Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3947/08.2TJCBR-AY.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
REMUNERAÇÃO DO ADMINISTRADOR JUDICIAL
GRAU DE SATISFAÇÃO DOS CRÉDITOS
Data do Acordão: 10/11/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE COIMBRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 23.º, N.ºS 4, 7 E 8, DO ESTATUTO DO ADMINISTRADOR JUDICIAL
Sumário: Para determinação da remuneração variável a que tem direito o administrador da insolvência, ao abrigo do disposto no art. 23.º, n.º 7, do Estatuto do Administrador Judicial, na redação dada pela Lei n.º 9/2022, de 11-1, deve atender-se ao grau de satisfação dos créditos, correspondendo a mesma a 5% da percentagem dos créditos admitidos que foram satisfeitos.
Decisão Texto Integral:

Relator: Arlindo Oliveira

Adjuntos: Emídio Francisco Santos

Catarina Gonçalves

            Processo n.º 3947/08.2TJCBR-AY.C1 – Apelação

            Comarca de Coimbra, Coimbra, Juízo de Comércio

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

AA e BB, já identificados nos autos, foram declarados insolventes, por sentença, já transitada em julgado.

Por requerimento apresentado no dia 20.04.2022, o Sr. Administrador da Insolvência, CC, veio apresentar o cálculo da sua remuneração variável, que computou, de acordo com as regras estabelecidas no art. 23.º, n.ºs 4, al. b), 7 e 8, do Estatuto do Administrador Judicial, na redação aprovada pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, em € 126.302,38, a que acrescerá ainda o IVA à taxa legal em vigor de 23% (€ 29.049,55).

Notificados os credores e os devedores, nenhum se pronunciou.

Conclusos os autos à M.ma Juiz a quo, foi proferido o despacho, aqui junto, de fl.s 16 a 19 (aqui recorrido), que fixou a peticionada remuneração variável, nos seguintes termos:

“Pelo exposto, fixa-se a remuneração variável devida ao Sr. Administrador da insolvência em € 79.395,47 (setenta e nove mil trezentos e noventa e cinco euros e quarenta e sete cêntimos), a que acrescerá o respetivo IVA, de € 18.261,02 (dezoito mil duzentos e sessenta e um euros e dois cêntimos), num total de € 97.656,49 (noventa e sete mil seiscentos e cinquenta e seis euros e quarenta e nove cêntimos).”.

Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso, o Administrador da Insolvência, CC, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de 20), apresentando as seguintes conclusões:

- Do modo de subida do presente recurso:

A. Atendendo ao disposto no artigo 14º, n.º 6 do CIRE, deverá ser determinado que o presente recurso tem subida nos próprios autos.

- Da motivação de Direito:

B. Por despacho de 02-06-2022, notificado ao Recorrente a 03-06-2022, veio o Tribunal decidir sobre a remuneração variável a atribuir ao mesmo, na qualidade de AI, fixando “a remuneração variável devida ao Sr. Administrador da insolvência em € 79.395,47 (setenta e nove mil trezentos e noventa e cinco euros e quarenta e sete cêntimos), a que acrescerá o respetivo IVA, de € 18.261,02 (dezoito mil duzentos e sessenta e um euros e dois cêntimos), num total de € 97.656,49 (noventa e sete mil seiscentos e cinquenta e seis euros e quarenta e nove cêntimos).”

C. Cumpre, desde já, referir, que o Recorrente não pode concordar com o decidido na decisão aqui recorrida, sobretudo no que concerne à formula de cálculo aplicada e à justificação para que a sua remuneração variável, após ter sido calculada com base dos fatores de ponderação legalmente determinados, tivesse sido reduzida.

D. Cumprindo, desde já, dizer que a interpretação defendida no Douto despacho de que se recorre, no que respeita à fórmula de cálculo da majoração prevista no artigo 23.º, n.º 7 da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, não tem qualquer cabimento nem suporte com a literalidade da norma.

E. Não se compreende como pôde o Tribunal, analisada a respetiva norma, ter concluído que da mesma resulta que o grau de satisfação corresponderá a uma percentagem que tenha de ser apurada. E que é sobre esse percentual que se aplicará a majoração de 5%.

F. Para cálculo da majoração apenas haverá que subtrair ao resultado da liquidação (receitas – despesas/dividas da MI, onde já se inclui a remuneração fixa do administrador), a remuneração variável apurada nos termos do n.º 4 do artigo 23.º, acrescida de iva.

G. Devendo, face ao exposto, para fixação do valor da remuneração variável, atender-se à fórmula de cálculo conforme apresentada pelo AI.

H. Por outro lado, decidiu o Tribunal a quo, para efeitos do disposto no artigo 23.º, n.º 8, reduzir a remuneração devida ao Administrador de Insolvência para além do montante de 50.000,00€, em 50%.

I. Sem que, para tal, tenha alegado a verificação de qualquer um dos elementos constantes no artigo 23.º, n.º 8.

J. Para fundamentar tal redução, teria a MM.ª Juiz que alegar um qualquer fato relacionado com os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo ou a diligência empregue pelo administrador judicial no exercício das suas funções, que justificasse tal decisão. O que não fez.

K. Cumpre, desde logo, notar que no despacho de que se recorre apontam-se somente elogios à atuação do AI. Sendo o próprio Tribunal a quo quem atesta a complexidade do processo, a extensão e complexidade dos serviços prestados, a positividade dos resultados e a irrepreensível diligência empregue pelo Administrador.

L. Não obstante, decidiu o Tribunal que, mesmo assim, deveria ver-se reduzida a remuneração do AI, de forma arbitrária, com base num critério que a norma – nem aquela do n.º 8 do artigo 23.º nem qualquer outra – não prevê: a circunstância de as operações de liquidação terem sido levadas a efeito durante a vigência da lei anterior.

M. O despacho de que se recorre não só faz uma errada interpretação da norma legal pertinente, usando um critério que a norma legal não prevê, como procura, ao abrigo do exercício de um poder mais ou menos discriminatório, embora vinculado sob critérios previstos legalmente, aplicar, na prática, legislação revogada que, se o foi (revogada), foi porque o legislador a considerou inapropriada.

N. Mais, não tendo sido estabelecido qualquer regime transitório que limitasse a aplicação imediata da norma, o despacho do Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, está, na prática, a substituir-se ao legislador nessa matéria (determinação do inicio de vigência da norma) em clara violação do principio da separação de poderes, pois que ao poder judicial cumpre aplicar as normas que estejam em vigor e não decidir, contra o legislador, quando e em que circunstâncias é que eles devem vigorar.

O. Ao decidir da forma como o fez, o Tribunal a quo violou, por erro de interpretação e aplicação, a norma do artigo 23.º da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro.

Devendo o douto despacho de que se recorre ser revogado.

NESTES TERMOS, E NOS DEMAIS DE DIREITO QUE V. EXAS. DOUTAMENTE SUPRIRÃO, CONCEDENDO-SE PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, REVOGANDO O DESPACHO DE QUE ORA SE RECORRE, FARÃO V. EXAS. A COSTUMEIRA JUSTIÇA.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.          

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de determinar a remuneração variável a que tem direito o Sr. Administrador da Insolvência, ao abrigo do disposto no artigo 23.º, n.º 7, do Estatuto do Administrador Judicial, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, designadamente, se a remuneração variável aí prevista deve corresponder, automaticamente, a 5% do montante dos créditos satisfeitos ou se, deve atender-se ao grau de satisfação dos créditos, como de tal norma resulta, correspondendo a mesma a 5% da percentagem dos créditos admitidos que foram satisfeitos.

É a seguinte a factualidade dada como provada na decisão recorrida:

1. BB e AA foram declaradosninsolventes por sentença proferida em 9 de julho de 2009, tendo na mesma sido nomeado administrador da insolvência o Sr. Dr. CC.

2. A sentença foi objeto de recurso, julgado improcedente por acórdão proferido em 2 de março de 2010, tendo transitado em julgado em 23 de março de 2010.

3. No âmbito da assembleia de apreciação do relatório, realizada no dia 11 de setembro de 2009, foi deliberada a liquidação do ativo dos devedores.

4. Foram apreendidos para a massa insolvente bens móveis avaliados em € 21.775,00, bens imóveis com o valor patrimonial de € 632.316,37, benfeitorias avaliadas em € 537.188,05 e a quantia de € 33.000,00.

5. O administrador da insolvência apresentou as listas de credores reconhecidos e não reconhecidos em 21 de outubro de 2009.

6. A esta lista foram deduzidas treze impugnações, parte das quais aceite pelo administrador da insolvência, vindo, após realização de tentativa de conciliação e de audiência de discussão e julgamento, a ser proferida sentença que verificou créditos no montante global de € 1.527.742,30.

7. O administrador da insolvência e os credores cujas impugnações não foram aceites pelo administrador da insolvência interpuseram recurso desta sentença, recurso que foi parcialmente procedente, sendo o crédito destes credores reduzido em € 100.000,00.

8. Foram deduzidas por apenso à insolvência dezasseis ações especiais para verificação ulterior de créditos, no âmbito das quais foram reconhecidos créditos sobre a insolvência no montante de € 283.909,30.

9. O total dos créditos reconhecidos ascende a € 1.711.652,03.

10. Por apenso à insolvência, correram ainda termos cinco ações de impugnação de resolução em benefício da massa e uma ação especial para restituição de bens.

11. O administrador da insolvência apresentou parecer no sentido da qualificação da insolvência como culposa, vindo a final, após tramitação do incidente de qualificação, a ser proferida sentença que declarou a insolvência dos devedores culposa.

12. Em outubro de 2021 o administrador da insolvência apresentou mapa de rateio parcial, que não foi objeto de impugnações, tornando-se definitivo.

13. Neste mapa, o administrador da insolvência estimou a remuneração variável provável, acrescida do respetivo IVA, em € 45.261,58.

14. A liquidação do ativo foi concluída pelo administrador da insolvência em dezembro

de 2021.

15. As contas finais do administrador da insolvência foram apresentadas a 21 de dezembro de 2021, nelas se relacionando receitas no montante de € 1.421.820,36 e despesas da massa insolvente no valor de € 97.369,61, incluindo a remuneração fixa do administrador da insolvência.

16. As contas foram julgadas por sentença proferida em 9 de março de 2022, na qual se ressalvou a aprovação de despesas no montante de € 64,90, pelo que as despesas aprovadas foram de € 97.304,71.

17. As custas da insolvência, contabilizadas por conta elaborada a 14 de abril de 2022, ascenderam a € 21.356,83.

Determinação da remuneração variável a que tem direito o Sr. Administrador da Insolvência, ao abrigo do disposto no artigo 23.º, n.º 7, do Estatuto do Administrador Judicial, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, designadamente, se a remuneração variável aí prevista deve corresponder, automaticamente, a 5% do montante dos créditos satisfeitos ou se, deve atender-se ao grau de satisfação dos créditos, como de tal norma resulta, correspondendo a mesma a 5% da percentagem dos créditos admitidos que foram satisfeitos.

Como resulta do relatório que antecede e da alegação do recorrente, este insurge-se contra a decisão recorrida, a qual, no seu entender, não devia quantificar a remuneração em causa com recurso a “qualquer percentagem que tenha que ser apurada” e que é sobre esta que aplica a majoração em apreço, defendendo, ao invés, atento o teor literal da norma em questão, que a mesma é fixa, correspondendo a 5% dos créditos satisfeitos.

Por seu turno, na decisão recorrida, entendeu-se que a majoração em causa tem como base o grau de satisfação dos créditos reconhecidos numa nova percentagem de 5% do montante dos créditos satisfeitos, não tendo por referência o total dos créditos admitidos, mas sim a percentagem destes que foram satisfeitos, com o fundamento em que “a majoração é em função do grau de satisfação dos créditos”, como estipula o n.º 7, do artigo 23.º, em análise.

Como resulta dos autos, a decisão recorrida, fixou a remuneração variável a pagar ao Sr. AI na quantia de 79.395,47 €, acrescida de IVA, no montante de 18.261,02 €, no total de 97.656,49 €, em resultado da interpretação que fez da norma em questão e operando a redução a que se alude no n.º 8 do preceito em questão, ao passo que o recorrente, com base na interpretação literal que faz da mesma norma e, ainda, porque, em seu entender, não pode ter lugar a redução a que se alude no n.º 8 do mesmo preceito, entende que a remuneração a que tem direito deve ser computada no montante global de 126.302,38 €, acrescida de IVA, à taxa legal de 23%.

A questão a decidir no presente recurso está a ser recorrentemente suscitada neste Tribunal da Relação e, por inerência nesta Secção, à qual está atribuída a competência para a decisão deste tipo de processos, tendo sido objecto de análise por parte dos juízes que a integram, tendo-se considerado que a interpretação a dar ao n.º 7, do artigo 23.º do EAJ, na sua actual redacção, não pode ser meramente literal.

Assim, tendo esta questão sido já apreciada e decidida em Acórdão proferido na Apelação n.º 2495/20...., de 28 de Setembro de 2022, em que figura como Relatora a ora 2.ª Adjunta, passamos a seguir o nela expendido.

“O preceito acima citado dispõe, no que toca à remuneração variável e na parte que agora releva, o seguinte:

“(…)

4 - Os administradores judiciais referidos no n.º 1 auferem ainda uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é calculado nos termos seguintes:

a) 10 /prct. da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor, nos termos do n.º 5;

b) 5 /prct. do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do n.º 6.

(…)

6 - Para efeitos do n.º 4, considera-se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência.

7 - O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles.

(…)”.

O que está em causa, como se referiu, é apenas a remuneração devida nos termos do n.º 7, em relação à qual a decisão recorrida considerou que ela deve ser calculada tendo como referência o grau de satisfação dos créditos reclamados. Assim, porque o grau de satisfação de créditos era de 55,24% (haviam sido reclamados créditos no valor de 320.617,75€ e os créditos satisfeitos eram de 177.128,86€), considerou que a taxa de majoração não era de 5% sobre o valor dos créditos satisfeitos (como pretendia o Apelante), mas sim de 2,76€ (5% da percentagem de satisfação que era de 55,24%).”

No caso aqui em apreço, o grau de satisfação dos créditos é de 71,45%.

“O Apelante, por seu turno, considera que tal remuneração deve corresponder a 5% do valor dos créditos satisfeitos, argumentando, no essencial:

- Que a taxa de 5% deve ser aplicada – como resulta da norma em questão – a um valor nominal e não a uma percentagem (que no caso seria de 55,24%) como considerou o Tribunal;

- Que o que se prevê na norma em questão é que a remuneração do administrador da insolvência seja majorada em “5% do montante dos créditos satisfeitos” e não em “5% do grau de satisfação dos créditos”;

- Que, se o legislador pretendesse que a taxa de 5% prevista no artigo 23.º, n.º 7 EAJ se aplicasse sobre uma percentagem não teria determinado expressamente que ela incidisse sobre um montante.

Olhando à norma em questão – o n.º 7 do artigo acima mencionado –, não poderemos deixar de constatar que a sua redacção é equívoca no que diz respeito ao sentido que se lhe pretendeu atribuir. Na verdade, se é certo que a leitura literal da segunda parte do referido n.º 7 parece apontar para uma remuneração que corresponderia (em qualquer caso) a 5/prct do valor dos créditos satisfeitos (sendo este o sentido que o Apelante lhe pretende atribuir), a primeira parte remete, de forma inequívoca, para um critério de fixação da remuneração em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, que não se compadece, de modo algum, com uma remuneração fixada numa percentagem (5%) a incidir sobre o montante dos créditos satisfeitos sem qualquer consideração pela percentagem que esses créditos representam no valor global dos créditos que haviam sido reclamados e admitidos.

Uma interpretação e aplicação estritamente literal do referido preceito, no seu conjunto, parece, portanto, não ser viável. Com efeito, a entender-se que a remuneração corresponde a 5% dos créditos satisfeitos (como resultaria da leitura literal da segunda parte da norma), será totalmente desconsiderado o critério – estabelecido na primeira parte – de fixação da remuneração em função do grau de satisfação dos créditos; a entender-se que a remuneração deve atender ao grau de satisfação de créditos (como manda a primeira parte da norma), ela não poderá corresponder, em qualquer caso, a 5% do valor dos créditos satisfeitos.

Nessas circunstâncias e perante uma redacção que, aparentemente, se contradiz e é inconciliável em si mesma, qual a leitura/interpretação que se deve ter como mais correcta? Aquela que lhe foi dada pela decisão recorrida ou aquela que o Apelante lhe pretende atribuir?

Embora a questão seja discutível, inclinamo-nos para a interpretação que lhe foi dada pela decisão recorrida.

Mandam as regras de interpretação da lei – estabelecidas no art.º 9.º do CC – que, apesar de não poder ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, ali se determinando ainda na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

Sendo certo – conforme referimos – que uma interpretação estritamente literal não é viável, importa tentar apurar e reconstituir o pensamento legislativo.

Ora, dizendo-se ali expressamente que a remuneração em questão é calculada em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, parece que a intenção do legislador terá sido a de considerar que a remuneração em questão tomasse em conta essa variável. Tal pretensão/intenção está, aliás, em perfeita sintonia com aquilo que já constava da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 112/IX – que veio a dar origem ao anterior Estatuto do Administrador da Insolvência (aprovado pela Lei n.º 32/2004) – e que também se colhe na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 107/XII – que veio a dar origem ao actual Estatuto do Administrador Judicial (aprovado pela Lei n.º 22/2013) – de onde resulta que a remuneração em questão visa também incentivar os administradores a desenvolver esforços no sentido de alcançar o melhor resultado possível e premiá-los pelo resultado efectivamente obtido e que se presume resultar, pelo menos em parte, do seu empenho e do seu esforço. Nessa perspectiva, surge como natural que o grau de satisfação de créditos surja como variável relevante na fixação da indemnização.

Veja-se que, na sua redacção inicial, o actual Estatuto já previa (no seu n.º 5) a remuneração em causa a calcular “em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos” (o mesmo acontecia, aliás, com o anterior Estatuto que previa e regulava essa remuneração nos mesmos termos – cfr. respectivo art.º 20.º, n.º 4) e, à data, essa remuneração era fixada por aplicação de factores constantes de uma portaria (a Portaria n.º 51/2005, de 20/01) e que estavam estabelecidos com referência e em função da “percentagem de créditos admitida que foi satisfeita” (quanto maior fosse essa percentagem – ou seja, o grau de satisfação dos créditos admitidos – maior seria o factor aplicável com vista à fixação da remuneração).

Ora, apesar de – por força da alteração introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11/01 – o Estatuto ter passado a conter as regras de cálculo da remuneração (deixando, portanto, de o fazer com referência a qualquer portaria), a redacção da primeira parte do n.º 7 do art.º 23.º (anteriormente n.º 5) manteve-se inalterada, continuando, portanto, a fazer referência ao facto de a remuneração ser majorada em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos. Parece claro, portanto, que o legislador não teve o propósito de alterar o que anteriormente constava da lei – ou seja, que a remuneração em questão era calculada em função do grau de satisfação dos créditos ou percentagem de créditos admitidos que foi satisfeita – sucedendo apenas que a expressão escolhida para estabelecer o valor dessa remuneração não foi feliz, na medida em que parece apontar para uma remuneração que não leva em conta o grau de satisfação dos créditos.

Se o legislador tivesse pretendido alterar o regime até aí vigente (que, como se referiu, atendia expressamente à percentagem de créditos admitidos que havia sido satisfeita ou grau de satisfação), certamente que o teria deixado claro e, ao invés de reproduzir o que já constava da lei, não deixaria de eliminar a referência que ali era feita ao facto de a remuneração ser majorada, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, dizendo apenas – como seria mais lógico – que o valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 5 e 6 seria majorado em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos.

Não foi essa a opção do legislador. E não foi – pensamos nós – porque não foi sua intenção que aquela remuneração fosse calculada com referência exclusiva ao valor dos créditos satisfeitos sem considerar a percentagem que esses créditos representavam no valor global dos créditos que haviam sido admitidos, ou seja, o grau de satisfação destes créditos. A intenção do legislador – quando alterou a redacção da norma com a Lei n.º 9/2022 – terá sido apenas a de afastar a remissão que, anteriormente, era feita para uma portaria, passando a regular directamente essa matéria; e, tendo mantido o critério base que estava estabelecido (o grau de satisfação dos créditos), a sua intenção terá sido a de estabelecer a remuneração em 5% da percentagem de créditos satisfeitos em relação aos que haviam sido reclamados e admitidos, ainda que isso não tenha ficado expresso com clareza no texto legal.

A norma em questão deve, portanto – na nossa perspectiva – ser lida e interpretada com o sentido que lhe foi atribuído pela decisão recorrida, ou seja: a remuneração corresponderá a 5% do montante dos créditos satisfeitos, quando estes créditos (satisfeitos) correspondam à totalidade dos créditos admitidos, configurando-se, portanto, um grau de satisfação destes créditos de 100%; quando os créditos satisfeitos não correspondam à totalidade dos créditos admitidos, aqueles 5% terão que ser calculados com referência ao grau de satisfação dos créditos, ou seja, à percentagem dos créditos admitidos que foram satisfeitos.

Se o valor da remuneração correspondesse sempre a 5% dos créditos satisfeitos (como sustenta o Apelante), tal significaria que a remuneração seria idêntica quer esses créditos correspondessem à globalidade dos créditos admitidos, quer correspondessem a uma parte ínfima deles; o grau de satisfação dos créditos seria, portanto, totalmente desconsiderado ao contrário do que expressamente se dispõe na norma em causa e contrariando aquele que – pelas razões apontadas – pensamos ter sido o pensamento do legislador.

Insurge-se, ainda, o recorrente, contra a redução da remuneração que lhe foi fixada na decisão recorrida, por a mesma ser superior a 50 mil euros, com base no disposto no n.º 8 do citado artigo 23.º.

Aduz, para tal, que a decisão recorrida não fundamenta tal redução com base em nenhum dos fundamentos nele previstos, invocando um critério que a lei não prevê “a circunstância de as operações de liquidação terem sido levadas a efeito durante a vigência da lei anterior”.

Na decisão recorrida fundamenta-se tal redução, com base na seguinte fundamentação:

“Reconhece-se que os serviços prestados pelo Sr. Administrador foram complexos e extensos, sendo tal complexidade e dimensão revelada à saciedade pelos apensos e incidentes que o processo conheceu. De igual modo, haverá que reconhecer que os resultados obtidos foram positivos, atento o valor total obtido com a liquidação do património dos devedores, nomeadamente quando confrontado com os valores constantes dos autos de apreensão dos bens integrantes da massa. E se a liquidação se prolongou por um período de tempo muitíssimo superior ao desejável (perto de doze anos), não se pode imputar esta demora à menor diligência do administrador, sendo o atraso sobretudo imputável aos inúmeros incidentes e questões que se levantaram no seu decurso.

No entanto, julgamos que se deve levar em consideração que toda esta atividade foi desenvolvida na vigência da anterior redação do Estatuto do Administrador da Insolvência, tendo o Sr. Administrador a expectativa de vir a receber remuneração variável substancialmente inferior. Veja-se que no mapa de rateio parcial o administrador indicou como valor provável da remuneração variável, incluindo o respetivo IVA, de € 45.261,58. E calculada com os critérios estabelecidos na Portaria n.º 51/2005, obtemos uma remuneração variável de apenas € 33.985,27, à qual acresce IVA no valor de € 7.816,61, num total de € 41.801,88.

Significa isto que, por aplicação da nova lei, quando toda a atividade do administrador, com exceção do rateio final e pagamentos, foi desenvolvida na vigência da antiga lei, e apenas porque a liquidação da massa insolvente se arrastou por mais de onze anos, a remuneração do administrador mais do que triplica, ficando a satisfação dos credores, por seu turno, prejudicada no montante correspondente. Ora, salvo o devido respeito, este prejuízo para os credores, que lhes não é imputável e com o qual estes não deviam razoavelmente poder contar, constitui, atentas as circunstâncias específicas do caso (maxime, a grande demora na conclusão da liquidação, e a curtíssima vigência dos novos critérios legais à data em que foi apresentado o cálculo da remuneração variável), um fator que deve ser ponderado para os efeitos previstos no n.º 8 do art. 23.º.

Consideramos, por isso, que a remuneração devida ao administrador da insolvência para além do montante de € 50.000,00 deve ser reduzida em 50% (ou seja, € 29.395,47).”.

Conforme consta do n.º 8, do citado artigo 23.º só no caso de a remuneração a fixar exceder o montante de 50.000,00 € é que o juiz pode determinar que a remuneração devida para além desse montante seja inferior à resultante da aplicação dos critérios legais.

O mesmo é dizer que até ao montante de 50.000,00 €, o juiz terá de ter em conta os critérios legais referidos neste preceito, sem os alterar, por, até tal montante. serem “de aplicação necessária” – neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 3.ª Edição, pág. 349, nota 6, da anotação ao artigo 60.º do CIRE.

Estabelece-se naquele preceito que:

“Se, por aplicação do disposto nos números anteriores relativamente a processos em que haja liquidação da massa insolvente, a remuneração exceder o montante de (euro) 50 000 por processo, o juiz pode determinar que a remuneração devida para além desse montante  seja inferior à resultante da aplicação dos critérios legais, tendo em conta, designadamente, os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue pelo administrador judicial no exercício das suas funções”.

Resulta, pois, deste preceito que nos casos em que a remuneração variável exceda 50 mil euros, pode ser reduzida, tendo em conta, designadamente, sublinhado nosso, os critérios ali referidos.

Assim, decorre do mesmo, que os critérios para ser efectuada tal redução não são apenas os nele enumerados. Se assim fora, ficaria desprovida de sentido a inclusão da expressão “designadamente”.

Ou seja; a redução pode ser justificada/fundamentada nos critérios ali expressamente previstos, como o pode ser com base noutros, para além desses.

A M.ma juiz a quo, como acima transcrito, operou tal redução com fundamento em que, por aplicação das normas legais ora em vigor, não obstante praticamente toda a actividade levada a cabo pelo AI ter sido desenvolvida no domínio da lei anterior, a remuneração variável em causa mais do que triplicou, o que acarreta um prejuízo, não expectável, para os credores que, nessa medida, veriam cerceada a satisfação dos seus créditos.

Concordamos com tal justificação e nem se pode dizer que o AI vê frustradas as suas expectativas, pois que só mercê da já longa tramitação dos autos lhe seria dada a possibilidade de beneficiar dos novos critérios legais atinentes.

Em suma e em conclusão, falecem todas razões/argumentos expendidos pelo recorrente com vista à revogação da decisão recorrida, a qual, assim, é de manter.

Pelo que, improcede o recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas, a cargo do apelante.

Coimbra, 11 de Outubro de 2022.