Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
229/20.5GACNF.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ROSA PINTO
Descritores: CRIME DE CONDUÇÃO DE VEÍCULO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULOS MOTORIZADOS
Data do Acordão: 09/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CINFÃES)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 69.º, N.º 1, AL. B), DO CP
Sumário: O crime de condução de veículo sem habilitação legal não é punido com a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, prevista no artigo 69.º do Código Penal.
Decisão Texto Integral:



Acordam, em conferência, na 4ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

A – Relatório

1. Pela Comarca de Viseu (Juízo de Competência Genérica de Cinfães), sob acusação do Ministério Público, pelo crime de condução de veículo a motor na via pública sem habilitação legal, previsto e punido pelos artigos 3º, nºs 1 e 2 do Decreto-lei nº 2/98, de 3 de Janeiro, por referência ao disposto nos artigos 105º, 106º, 121º e 123º, todos do Código da Estrada e 69º, nº 1, alínea b), do Código Penal, foi submetida a julgamento, em processo sumário, a arguida

MF, (…).

2. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, a 7.1.2021, decidindo-se nos seguintes termos:

“A) Condenar a arguida MF, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punível pelo artº. 3º., nº.s 1 e 2, do Decreto Lei nº. 2/98, de 03/01, por referência ao artº. 121º., nº.s 1 e 4 do Código da Estrada, na redacção actualmente em vigor, em pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de 5,50 € (cinco euros e cinquenta centimos) o que perfaz o total de 825,00 € ( oitocentos e vinte e cinco) euros.

B) Decido não aplicar a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, por falta de fundamento legal, art. 69.º, 1, al. b) a contrario.-

C) Custas do processo pela arguida, fixando-se em 1 UC a taxa de justiça, nos termos do artº. 513º., nº.1 do Código Processo Penal e da tabela III, anexa ao RCP, já reduzida em metade, nos termos do artigo 344º, nº. 2, alínea c) do mesmo diploma legal”.

3. Inconformado com a douta sentença, veio o Ministério Público interpor recurso da mesma, terminando a motivação com as seguintes conclusões:

“1. O Ministério Público deduziu despacho de acusação contra a arguida MF pela prática de um crime de condução de veículo a motor na via pública sem habilitação legal, previsto e punido pelos artigos 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, por referência ao disposto nos artigos 105.º, 106.º, 121.º e 123.º do Código da Estrada e 69.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal.

2. Por sentença datada de 7 de Janeiro de 2021, o Mm.º Juiz do Juízo de Competência Genérica de Cinfães do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, nos autos supra mencionados, condenou MF, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punível pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de 5,50 € (cinco euros e cinquenta cêntimos) o que perfaz o total de 825,00€ (oitocentos e vinte e cinco euros).

3. Mais foi decidido “Não aplicar a pena acessória p. e p. pelo art. 69.º, 1, al. b) do C. Penal, a contrario”.

4. Quanto à condenação da arguida MF na pena acessória de inibição de conduzir veículos a motor, prevista no artigo 69.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, o Mm.º Juiz do tribunal a quo referiu, em síntese: “No entender do Tribunal e salvo devido respeito por opinião diversa, esta pena acessória não se aplica ao tipo legal vertente, na medida em que não se pode considerar que na condução sem habilitação legal esteja em causa uma facilitação do crime, na medida em que a própria utilização de veículo é um elemento constitutivo do tipo de crime. Ora, ainda que seja um crime com utilização de veículo, a utilização do veículo não o facilita de forma relevante, é condição sine qua non para a incriminação da conduta e nessa medida não se inscreve na alínea b) do 69.º, n.º 1 do Código Penal. Ademais as alíneas a) e c) também não contemplam e arredam a punição mediante pena acessória para este tipo de crime. Não podemos dizer que não deve ser aplicada esta pena acessória a quem não disponha de titulo que o habilite legalmente a conduzir, mas tão só que este tipo legal de crime não conduz à punição através desta pena acessória. Tanto é que após a Lei n.º 77/2001, que veio alterar radicalmente a estrutura artigo 69.º., essa questão ficou ultrapassada e, portanto, se refere o artigo 69.º, n.º 1, alínea b) prende-se com a utilização e veiculo como elemento acidental ainda que com o contributo relevante para a conduta ilícita e não já quando a utilização do veiculo seja elemento essencial da conduta ilícita”.

5. Contudo, o crime de condução sem habilitação legal no qual a arguida MF foi condenada está abarcado pela alínea b) do n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal, na medida em que, se a lei não exige que o uso do veículo tenha sido condição necessária da prática do crime, nos casos em que o uso do veículo é condição necessária da prática do crime, por maioria de razão, deverá ser aplicada a pena acessória.

6. Daqui resulta que a norma se basta com um mero auxílio relevante, mas logo surge uma questão necessária: se o legislador quis punir o menos, não quis também punir o mais?

7. Melhor dizendo, não é compreensível que a lei penal punisse um comportamento pelo facto de ele ser facilitador da prática de um crime e não punisse esse mesmo comportamento pelo facto de ele ser essencial para a prática do crime, o que no caso do cometimento do crime de condução sem habilitação legal, a utilização do veículo é essencial, já que, sem o veículo, o crime não seria cometido.

8. Por outro lado, a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, prevista no artigo 69.º do Código Penal, como qualquer outra pena acessória legalmente consagrada, tem uma função preventiva e colaboradora da pena principal.

9. Acresce que as finalidades de prevenção resultam reforçadas pelo facto de, se o agente do crime de condução sem habilitação legal for punido, além da pena principal, com a pena acessória de inibição de conduzir, violando tal proibição pode resultar para o agente, ainda que não seja titular de carta de condução, a responsabilização pela prática, em concurso efectivo, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º do Decreto - Lei n.º 2/98, de 03 de Janeiro, e de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo referido artigo 353.º do Código Penal.

10. Assim sendo, a sentença ora recorrida violou o disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal”.

4.

(…)

8. Dos trabalhos desta resultou a presente apreciação e decisão.


*

            

B - Fundamentação

 1. O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, face ao disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que dispõe que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

São, pois, apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (identificação de vícios da decisão recorrida, previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, pela simples leitura do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379º, nº 2, e 410º, nº 3, do mesmo diploma legal).

O que é pacífico, tanto a nível da doutrina como da jurisprudência (cfr. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113; bem como o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ, nº 7/95, de 19.10.1995, publicado no DR 1ª série, de 28.12.1995; e ainda, entre muitos, os Acórdãos do STJ de 11.7.2019, in www.dgsi.pt; de 25.06.1998, in BMJ 478, pág. 242; de 03.02.1999, in BMJ 484, pág. 271; de 28.04.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág. 193).

2. No caso dos autos, face às conclusões da motivação apresentadas pelo recorrente, a questão a decidir é a seguinte:

- se o crime de condução sem habilitação legal está abarcado pela alínea b), do nº 1, do artigo 69º do Código Penal.

3. Para decidir da questão supra enunciada, esta Relação ouviu a sentença proferida oralmente em sede de audiência de julgamento.

Vejamos então a factualidade da sentença recorrida.

O tribunal a quo deu como provados os seguintes factos:

1. No dia 27 de Dezembro de 2020, pelas 19:15 horas, na via pública, na Estrada Nacional n.º 222, em São Cristóvão de Nogueira, Cinfães, na área desta Comarca de Viseu, a arguida MF conduziu o veículo automóvel da marca Renault, modelo (…), com a matrícula (…).

2. A arguida MF não se encontrava devida e legalmente habilitada para o efeito com um título de condução válido.

3. Quis a arguida MF exercer a condução do mencionado veículo em via pública ou equiparada, como sabia ser o caso, e apesar de igualmente saber que não se encontrava habilitada para o efeito com um título de condução válido, agindo sempre livre, deliberada e conscientemente, ciente de incorrer em responsabilidade penal.

4. A arguida MF sabia que esta conduta era punida e proibida por lei criminal, não se coibindo, porém, de assim actuar.

5.

(…)


*

4. Cumpre agora apreciar e decidir.

A questão que cumpre apreciar é a de saber se o crime de condução sem habilitação legal está abarcado pela alínea b), do nº 1, do artigo 69º do Código Penal.

Defende o recorrente que, da leitura do artigo 69º, nº 1, do Código Penal, facilmente se depreende que o âmbito de aplicação desta pena acessória não está restringida à condenação pela prática dos crimes referenciados na sua alínea a), tanto mais que são enumeradas mais duas alíneas, sendo que, embora não esteja taxativamente elencado, o crime de condução sem habilitação legal cabe no âmbito da alínea b) de tal norma, uma vez que se trata de um crime cometido com utilização de veículo e cuja execução é por este facilitada de forma relevante. … Ora, a lei não exige que o uso do veículo tenha sido condição necessária da prática do crime. Então, se assim é, nos casos em que o uso do veículo é condição necessária da prática do crime, por maioria de razão, deverá ser aplicada a pena acessória.

Mais alega que nestes casos o legislador entendeu que a pena principal, por si só, não seria suficiente para se atingir as finalidades da punição nos crimes rodoviários e que só com a adição da pena acessória é que se conseguiria atingir, de forma plena, o desiderato pretendido com as finalidades da punição, nomeadamente as exigências relacionadas com a prevenção geral de intimidação.  Se o agente do crime de condução sem habilitação legal for punido, além da pena principal, com a pena acessória de inibição de conduzir, violando tal proibição pode resultar para o agente, ainda que não seja titular de carta de condução, a responsabilização pela prática, em concurso efectivo, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º do Decreto - Lei n.º 2/98, de 03 de Janeiro, e de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo referido artigo 353.º do Código Penal, o que resulta num reforço das finalidades preventivas das penas.

Por sua vez, ouvida a sentença, o julgador, neste particular e como consta na peça recursória, referiu que:

“No entender do Tribunal e salvo o devido respeito por opinião diversa, esta pena acessória não se aplica ao tipo legal vertente, na medida em que não se pode considerar que na condução sem habilitação legal esteja em causa uma facilitação do crime, na medida em que a própria utilização de veículo é um elemento constitutivo do tipo de crime. Ora, ainda que seja um crime com utilização de veículo, a utilização do veículo não o facilita de forma relevante, é condição sine qua non para a incriminação da conduta e nessa medida não se inscreve na alínea b) do 69.º, n.º 1 do Código Penal.

Ademais as alíneas a) e c) também não contemplam e arredam a punição mediante pena acessória para este tipo de crime. Não podemos dizer que não deve ser aplicada esta pena acessória a quem não disponha de titulo que o habilite legalmente a conduzir, mas tão só que este tipo legal de crime não conduz à punição através desta pena acessória.

Tanto é que, após a Lei n.º 77/2001, que veio alterar radicalmente a estrutura do artigo 69.º, essa questão ficou ultrapassada e, portanto, se refere que o artigo 69.º, n.º 1, alínea b), prende-se com a utilização do veículo como elemento acidental ainda que com o contributo relevante para a conduta ilícita e não já quando a utilização do veiculo seja elemento essencial da conduta ilícita”.

Vejamos, então.

Com a epígrafe Proibição de conduzir veículos motorizados, o artigo 69º, nº 1, do Código Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 48/95, de 15.3, estipulava que:

1 - É condenado na proibição de conduzir veículos motorizados por um período fixado entre 1 mês e 1 ano quem for punido:

a) Por crime cometido no exercício daquela condução com grave violação das regras do trânsito rodoviário; ou

b) Por crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante.

Com a Lei nº 77/2001, de 13 de Julho, o referido artigo 61º, nº 1, passou a ter a seguinte redacção:

1 - É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido:

a) Por crime previsto nos artigos 291.º ou 292.º;

b) Por crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante; ou

c) Por crime de desobediência cometido mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para detecção de condução de veículo sob efeito de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo.

Assim, do confronto das duas redacções, resulta que a alínea b) mantem-se inalterada. Foi aditada uma alínea c), que nada releva para o caso sub judice.

Por sua vez, a alínea a) sofreu uma profunda alteração. O legislador afastou-se de um conceito aberto e que levaria a várias interpretações, (crime cometido no exercício daquela condução com grave violação das regras do trânsito rodoviário) para concretizar quais os crimes que são punidos com a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor. São eles os crimes previstos nos artigos 291º e 292º, ambos do Código Penal.

Na vigência da primeira redacção, discutia-se se o crime de condução sem habilitação legal se enquadrava na referida alínea a); isto é, se era um crime cometido no exercício da condução com grave violação das regras do trânsito rodoviário.

Porém, jamais a questão se colocou no sentido da condução sem habilitação legal se enquadrar na alínea b) do nº 1, do artigo 69º.

De facto, sempre se entendeu que nesta alínea cabem as situações em que o veículo é instrumento do crime, modo da sua realização, interveniente no seu cometimento, não visando exclusivamente a condução em si, sem o agente ser portador de licença ou carta.

Como se referiu no Ac. da RG de 3.11.2003, in www.dgsi.pt “A sanção acessória de proibição de conduzir prevista na alínea b) do n° 1 do artº 69º do C. Penal, que estabelece a sua aplicação "Por crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante", não se aplica aos casos de condenação por crime de condução de veículo na via pública sem habilitação, p. e p. pelo artº 3º da Lei nº 2/98, de 03.01.

O preceito em causa pretende abarcar claramente situações em que o veículo é instrumento do crime, considerando-se não a condução em si mesma, mas antes o uso de veículo na prática de um crime, cuja execução, por via de tal uso de veículo, se vê facilitada em termos apreciáveis.

Na verdade, os crimes que a esta disposição legal estarão subjacentes e a cuja punição acessória se dirige, deverão ser crimes que, embora sendo praticáveis sem a utilização de veículo, (o que não acontece com a condução ilegal), quando o forem merecerão o agravamento punitivo que a disposição em análise prevê”.

A ser assim, após a entrada em vigor da Lei nº 77/2001, de 13 de Julho, tornou-se pacífico que o crime de condução sem habilitação legal não é punido com a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor.

O artigo 69º, nº1, do Código Penal, sofreu ainda as alterações conferidas pela Lei nº 19/2013, de 21.2, sendo a seguinte a redacção actual:

 1 - É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido:

a) Por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário e por crimes previstos nos artigos 291.º e 292.º;

b) Por crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante; ou

c) Por crime de desobediência cometido mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para detecção de condução de veículo sob efeito de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo.

A alínea b) mantém-se novamente inalterada. A alínea a) volta a sofrer alterações, com o aditamento de outros crimes punidos com a referida pena acessória, sem que a condução sem habilitação legal seja um deles.

Aliás, se dúvidas restassem após a entrada em vigor da Lei nº 77/2001, de 13.7, em relação ao crime de condução sem habilitação legal, o legislador poderia ter esclarecido a situação na Lei nº 19/2013, de 21.2. Ao aditar novos crimes à alínea a), poderia ter incluído o crime de condução sem habilitação legal, se entendesse que também esse era punido com a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados.

O que não fez. O que reforça a posição de que, a partir da Lei nº 77/2001 de 13.7, ficou claro que o crime de condução sem habilitação legal não é punido com a dita pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor.

Neste sentido já pronunciou tanto a doutrina como a jurisprudência.

Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 3ª ed. actualizada, pág. 349, afirma de forma peremptória que “esta sanção acessória não é aplicável a quem seja condenado apenas pelo crime de condução sem habilitação legal, atenta a alteração da redacção do artigo 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal, pela Lei nº 77/2001, de 13.7”.

Defende que “a pena acessória é aplicável nos casos de crime de condução perigosa (artigo 291º), crime de condução sob efeito do álcool (artigo 292º) ou crime de desobediência cometido mediante recusa de submissão a exame adequado. … A proibição é ainda aplicável no caso de facilitação da prática do crime com utilização do veículo, seja na preparação, execução ou encobrimento do mesmo. A Lei nº 19/2013, de 21.2, prevê a aplicação da proibição por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário”.

No Ac. da RC de 23.1.2002, in CJ, tomo I/2002, defende-se que “o artigo 69º do Código Penal foi objecto de alteração por efeito da publicação e entrada em vigor da Lei nº 77/200 1, de 13 de Julho. Como se vê da redacção dada à al. a), do seu nº 1, certo é que deixou de ser aplicável a pena acessória de proibição de conduzir por crime cometido no exercício da condução de veículos motorizados com grave violação das regras do trânsito rodoviário, passando aquela pena acessória a ser aplicável, apenas, por crime previsto no art. 291º (condução perigosa de veículo rodoviário) ou no art. 292º (condução de veículo em estado de embriaguez).

Por outro lado, no aditamento feito mediante a introdução de uma nova alínea, qual seja a c), apenas se contempla situação decorrente da prática de crime de desobediência cometido mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para a detecção de condução de veículo sob o efeito do álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo.

Certo é que o caso ou situação ora em apreciação - crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal - não se enquadra na previsão de qualquer uma daquelas duas alíneas, nem na alínea b), a qual se refere a crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante.

Destarte, ter-se-á de concluir que por efeito da alteração introduzida ao art. 69º, do Código Penal, a prática de crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal deixou de ser punível com pena acessória de proibição de conduzir”.

Também a Relação de Évora se pronunciou no mesmo sentido no Acórdão de 30.10.2001, in CJ, tomo IV/2001, onde se pode ler que “era nosso entendimento que a sanção acessória de proibição de conduzir prevista no artigo 69º do CP era aplicável ao arguido sancionado por um crime de condução sem habilitação legal. … Porém, a nova redacção dada ao artigo 69º leva-nos a reformular a nossa posição, o que, aliás, já fizemos no Ac. Rel. Ev. de 30 de Outubro de 2001 - proc. nº 257/01.

O artigo 69º, nº 1, a) do CP dispunha que seria condenado na proibição de conduzir veículos motorizados por um período fixado entre 1 mês e 1 ano quem for punido por crime cometido no exercício daquela condução com grave violação das regras do trânsito rodoviário. Entendíamos, assim, que conduzir, veículos motorizados, pela via pública, sem habilitação legal era um crime de exercício de condução cometido com grave violação das regras de trânsito, pois que a obrigatoriedade de habilitação legal para conduzir na via pública é uma das regras de trânsito imposta aos cidadãos. Mesmo que o agente não tenha violado quaisquer das outras regras estradais, ao conduzir sem carta, está a violar a regra de trânsito que lhe dá acesso à faculdade de conduzir e de pautar a sua conduta no exercício da condução, por forma consciente, de acordo com o demais direito rodoviário.

Hoje, porém, a redacção do preceito é diversa, dispondo a Lei nº 77/2001 de 13 de Julho que é condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido por crime previsto nos arts. 291º ou 292º do CP.

A nova redacção do art. 69º nº 1 a) limitou a aplicação da pena subsidiária de proibição de conduzir veículos com motor, aos crimes de condução perigosa de veículo rodoviário (art. 291º do CP), e de condução de veículo em estado de embriaguez (art. 292º do CP).

É certo que permaneceu inalterado o pressuposto da alínea b) do nº 1 do art. 69º do CP, cuja redacção se transcreve "E condenado na proibição de conduzir veículos com motor,..., quem for punido:... por crime cometido com a utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante", contudo, o crime de condução sem habilitação legal continua a não ser enquadrável neste dispositivo legal. Conduzir na via pública, veículo automóvel, sem para tal se encontrar habilitado, é um crime "a se" diferente dos eventuais crimes que possam ocorrer no exercício dessa condução, cometidos com a utilização do veículo. Uma coisa é o crime decorrente da prática de uma actividade de condução ilegal (por falta de carta ou de outro documento habilitante) outra são os crimes que a utilização do veículo, possam ocasionar e só estes são enquadráveis na alínea b) do nº 1 do art. 69º do CP.

Não pode, pois, considerar-se que o arguido tenha cometido um crime, diferente, com a utilização do veículo e cujo exercício tenha sido por este facilitado de forma relevante; pois o crime praticado não foi com a utilização do veículo, mas, pelo contrário, consistiu precisamente em o utilizar sem ser titular de licença. …  

É, pois, de concluir que, em face da alteração sofrida pelo art. 69º do CP ex vi do art. único da Lei nº 77/2001 de 13 de Julho, o crime de condução de veículos motorizados, na via pública, por quem não seja titular de licença de condução não é punido com a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor”.

A Relação de Lisboa toma a mesma posição no Ac. de 3.7.2003, in CJ, tomo IV/2003, onde se diz que “no âmbito de aplicação do art. 69º do CP na versão introduzida pela Lei nº 48/95, de 15 de Março, era entendimento corrente na jurisprudência e na doutrina, como salienta a magistrada recorrente, que era de aplicar a sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados a quem fosse condenado por crime de condução sem habilitação legal. No essencial, e era só este o argumento decisivo, entendia-se face à redacção do preceito que a condução sem habilitação legal era um crime cometido com grave violação das regras de trânsito rodoviário (al. a) do nº 1 do citado artigo). Era, aliás com o mesmo fundamento que se punia então com a mesma pena acessória quem fosse condenado pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez do art. 292º CP. Considerava-se, em síntese, não haver violação dos princípios da tipicidade e da legalidade ao buscar-se uma sanção acessória do CP para punir uma conduta criminosa prevista em lei extravagante, sendo que tal entendimento era até o que se harmonizava com a unidade do sistema.

Com a entrada em vigor da Lei nº 77/2001, de 13 de Julho, a redacção do dito art. 69º foi alterada passando a ser, para o que aqui interessa, a seguinte:

1- É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por período fixado entre três meses e três anos quem for punido:

a) Por crime previsto nos artigos 291º ou 292º;

b) Por crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante; ou

c) por crime de desobediência cometido mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para detecção de condução de veículo sob efeito de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo.

Face a esta nova redacção é claro que o legislador excluiu a aplicação da sanção acessória em causa às infracções cometidas no exercício da condução com grave violação das regras de trânsito, passando a enunciar de forma taxativa tipologia legal à qual é aplicável essa sanção. A alteração terá tido a ver com as dificuldades de definição e aplicação de um conceito excessivamente vago como é o de "grave violação das regras de trânsito". Assim sendo, parece à primeira vista que, agora, está expressamente excluída a aplicação da proibição de conduzir veículos motorizados aos autores do crime de condução sem habilitação legal.

Quem não está de acordo com esta ideia é a magistrada recorrente que, admitindo não ser de condenar o arguido com base na alínea a) do nº 1 do art. 69º pretende ser de incluir o crime em questão na previsão agora da al. b) considerando-o um crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante.

Evidentemente que sem razão.

O preceito tinha já existência na versão anterior do art. 69º (também na al. b) do nº 1) e nunca foi considerado que nele se integrasse a condução sem habilitação legal. No entendimento corrente "sempre se quis com ele identificar as situações em que o veículo é instrumento do crime, modo da sua realização, interveniente no seu cometimento" não visando exclusivamente "a condução em si, sem o agente ser portador de licença ou carta" (citado Ac. Rel. Lisboa de 02.04.10; no mesmo sentido Maia Gonçalves, C. Penal Anotado, 12ª ed. P. 240, considerando haver exigência cumulativa e não alternativa)”.

Por último, faz-se referência ao Ac. da RG de 26.1.2009, in www.dgsi.pt, nos termos do qual “Após a entrada em vigor da Lei n.º 77/01, de 13 de Julho, que deu nova redacção ao artigo 69 do Código Penal, deixou de ser aplicável a pena acessória de proibição de conduzir por crime no exercício de condução de veículos motorizados com grave violação das regras de trânsito rodoviário, passando aquela pena acessória a ser aplicável apenas no caso de prática dos crimes previstos nos artigos 291 e 292 daquele Código.

Para ser aplicada a pena acessória de proibição de conduzir, prevista no art. 69º, 1, b) do Código Penal, exige-se não só que o crime seja cometido ao volante de um automóvel, mas ainda que a condução seja um elemento essencialmente facilitador da prática do crime e que o veículo seja utilizado como um verdadeiro instrumento do crime, que seja usado como “meio de arremesso” para o cometimento do delito”.

Como ficou dito, de modo conciso, no acórdão da Relação do Porto de 28/9/2005 (CJ IV-238), «a norma só pode, pois, referir-se a crimes que nada têm a ver com condução defeituosa, a crimes que o arguido decidiu cometer, isto é, dolosos, utilizando como instrumento o veículo, e facilitando este de forma relevante a execução do crime»”. IV - Quando a lei fala em “crime cometido com utilização de veículo” não pode estar a referir-se à mera condução de veículo, a crime resultante de condução defeituosa, porque se assim fosse não haveria espaço para aplicação da exigência cumulativa “e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante.

Portanto, no caso de condenação pela prática de crime de condução de veículos motorizados sem a habilitação legal, não é aplicável a pena acessória de proibição de conduzir”.

Doutrina e jurisprudência que se acompanha.

Acresce que, como refere o tribunal a quo, a questão não se traduz em saber se a pena acessória em causa deve ser aplicada a quem não disponha de título que o habilite legalmente a conduzir, mas tão só que este tipo legal de crime não é punido com esta pena acessória.

A ser assim, não se coloca a questão da necessidade da aplicação da dita pena.

O que fica dito é bastante para se concluir que não assiste razão ao recorrente. O crime de condução de veículo sem habilitação legal não é punido com a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, prevista no artigo 69º do Código Penal.

Recentemente, esta Relação de Coimbra decidiu no mesmo sentido, por Acórdão de 23.6.2021, proferido no Recurso nº 270/19.0GACNF.C1.


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Improcedendo, assim, a questão suscitada pelo recorrente, deve ser negado provimento ao recurso.

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C – Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, decidem manter a sentença recorrida.


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Sem custas, por delas estar isento o recorrente – artigo 4º, nº1, alínea a), do RCP.

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Notifique.

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Coimbra, 8 de Setembro de 2021.

(Elaborado pela relatora, revisto e assinado electronicamente por ambos os signatários – artigo 94º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal).

Rosa Pinto (relatora)

Orlando Gonçalves (adjunto)