Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1638/22.0JAPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ROSA PINTO
Descritores: JULGAMENTO EM AUDIÊNCIA
IRREGULARIDADE
Data do Acordão: 05/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE VISEU – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: DEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Legislação Nacional: ARTS.411º, N.º 5, 419º, N.º 3, E 123º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: Tendo o recorrente requerido a realização de audiência, nos termos do art. 411º, n.º 5, do C.P.P., o acórdão proferido em conferência encontra-se ferido de irregularidade que afeta o julgamento do recurso, devendo declarar-se sem efeito tal acórdão e o recurso ser julgado em audiência, após o que se seguirá a elaboração de novo acórdão.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 4ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

         A – Relatório

1. No âmbito dos presentes autos, foi proferido acórdão por esta Relação, datado de 10.4.2024, em que se decidiu:

- negar provimento a ambos os recursos interpostos pelo arguido, interlocutório e do acórdão final, e em consequência manter o despacho e o acórdão recorridos;

- corrigir o lapso do acórdão recorrido e onde consta o artigo 176º, nº 1, alíneas a), b) e c) do Código Penal, a qualificar o crime do artigo 171º do mesmo diploma legal, deve passar a constar artigo 177º, nº 1, alíneas a), b) e c).

2. Veio agora o arguido AA apresentar reclamação, arguindo nulidades do acórdão ou irregularidades, alegando, em síntese, que:

- Na motivação de recurso, o recorrente veio requerer o seguinte:

“Nos termos do n.º 5, do art. 411.º, do CPP, que se REALIZE AUDIÊNCIA por forma a ser debatida a nulidade das memórias futuras, debatidos os pontos relacionados com a verificação dos erros subsumidos no art. 410.º/2, do CPP e os pontos referentes à determinação das penas parcelares e respectivo cúmulo jurídico, (pontos 1 a 14, 30 a 40, 52 a 60 e 117 a 122 desta motivação). (sic.)

- Apesar disso, o douto acórdão foi proferido sem que tecesse qualquer pronúncia sobre o requerido; o mandatário do arguido não foi notificado para a realização da requerida Audiência, a que alude o art. 411.º/5, do CPP.

- Salvo melhor opinião, está-se perante uma nulidade insanável de omissão de pronúncia prevista no art. 379.º/1, al. c), do CPP (uma vez que o Tribunal não conheceu do que podia ou devia ter conhecido) cometendo-se, por arrastamento, a nulidade elencada no art. 119.º/c), do CPP, uma vez que o mandatário não pôde comparecer à diligência de prova em que a lei exige a respectiva comparência, “apud” o disposto nos art. 421.º/2, 422.º/2, “ex vis” do disposto no art. 61.º, al. a) e f), do CPP, ficando a defesa do arguido comprometida, por violação, entre o mais, do princípio do contraditório.

- Requer-se que a apontada nulidade seja declarada oficiosamente pelo Tribunal, conforme o disposto no art. 119.º (proémio) do CPP, pois será esse, salvo melhor e mais douta opinião, o devido “mens legis”.

- Sem conceder, ad cautelam et aequo animo, sempre se acrescentará que nos termos do disposto no art. 419.º/3./ al. c), do CPP, o recurso apenas pode ser julgado em conferência quando, nomeadamente, não tiver sido requerida a realização de audiência. A contrário senso, dir-se-á que o julgamento de recurso em conferência, quando haja validamente sido requerida a realização de audiência e não se tendo esta realizado, não pode deixar de consubstanciar uma ilegalidade/irregularidade processual.

- Conforme referido no Ac. do TRE, 2013, p. 380/09.2JACBR-B.E2, a audiência tem agora apenas lugar quando requerida, mas deve ter lugar se requerida nos termos legais. Assim, a decisão do recurso da sentença em conferência, quando tenha sido requerida a audiência, configura uma desconformidade legal, ou seja, uma ilegalidade processual.

- A motivação apresentada pelo recorrente, incidiu sobre matéria de facto e de direito. Destes dois segmentos, o recorrente enunciou os concretos pontos que pretendia ver discutidos na audiência que de que requereu a sua realização.

Assim, ainda que subsidiariamente ora se invoca - de jure condito – a irregularidade prevista no art. 123.º, do CPP, por ter sido proferido o acórdão, sem a realização prévia da requerida audiência.

- Está o requerente em tempo de solicitar a correcção da irregularidade? É entendimento que sim, uma vez que o Tribunal pode sempre “ordenar oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, quando ela puder afectar o valor do acto praticado” (cfr. art. 123.º/2, do CPP).

- O art. 119.º, n.º 1, al. a) do CPP, se interpretado no sentido ou com a dimensão normativa de que um acórdão do Tribunal da Relação proferido sem a realização de audiência, tendo a mesma sido requerida pelo recorrente, se mostra apenas irregular, e não ferido de nulidade, encontra-se atingido de inconstitucionalidade material, por violação do art. 32.º/1, da CRP (Direitos de defesa e ao recurso) e art. 203.º (independência dos Tribunais) e ainda violação do Princípio do contraditório.

TERMOS EM QUE, E NOS MELHORES DE DIREITO DEVE A PRESENTE RECLAMAÇÃO SER JULGADA PROCEDENTE E, EM CONSEQUÊNCIA,

▪ SER DECLARADA A NULIDADE DE OMISSÃO DE PRONÚNCIA (ART. 379.º/1, AL. C), DO CPP) POR O DOUTO ACÓRDÃO TER SIDO PROFERIDO COM OMISSÃO DA DESIGNAÇÃO DE AUDIÊNCIA EM TEMPO REQUERIDA;

▪ SER DECLARADA A NULIDADE PREVISTA NO ART. 119.º, AL. C), DO CPP, POR VIOLAÇÃO, ENTRE OUTROS, DO ART. 64.º/1 AL. C), DO CPP, ART. 421.º/2, ART. 422.º/2, “EX VIS” DO DISPOSTO NO ART. 61.º AL. A) E F), CPP, JÁ QUE O MANDATÁRIO DA ARGUIDA NÃO FOI CONVOCADO PARA ESSA MESMA AUDIÊNCIA E, POR ISSO, NELA TER FICADO IMPEDIDO DE PARTICIPAR;

▪ SEJA DECLARADO NULO E DE NENHUM EFEITO O DOUTO ACÓRDÃO, COM TODAS AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, “APUD” O DISPOSTO NO ART.122.º, DO CPP.

SEM CONCEDER, OU SUBSIDIARIAMENTE,

▪ SEJA RECONHECIDA A IRREGULARIDADE DA CONFERÊNCIA EM QUE SE JULGOU O RECURSO INTERPOSTO PELA RECORRENTE, COM A NECESSÁRIA REVOGAÇÃO DO DOUTO ACÓRDÃO (QUE DEVERÁ SER CONSIDERADO NULO) DEVENDO, EM CONSEQUÊNCIA, SER AGENDADA DATA PARA A REALIZAÇÃO DE AUDIÊNCIA, ATEMPADAMENTE REQUERIDA PELA RECORRENTE.

3. Facultado o contraditório, veio o Ministério Público responder, pugnando pelo indeferimento da reclamação, com os seguintes fundamentos:

- Constata-se que, efectivamente, no recurso interposto foi requerida a realização de audiência, nos termos previstos no art. 411º, n.º 5, do Código de Processo Penal.

- O acórdão foi decidido em conferência, certamente por lapso, dado que o tribunal não tomou posição quanto ao requerimento da realização de audiência, designadamente para, eventualmente, indeferi-lo.

- Temos, assim, verificado vício processual que o requerente entende constituir a nulidade de omissão de pronúncia (art. 379.º n.º 1, al. c), do C.P.Penal), ou ainda a nulidade insanável prevista no art. 119º, al. c), do C.P. Penal.

- Salvo o devido respeito, é nosso entendimento que a decisão do recurso em conferência no caso de ter sido legalmente requerida a audiência não configura qualquer das nulidades invocadas, mas apenas e só mera irregularidade processual que, não tendo sido arguido tempestivamente, deve considerar-se sanada. (neste sentido ver Acórdão da Relação de Évora de 17/09/2013, in www.dgsi.pt).

4. Após contraditório, também a ofendida BB veio responder, acolhendo a posição vertida no acórdão recorrido e pugnando pela decisão nele proferida.

5. Respeitando as formalidades aplicáveis, após os vistos legais, o processo foi à conferência.

6. Dos trabalhos desta resultou a presente apreciação e decisão.

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                *

   B - Cumpre apreciar e decidir.

Estipula o artigo 425º, nº 4, do Código de Processo Penal que “é correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o disposto nos artigos 379º e 380º, sendo o acórdão ainda nulo quando for lavrado contra o vencido, ou sem o necessário vencimento”.

Por sua vez, dispõe o artigo 379º do Código de Processo Penal que:

1 - É nula a sentença:

a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;

b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;

c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º

Por último, nos termos do artigo 380º, nºs 1 e 2, do mesmo diploma legal, com a epígrafe Correcção da sentença:

1 - O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correcção da sentença quando:

a) Fora dos casos previstos no artigo anterior, não tiver sido observado ou não tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374.º;

b) A sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.

2 - Se já tiver subido recurso da sentença, a correcção é feita, quando possível, pelo tribunal competente para conhecer do recurso.

“O direito de arguição de nulidades de uma decisão judicial que conhece o objecto do recurso, quer ela seja proferida pelo TR quer pelo STJ, é um direito garantido pela CRP a qualquer sujeito processual ou participante processual recorrente ou recorrido desde que seja prejudicado pela nulidade da decisão do tribunal de recurso” – cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª ed. actualizada, 1171.

 Porém, “uma reclamação não é um recurso, o que significa que se pode fundar apenas no incumprimento de normas de carácter adjectivo, mas já não em questões de ordem substantiva” – cfr. Ac. da RL de 25.5.2016, in www.pgdl.pt.

Nos termos do mesmo aresto, “as nulidades, como resulta da lei – artigo 118º, n°1, do Código de Processo Penal - que se reconduzem à violação ou inobservância das disposições da lei processual penal, são taxativas, no sentido de que tais violações só determinam a nulidade do acto quando esta for a consequência expressa cominada pela lei. A fundamentação da ocorrência de uma nulidade não pode ter por base, porque a tal se não reconduz, a discussão do bem fundado da decisão exarada no acórdão, pelo que a pessoal discordância do requerente face ao decidido, não constitui fundamento de arguição de nulidade, tendo sim o seu âmbito de apreciação numa outra sede, a de recurso para o STJ”, no caso de ser admissível”.

Pelo exposto, nos termos do artigo 379º, nº 1, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Penal, ex vi do artigo 425º, nº 4, do mesmo diploma legal, a falta de fundamentação na vertente de falta de exame crítico da prova, a condenação por factos diversos dos descritos na acusação e a omissão de pronúncia, constituem fundamento de nulidade da decisão.

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Vejamos então.

O arguido AA foi condenado, na 1ª instância, numa pena única de 10 anos de prisão, bem como nas penas acessórias previstas nos art.º 69.º-B e 69.º-C, do Código Penal, de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores (n.º 2 do art.º 69.º-B) e na proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de dez anos.

Foi ainda condenado a pagar à menor BB a quantia 12.500,00€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a presente data até integral pagamento.

Do acórdão condenatório, veio o arguido interpor recurso para esta Relação.

No final da peça recursória, o arguido requereu o seguinte:

Nos termos do n.º 5, do art. 411.º, do CPP, que se REALIZE AUDIÊNCIA por forma a ser debatida a nulidade das memórias futuras, debatidos os pontos relacionados com a verificação dos erros subsumidos no art. 410.º/2, do CPP e os pontos referentes à determinação das penas parcelares e respectivo cúmulo jurídico, (pontos 1 a 14, 30 a 40, 52 a 60 e 117 a 122 desta motivação).

Ora, acontece que, por lapso, este Tribunal não se pronunciou sobre tal requerimento.

Não se pronunciou no despacho preliminar, nem mesmo posteriormente.

Os autos seguiram para a conferência, tendo sido proferido o acórdão de que ora se reclama.

O arguido entende que o acórdão é nulo por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal por não se ter pronunciado quanto à requerida Audiência.

Estipula esta norma legal que “é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

A omissão de pronúncia constitui um vício da decisão que se verifica quando o tribunal deixa de pronunciar-se sobre questões cujo conhecimento a lei lhe imponha, ou seja, as questões de conhecimento oficioso e as questões que são suscitadas pelos sujeitos processuais.

Contudo, uma coisa são os poderes/deveres de cognição deste Tribunal relativamente ao conhecimento de todas as questões que a lei lhe imponha na sequência do recurso interposto, outra bem distinta e prévia, consiste em saber se estão verificados todos os pressupostos para a realização da requerida audiência. O Tribunal não pode deixar de tomar posição sobre tal requerimento e, caso se verifiquem os pressupostos, deve a mesma ter lugar.

Só posteriormente poderá ser proferido acórdão por este tribunal de recurso.

A ser assim, não se pode afirmar que o acórdão seja nulo por omissão de pronúncia. O acórdão não tem que se pronunciar sobre a requerida audiência. Essa tomada de posição é prévia à prolação do acórdão.

Nestes termos, indefere-se a requerida nulidade por omissão de pronúncia.

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Continuando.

Dispõe o artigo 411º, nº 5, do Código de Processo Penal que, “no requerimento de interposição de recurso o recorrente pode requerer que se realize audiência, especificando os pontos da motivação do recurso que pretende ver debatidos”.

No caso concreto, o arguido indicou a matéria que pretende ver debatida na audiência, especificando os respectivos pontos da motivação.

Foram, assim, respeitados os pressupostos para que a audiência tivesse lugar.

Porém, como se disse, por lapso, o tribunal não tomou posição sobre tal requerimento, o que inviabilizou a realização de tal diligência.

Estamos, sem dúvida, perante uma irregularidade processual, que afectou o julgamento do recurso. Em concreto, em vez do recurso ser julgado em audiência, acabou por ser julgado em conferência (cfr. artigo 419º, nº 3, do Código de Processo Penal).

Como estipula o artigo 123º, nº 2, do Código de Processo Penal “pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado”.

No nº 2 do artigo 123º do Código de Processo Penal consagra-se o princípio da relevância material da irregularidade, segundo o qual só as ilegalidades relevantes devem ser tidas como irregularidades e só são relevantes as que afetam o valor do acto praticado. Isto é, aquelas que possam repercutir-se no mérito da decisão final a proferir na causa – cfr. Ac. do STJ, de 20.5.2020, in www.dgsi.pt.

É este precisamente o caso dos presentes autos. A irregularidade processual afectou o julgamento do recurso, repercutindo-se no mérito do acórdão proferido.

Resta, assim, reconhecer e declarar a existência da irregularidade processual supra mencionada, dando-se sem efeito o julgamento do presente recurso em conferência, assim como o acórdão já proferido.

Consequentemente, o recurso deve ser julgado em audiência, na sequência da qual deve ser proferido novo acórdão.

O que afasta a apontada inconstitucionalidade.

Pelo exposto, assistindo razão ao arguido, procede a reclamação apresentada.

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           C - Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam as juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra em deferir o requerimento do arguido, de 2.5.2024, e em consequência decidem:

- declarar a irregularidade processual supra mencionada e que conduziu ao julgamento do recurso em conferência;

- dar sem efeito o julgamento do recurso efectuado, bem como o acórdão proferido;

- deferir a requerida audiência para debate da matéria indicada na peça recursória.

Vão os autos à Ex.ma Presidente da Secção para designação de data para a audiência.

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Sem custas.

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Notifique.

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              Coimbra, 22 de Maio de 2024.

(Elaborado pela relatora, revisto e assinado electronicamente por todos os signatários – artigo 94º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal).

          Rosa Pinto – Relatora

          Cândida Martinho – 1ª Adjunta

          Maria Teresa Coimbra – 2ª Adjunta