menores para acolhimento institucional – demandam uma intervenção judicial eficaz e visível, sob pena de se deixar na comunidade uma imagem de desprotecção do bem jurídico violado e das vítimas (muitas vezes silenciosas) deste tipo de crimes, perpetuando comportamentos de igual natureza. Por seu turno, e como acima se deixou expresso, a favor do arguido concorre apenas a ausência de antecedentes criminais (que, neste tipo de crimes, nem sequer assume particular significância) e a integração profissional. De resto, toda a personalidade revelada pelo arguido nos factos e na atitude que relativamente a eles assumiu posteriormente, afastam a possibilidade de formular um juízo de prognose favorável relativamente à possibilidade de a mera ameaça de prisão o afastar de futuros crimes. Efectivamente, o facto de ter sido confrontado pela mulher com os abusos denunciados pela menor, não impediram o arguido de repetir o ilícito. O arguido revelou total falta de empatia para com a vítima, não só à data dos factos, como actualmente, pois que, mesmo em audiência, em momento algum demonstrou estar consciente do impacto que os seus comportamentos têm e ainda virão a ter na menor. Numa postura consistentemente auto-centrada, o arguido apenas cuidou de satisfazer os seus desejos e interesses, quer aquando da prática dos crimes, quer na atitude que tomou na sequência da denúncia, já que, em lugar de proteger o ambiente de crescimento salutar das filhas, optou por se manter confortavelmente no agregado que compunha com a mãe das menores, aceitando a retirada destas para uma instituição, onde ainda hoje permanecem. E refugiando-se na problemática da dependência do álcool, não estruturou – ao longo dos 3 anos já decorridos – um projecto sério e consistente para se afastar dos consumos, que aponta como a única razão para ter praticado os factos, assim sobrepondo, mais uma vez, os seus interesses, aos direitos das menores suas filhas a crescerem num ambiente familiar saudável. Neste quadro, não há, pois, quaisquer razões para crer que a mera ameaça de prisão pudesse consciencializar o arguido para o desvalor das suas condutas e afastá-lo do cometimento de novos ilícitos, antes tudo levando a crer que apenas contribuiria para o reforço do sentimento de impunidade e da atitude desculpabilizante que continua a assumir. Razão pela qual se determinará o cumprimento efectivo da pena de prisão aplicada». 3.3. Abordemos, então, a questão da suspensão da execução de uma pena de prisão. Não tendo sido contestada a medida desses 4 anos de prisão, impõe-se verificar se ESSA PENA pode ser objecto de substituição, em sentido próprio ou impróprio, e determinar a sua medida. Tais penas de substituição “podendo substituir qualquer uma das penas principais concretamente determinadas (…) se não são, em sentido estrito, penas principais (porque o legislador não as previu expressamente nos tipos de crime) …[são] penas que são aplicadas e executadas em vez de uma pena principal (penas de substituição)” - Jorge Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral II, As consequências jurídicas do crime, p. 91. Questão: será mesmo de SUSPENDER a execução desta pena, como pretende a defesa? O regime jurídico de tal pena está previsto nos artigos 50º a 57º do CP, e nos artigos 492º a 495º do CPP. O artigo 50º, nº 1, do CP – revisto em 2007 - dispõe: «O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição». As finalidades da punição são, nos termos do disposto no artigo 40º, do C.P., a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Traduzindo-se na não execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos (outrora era de 3 anos), entendemos, com o apoio da melhor doutrina e jurisprudência, que a suspensão constitui uma verdadeira pena autónoma (cfr. Acórdão da Relação de Évora, de 10.07.2007, Proc. nº 912/07-1, www.dgsi.pt). Já assim se devia entender face à versão originária do Código Penal de 1982, como se infere das discussões no seio da Comissão Revisora do Código Penal, em que a suspensão da execução da pena, sob a designação de sentença condicional ou condenação condicional (que no projecto podia assumir a modalidade de suspensão da determinação concreta da duração da prisão ou de suspensão da execução total da pena concretamente fixada) figurava como uma verdadeira pena, ao lado da prisão, da multa e do regime de prova, no art. 47º do projecto de 1963, que continha o elenco das penas principais. No seio da Comissão, Eduardo Correia, autor do projecto do Código Penal, teve a oportunidade de sustentar o carácter autónomo, de verdadeiras penas, da sentença condicional e do regime de prova, contrariando o entendimento de que seriam institutos especiais de execução da pena de prisão (Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Geral, Separata do B.M.J.) Figueiredo Dias, a propósito do projecto de 1963 e do Código Penal de 1982, recorrendo a algumas expressões que haviam sido utilizadas na discussão travada na Comissão Revisora, assinalou: «(…) as “novas” penas, diferentes da de prisão e da de multa, são “verdadeiras penas” – dotadas, como tal, de um conteúdo autónomo de censura, medido à luz dos critérios gerais de determinação da pena (artº 72º) -, que não meros “institutos especiais de execução da pena de prisão” ou, ainda menos, “medidas de pura terapêutica social”. E, deste ponto de vista, não pode deixar de dar-se razão à concepção vazada no CP, aliás continuadora da tradição doutrinal portuguesa segundo a qual substituir a execução de uma pena de prisão traduz-se sempre em aplicar, na vez desta, uma outra pena» (Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Aequitas-Editorial Notícias, 1993, p. 90). O mesmo autor, definindo a suspensão da execução da pena de prisão como “a mais importante das penas de substituição” (e estas são, genericamente, as que podem substituir qualquer das penas principais concretamente determinadas), chama a atenção para o facto de, segundo o entendimento dominante na doutrina portuguesa, as penas de substituição constituírem verdadeiras penas autónomas (cfr. ob. cit., p. 91 e p. 329). Nas suas palavras, «a suspensão da execução da prisão não representa um simples incidente, ou mesmo só uma modificação da execução da pena, mas uma pena autónoma e, portanto, na sua acepção mais estrita e exigente, uma pena de substituição» (cfr. ob. cit., p. 339). A revisão do Código Penal, introduzida pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, reforçou o princípio da ultima ratio da pena de prisão, valorizou o papel da multa como pena principal e alargou o âmbito de aplicação das penas de substituição, muito embora não contemple, como classificações legais, as designações de «pena principal» e de «pena de substituição». A classificação das penas como principais, acessórias e de substituição continua a ser válida e operativa, ainda que a lei não utilize expressamente estas designações, a não ser no tocante às penas acessórias. Deste modo, sob o prisma dogmático, penas principais são as que constam das normas incriminadoras e podem ser aplicadas independentemente de quaisquer outras; penas acessórias são as que só podem ser aplicadas conjuntamente com uma pena principal; penas de substituição são as penas aplicadas na sentença condenatória em substituição da execução de penas principais concretamente determinadas. Se assim é, ou seja, se a pena de suspensão de execução da prisão é uma pena de substituição em sentido próprio (em contraste com as penas de substituição detentivas ou em sentido impróprio), temos como pressuposto material da sua aplicação que o tribunal, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, conclua pela formulação de um juízo de prognose favorável ao agente que se traduza na seguinte proposição: a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. 3.4. No caso vertente, entendeu-se que a aplicação de uma suspensão da execução da pena era um poder-dever que vincula o julgador, que a terá de decretar, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os citados pressupostos. O pressuposto formal está verificado – a pena de prisão aplicada é inferior a 5 anos. E o pressuposto material? Para nós, indiscutivelmente não está perfectibilizado. É verdade que este homem não tem antecedentes criminais. Também nós não estamos convencidos que uma pena suspensa na sua execução realize, in casu, de forma adequada, as finalidades da punição. Estamos em crer que este homem não compreendeu ainda o desvalor da sua reiterada conduta ilícita a todo o nível. A inteira desresponsabilização pelo álcool já não nos convence – note-se que o arguido, já depois deter praticado dois crimes de abuso sexual sobre a sua filha BB, volta a praticar novo crime do mesmo género sobre aquela sua filha sem que tivesse antes ingerido bebidas alcoólicas em demasia (3º crime). O álcool é sempre uma «faca de dois gumes». Pune-se quem conduz etilizado, mas muitas vezes atenua-se a responsabilidade do agente de crimes graves e violentos quando se comprova que é o álcool que os move. Quantas vezes na violência doméstica ou nos maus tratos a crianças. Insurgimo-nos contra esse estado da arte. O alcoolismo habitual de alguém, que não procura ajuda para essa doença, por si provocada, tem de deixar de ser considerada uma gratuita justificação para a violação do dever-ser social e da lei. «Não é ele que assim agiu mas o álcool a agir por ele», ouve-se tanto por aí. Não! No nosso caso, essa perturbação etílica não justificou qualquer juízo pericial médico de imputabilidade diminuída (nem sequer, como é óbvio, de inimputabilidade penal) Este homem, bem sabendo que ter estes avanços sexuais sobre a filha o faria autor de crimes, embora algo etilizado, pelo menos por duas vezes, não perdeu a percepção da anti-juridicidade da sua atitude. Estamos a falar de uma filha sua. Foi abordado pela mulher após os dois primeiros «incidentes» e mesmo assim voltou a repetir as façanhas sexuais junto da BB (factos nºs 8 e 9). O tribunal – pelo menos, dois dos juízes que assinaram o aresto – entendeu que «em audiência em momento algum demonstrou estar consciente do impacto que os seus comportamentos têm e ainda virão a ter na menor». Viu as suas filhas sair para uma casa de acolhimento e decidiu antes permanecer no seu agregado familiar, junto a uma mãe ambivalente e que apenas terá mostrado revolta aquando da denúncia dos factos (cfr. facto nº 30). Aí continua a residir quando as crianças estão na instituição – e nunca perceberia esta jovem, hoje já maior de idade, que tais aviltantes comportamentos de seu pai para consigo sejam apenas punidos com uma condenação a estar em casa com a mãe e eventualmente com ela e sua irmã. Estamos a falar de um Pai que (facto 33) «alega não se lembrar da ocorrência dos alegados factos» (no que não acreditamos, nem de longe, nem de perto, face até ao que ficou provado nos factos nºs 6 e 7, ambos na parte final), «mencionando em contrapartida que a filha teria sido alvo de comportamentos abusivos por parte de outros indivíduos», revelador de uma baixeza de carácter digna de nota. Estamos a falar de Pai que se demora dez (!) minutos (não foi um toque, foi uma sucessão de toques) na vagina da filha, satisfazendo-se sexualmente com tais carícias (facto nº 5). Desta forma, entendemos que a suspensão é inteiramente de arredar porque a pedagogia correctiva de que o arguido se mostra carente passa, não por esta pena substitutiva, mas por uma efectiva privação de liberdade, só esta realizando os fins das penas, não oferecendo ele quaisquer garantias de que a simples ameaça de execução de uma pena é suficiente para o afastar do cometimento de novos crimes. Como bem defende o MP de 1ª instância: «Ora, aquilo que se constata é que o arguido continua a manter contactos com as suas filhas, pelo que podendo tais contactos ocorrer a sós e em locais reservados, nomeadamente no interior da casa de habitação onde o arguido e a mãe das menores residem e para onde as filhas do casal se deslocam aos fins-de-semana (sendo certo que inexiste qualquer controlo objectivo sobre se o arguido aos fins-de-semana permanece ou não naquela casa de habitação, ou se, ainda que ali não se encontre em permanência, se ocorrem visitas a tal casa de habitação pelo mesmo nesse período da semana) – cfr. relatório social -, continua a existir, tendo em conta o antedito quanto à personalidade, perfil, hábitos alcoólicos - que contribuem para a falta de controlo sobre os seus impulsos sexuais - falta de consciência crítica para os factos e arrependimento do arguido, o sério risco de cometimento por parte do mesmo de novos crimes de abuso sexual, mormente sobre a filha mais nova deste, que nesta altura conta com 13 anos de idade (factos nºs 2 e 27) – ou seja, a mesma idade que a sua irmã tinha quando começou a ser abusada sexualmente pelo arguido -, tanto mais que a mãe das menores, apesar de numa fase inicial se ter mostrado revoltada com os abusos sexuais cometidos pelo arguido, acabou por se mostrar complacente com este comportamento criminoso do seu marido, continuando a viver em comunhão de cama, mesa e habitação com o mesmo de segunda-feira a sexta-feira». Sabemos que um erro na vida não significa uma vida de erros. Mas parece-nos que este foi um erro gigante. Estamos a falar de alguém que não está inserido familiarmente, que destruiu uma família, denotando ainda pouca empatia pela BB de quem está afastado emocionalmente (facto nº 33). É verdade que a BB está a tentar, com a ajuda do sistema de promoção e protecção deste país, resgatar um passado que lhe dói[2]. E sabemos como tal passado a faz doer. E a vítima? Onde fica ela em tudo isto? Fazem-se ouvir os ecos da Convenção de Istambul. A criança é hoje vítima, contra ventos antigos, ao abrigo das novas luzes lançadas pela Lei n.º 57/2021, de 16 de Agosto de 2021 que veiculou, aos sete novos ventos, que «Vítima» é a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, diretamente causada por ação ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal, incluindo as crianças ou os jovens até aos 18 anos que sofreram maus tratos relacionados com exposição a contextos de violência doméstica». O STJ, em 2003, já dava o sinal de alarme (Recurso n.º 1090/03-5): «Hoje assiste-se com uma frequência preocupante ao autêntico escárnio dos mais sagrados sentimentos de crianças indefesas, tantas vezes transformadas sem escrúpulo em meros instrumentos de satisfação libidinosa, não raro por actuação perversa e cobarde, até, dos próprios progenitores, ou de quem, acobertado pelo recato do lar, e em regra, por isso, portador da sua inocente confiança total, não hesita em conspurcar esse sacrário de inocência no seu próprio chafurdo sexual, não pode o sistema jurídico-penal dar outra resposta que não seja um inequívoco sinal de segurança, enfim, proporcionando porto de abrigo a quem dele tão veementemente mostra necessitar: as crianças. Nos tempos actuais de fragmentação de valores e de referências, os crimes sexuais emergem como verdadeiro mal democrático numa sociedade onde a igualdade de condições conduz à redução da alteridade. A proximidade emocional própria do universo comunicacional das efervescentes democracias contemporâneas anula a distanciação, transportando fenómenos sociais de exigência intensa na resposta a crimes sexuais; o legislador, interpretando os sinais de sociedade, teve de sublimar e reordenar as imposições sociais na grelha de intervenção do direito e das reacções do sistema penal que tutela os valores mais essenciais da comunidade. Os crimes sexuais, sobretudo os abusos sexuais sobre crianças, contêm, na imagem das democracias de comunicação, uma dimensão de negação alucinatória da ordem natural as coisas, uma desordem da natureza, um desequilíbrio cósmico que a cidade quer eliminar sem o referir (cfr. DENIS SALAS, Le délinquant sexuel, in "La Justice et le mal", ed. Odile Jacob, 1997, p. 53 e segs). O abuso sexual sobre crianças significa, nas representações sociais, “o mal absoluto”, com o sentimento de presença do inhumano no humano pelo uso patológico da liberdade de acção». E é constante a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que, nos crimes de abuso sexual de crianças, as exigências de prevenção geral têm uma “finalidade primordial, e a medida de prevenção deve ser essencialmente determinada pela projecção da ilicitude dos factos” (vide os acórdãos do Supremo Tribunal, de 2003.05.08, processo n.º 1090/03, de 2003.06.05, processo n.º 1656/03, de 2003.11.29, processo n.º 2729/03 e de 2003.11.05, processo n.º 201/03). Este homem, POR 3 vezes, pelo menos, tão cobardemente, desprezou esta criança, com um desrespeito total pela sua pessoa. O Abuso Sexual Infantil é definido como a exposição de uma criança a estímulos sexuais impróprios para a sua idade, o seu nível de desenvolvimento psicossocial e o seu papel na família. As vítimas de abuso sexual também falam. E querem falar, tantas vezes através de hesitações, esgares, silêncios comprometidos e constrangedores, sinais… Nem sempre produzem palavras. Porque o acto de que foram vítima é, por demais, monstruoso para caber num catálogo de sílabas e ditongos, substantivos e adjectivos. E, quando se fala em crianças, tal ainda é mais verdadeiro. Todos sabemos que é muito complicado lidar com crianças violentadas na sua própria inocência. «Nessas situações, quão difícil também se torna perceber o que realmente se passou no silêncio dos quartos. Quão delicado é falar com estes menores que nos aparecem assustados e titubeantes e a quem é penoso pedir explicações sobre actos tão vilipendiantes. O interrogatório de um menor deve, assim, revestir, uma extrema delicadeza, havendo que tentar perceber os silêncios, os esgares, os sorrisos nervosos, as hesitações, os olhares, as entrelinhas no discurso de um menor nesta situação. O menor violentado na sua sexualidade deixa de poder ser sujeito do seu próprio destino, da sua própria história sonhada, projectada ou construída. A história que lhe vão impor ultrapassa-o em velocidade e substância, deixa de ser "sua" para passar a ser aquela que não lhe ensinaram, para a qual não pediram sequer um assentimento seu que fosse. De si, apenas um murmúrio surdo, um grito abafado na calada do quarto dos fundos, no canto recôndito da garagem mal iluminada, um "não" ouvido nas paredes da sua alma que não tinha voz suficiente para soar. De si, apenas urna imagem de um corpo usado como vazadouro de néctares infelizes, numa toada de lamento e dor, tantas vezes silenciada em nome de um amor maior...» (Paulo Guerra, in «O Abuso Sexual de Menores – Uma Conversa sobre Justiça entre o Direito e a Psicologia», Almedina, 2ª Ed., 2006, Rui do Carmo/Isabel Alberto/Paulo Guerra, respectivamente, pp. 61 e 62 e 43). Restam apenas, em muitas situações, os depoimentos das vítimas, face à inconcludência dos exames científicos feitos. «E aí restam os depoimentos sofridos, contidos, às vezes infantil e naturalmente contraditórios e incoerentes, das vítimas dos abusos e as demais provas testemunhais circunstanciais – há que dizer, neste jaez, que à Justiça de Menores basta a denúncia séria e minimamente fundamentada para que se despoletem os mecanismos necessários à imediata protecção da vítima, ficando para a Justiça Penal o apuramento de todo um conjunto de pormenores relevantes à descoberta da verdade material. É por demais evidente a prudência que se deve ter na condução do interrogatório de uma vítima de abuso sexual, assente que para ela é doloroso denunciar quem lhe é querido ou uma situação que ainda não compreendeu muito bem, imbuída por sentimentos de preconceituosas moralidades, herdadas de uma sociedade que ainda não aprendeu a lidar de forma saudável como corpo e com o sexo. Para essa vítima, é sempre um segredo que tem de ser revelado” (Paulo Guerra, in «O Abuso Sexual de Menores – Uma Conversa sobre Justiça entre o Direito e a Psicologia», Almedina, 2ª Ed., 2006, Rui do Carmo/Isabel Alberto/Paulo Guerra, pp. 79 e 80). Por isso, haverá que ter muito cuidado na inquirição feita a uma criança nesta sede. «Importa equacionar a necessidade de existirem regras específicas para a inquirição dos menores vítimas, para o registo e validade dos seus depoimentos, bem como para o modo de os poder contraditar, num adequado balanceamento entre a exigência do apuramento da verdade, os direitos da criança e os direitos do arguido; investir na formação dirigida a magistrados e membros dos órgãos de polícia criminal; assegurar uma adequada assessoria técnica. … Tenho para mim que esta (a valoração da prova) tem de ser encarada como uma questão maior da nossa prática judiciária, importando que seja promovido o conhecimento actualizado sobre as técnicas de entrevista e inquirição das crianças sobre o estado das investigações quanto a alguns frequentes pré juízos, como sejam: que as crianças não são tão boas como os adultos na observação e relato dos acontecimentos que lhes respeitam; que têm propensão para fantasiar acerca das questões sexuais; que são altamente sugestionáveis; que têm dificuldade em distinguir a realidade da fantasia; que têm propensão para confabular» (Rui do Carmo, in «O Abuso Sexual de Menores – Uma Conversa sobre Justiça entre o Direito e a Psicologia», Almedina, 2ª Ed., 2006, Rui do Carmo/Isabel Alberto/Paulo Guerra, pp. 74 e 96, nota 39). E continua Isabel Alberto: «Perante estas considerações, o contexto físico e pessoal da inquirição deve ser cuidadosamente trabalhado. Deve ser um espaço aconchegante e confortável, longe da agitação e da conotação policial, que não favoreça o encontro e o cruzamento com o agressor, podendo o menor estar acompanhado de um adulto da sua confiança, por ele escolhida para a audição, embora esta pessoa tenha de ser neutra (Carmo, 2000; Hamom,1988; Somers & Vandermeersch,1998). A entrevista não pode assumir um aspecto inquisitório, que retrai a vítima, e deve conter desde logo a referência a todos os elementos informativos essenciais: "o primeiro exame convém que seja minucioso, o que igualmente permitirá a recolha de vestígios susceptíveis de desaparecerem ou se atenuarem com o decurso do tempo" (CEJ, 1991, p.12). O recurso ao registo em vídeo das inquirições (Carmo, 2000), com aviso do registo e aceitação da vítima, e uma entrevista bem conduzida evitam a sucessão e a repetição de inquirições, servindo um único registo para todas as fases do processo.”. (Isabel Alberto, na mesma obra a pp. 81 e 82). E voltamos ao relator deste acórdão: «Daí que haja a necessidade das entidades que procedem aos interrogatórios destas vítimas estarem munidas de cautelas e de conhecimentos bastantes sobre a arte de interrogar uma criança, de forma a que consigam interpretar esgares, silêncios, hesitações, monossílabos, um simples "sim" ou um simples "não", a construção frásica, a clareza do discurso, as pausas, as interrupções, as emoções e sentimentos que a criança evidencia (vergonha, culpa, tristeza, alegria, alívio, ansiedade), a labilidade e o distanciamento emocionais, o olhar, a postura, o sorriso, a colocação das mãos, o grau de sugestionabilidade, os seus desenhos, o seu comportamento com os brinquedos, o seu comportamento sexualizado, o tipo de pressão ou coerção a que pode estar sujeito, o contexto da sua revelação inicial... Tais interrogatórios não se devem repetir para que a criança não tenha de injustificadamente reviver as cenas de um passado que quer definitivamente esquecer, sem prejuízo da tomada complementar de declarações sempre que o seu interesse superior o demandar, embora se considere, tal como o faz Razon (Laure Razon, in “Famille incestueuse et confrontation à la justice; de l’acte à la parole. Dialogue – Recherches cliniques et sociologiques sur le couple et la famille”, 1999, p.10) que "o primeiro depoimento é a maior parte das vezes o mais desenvolvido, argumentado, logo credível» (Paulo Guerra, na mesma obra a p. 83 e 84). Concluímos, assim, que a prova da verificação nos crimes de natureza sexual, por força das circunstâncias, é particularmente difícil, na medida em que escasseia a prova directa, sendo notório que, regra geral, só o arguido e sua vítima têm conhecimento da maioria dos factos. Daí que assuma especial relevância o depoimento da vítima, desde que, como é evidente, o mesmo seja credível e esteja em sintonia com as regras da experiência comum, pois só nesse caso é susceptível de formar, de forma válida, a convicção do julgador. E o depoimento desta jovem menina foi suficientemente esclarecedor relativamente à morte que lhe ofereceram em vida, por muito forte que se tenha mostrado. Porque o abuso sexual MATA. Do site da APAV, retira-se que: «A violência sexual também traz consequências negativas para a saúde emocional e psicológica, tais como: · Choque, especialmente quando a violência sexual é cometida por alguém que se conhece ou em quem se confiava; · Raiva da vítima para quem praticou o ato e da vítima (erradamente) em relação a si própria, por não a ter conseguido evitar; · Culpa, apesar de a vítima não ter qualquer responsabilidade no que aconteceu; · Ansiedade ou medo constante, ligados a pensamentos e recordações frequentes em relação ao que aconteceu; · A vítima sentir-se sem valor (deixar de gostar de si própria); · Tristeza profunda, fazendo com que a vítima sinta que a vida não tem significado ou propósito; · Medo de que a situação de violência se repita; · Medo de estar sozinho/a; · Medo de quem praticou o crime ou de que algo de mau lhe aconteça (especialmente se a vítima conhecer o/a autor/a); · Vergonha de contar o que se passou; · Medo da vítima de que ninguém acredite em si caso conte a alguém o que se passou; · Medo de nunca conseguir recuperar do ato violento (ficar “marcado/a” para sempre)». A violência sexual também pode provocar mudanças no comportamento da vítima, tais como: · «Ficar mais agressiva com as pessoas em seu redor, mesmo com as pessoas de quem gosta muito; · Magoar-se de forma propositada; · Começar a ter comportamentos de crianças mais pequenas (ex.º dormir de luz acesa, voltar a fazer xixi na cama); · Afastar-se de pessoas de quem gosta ou de locais (porque podem fazer lembrar o que aconteceu); · Desinteressar-se pela escola e descer as notas; · Desinteressar-se por outras actividades que antes gostava (ex.º fazer desporto, tocar instrumentos musicais)». Finalmente, tendo em conta o tipo de actos praticados, é de esperar que apareçam outras mudanças, nomeadamente no comportamento sexual, como por exemplo: · «Dificuldade da vítima em estabelecer relações íntimas e saudáveis com os outros; · Dificuldade em respeitar o “não” de outra pessoa e os limites que ela lhe impõe (ex.º: não compreender que a outra pessoa não queira ter contactos sexuais); · Ter comportamentos sexuais de risco (ex.º ter diferentes parceiros/as sexuais, não utilizarem métodos contracetivos)». Ou seja: Muitas vítimas de abuso sexual, incluindo crianças, sofrem traumas profundos. A sua vida, se o(s) evento(s) traumático(s) não forem tratado(s), passa a ser organizada de forma condicionada, como se o que causou o trauma ainda estivesse a acontecer, sem alteração e com a mesma intensidade. É isso que define, de forma simples, um evento traumático. Cada nova experiência é contaminada pelo evento passado, como se uma gota de petróleo tivesse caído numa bacia de água límpida. Ao contrário de experiências traumáticas de episódio único, como acidentes, catástrofes naturais e outras em que o estímulo ocorre e a vítima pode ter uma resposta adaptativa adequada (fugir/enfrentar/congelar) que pode ser desativada, após o perigo passar, no abuso sexual ou na violência doméstica isso não acontece. No caso do abuso sexual ou da violência doméstica, a vítima é constantemente "bombardeada" com estímulos que activam os mecanismos associados ao stress e não pode acionar os mecanismos de fuga/enfrentamento ou congelamento, pois está aprisionada, sem possibilidade de procurar solução imediata (criando o chamado stress crónico, na feliz acepção de António Castanho). Isto é particularmente grave nas crianças, pois a constante activação dos mecanismos de resposta ao stress pode causar danos na estrutura cerebral, em desenvolvimento, com todas as consequências associadas. Os estudos mundiais também nos fazem concluir que crianças que crescem em famílias afectadas por violência e abuso sexual ou doméstico têm: Ø Um risco maior de problemas de saúde mental ao longo da vida (Bogat, DeJonghe, Levendosky, Davidson e von Eye, 2006; Meltzer, Doos, Vostanis, Ford e Goodman, 2009 Mezey, Bacchus, Bewley e White, 2005; Peltonen, Ellonen, Larsen e Helweg-Larsen, 2010). Ø Risco aumentado na saúde física (Bair-Merritt, Blackstone e Feudtner, 2006); Ø Risco de abandono escolar e outros desafios educacionais (Byrne e Taylor, 2007; Koenen, Moffitt, Caspi, Taylor e Purcell, 2003; Willis et al., 2010); Ø Risco de envolvimento em comportamentos criminais (R. Gilbert et al., 2009; T. Gilbert, Farrand, & Lankshear, 2012) e dificuldades interpessoais em relacionamentos e amizades futuras (Black, Sussman & Unger, 2010; Ehrensaft et al., 2003; Siegel, 2013); Ø São também mais propensos a sofrer e a praticar bullying (Baldry, 2003; Lepistö, Luukkaala e Paavilainen, 2011) e são mais vulneráveis ao abuso e exploração sexual, além de maior probabilidade de se envolverem em relacionamentos violentos (Finkelhor, Ormrod, & Turner, 2007; Turner, Finkelhor & Ormrod, 2010). Basta isto para que se perceba o quão mal este homem fez à BB, sua filha. 3.5. Em conclusão, não é hoje possível formular qualquer juízo favorável da sua adequação futura às regras de convivência social, o que se regista com pesar. Por todos estes motivos, só há que concluir que não estão criadas as condições objectivas e subjectivas para que o tribunal possa suspender a execução desta pena de prisão, mesmo que com regime de prova. Sabemos que o que está aqui em causa não é qualquer certeza, mas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda. Ora, neste caso concreto, entende-se que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão não realizam, de forma adequada, as exigências e finalidades da punição. E não se venha defender que o arguido, para conseguir pagar uma indeminização à filha, terá de trabalhar e de estar em liberdade. Tal é inverter tudo. A punição penal é o principal móbil que nos move – a indemnização civil é apenas uma sua decorrência. Também nós acreditamos que o cumprimento efectivo da pena de prisão aplicada ao arguido permitirá a este interiorizar o desvalor da sua conduta e interromper o ciclo de consumo de bebidas alcoólicas, podendo sujeitar-se, se assim o entender e se tal se revelar necessário, a tratamento ao alcoolismo de que padece, com efectivo controlo da abstinência do mesmo, acrescendo ainda que esta reclusão permitirá às suas filhas beneficiar da alteração da medida de promoção e protecção para apoio junto da sua mãe (no caso da mais nova), o que se mostra desejável para o seu salutar desenvolvimento psico-somático, «assim deixando de se perpetuar uma situação de facto profundamente injusta e de vitimização secundária para estas, consistente no afastamento da vítima e da sua irmã mais nova do seu lar natural e do convívio diário com a sua mãe, demais elementos da família alargada e círculo de amigos no meio social de origem». Pelo exposto, e não vislumbrando no voto de vencido do 3º Juiz do processo qualquer argumento que nos convença a dar uma hipótese a este Pai, concluímos que só a condenação do arguido numa pena efectiva de prisão satisfaz as finalidades das penas (artigo 40°, n°s 1 e 2 do CP). 3.6. Finalmente, uma palavra sobre a indemnização civil arbitrada a favor da jovem BB. O tribunal condenou o demandado/arguido ao pagamento da quantia de € 15.000, a título de danos não patrimoniais e por força da responsabilidade civil extracontratual. Entende a defesa que a quantia foi exagerada, peticionando uma condenação nunca superior a € 8.000. O tribunal justificou-se assim: «Do arbitramento oficioso de indemnização civil a favor da vítima BB Nos termos dos art.os 16.º n.º 2 do Estatuto da Vítima e art. 82.º-A n.º 1 do Código de Processo Penal impõe-se ainda aferir oficiosamente da verificação ou não ou dos pressupostos da responsabilidade civil para eventual condenação do arguido no ressarcimento dos danos que hajam sido provocados à ofendida nestes autos. Nesta matéria, dispõe o art. 129.º do Código Penal que a indemnização por perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil. O art. 483.º do Código Civil contém o princípio geral da responsabilidade, ao estatuir que aquele que, “com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. Assim, para que alguém incorra em responsabilidade civil extra-contratual, suportando a respectiva obrigação de indemnizar, é necessário que se verifiquem os seguintes pressupostos: · facto voluntário do agente, conduta humana (traduzida numa acção ou numa omissão) dominada ou dominável pela vontade; · a ilicitude desse facto, que pode revestir a modalidade de violação de direito alheio (direito subjectivo) ou de violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios; · nexo de imputação do facto ao lesante, ou culpa do agente em sentido amplo, que se traduz num juízo de censura ou reprovação da sua conduta, e que pode revestir a forma de dolo ou negligência; · dano ou prejuízo; · nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima. No caso dos autos resultou provado que o arguido actuou sobre BB, sua filha e menor de 13 anos de idade, praticando sobre a mesma, em duas ocasiões distintas, actos sexuais de relevo (manipulou a zona genital da menor por fora da roupa e por dentro, depois de a despir da cintura para baixo). Mais resultou provado que, quando a menor tinha já 14 anos de idade, o arguido beijou a menor na boca. Mais resulta que tais factos foram praticados de forma dolosa, e são subsumíveis aos crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1 al. a) do Código Penal e de abuso sexual de menores dependentes agravado, p. e p. pelo art. 172.º, n.º 2, por referência aos art.os 172.º, n.º 1 al. a) e 171.º, n.º 3 al. a) e art. 177.º, n.º 1 al. a) do Código Penal, pelo que verificados estão os primeiros pressupostos da obrigação de indemnizar. Os danos indemnizáveis dividem-se em duas grandes categorias: - os patrimoniais, designadamente os danos emergentes, lucros cessantes e os danos futuros, os quais são susceptíveis de avaliação pecuniária porque incidem sobre interesses de natureza material ou económica e, por isso, podem ser reparados ou indemnizados, senão directamente (mediante reparação natural ou reconstituição específica da situação anterior) pelo menos indirectamente (por meio equivalente ou indemnização pecuniária) e - os não patrimoniais, os quais são insusceptíveis de tal avaliação, como a vida, a saúde a liberdade, entre outros, na medida em que atingem bens que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados pela obrigação pecuniária imposta ao agente. No tocante a estes últimos, dispõe o artigo 496.º do Código Civil que “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito” – n.º 1. Nos termos do n.º 3 do artigo 496.º do Código Civil o montante da indemnização será fixado pelo tribunal segundo juízos de equidade, a qual deverá obedecer a imperativos de justiça real, ajustada às circunstâncias, em oposição à justiça meramente formal, por forma a alcançar o que é mais justo. Ora, in casu, há a ponderar a título de danos não patrimoniais, o evidente condicionamento da liberdade de auto-determinação sexual da menor, na fase da adolescência, em pleno processo de desenvolvimento da sua personalidade e de estruturação de uma identidade própria, também na vertente sexual. A atender também o sofrimento e receio/temor sentido pela ofendida ao longo do período em que se desenrolaram os factos, na antecipação dos actos a que seria sujeita. Consideram-se ainda os sentimentos naturalmente perturbadores inerentes à circunstância de ser autor dos factos o seu pai, em a menor depositaria total confiança e de quem esperaria actos de protecção em lugar de agressões de natureza sexual. Consideram-se ainda as consequências ao nível da saúde mental da menor, pois que resultou provado que em resultado dos factos a menor viria a sofrer de perturbação depressiva, expressa, entre o mais, em crises de ansiedade e comportamentos auto-lesivos (cortes nas pernas, braços e ombros). E atende-se, por último, às consequências a nível familiar, pois que em resultado dos factos, viria a ser determinada a institucionalização não só da própria vítima, como da sua irmã menor, com os inerentes sentimentos de culpa que normalmente as vítimas associam à revelação dos factos. Não restam dúvidas de que tais efeitos traduzem danos não patrimoniais susceptíveis de tutela à luz do art. 496.º n.º 1 do Código Civil e que, em virtude de não poderem ser reconstituídos in natura apenas podem ser compensados através da fixação de um montante em dinheiro (artigo 566.º, n.º 1 do Código Civil). Relevam, por outro lado, as situações económicas de lesante e lesada, esta ainda a iniciar a sua autonomização, e aquele com ocupação laboral a que corresponde um rendimento líquido médio de € 1.800 mensais (não sendo de prever que o cumprimento da pena aplicada lhe afecte a capacidade futura de auferir rendimentos equiparáveis), e as circunstâncias concretas da prática dos factos. Assim, e ao abrigo do disposto nos artigos 494.º, 496.º e 566.º do Código Civil, entende-se como adequado e equitativo o arbitramento à ofendida de uma indemnização no montante de € 15.000,00, a título de danos não patrimoniais». * Vejamos.Dispõe o artigo 483º do Código Civil que «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação». Da leitura do disposto no art. 483º do Código Civil resulta que a obrigação de indemnizar imposta ao lesante assenta na verificação de vários pressupostos, a saber: a) o facto, b) a ilicitude; c) o vínculo de imputação do facto ao lesante; d) o dano; e) o nexo de causalidade entre o facto e o dano. No caso vertente, temos factos praticados pelo lesante, entendidos enquanto comportamento dominável pela vontade, ilícitos, na medida em que integram a prática de um crime, dos quais resultaram danos não patrimoniais (factos provados nºs 11, 19, 20 e 28). Abusar da autodeterminação sexual de uma menina de 13/14 anos, por 3 vezes, sendo ela sua filha, respondendo a instintos libidinosos altamente condenáveis, por parte de um indivíduo que é seu PAI é indescritivelmente censurável e pasto de suficiente trauma para a vida, no caso indemnizável. No que respeita aos danos não patrimoniais, determina o art. 496º, nº 1 do Código Civil que, “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito”. Este preceito tem carácter geral, sendo aplicável quer se trate de danos não patrimoniais resultantes da lesão corporal, quer de outros, desde que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do Direito (vide, sobre o tema, Vaz Serra, R.L.J., 113º, pág. 96). O nº 3 do mesmo preceito regula o modo de fixação do montante da indemnização devida, impondo o recurso à equidade, mediante a ponderação das circunstâncias referidas no art. 494º do mesmo diploma legal. Os danos não patrimoniais são comummente definidos como prejuízos insusceptíveis de avaliação pecuniária. Assim, a sua indemnização não visa reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o facto danoso, mas sim compensar de alguma forma o lesado pelas dores físicas ou morais sofridas e também sancionar a conduta do lesante. A gravidade do dano, para justificar a concessão de uma indemnização, é apreciada em função de um padrão tanto como possível objectivo, ainda que se deva sempre atender às circunstâncias concretas que envolvem o caso. Para determinar o montante da indemnização por danos não patrimoniais, há que atender, entre outros factores, à sensibilidade da indemnizanda, ao sofrimento por ela suportado e à situação sócio-económica da vítima e agressor. Importa, ademais, ponderar as decisões levadas (em casos tão próximos quanto possível do caso sub iudice) designadamente pelo Supremo Tribunal de Justiça – podendo ver-se, neste âmbito, por mais significativos, os acórdãos de 27 de Novembro de 2019 (processo 1257/18.6SFLSB.L1.S1), de 13 de Janeiro de 2010 (processo 213/14.6PCBRR.L1.S1), e os mais neles citados. Diga-se ainda que esta indemnização por danos não patrimoniais, para responder ao comando do artigo 496.º do CC e, porque visa oferecer ao lesado uma compensação que contrabalance o mal sofrido, deve ser significativa e não meramente simbólica, devendo o juiz, ao fixá-la segundo critérios de equidade, procurar um justo grau de compensação. Esta menina sofreu horrores por causa do pai. Viveu uma perturbação depressiva por causa destes abusos, tendo mais tarde, por causa deles, agravando as suas crises de ansiedade, passando a assumir comportamentos auto-lesivos, cortando-se nas pernas, braços e ombros, tendo sido residencializada, ao abrigo da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, doravante LPCJP (aprovada pela Lei nº 147/99, de 1.9), permanecendo, ao abrigo de uma medida de acolhimento residencial, ao abrigo do artigo 35º, nº 1, alínea f) da LPCJP, num Centro de Acolhimento da SCM de ..., aí permanecendo até aos seus 18 anos, data em que lhe foi aplicada a medida de apoio para a autonomia de vida [artigo 35º, nº 1, alínea d) da LPCJP]. Tudo isto merece ressarcimento de danos inegáveis e dolorosos. Um pai que obriga a filha (as filhas, afinal, pois uma outra acabou por ter o mesmo destino residencial) a «ser institucionalizada», não saindo ele de casa, contribui, de forma indelével, para o atraso no desenvolvimento da BB, assente que um ano de residencialização institucional corresponde a cerca de 4 meses de perda de desenvolvimento, mesmo estando a falar de adolescentes. Como bem afere o MP de 1ª instância: «Por outro lado, nunca será de mais vincar a gravíssima circunstância da menor BB, em virtude da conduta criminosa do arguido, ter sido, com catorze anos de idade, institucionalizada na Casa de Acolhimento Residencial da Santa Casa da Misericórdia de ..., situada a mais de trinta e cinco quilómetros da sua residência, vendo-se de um momento para o outro e sem que nada tenha contribuído para tal, afastada do lar onde cresceu e privada do convívio, apoio e carinho diário da sua mãe, dos contactos com os elementos da família alargada, amigos, colegas e professores que a acompanhavam e apoiavam no meio social e escolar onde se encontrava inserida, tendo este “degredo” durado até à sua maioridade, sendo que mesmo no presente apenas pode regressar a casa da sua mãe e avó aos fins-de-semana, porquanto nos restantes dias aí continua a residir o arguido. O sofrimento da menor ofendida foi ainda agravado pelo facto de ver a sua irmã mais nova, por força destes factos, arrastada, tal como ela, para essa mesma instituição, onde, aliás, até ao presente ainda permanece, apenas podendo voltar a casa da mãe aos fins-de-semana, carregando consigo o sentimento de culpa – sem que culpa da sua parte houvesse – por ter denunciado os abusos sexuais cometidos pelo seu pai na sua pessoa, depois deste ater ameaçado de que se relatasse a terceiros tais abusos “estragaria a casa toda” e acabaria, tal como a sua irmã, institucionalizada – cfr. fls. 319 a 33». Tudo ponderado, afigura-se-nos MINIMAMENTE adequada a reparação fixada em 15.000 euros, atento o teor dos factos em causa, face à enorme ilicitude dos factos cometidos contra uma menina de 13-14 anos de idade e à condição económica do agressor que está longe de ser muito difícil (cfr. facto nº 31). Entende-se que o tribunal não se excedeu na pronúncia, ao dar como provados factos tão notórios como o sofrimento sentido por uma vítima criança de abuso sexual, não o tendo feito em divergência com qualquer relatório pericial. Esta criança sentiu dores no corpo e na alma, como acima se assinalou. Aliás, quanto à inexistência de marcas “indeléveis” das arremetidas sexuais do arguido em relação à filha, notamos que estão em causa, no caso sub judice, e no essencial, situações não originadoras, por norma, de lesões visíveis na pessoa activamente envolvida nestes mesmos actos. Neste domínio, e em tese geral, haverá certamente «(…) que se ser prudente com o diagnóstico de crime sexual apenas através de evidências físicas e biológicas, uma vez que num elevado número de casos os exames são negativos, não significando isso que o crime não possa ter acontecido. A negatividade destes exames (…) relaciona-se com a tardia revelação ou denúncia dos casos, com a destruição dos vestígios pelas vítimas ou abusadores (através de lavagens, por exemplo), ou com o facto de grande parte das práticas sexuais não deixarem vestígios (a cicatrização das lesões anogenitais é rápida e muitas vezes total; (…) no caso de jovens e adultos a penetração não causa necessariamente lesões; a ejaculação acontece, muitas vezes, fora das cavidades ou com uso de preservativo)» (Prof. Teresa Magalhães, “Clínica médico-legal”, pág. 60, disponível na Internet, no site da Delegação do Porto do Instituto Nacional de Medicina Legal). Há que acabar de vez com as indemnizações miserabilistas no que tange a crimes de natureza pessoal (no caso, de índole sexual). Defender menos do que essa quantia – que, em si, nem elevada é - de € 15.000 é até aviltante. Podemos invocar precedentes judiciários (como o faz o voto de vencido no aresto, logo mimetizado pela defesa) mas não é isso que nos convence a baixar este valor encontrado por 2 membros do Colectivo de Viseu, recorrendo à equidade, à decência e à consideração de uma vítima de abuso sexual pelo próprio progenitor. 3.7. Tudo resumido, resta concluir pela improcedência deste recurso (totalmente apoiado no voto de vencido aposto no acórdão recorrido). III – DISPOSITIVO Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em: · julgar improcedente o recurso intentado pelo arguido AA, mantendo todo o teor do acórdão de 1ª instância, quanto a Factos e Direito. Comunique de imediato ao tribunal de 1ª instância, com nota de não trânsito em julgado (cfr. artigo 215º, nº 6 do CPP). Coimbra, 26 de Março de 2025 (Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94º, nº 2, do CPP -, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria nº 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20/09) Relator: Paulo Guerra Adjunto: Alcina da Costa Ribeiro Adjunto: Maria da Conceição Miranda [1] Com UM voto de vencido quanto á decisão de não suspender a execução da pena de prisão aplicada e ao valor da decretada indemnização por danos não patrimoniais. [2]«Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode começar agora e fazer um novo fim», escreveu James R. Sherman – e vamos acreditar que a jovem BB vai encontrar a resiliência para seguir em frente (e aí estamos longe de dar como perfeitamente apurado que o percurso de vida da jovem esteja a decorrer agora de forma sustentada, cuidada, empenhada, com vontade de autonomização e de viver um projecto de vida feliz). |