Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MARIA JOÃO AREIAS | ||
Descritores: | TRANSMISSÃO DE CRÉDITOS HABILITAÇÃO DO ADQUIRENTE LEGITIMIDADE PROCESSUAL APENSO DE VERIFICAÇÃO DE CRÉDITOS | ||
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Data do Acordão: | 05/04/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO – JUÍZO DE COMÉRCIO DO FUNDÃO | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTºS 54º, Nº 1, E 263º, Nº 1 DO NCPC. | ||
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Sumário: | 1. A transmissão inter vivos não determina a suspensão da causa, sendo facultativa a habilitação do adquirente, continuando o transmitente a ter legitimidade para a causa, produzindo contra o adquirente, mesmo que este não intervenha, efeitos de caso julgado. 2. Transmitido o direito de crédito ou alienada a coisa objeto do litigio, embora já sem interesse na ação, por ter deixado de ser o sujeito ativo da relação substantiva, continua a ter legitimidade ad causam até ao seu termo, configurando-se a sua posição como substituto processual do adquirente. 3. Conhecida a cessão na pendência do apenso de verificação e graduação de créditos, o transmitente mantém a legitimidade para a causa até à habilitação do cessionário (artigo 263º, nº1 do nCPC); contudo, nas sequentes fases de satisfação dos créditos, seja pela liquidação e rateio do produto da massa pelos credores, seja pela aprovação de um plano, só ao verdadeiro e atual titular do direito de crédito é atribuída legitimidade para intervir nos autos (artigo 54º, nº1 nCPC). 4. A não convocação do verdadeiro titular do crédito, quando constitua um dos cinco maiores credores constituirá motivo de recusa da homologação de um plano que, em tais condições, vier a ser aprovado. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I – RELATÓRIO Nos presentes autos de insolvência relativos A..., Lda., apresentado que foi um plano de insolvência pelo Administrador de Insolvência (A.I.) e submetido a votação na Assembleia para o efeito convocada de 04 de dezembro de 2019, fez-se constar da ata que tal plano obteve 38,41% de votos favoráveis, 45,10% de votos contra e 0,22% de abstenções. Dentro do prazo de 10 dias, o ISS, IP. – Centro Distrital de (…) veio a apresentar o seu voto favorável. Pela A.I. foi junto requerimento no qual afirma que, pela verificação da maioria qualificada de votos emitidos pelos credores com créditos reconhecidos, se encontra aprovado o plano de pagamentos: Pelo juiz a quo foi, a 20.12.2019, proferido o Despacho de que agora se recorre, no qual se fez constar que, tendo votado favoravelmente o plano de insolvência credores cujos créditos totalizam 50,89% com direito de voto, e que votaram contra credores cujos créditos representam 45,10% dos créditos com direito de voto, não se encontra verificada a maioria qualificada exigida para a verificação do quórum deliberativo a que se refere o artigo 212º CIRE (2/3 do valor total dos votos emitidos), declarando não aprovado o Plano de Insolvência apresentado pela A.I. Não se conformando com tal decisão a Insolvente dela vem interpor recurso de Apelação, cujas alegações terminam com as seguintes conclusões: A. O cerne do recurso prende-se com a legitimidade do voto de um credor que, previamente à assembleia de credores havia já cedido o seu crédito e que na Assembleia que apreciou o plano votou contra este plano. B. De facto, a sentença proferida a 19 de Dezembro determina que “não se encontrar verificada a maioria qualificada exigida para a verificação do quórum deliberativo a que se refere o artigo 212.º n.º 1 do CIRE; refere a sentença que o plano de insolvência não foi aprovado por mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e em consequência, declarou-se não aprovado o plano de insolvência apresentado pela Sra. Administradora da Insolvência, tendo para esta contabilização sido determinante o crédito do Credor Banco... C. Resulta dos autos, designadamente do mapa dos créditos da Assembleia de Credores, elaborado pela Senhora Administradora, que o credor em causa representa um total de 39,34% dos créditos, o que tem como consequência que a sua não admissão à votação na Assembleia, como defende a Recorrente, tenha como consequência que a decisão do M.mo Juiz a quo haja de ser diversa daquela que foi tomada, atento a que sem este voto contra verifica-se a votação de dois terços de votos favoráveis ao plano. D. Esta questão da legitimidade do Banco ... já oportunamente foi suscitada nos autos, em concreto no Apenso “E”, apresentado no dia 5 de Setembro de 2019. E. Conforme resulta da comunicação anexada aquele requerimento (e que se anexa uma vez mais ao presente recurso) por carta datada de 12 de Agosto de 2019, a H... comunicou à Recorrente que o crédito detido pelo Banco ... havia sido cedido à entidade A..., S.A. F. No apenso “E” veio o M.mo Juiz veio a decidir que enquanto não se mostrasse realizada a habilitação processual nos autos, que “Quanto à reportada cessão de créditos de fls. 116 a 118, não tendo até à data sido promovido nos autos o competente incidente de Habilitação de Cessionário e em face do disposto no artigo 263º, n.º 1, CPC, afigura-se-nos que o credor Banco ... continua a ter legitimidade para a causa, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do mesmo preceito quanto aos efeitos da decisão.” ORA, G. Não obstante este despacho, que até se compreendia no contexto do que estava em discussão no apenso em causa (no caso no Apenso E dos autos), é modesto entendimento da Recorrente que na presente situação apenas a Cessionária dos Créditos poderia votar na assembleia; e que tendo esta questão sido suscitada naquele Apenso em setembro, que até à Assembleia de Dezembro decorreu tempo suficiente para que as interessadas, no caso a Cedente ou cessionária, tivessem promovido a competente habilitação processual. H. Não desconhece a Recorrente que nos termos do disposto no artigo 577º, n.º 1 do Código Civil, o credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor. De igual modo não se ignora o que dispõe o n.º 1 do artigo 582º do Código Civil, quando refere que “na falta de convenção em contrário, a cessão do crédito importa a transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do direito transmitido que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente”. I. O que está em causa é exatamente esta questão, que se extrai do numero 1 do artigo 582.º do Código Civil, que se delimitou supra em termos de legitimidade para um determinado credor poder votar na Assembleia quando é do conhecimento do devedor que já não é o titular do crédito. J. Entende-se que conforme resulta da letra deste preceito, a cessão do crédito importa a transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do direito transmitido que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente e essa cessão há muito que se havia consumado, razão pela qual não poderá o Cedente votar na Assembleia, atendo a que o direito a votar é inseparável do direito de crédito e assume-se no tocante a este como um direito acessório do direito transmitido. K. De outro modo, a admitir-se o voto do Banco ..., tal implica a manutenção na esfera jurídica do novo banco de um direito que é em si mesmo inseparável de um crédito que esta entidade já não detém (e já não detinha na data da votação na assembleia). L. Como é consabido e pacífico, a cessão produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite”, artigo 583º, n.º 1 do Código Civil, que foi o que se verificou com a comunicação de 12 de Agosto de 2019, a partir da qual o crédito passou para a esfera jurídica da Cessionária. M. No momento desta comunicação consumou-se definitivamente a substituição de credor originário por outro; ou seja, consumou-se a modificação subjetiva da obrigação, pois se até aí o contrato tinha apenas eficácia entre cedente e cessionário, a partir deste momento passou a ter eficácia também relativamente ao terceiro envolvido no negócio, no caso passou a ter efeitos relativamente ao devedor originário. N. E se esta questão da eficácia do contrato da cessão de créditos tem suscitado algumas questões e controvérsias ao nível da doutrina e jurisprudência, a partir do momento em que ocorre a comunicação ao devedor, deixa de subsistir qualquer questão para se discutir a sua eficácia, até porque as questões que normalmente se colocam e subsistem prendem-se exatamente com os efeitos da cessão na esfera jurídica do devedor, se esta está ou não dependente da comunicação formal dos cedente e cessionário. O. Assim, na situação em apreço nos presentes autos, no momento daquela Assembleia, a 4 de Dezembro, verificavam-se todas as condições objetivas e subjetivas atento a que a cessão de créditos já havia operado e, de igual modo, havia já sido comunicada à devedora por aquela comunicação de 19 de Agosto P. Por outro lado, conforme notado, a devedora já no apenso “E” havia suscitado a legitimidade da cedente e entre este suscitar desta questão e a Assembleia de Credores decorreram mais de três meses, tempo mais que suficiente para se ter verificado a habilitação processual da Cessionária, o que deve ter como consequência a ilegitimidade do voto do Banco ... Q. Pelo exposto é modesto entendimento da Recorrente que apenas a Cessionária dos Créditos poderia votar na assembleia e que tendo esta questão sido suscitada naquele Apenso em setembro, que até à Assembleia de Dezembro decorreu tempo suficiente para que as interessadas, no caso a Cedente ou cessionária, tivessem promovido a competente habilitação processual. R. Conforme resulta da letra deste preceito, a cessão a cessão do crédito importa a transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do direito transmitido que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente e essa cessão há muito que se havia consumado, razão pela qual não poderá o voto do Cedente Banco ... ser considerado na referida Assembleia de 4 de Dezembro, já que o direito a votar é inseparável do direito de crédito e assume- se, no tocante a este, como um direito acessório do direito transmitido. Nestes termos, e nos mais de direito, sempre com o mui douto suprimento de V Ex.as que desde já se invoca, devem as presentes contra alegações serem recebidas e, após a sua normal tramitação, consideradas procedentes e, consequentemente, declarado que no âmbito de uma decência de créditos, só o cessionário pode votar na Assembleia que aprecie o plano, atento a que este direito a votar é inseparável do direito de crédito, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 582.º do Código Civil, tudo com as legais consequências, designadamente em termos de apreciação das votações do referido plano. No caso em apreço o insolvente veio dar conhecimento ao processo de insolvência da cessão de créditos que lhe fora notificada por requerimento datado de 5 de setembro de 2019, numa altura em que havia já sido proferida decisão de verificação dos créditos não impugnados, entre os quais se incluía o crédito do Banco ..., mas em que não havia sido ainda proferida sentença de verificação dos demais créditos impugnados e de graduação de todos os créditos verificados. Ou seja, poderemos assim afirmar, sem grande margem para dúvidas, de que nos encontrávamos “na pendência” do procedimento respeitante à verificação e graduação de créditos (a que respeita o Apenso E), razão pela qual, o juiz a quo, então, e bem, proferiu decisão no sentido de que “não tendo até à data sido promovido nos autos o competente incidente de Habilitação de Cessionário e em face do disposto no artigo 263º, nº1 CPC, afigura-se-nos que o credor Banco ... continua a ter legitimidade para a causa”. Vem agora a devedora/Insolvente questionar a legitimidade do transmitente Banco ... para participar e votar na Assembleia de Credores para discussão e aprovação do Plano de Insolvência apresentado pelo A.I. (assembleia prevista no artigo 209º), legitimidade que, nesta fase, assume contornos não necessariamente semelhantes aos verificados no Apenso da verificação e graduação de créditos. De harmonia com o disposto no artigo 1º do CIRE, o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem por finalidade a liquidação de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista no plano de insolvência. Constituindo o processo de insolvência um processo especial e complexo, composto por procedimentos declarativos e procedimentos executivos, Catarina Serra[7] qualifica o poder de requerer a declaração de insolvência como um poder de ação declarativa, sustentando que, só na fase da reclamação e verificação de créditos, é dada aos credores (neles se incluindo o requerente) a faculdade de exercerem o seu poder de execução. Como sustenta Catarina Serra, os credores estão a exercer o seu poder de execução no processo de insolvência quando fazem valer judicialmente o direito de ser satisfeitos à custa do património do devedor, ou seja, quando reclamam os seus créditos[8]. Contudo, e uma vez que os titulares de créditos não necessitam, sequer, de se encontrar munidos de um título executivo, o direito de execução de cada um dos credores tem de ser objeto de certificação, sendo antecedido e aferido através de um novo procedimento declarativo pelo qual cada um dos credores reclama o seu direito, com a consequente faculdade de impugnação dos demais créditos reclamados e respetivas garantias, seguido da consequente decisão sobre os créditos reclamados e garantias que os acompanham, culminando na determinação da sua graduação pelo produto dos bens da massa falida. O concurso de credores compreende, assim, duas fases, a fase da verificação de créditos – fase declarativa para apuramento dos créditos reclamados – e uma fase executiva na qual se procede à liquidação do património do devedor/insolvente e à distribuição do produto da venda, em conformidade com o decidido na sentença de verificação e graduação de créditos ou à satisfação de tais créditos pela forma prevista no plano de insolvência (artigo 1º CIRE)[9]. Nesta fase posterior, em que é exercido, de facto, o poder executivo – seja através da liquidação e repartição do produto obtido pelos credores, seja pela aprovação de um plano de insolvência – terá de ser o efetivo titular do crédito, ou seja, neste caso o cessionário que detém legitimidade, seja para participar no procedimento de liquidação dos bens da massa, seja para receber o respetivo pagamento. Também no caso de discussão e aprovação de um plano – pressupondo os poderes de transacionar, seja votando o perdão de dívidas, seja na concessão de moratórias, seja na constituição ou extinção de garantias do crédito (ou como se lhes refere o artigo 196º, “providências com incidência no passivo” –, visando-se, também, através dele a satisfação dos credores, embora através de outros meios que não a liquidação do património do devedor ou para além desta, nos deparamos com um procedimento de cariz executivo. Custas a suportar pelo Apelante. Coimbra, 04 de abril de 2020
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