Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
84/20.5T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: MANDATO
OBRIGAÇÕES DO MANDATÁRIO
OBRIGAÇÃO DE PRESTAR CONTAS.
Data do Acordão: 06/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DA FIGUEIRA DA FOZ DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APRLAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 1161.º, ALÍNEA D), DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – A obrigação de prestar contas que impende sobre o mandatário verifica-se quer o mandato seja representativo, quer não.

II – A obrigação de o mandatário prestar contas só surge ou só se justifica se a execução do mandato tiver reflexos patrimoniais entre ele e o mandante, i.e., quando haja, entre e um e outro, créditos e débitos recíprocos, competindo a quem exige a prestação das contas alegar, de modo concludente, essa repercussão patrimonial recíproca.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

AA e BB, propuseram contra CC e cônjuge, DD acção de prestação de contas, com processo especial, pedindo a condenação dos últimos:

a) A prestar contas de todos os atos que praticaram ao abrigo do mandato que lhes foi conferido, de movimentar a conta bancária existente no ... – ... (...04) ..., com o n.º ...26, no período compreendido entre .../.../1978 e Novembro de 2012, bem como a prestar contas sobre as inúmeras operações bancárias de levantamentos e transferências por ambos realizadas para as suas contas pessoais e em benefício próprio, sem autorização da mandante, no período compreendido entre Outubro de 2002 e Novembro de 2012, para apuramento das receitas obtidas e das despesas realizadas e, sendo caso disso,

b) Do saldo que vier a apurar-se.

Fundamentaram esta pretensão no facto de EE, mãe dos autores e do réu CC, ter, em .../.../1978, constituído o último e o cônjuge, DD, seus procuradores, conferindo-lhes poderes para movimentar a sua conta bancária no ..., agência de ..., podendo levantar depositar e levantar dinheiro, passar e assinar cheques e efectuar transferências bancárias, tendo instituído aqueles como seus mandatários por não saber ler nem escrever e necessitar do seu auxílio para movimentar a conta, de desde aquela data, terem sido sempre os réus, âmbito do mandato, a movimentar, em exclusivo, essa conta, mesmo despois de EE ter vindo residir para Portugal e de, ao longo dos anos, os réus, sem o seu conhecimento e contra a sua vontade, terem transferido quantias daquela conta para as suas contas pessoais e levantado dela diversas quantias de que se apropriaram, tendo-se recusado, apesar da solicitação de EE, falecida no dia .../.../2015, a prestar contas.

Os réus defenderam-se por excepção dilatória, invocando a ineptidão da petição inicial, a ilegitimidade ad causam dos autores e o erro na forma do processo, e por impugnação, negando a veracidade dos factos alegados por aqueles como causa de pedir.

Os autores, na resposta, reiteraram que a falecida EE constituiu os réus seus mandatários, dando-lhes poderes para a movimentar e efectuar operações bancárias na sua conta e que os últimos, no âmbito daquele mandato, movimentaram a conta efectuando diversas operações e transferências bancárias, nomeadamente para sua conta em Portugal, utilizando o dinheiro em proveito próprio.

Entretanto, por virtude do falecimento, na pendência da causa, do autor BB, foram habilitados, como seus sucessores, para com eles prosseguirem os termos da demanda, FF, GG, HH, II e JJ.

Realizada a inquirição das testemunhas, a Senhora Juíza de Direito, julgou improcedentes as excepções dilatórias arguidas pelos réus e, com fundamento em que os autores não lograram provar a relação contratual que invocaram entre a falecida EE e os réus e que mesmo se considerasse provada a outorga da procuração a conferir poderes aos réus para movimentar a conta bancária da mãe de que autores e réu, tal factualidade era insuficiente para gerar a obrigação de contas, dado que não basta a existência de um mandato para gerar a obrigação de prestação de contas, que só tem interesse quando haja, em relação às partes, créditos e débito recíprocos, e que a factualidade alegada e provada não permite concluir pela existência de uma administração de bens geradora de créditos e débitos – absolveu os réus do peticionado.

É esta sentença que a autora e os habilitados em substituição do primitivo autor impugnam no recurso, no qual pedem a sua revogação e a substituição por outra que condene os réus no pedido.

Ordenados para inculcar a falta de bondade da decisão impugnada, os apelantes extraíram da sua alegação estas conclusões:

I - Os AA não se conformam com a sentença proferida porque entendem que a prova produzida impõe decisão diversa, designadamente a obrigação de prestar contas pelos RR, nos termos peticionados, e ao abrigo do disposto no artigo 635º n.º3 do Código de Processo Civil, interpõem recurso que versa sobre os pontos que foram considerados provados e os que foram considerados não provados, abrangendo o presente, matéria de facto e matéria de direito.

II - Entendem os AA, que existiu erro na apreciação da prova, assim como contradição entre a fundamentação e a prova produzida, que impunha que a decisão fosse outra, conforme se irá demonstrar.

III - A obrigação de prestar contas faz parte de um amplo dever de informação a cargo de quem gere o que não é seu, tendo por objecto o apuramento e a aprovação das receitas e despesas realizadas. Existe mesmo um princípio geral de que quem administra bens ou interesses alheios tem de prestar contas ao respectivo proprietário. Este é um daqueles princípios que, no dizer de KK, se deduzem da «regulação legal, da sua cadeia de sentido, por via de uma “analogia” ou do retorno à ratio legis» 1 nomeadamente, do disposto no art. 941.º do Código de Processo Civil.

IV – Quanto à factualidade provada das alíneas A) está em contradição com os factos provados em sede de audiência e com a prova documental junto aos autos, com efeito, em 31.10.2021 a EE não era titular da conta bancária, existente no ... – ... (...04) ..., com o n.º ...26, nela figurando os réus com a menção de “mandatários”, porque nessa data já a mesma havia falecido.

V - Da prova documental junto aos autos designadamente o documento A, pode ler-se na sua data 31.10.2012 e da certidão de óbito da EE junto aos autos sob o doc. n.º 89, resulta que a mesma faleceu no dia .../.../2015.

VI - Quanto ao facto provado na alínea D) é falso que: “Em 12.11.20212 EE, outorgou procuração aos seus outros dois filhos aqui Autores, concedendo-lhes poderes para movimentar a referida conta bancária.” A procuração encontra-se junto aos autos como doc. n.º 88 e é datada de 09.11.2012.

VII - A prova documental junto aos autos impõe decisão diversa da proferida naquelas duas alíneas A) e D) da factualidade provada – são factos dados como provados factos que estão errados e baseados em fundamentação errada – tratam-se de nulidades da decisão.

VIII - Segundo o Ac. STJ de 03/03/2021 – proc. 3157/17.... “As nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou atividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afetam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito.

XIX - Assim sendo, deverá ser declarada a nulidade da sentença nos termos do art.º 615º do C.P.C., pelos motivos invocados.

X – Facto não provado – PONTO 1 - Um dos factos que foi considerado não provado foi o PONTO 1, não obstante, ter sido feita prova testemunhal inequívoca de que após o óbito do marido da EE, os RR ficaram a ter acesso à conta bancária supra indicada e eram os RR que tinham poderes para a movimentar, como mandatários.

XII - O facto dos RR constarem como mandatários da conta significa que a EE teve necessariamente que outorgar uma procuração para o efeito. Ora, o banco não incluiria os RR na conta com essa designação se não tivesse uma procuração, e de acordo com o artigo 262º do Código Civil – “uma procuração é o ato pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos, entendendo-se por representação voluntária a atribuição de poderes pelo titular da conta individual a terceiros, seus representantes.”

XIII - A EE não sabia ler nem escrever e, durante período não concretamente determinado, residiu com os RR em ..., tendo constituído os RR como seus mandatários da sua conta bancária, e fê-lo, naturalmente, porque e conforme resultou da prova testemunhal EE era analfabeta, não sabia falar francês, e principalmente não sabia o que era o dinheiro, prova mais que evidente que necessitava que alguém a ajudasse a movimentar a sua conta bancária, sobretudo num país que não o seu e sem conhecer a língua.

XIV - É, pois, notório, e isso decorre da prova produzida, que os RR passaram a movimentar a conta assim que o marido da EE faleceu, em .../.../1978, tendo acesso à conta bancária desde essa data até 2012, gerindo-a, administrando-a, efetuando transferências e levantamentos, até os AA terem a procuração que consta nos autos, datada de 9 de novembro de 2012.

XV - O dever de prestar contas a que se reporta o processo especial de prestação de contas centra-se essencialmente na prática de atos de gestão de negócios ou bens alheios ou comuns às partes, não sendo essencial que decorra de um contrato celebrado entre estas; basta que decorra da lei ou mesmo de princípios gerais.

XVI - Errou o tribunal a quo, pois não valorou devidamente a prova, admitindo factos em contradição ao que ficou provado, pois a resposta aos mesmos encontra-se em discordância com o depoimento das testemunhas, os quais não foram valorados. Deveria o tribunal dar como provado este facto 1, a prova assim o impõe.

XVII - A Meritíssima Juiz a quo deu este facto do PONTO 2 como não provado, não só por desconhecer o teor da procuração, a sua data, e ao que acresce, a referida testemunha, funcionário bancário em ..., ser filho dos Autores e, portanto, com natural interesse no desfecho da causa, ainda que não releve, cumpre esclarecer que a testemunha não é filho dos Autores, mas apenas da Autora.

XVIII - Ora, o titular de uma conta bancária pode nomeadamente entre outros, depositar e levantar dinheiro, passar e assinar cheques, saldar contas, efetuar transferências da referida conta bancária, bem como receber os respetivos juros, todos estes atos se traduzem em movimentar a conta bancária. Os RR na qualidade de mandatários podiam sozinhos movimentar a conta como se fossem os titulares, podendo praticar, os atos acima referidos.

XIX - Perfilhando o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, Acórdão de 25.06.2002 - Proc. ...2: “I - A titular pode autorizar ou conferir o poder de movimentar a conta de depósito bancário a terceiro e se este aceitar tais poderes, obriga-se a praticar, em nome dele, os actos jurídicos de efectuar depósitos e levantamentos o que consubstancia o contrato de mandato. II - Esse terceiro fica obrigado a prestar contas aos legítimos herdeiros da falecida, na qualidade de mandatária desta e relativamente à movimentação da conta.

XX - Tanto em ... como em Portugal, quem detém autorização para movimentar a conta de terceiro, figura nela como autorizante, e quem detém procuração para movimentar a conta de terceiro, figura nela como mandatário. Não obstante, a Meritíssima Juiz deu como provado que os RR constavam na conta da EE, como mandatários, mas alegou que não se conseguiu provar a outorga da procuração. Ora, tal conclusão está em manifesta contradição pois, se os RR eram mandatários da conta, teve que ser outorgada uma procuração para o efeito.

XXI – Refere ainda a sentença que não basta a existência de um mandato para gerar a obrigação de prestação de contas, o que não se compreende, ora, se os RR figuravam na conta bancária de EE como mandatários da conta, têm a obrigação de prestar contas nos termos do artigo 1161º alínea d) do Código Civil.

XXII - Constam na norma do artigo 1161º do C.C. as obrigações a que o mandatário está obrigado em virtude da qualidade em que intervém. Assim, partindo da interpretação literal da norma, o mandatário fica sujeito a determinadas obrigações pelo facto de aceitar ser mandatário do mandante, presumindo-se que o mandato seja gratuito, excepto se tiver por objecto atos que o mandatário pratique por profissão, neste caso, presume-se oneroso.

XXIII – Ao não condenar os RR a prestar contas violou, pois, a Meritíssima Juiz o artigo 1161 alínea d) do Código Civil.

XXIV - Vide Ac. Tribunal da Relação de Guimarães de 23.4.2020, 2629/08, “A obrigação de prestar contas do mandatário enquadra-se numa relação jurídica de natureza patrimonial, a qual pode ser objeto de sucessão, transmitindo-se, enquanto obrigação, aos herdeiros do mandatário, e enquanto direito, aos herdeiros do mandante (artigo 2024º do Código Civil).

XXV - Ao serem atribuídos aos RR poderes representativos como mandatários estes passam a ser titulares dos direitos e obrigações do mandatário/representante (art.ºs. 1161º e 1178º do Código Civil). No presente caso, os RR eram mandatários da conta bancária e nessa qualidade tinham poderes para a movimentar (ato que, indubitavelmente, produz efeitos jurídicos), receber as pensões e efetuar pagamentos, efetuar transferências, levantamentos em numerário, entre outros, como efetivamente ficou provado que o fizeram.

XXVI - E como demonstrado ficou, os AA não possuem as informações de que necessitam, mas sim os RR, devendo os mesmos ser condenados a prestar contas e a apresentar as informações e documentos necessários.

XXVII - Agora, não pode é ser coartado um direito aos AA plasmado na lei, cuja prova produzida impõe que as contas sejam prestadas, só porque as testemunhas apresentadas eram familiares dos AA e sem qualquer outra fundamentação.

XXVIII - Se a prova testemunhal não fosse valorada por ser prestada por familiares, jamais, seria admitida no âmbito do processo civil. O tribunal, mais uma vez fez uma errada valoração da prova, pois, também este facto 2 havia de ter sido considerado provado.

XXXIX - PONTO 3 DOS FACTOS Não PROVADOS - Decorre das regras da experiência comum, é do conhecimento do qualquer cidadão comum, que uma pessoa que resida num país estrangeiro, nomeadamente em ..., sem saber ler, nem escrever, nem falar francês, sem saber contar o dinheiro, como a EE, consiga sozinha movimentar a sua conta bancária, sendo por esses motivos, que os RR foram incluídos na sua conta bancária, permitindo-lhes o livre acesso e a movimentação da mesma, conforme fizeram ao longo dos anos.

XL- No entanto, A Meritíssima Juiz deu como provado que a EE com 87 anos de idade, apesar de analfabeta, sempre trabalhou, era financeiramente independente, era capaz de autonomamente, realizar transferências bancárias e outorgar procuração em nome próprio a favor dos autores, quando da prova produzida resultou o contrário.

XLI – À evidência se prova, que a fundamentação deste ponto está em flagrante desconformidade com os elementos de prova testemunhal, errou o tribunal a quo ao dar como não provado um facto e ao retirar conclusões de um facto cuja prova produzida revela o contrário. Todas as testemunhas referiram que a EE se ia ao banco não ia sozinha, a transferência dos ...0 mil euros foi feita por si, mas acompanhada pela filha, assim bem como, a procuração que outorgou em 9 de novembro de 2012, já com 87 anos de idade, foi acompanhada, pelo que, jamais poderia ser dada esta conclusão de que a EE era autonomamente capaz.

XLII - Torna-se necessário que no livre exercício da convicção o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção do facto como provado ou não provado, possibilitando, assim, um controle sobre a racionalidade da própria decisão.

XLIII - O Tribunal "a quo" fez assim, uma errada desvalorização dos depoimentos e dos factos, dando como não provado o ponto 3, quando o mesmo deveria ter sido dado como provado, como resulta da lógica e da experiência comum.

XLIV - Mais uma vez, o Tribunal “a quo”, dá como não provado o facto 3, quando da prova produzida em conjugação com as regras da experiência comum, resulta precisamente o contrário, devendo ter sido considerado provado.

XLV - Quanto ao PONTO 4 dos FACTOS Não PROVADOS - Analisados os extratos juntos aos autos datados de outubro de 2002 a novembro de 2012, verifica-se que os créditos existentes nos mesmos provêm sempre das mesmas entidades referentes a pensões, sendo que ao longo dos anos, algumas entidades passaram a ter novas designações.

XLVI - Mais uma vez, a Meritíssima Juiz fez tábua rasa da prova produzida, além de que, num raciocínio lógico, sempre seria de concluir, que a EE ficou a auferir uma pensão do falecido marido, e só depois de reformada, ficou a auferir as suas duas pensões, pelo que, teriam necessariamente, que ser diversas as fontes de crédito nos extratos bancários.

XLVII - Mais uma vez, a Meritíssima Juiz fez tábua rasa da prova produzida, não só porque nunca foi alegado que a EE auferia uma única pensão, paga por uma única entidade, mas igualmente, porque num raciocínio lógico, sempre seria de concluir, que a EE ficou a auferir uma pensão do falecido marido, e só depois de reformada, ficou a auferir as suas duas pensões, pelo que, teriam necessariamente, que ser diversas as fontes de crédito nos extratos bancários.

XLVIII - É certo que os extratos estão em francês, mas são perfeitamente percetíveis, e face à sua composição por nomenclaturas entendeu-se que não traria vantagem a sua tradução, porém caso V. Exas. entendam que será útil para a decisão dos autos, desde já se disponibilizam os AA para a apresentar, nos termos do art. 134º do CPC.

XLIX - Ponto 5 dos Factos não provados deveria ter sido considerado provado, pela prova testemunhal produzida, pelos motivos invocados e pelas regras da experiência comum, que não deixam dúvidas de que assim aconteceu.

L - Da certidão de óbito de EE, decorre que a mesma faleceu em .../.../2015 com noventa anos, tinha 65 anos em 1990, e desde que se reformou veio para Portugal, ou seja, desde 1990 que passava os meses de março a outubro em Portugal.

LI - Os extratos juntos aos autos datam de 0utubro de 2002 até Novembro de 2012 e neles são visíveis transferências avultadas, e levantamentos em numerário, mesmo nos meses em que a EE se encontrava em Portugal, ou seja, nos meses de março a outubro de cada ano.

LII - Atentando na prova produzida, e sendo as transferências com a designação AP transferências para Portugal, e o movimento com a designação “RETRAIT ESPECES” levantamento em dinheiro, podemos verificar, que tais transferências da conta de ... para Portugal e levantamentos em numerário ocorriam mesmo nos meses de abril a outubro de cada ano, ou seja, nos meses em que a EE se encontrava em Portugal. Prova mais que evidente, que se a EE estava em Portugal e as transferências e os levantamentos em espécie continuavam a ser feitos em ..., não eram realizados por ela, só podiam ser realizados por quem tinha poderes para o fazer, os aqui RR, seus mandatários.

LIII - Conforme refere o Ac. T. Relação de Guimarães de 22/04/2021 – proc. n.º3003/17.2T8BCL.G1 “É irrelevante nesta fase, que não se tenha dado como provado que os RR efetuaram levantamentos, pagamentos e aplicações em proveito próprio, ou que emitiram cheques, sem qualquer justificação ou autorização da Autora; o importante é que efetuaram esse tipo de atos relativamente a fundos da Autora e que têm de ser considerados como de administração, implicando a sua movimentação e aplicação.”

LIV - Os recorrentes consideram que o Tribunal a quo não valorou sem razão as provas carreadas pelos AA, descredibilizando os depoimentos das suas testemunhas, por serem seus familiares. Ora, tal não é admissível, pois, tratando-se este processo de situações ocorridas no âmbito das relações familiares entre mãe e filhos, ocorridas em ..., terão necessariamente que ser os familiares a deporem sobre as mesmas, porque são os únicos que possuem conhecimento direto sobre os factos e porque também eles residem em ....

LV - Em vez de considerar os factos 1,2,3,4, e 5 provados, ao invés, foram dados como não provados, com base uma fundamentação vaga, imprecisa, incompreensível, com erros crassos, sem uma lógica razoável, verificando-se que foram apreciados pela “rama”, sem cuidar de conjugar e valorar todos os elementos de prova, quer testemunhal quer documental e sem considerar as regras da experiência comum, da realidade da vida e do normal acontecer.

LVI - Ao ignorar todos estes elementos, o tribunal a quo violou o disposto nos artºs. 5º n. º1 als. a) e b) e o art. 941º do Código de Processo Civil e ainda o disposto na al. d) do art. 1161 do Código Civil.

LVII - A obrigação de prestar contas pode resultar da lei, de negócio jurídico, e até, do princípio geral da boa fé que impõe expressamente essa obrigação.

LVIII - No caso dos autos, existem elementos suficientemente esclarecedores que conduzem a concluir que a falecida EE constituiu os RR seus mandatários para movimentar a conta bancária, atendendo ao facto de não saber ler, nem escrever, não saber falar francês e nem saber contar o dinheiro.

LIX - Ainda que assim se não entendesse, e porque a fonte da administração que gera a obrigação de prestar contas não releva, já o que importa é o facto da administração de bens alheios, seja qual for a sua fonte, existindo dúvida razoável sobre o destino que deu em relação a bens alheios, a obrigação dos recorridos encontraria fundamento na obrigação de informação prevista no art. 573º do C.C. normativo que o tribunal a quo, identicamente, violou a par do princípio da tutela jurisdicional efetiva.

LX - É certo, que a obrigação de prestar contas é uma derivação da obrigação mais ampla de informação, e esta existe sempre que o titular de um direito tenha dúvidas fundadas acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias – artigo 573º do CC.

LXI - Todavia, não basta que impenda sobre o réu o dever de informação para que se lhe possa assacar uma obrigação de prestar contas. É pressuposto essencial a gestão de bens alheios, geradora de créditos e de débitos cujo saldo se pretende apurar e que, nos termos do artigo 944 n.º1 do CPC devem ser apresentadas em forma de conta corrente.

LXII - Essa administração de bens alheios ficou provada nos autos não só através das testemunhas, mas também dos extratos bancários nos quais constam detalhadamente os créditos e os débitos.

LXIII - Cremos sem qualquer dúvida, que os AA alegaram e provaram a razão porque pedem contas aos RR e porque entendem que sobre os RR impende a obrigação de prestar contas – ora, foram os RR que movimentavam e geriram a conta da EE, como mandatários, administrando bens que só dela eram, e como tal têm a obrigação de prestar contas aos seus herdeiros.

LXIV - O tribunal a quo fez tábua rasa das regras formais inerentes ao ónus da prova, debelando ab initio a prova das testemunhas por serem familiares dos AA, prova que deveria ser considerada e conjugada com a prova documental, e não foi.

LXV - O tribunal recorrido descredibilizou, a prova testemunhal e a sua força, violando o direito material probatório, bem como, os princípios da livre apreciação da prova e da equidade.

LXI - No que concerne à deficiente apreciação da prova operada, diga-se, antes de mais, que o circunstancialismo fático inerente aos presentes autos se insere num ambiente familiar, entre os AA e Réu marido, que são irmãos, sendo a Ré mulher cunhada dos AA. São questões de natureza familiar e patrimonial que dizem respeito e são apenas do conhecimento dos familiares próximos, pelo que as testemunhas teriam que ser necessariamente familiares próximos dos AA e dos RR.

LXII - Existiu erro notório na apreciação dos meios de prova produzidos, assim como contradição entre a fundamentação e os factos dados como não provados.

LXIII – Padece a sentença a quo de vício de fundamentação, porquanto não é criticamente analisada a prova (mormente a documental), nem alegados fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão, quanto aos factos não provados e os que são alegados estão em contradição com a prova produzida.

LXIV - Atendendo ao vertido no art. 945º n. º 5 do CPC o Tribunal deverá atender ao prudente arbítrio, às regras da experiência de um bom pai de família e, bem assim, a um juízo de equidade. Salvo o devido respeito, o tribunal a quo não teve em consideração o positivado da norma, uma vez que descredibilizou a prova testemunhal, em vez de a ter apreciado em consonância com a prova documental, na sua extensão e plenitude.

       LXV - A livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável. Há-de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão.

LXV - Termos em que, dúvidas não podem existir de que a decisão agora objecto de recurso, não valorou nem apreciou devida e correctamente a prova produzida, e a prova documental, interpretando também incorrectamente as normas legais e princípios processuais em vigor, pelo que deverá ser revogada a decisão do tribunal a quo, por outra que condene os RR na obrigação de prestar contas dos atos por si praticados.

LXVI - Existiu erro notório na apreciação da prova – devendo ser alterada a matéria de factos provados nas alíneas A) e D) conforme o exposto e a matéria dos factos não provados em 1, 2, 3, 4 e 5 considerados provados.

Não foi oferecida resposta.

Por despacho de 6 de Abril de 2022, com fundamento em que evidenciando o teor dos documentos juntos aos autos onde se baseou a convicção do Tribunal (doc. A e 88) ter ocorrido lapso de escrita nas datas mencionadas nos pontos A) e D) dos factos provados da sentença, procedeu-se à sua rectificação nos seguintes termos (art. 613º, nº 2, 614º, nºs 1 e 2 do CPC):

No ponto A) dos factos provados, onde se escreveu 31.10.2021, deve passar a constar 31.10.2012.

No ponto D) dos factos provados, onde se escreveu 12.11.2012, deve passar a constar 09.11.2012.

O relator corrigiu, ex-offício, o erro relativo ao efeito atribuído ao recurso.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.

O Tribunal de que provém o recurso decidiu a matéria de facto nestes termos:

2.1.1. Factos provados.

A) Em 31.10.2021, EE, era titular da conta bancária, existente no ..., ... (...04) ..., com o n. º ...26, nela figurando os réus com a menção de “mandatários”.

B) No dia .../.../2015 faleceu EE, no estado de viúva de BB, tendo deixado como únicos herdeiros os seus filhos, autores e réu.

C) A referida EE não sabia ler nem escrever e, durante período não concretamente determinado, residiu com os réus em ....

D) Em 12.11.20212 EE, outorgou procuração aos seus outros dois filhos aqui Autores, concedendo-lhes poderes para movimentar a referida conta bancária.

2.1.2. Factos não provados

1)  Em .../.../1978, EE, então viúva de BB, mãe dos aqui Autores e do aqui Réu CC, constituiu seus bastantes procuradores os RR, a quem conferiu os mais amplos poderes para movimentar a sua conta bancária, existente no ... – ... (...04) ..., com o seguinte n. º ...26.

2) podendo os RR nomeadamente, depositar e levantar dinheiro, passar e assinar cheques, saldar contas, efetuar transferências da referida conta bancária, bem como receber os respectivos juros (doc. n.º A).

3) A EE instituiu os réus seus mandatários porque necessitava que a auxiliassem na movimentação da referida conta.  

4) Era nessa conta bancária, que eram, unicamente, creditadas as pensões que auferia a referida EE.

5) Assim, desde .../.../1978, foram os RR, que administraram e movimentaram exclusivamente essa conta bancária, tratando, de todos os assuntos com ela relacionados, até mesmo, após a referida EE ter vindo residir para Portugal.

2.1.3.  A Sra. Juíza de Direito adiantou, para justificar o julgamento referido em 2.1. e 2.2., esta sumária motivação:

A convicção do Tribunal quanto aos factos provados ancorou-se na prova documental, designadamente o documento A cuja tradução foi junta em sede de audiência, assento de óbito, escritura de habilitação e procuração datada de 12.11.2012 juntos à petição.

O facto provado c) decorre da prova testemunhal que foi unânime quanto a tal matéria e se coaduna com a idade da falecida, já que eram várias as mulheres da sua geração, que não tiveram oportunidade de aprender a ler e a escrever.

Os factos não provados decorrem da falta de prova ou prova bastante conducente à respectiva demonstração.

Assim, quanto aos factos não provados nºs 1 e 2, não obstante no documento A junto com a petição figurarem os réus com a menção de “mandatários” e o depoimento da testemunha LL, funcionário bancário em ... e filhos dos autores, sugerirem a outorga de procuração a favor dos réus, a verdade é que se desconhece o seu teor (e o âmbito dos poderes conferidos) e respectiva data, ao que acresce a referida testemunha ser filho dos autores (e, portanto, com natural interesse no desfecho da causa), razões pelas quais a respectiva factualidade se tem como não provada.

O facto nº 3 é infirmado pela prova testemunhal e documental, que revela que a EE apesar de não saber ler nem escrever, sempre trabalhou, era financeiramente independente, era capaz de, autonomamente, realizar transferência bancárias (referem as testemunhas que fez transferência de 10.000,00 €), e outorgou procuração em nome próprio a favor dos autores.

O facto nº 4 também é contrariado pela prova produzida, já que os movimentos a crédito revelados nos extractos bancários juntos indiciam ser diversas as respectivas fontes.

O facto não provado nº 5 resulta da falta de prova quanto ao mesmo, designadamente quanto à autoria dos réus relativamente às transferências e levantamentos que lhes são imputados.

A demais matéria alegada que não consta dos factos provados nem dos não provados, ou é irrelevante para a decisão da causa ou de natureza conclusiva, ou ainda acessória de factos consignados e atendidos na formação da convicção, razões pelas quais não foi selecionada.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação do âmbito objectivo do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (art.º 635 nºs 2, 1ª parte, e 3.º a 5.º, do CPC).

Um dos fundamentos da impugnação consiste na nulidade substancial da sentença, no tocante a decisão dos pontos de facto nela identificados com as letras A) e D), respeitante às datas neles mencionadas, relativas à titularidade por EE da conta bancária e à outorga, por esta, de procuração a favor da autora e do primitivo autor, por contradição entre essas datas e a prova documental representada pela certidão do óbito de EE e pelo instrumento da procuração, respectivamente.

Simplesmente, a Sr.ª Juíza de Direito, com fundamento na incorreção material daqueles pontos de facto, procedeu, oficiosamente, à rectificação das datas neles indicadas, no sentido propugnado pelos apelantes.

A decisão de correção integrou-se na decisão corrigida (art.º 617.º, nº 2, 2ª parte, do CPC). Dessa integração resulta uma inevitável repercussão sobre o recurso interposto, que provocou uma modificação automática do seu objecto: o recurso passou a ter por objecto a sentença tal como se apresenta agora, em consequência da integração da nova decisão na primitiva (art.º 617.º, nº 2, por analogia, do CPC).

Todavia, a nova decisão não desfavorece os recorrentes, antes os favorece. Ora, perante a decisão corrigida, em sentido favorável aos apelantes, o recurso, nessa parte, já não tem razão de ser.

Em consequência da modificação da sentença impugnada e, consequentemente do objecto do recurso, estava indicado, talvez, que os recorrentes restringissem o seu objecto ou dele desistissem, na parte, evidentemente, em que a nova decisão os favorece. Todavia, mesma na ausência daquela restrição ou desta desistência é claro que o recurso se tornou, nessa parte, supervenientemente inútil, com a consequente extinção, no segmento correspondente, do direito à impugnação (art.º 277, e), do CPC).

Em todo o caso, não deixa de notar-se que a arguição da nulidade, pelo motivo indicado pelos apelantes, deveria julgar-se improcedente, dado que a contradição entre um facto e a prova susceptível de demonstrar a sua realidade, resolve-se num error in iudicando, por erro na aferição ou na avaliação dessa mesma prova e não num error in procedendo, como é caracteristicamente aquele que fundamenta o valor negativo da nulidade substancial da sentença.

Porém, segundo os impugnantes a sentença encontra-se ferida com o desvalor da nulidade, por uma outra razão - o vício de fundamentação, porquanto não é criticamente analisada a prova (mormente a documental), nem alegados fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão, quanto aos factos não provados e os que são alegados estão em contradição com a prova produzida.

Nestas condições, tendo em conta os parâmetros de delimitação da competência decisória deste Tribunal representados pelo conteúdo da decisão recorrida e da alegação dos apelantes a fundamental questão concreta controversa que há que resolver é a de saber se aquela decisão deve ser revogada e substituída por acórdão que condene os apelados no pedido.

A resolução deste problema vincula, naturalmente, ao exame, leve, mas minimamente estruturado, das causas de nulidade da sentença representadas pela falta de fundamentação e pela contradição intrínseca, dos poderes de controlo desta Relação relativamente à decisão da matéria de facto da 1ª instância e dos pressupostos de constituição da obrigação de prestação de contas. Por último, importa proceder, de harmonia com os parâmetros daqueles poderes de controlo, à reponderação da decisão da matéria de facto da 1.ª instância.

3.2. Nulidade substancial da decisão impugnada.   

Segundo os recorrentes a decisão impugnada encontra-se ferida com vício de fundamentação, por falta de exame crítico da prova e de motivação de facto e de direito, relativamente aos factos julgados não provados, que a justifiquem, e por contradição entre os factos não provados e a prova produzida.

A falta de motivação ou fundamentação da sentença verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um qualquer pedido, mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão (art.º 615.º, nº 1, a), do CPC). A nulidade decorre, portanto, da violação do dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais, embora se deva notar que apenas a ausência absoluta de qualquer fundamentação – e não a fundamentação, avara, insuficiente ou deficiente - conduz à nulidade da decisão. Realmente, o que a lei considera nulidade é a falta absoluta, completa, de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente: afecta o valor persuasivo da decisão – mas não produz nulidade[1] (art.ºs 208.º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, e 154.º, nº 1, do CPC).

Uma das funções essenciais de toda e qualquer decisão judicial é convencer os interessados do seu bom fundamento. A exigência de motivação da decisão destina-se a permitir que o juiz ou juízes convençam os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz ou juízes devem passar de convencidos a convincentes. A fundamentação da decisão é, pois, essencial para o controlo da sua racionalidade, sendo exigida para controlar a coerência interna e a correção externa dessa mesma decisão. Pode mesmo dizer-se que esta racionalidade é uma função daquela fundamentação. E como a racionalidade da decisão só pode ser aferida pela sua fundamentação, esta fundamentação é constitutiva dessa mesma racionalidade.

No caso, os apelantes acham que a sentença impugnada é omissa quanto à motivação dos factos que teve por não provados.

A lei de processo é terminante na exigência da especificação, na decisão na matéria de facto, dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador sobre a prova, ou a ausência dela, dos factos (art.º 603º, n.º 4, do CPC).

Como, em regra, as provas produzidas, na audiência final ou fora dela, estão sujeitas à livre apreciação, o decisor da matéria de facto deve indicar os fundamentos suficientes para, que através das regras de ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado (art.º 605.º n.º 4, proémio, do CPC). Note-se que com a exigência de motivação não se visa a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz; a finalidade é limitadamente a de persuadir os destinatários da correcção da sua decisão.

A apreciação de cada meio de prova pressupõe o conhecimento do seu conteúdo, a determinação da sua relevância e a sua valoração.

Como, evidentemente, não é possível submeter a apreciação da prova a critérios objectivos a lei apela – e contenta-se – com a convicção íntima ou subjectiva, mas prudente, do tribunal. A convicção exigida para a demonstração da realidade ou da inveracidade de um facto é uma convicção que, para além de dever respeitar as leis da ciência e do raciocínio, pode assentar numa regra máxima da experiência. A convicção sobre a prova do facto fundamenta-se em regras de experiência – que tanto podem corresponder ao senso comum como a um conhecimento técnico ou científico especializado - baseadas na normalidade das coisas – o id quod plerumque accidit - e aptas a servirem de argumento justificativo dessa convicção. A convicção do tribunal extraída dessas regras da experiência é uma convicção argumentativa, isto é, uma convicção demonstrável através de um argumento.

No caso, a leitura da motivação da adiantada pela decisora da 1ª instância para justificar o julgamento da matéria de facto que julgou não provada, mostra que não é particularmente pródiga - sendo mesmo avara - na exposição das provas que a convenceram da falta de realidade dos factos que declarou não provados, da relevância que deu às várias provas produzidas e das razões que impediram uma convicção sobre a veracidade daquele segmento dos factos controvertidos. Apesar disso, deve entender-se que sentença torna patentes, ainda que de modo parco, as razões que foram decisivas para a sua convicção sobre falta de prova dos factos controvertidos que julgou não provados, com as quais procurou convencer as partes da correcção ou da bondade da sua decisão, facultando, assim, aos apelantes o exercício, sem embaraço, do seu direito de a impugnar.

Tanto quanto é possível inferir a alegação dos apelantes, o vício da falta de fundamentação, no tocante aos factos que considerou não provados, resultaria, no seu ver, da omissão, na sentença, do exame crítico das provas que lhe serviram de base.

A sentença deve ser motivada através da exposição, designadamente, dos fundamentos de facto (art.º 607.º, n.º 3, do CPC).

Integram esses fundamentos de facto – que respeitam aos factos relevantes que foram adquiridos durante a tramitação da causa – designadamente os factos julgados provados pelo tribunal na fase da audiência final, e os factos que resultam do exame crítico das provas, i.e., aqueles que podem ser inferidos, por presunção judicial ou legal, dos factos provados (art.ºs 349.º e 351.º do Código Civil e 607.º, n.º 4 do CPC). A análise crítica das provas a que a sentença deve proceder refere-se a duas provas que, aliás, só em sentido lato se podem considerar provas: as presunções; o impropriamente chamado ónus da prova.

Se da factualidade assente ou da julgada provada na fase da audiência - constarem factos – indiciários – de que possa concluir outros por presunção, de facto ou de direito, é lícito ao juiz tirar na sentença essa conclusão. Se a prova produzia não permitir resolver alguma questão de facto, quer dizer, no caso de dúvida insanável ou irredutível – ou questão insanável ou irredutivelmente incerta – a lei manda aplicar o sistema do algo impropriamente chamado ónus da prova: a análise do cumprimento do ónus da prova, que é uma das formas de fixação dos factos que á sentença compete conhecer (art.º 414.º do CPC e 346.º, in fine, do Código Civil).

No caso, é claro que a sentença impugnada procedeu àquela análise crítica no tocante à situação de non liquet, dado que foi justamente por considerar que os apelantes, parte adstrita ao ónus de demonstrar a veracidade dos factos que julgou não provados, não satisfizeram esse ónus, que proferiu uma decisão contra eles (art.º 414.º, do CPC). De outro aspecto, os recorrentes não individualizam, a partir dos factos assentes ou dos que resultaram da decisão da matéria de facto, os factos probatórios dos quais se pudesse inferir outros – designadamente os que foram julgados não provados – por presunção, de facto, legal ou judicial. E, na verdade, os factos julgados assentes não permitem, comprovadamente, que a partir deles se possa inferir, por presunção, judicial ou natural, a realidade dos factos julgados não provados, dado que, para o efeito considerado, não são inequívocos, i.e., não fazem aparecer como necessária a existência destes últimos e, portanto, não são idóneos para, por via de uma regra de experiência - id quod plerumque accidit – se concluir pela realidade dos factos considerados não provados.

Não há, pois, fundamento sério para, por este motivo, estigmatizar a sentença impugnada com o valor negativo da nulidade.

Mas vamos que, realmente, o decisor de facto do tribunal de que provém o recurso omitiu a especificação dos fundamentos suficientes para controlar a razoabilidade da sua convicção sobre o julgamento dos factos que considerou não provados. Ainda que fosse o caso, de uma tal omissão, não resultaria, em caso algum, a nulidade da sentença contestada.

Apesar de actualmente o julgamento da matéria de facto se conter na sentença final, há que fazer um distinguo entre os vícios da decisão da matéria de facto e os vícios da sentença, distinção de que decorre esta consequência: os vícios da decisão da matéria de facto não constituem, em caso algum, causa de nulidade da sentença, considerado além do mais o carácter taxativo da enumeração das situações de nulidade deste último acto decisório.

A decisão da matéria de facto está, na realidade, sujeita a um regime diferenciado de valores negativos - a deficiência, a obscuridade ou contradição dessa decisão ou a falta da sua motivação - a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação: qualquer destes vícios não é causa de nulidade da sentença, antes é susceptível de lugar à actuação por esta Relação dos seus poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto da 1ª instância (art.º 662.º, nº 2 c) e d), do CPC). Assim, no caso de a decisão da matéria de facto daquele tribunal se não mostrar adequadamente fundamentada, a Relação deve – no uso de uma forma mitigada de poderes de cassação – reenviar o processo para a 1ª instância para que a fundamente (art.º 662.º, nº 2 do CPC)[2].

Salienta-se este ponto, dado que, segundo os apelantes, a nulidade da sentença decorreria, no caso, da falta de fundamentação da decisão da matéria de facto. Ora, nem a falta de fundamentação da decisão da questão de facto constitui causa de nulidade da sentença, nem, de resto, se verifica uma tal omissão.

A decisão é igualmente nula quando se encontra ferida de contradição intrínseca, i.e., quando os seus fundamentos estiverem em oposição com a parte decisória, quando os fundamentos invocados pelo tribunal conduzirem, logicamente, a uma conclusão oposta ou, pelo menos, diferente daquela que consta da decisão (art.º 615.º c), 1.ª parte, do CPC. Esta nulidade substancial está para a decisão do tribunal como a contradição entre o pedido e causa de pedir está para a ineptidão da petição inicial.

A sentença apelada estabeleceu que os apelados não demonstraram a existência da relação contratual entre a sua antecessora e os réus e desta premissa extraiu a improcedência da acção, com a consequente absolvição dos apelados do pedido. Esta decisão não colide com os fundamentos em que se apoia.

Não existe, realmente, vício lógico na construção da sentença, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduzem logicamente ao resultado expresso na decisão e não a resultado oposto. Desde que, bem ou mal, se assentou na falta de prova, designadamente, do mandato alegado pelos autores como causa de pedir, a sentença não podia, realmente, condenar os demandados na realização da prestação de contas e só uma decisão com tal conteúdo brigaria com aquele fundamento, estaria em oposição com ele. A sentença apelada também não sofre, portanto, de vício lógico que irremediavelmente a comprometa.

Em qualquer caso – e como já se fez notar – a colisão entre as provas e a decisão de julgar um provado ou não provado, constitui, não um caso de nulidade da sentença, por contradição intrínseca – mas um nítido erro de julgamento, por erro na avaliação ou apreciação da prova.

De resto – e como é, aliás, frequente - a arguição da nulidade da sentença não toma em devida e boa conta o sistema a que, no tribunal ad quem, obedece o seu julgamento.

O julgamento, no tribunal hierarquicamente superior, da nulidade obedece a um regime diferenciado conforme se trate de recurso de apelação ou de recurso de revista.

Na apelação, a regra é da irrelevância da nulidade, uma vez que ainda que julgue procedente a arguição e declare nula a sentença, a Relação deve conhecer do objecto do recurso (artºs 665.º, nº 1, n.º 1 do CPC).

No julgamento da arguição de nulidade da decisão impugnada de harmonia com o modelo de substituição, impõe-se ao tribunal ad quem o suprimento daquela nulidade e o conhecimento do objecto do recurso (artºs 665.º, nº 1 e 684.º, nº 1, do CPC).

Contudo, nem sempre, no julgamento do recurso, se impõe o suprimento da nulidade da decisão recorrida nem mesmo se exige sempre sequer o conhecimento da nulidade, como condição prévia do conhecimento do objecto do recurso. Exemplo desta última eventualidade é disponibilizado pelo recurso subsidiário. O vencedor pode, na sua alegação, invocar, a título subsidiário, a nulidade da decisão impugnada e requerer a apreciação desse vício no caso de o recurso do vencido ser julgado procedente (art.º 635.º, nº 2, do CPC). Neste caso, o tribunal ad quem só conhecerá da nulidade caso não deva confirmar a decisão, regime de que decorre a possibilidade de conhecimento do objecto do recurso, sem o julgamento daquela arguição.

Raro é o caso em que o recurso tenha por único objecto a nulidade da decisão recorrida: o mais comum é que a arguição deste vício seja apenas mais um dos fundamentos em que o recorrente baseia a impugnação. Sempre que isso ocorra, admite-se que o tribunal de recurso possa revogar ou confirmar a decisão impugnada, arguida de nula, sem previamente conhecer do vício da nulidade. Isso sucederá, por exemplo, quando ao tribunal hierarquicamente superior, apesar de decisão impugnada se encontrar ferida com aquele vício, seja possível revogar ou confirmar, ainda que por outro fundamento, a decisão recorrida. Sempre que isso suceda, é inútil a apreciação e o suprimento da nulidade, e o tribunal ad quem deve limitar-se a conhecer dos fundamentos relativos ao mérito do recurso e a revogar ou confirmar, conforme o caso, a decisão impugnada (art.º 130.º  do CPC)[3].

A arguição da nulidade da decisão – embora muitas vezes assente numa lamentável confusão entre aquele vício e o erro de julgamento – é uma ocorrência ordinária. A interiorização pelo recorrente da irrelevância, no tribunal de recurso, que julgue segundo o modelo de substituição, da nulidade da decisão impugnada, obstaria, decerto, à sistemática arguição do vício correspondente.

Por este lado, é, pois, clara a falta de bondade do recurso. Resta, por isso, o fundamento relativo error in iudicando, por erro na apreciação ou valoração das provas, testemunhal e documental, que os recorrentes são terminantes em imputar à sentença impugnada.

Entre a matéria de direito e a matéria de facto existe uma interdependência que se verifica na sua delimitação recíproca, em especial na sua confluência para a obtenção da decisão de um caso concreto. Dado que a delimitação da matéria de facto é feita em função da matéria de direito – visto que os factos são recortados e escolhidos segundo a sua relevância jurídica, i.e., segundo a sua importância para cada um das soluções plausíveis da questão de direito - justifica-se, metodologicamente, que a exposição subsequente se abra com a determinação dos exactos parâmetros da obrigação – e do simétrico direito subjectivo - a que, segundo os recorrentes, os recorridos estão adstritos: a obrigação de informação, na modalidade de prestação de contas.

3.3.  Obrigação de informação e obrigação de prestação de contas.

Juridicamente, a obrigação de informação – a que corresponde um simétrico direito a ser informado – tem um carácter marcado pela instrumentalidade, razão que explica a sua construção a partir da sua indispensabilidade para o exercício de outros direitos: a informação não é, em si mesma, um fim – mas um meio de permitir o exercício, pelo seu titular, de um outro direito. A tutela do direito à informação é instrumental perante outras situações decorrentes do direito substantivo, porque esse direito é ainda um meio de tutela dessas situações.

O Direito Civil português disponibiliza uma previsão, com carácter geral, da obrigação ou do dever de informar (art.º 573 do Código Civil). Doutrina e jurisprudência são acordes em que a constituição dessa obrigação de informação exige a verificação cumulativa de dois pressupostos: a dúvida fundada, do titular de um direito, sobre a sua existência ou o seu conteúdo; a existência de outrem em condições de prestar as informações necessárias (art.º 573 .º do Código Civil)[4].

Espécie particular da prestação de informação é, decerto, a prestação de contas. A sua especificidade ou alteralidade relativamente à obrigação geral de informação reside nisto: é uma obrigação de informação pormenorizada, de forma vinculada, dado que se exige a discriminação da proveniência das receitas e a aplicação das despesas e o respectivo saldo (art.º 944.º, nº 1, do CPC). Esta última razão explica que a prestação de contas não se satisfaça com a simples entrega dos documentos comprovativos da despesa e da receita[5].  Neste sentido, a obrigação deve ser entendida, não como um simples dever de informação sobre o objecto do direito de outrem – mas como obrigação de informação detalhada das receitas e despesas efectuadas, acompanhada da justificação e documentação de todos os actos de que é uso exigir e guardar documento (art.º 941.º do CPC).

O sujeito passivo e activo da obrigação de prestação de contas individualizam-se, por recurso a este princípio geral, com relativa facilidade: essa obrigação recai sobre quem administra bens ou interesses alheios – ainda que só parcialmente – e beneficia o titular desses mesmos bens ou interesses (art.º 941.º do CPC)[6]. Mas a lei disponibiliza previsões específicas de vinculados ao dever de prestar contas, como sucede, justamente, com o mandatário (art.º 1161.º do Código Civil).

Se o mandatário não cumprir voluntaria ou espontaneamente essa obrigação – i.e., se não oferecer as contas da sua gestão – essas contas podem ser-lhe exigidas, quer dizer, o mandatário pode ser forçado a prestá-las (artºs 941.º e 942.º do CPC).

Aquele que exija a prestação de contas deve alegar, como causa petendi, que tem direito a essa prestação de contas e que o réu tem a obrigação de as prestar, envolvendo o pedido de prestação de contas, necessariamente, o pedido de condenação no eventual saldo final. Mas deve ainda alegar, tratando-se de contas exigidas ao mandatário, que a gestão deste teve reflexos patrimoniais entre ele e o mandante, dado que – ao contrário do que sucede noutros quadrantes jurídicos – a obrigação de prestação de contas que vincula o mandatário deve, segundo a nossa lei civil fundamental, ser circunscrita ao significado que decorre da sua literalidade.

O direito à informação, na vertente da prestação de contas, é nitidamente marcado pela patrimonialidade, dado que é instrumental relativamente a direitos que se inscrevem no património do respectivo credor. Trata-se, portanto, de um direito perfeitamente disponível e o seu exercício ou a omissão dele ou está na inteira dependência da vontade seu titular: este pode, conforme o juízo soberano que faça acerca do seu interesse, pedir ou não a prestação das contas ou conformar-se com as aquelas que lhe forem espontaneamente prestados pelo obrigado a elas. A patrimonialidade apontada explica, por outro lado, que no tocante ao contrato de mandato puro e simples, apesar da extinção deste, por caducidade, com a morte, tanto do mandante como do mandatário, a obrigação de prestação de contas a que o último está adstrito – tal como o direito correspondente – seja transmissível mortis causa (art.ºs 1174.º, a), e 2025 do Código Civil)[7].

E exigida judicialmente a prestação das contas, se o demandado contesta a obrigação de as prestar, o primeiro problema que o juiz deve resolver é o de saber se, realmente, o réu está ou não adstrito àquele dever; se decidir a favor do autor, a ação prossegue para as contas serem prestadas; decidindo a favor do réu, o processo finda, por manifesta falta de objeto.

Na nossa lei civil fundamental a representação é dominada pela procuração. Esta tem, na linguagem jurídica corrente, um duplo sentido: traduz o acto pelo qual se confiram, a alguém, poderes representação – e, em simultâneo, exprime o documento em que tal negócio tenha sido exarado (art.º 262.º do Código Civil).

Enquanto acto, a procuração é um negócio jurídico unilateral: reclama apenas uma única declaração de vontade, não sendo necessária qualquer aceitação para que produza os seus efeitos: caso não queria ser procurador, o beneficiário terá de renunciar á procuração (art.º 265.º, nº 1, do Código Civil). A procuração, enquanto negócio jurídico, está, naturalmente, submetida aos respectivos preceitos gerais.

O Código Civil actual cindiu a procuração do mandato: a primeira promove a concessão de poderes de representação; o segundo dá lugar a uma prestação de serviço (art.º 1157.º daquele diploma legal). Mas é claro que os dois atos podem coexistir: se coexistirem haverá um mandato com representação; não coexistindo, existirá, eventualmente, um mandato sem representação ou só uma procuração relativa a qualquer outro acto jurídico, diverso do mandato.

Contudo, a lei pressupõe a existência sob a procuração de uma relação entre o representante e o representado, de um negócio-base, em cujos termos os poderes e deveres dela emergente devem ser exercidos.

Normalmente, esse negócio-base é um contrato de mandato. A procuração e o mandato ficam, assim, numa específica situação de união. De resto, é a própria lei a mandar aplicar ao mandato regras próprias da procuração (art.ºs 1178.º, n.º 1, e 1179.º do Código Civil).

Esta circunstância explica que, muitas vezes, a lei, tendo em vista a procuração, não se refira directamente a esta – mas ao negócio que lhe subjaz: o mandato.

O mandato civil corresponde a uma das mais antigas formas de cooperação e resolve-se no contrato pelo qual uma das partes se obriga, gratuitamente ou mediante retribuição, a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra, que, por qualquer motivo, não quer ou não pode praticá-los pessoalmente (art.º 1178.º nº 1 do Código Civil).

Na sua configuração mais típica, o assunto ou negócio que é objecto da gestão pertence ao mandante, sendo este o titular da necessidade a cuja satisfação se dirige a actividade do mandatário.

Nos seus traços descritivos gerais, o mandato é um contrato consensual, sinalagmático imperfeito e supletivamente gratuito: a lei não sujeita o mandato a nenhuma forma solene; no caso de ser gratuito, as prestações a que o mandante se encontre vinculado não equivalem às adstrições do mandatário; o mandato presume-se oneroso quando é exercido no âmbito da profissão do mandatário[8] (art.ºs 1157.º e 1158.º, nº 1, do Código Civil).

O mandato implica, para o mandatário, uma prestação de facere: a prática de um ou mais actos jurídicos - por conta da outra (art.º 1157.º do Código Civil).

É elemento essencial do contrato de mandato que o mandatário esteja obrigado, por força do contrato, a praticar um ou mais actos jurídicos (art.º 1157.º do Código Civil). A natureza do seu objecto - prática de actos jurídicos é, de resto, o que o mandato tem de específico em relação aos demais contratos de prestação de serviço[9]. Esse acto jurídico é um acto alheio, o que faz com que o mandato surja nitidamente como um contrato de cooperação jurídica entre sujeitos e, além disso, um contrato gestório (art.º 1161.º, b), do Código Civil)[10].

É igualmente elemento essencial do mandato que o mandatário actue por conta do mandante. Um negócio jurídico é praticado por conta de outrem, sempre que os seus efeitos ou parte deles se devam projectar ou repercutir na esfera jurídica de pessoa que nele não interveio. Por conta de outra, significa que os actos a praticar pelo mandatário se destinam á esfera do mandante.

Note-se, porém, que por conta de não significa no interesse de: o mandato pode ser exercido contra os interesses do mandante, mas nem por isso deixará de haver mandato[11].

Estruturante, neste domínio, é, por outro lado, a distinção entre mandato sem representação e mandato com representação.

Pelo mandato simples, os efeitos do acto jurídico praticado pelo mandatário repercutem-se na sua própria esfera jurídica (art.º 1180.º do Código Civil); quando o mandato seja representativo, repercutem-se na esfera jurídica do mandante nos mesmos termos em que os actos praticados pelo representante se repercutem directamente na esfera do representado. A representação não faz, portanto, parte da essência do mandato: é algo que se lhe pode acrescentar, mas que não lhe é estrutural; com poderes de representação, o mandatário actua contemplatio domini, em nome do mandante.

Não assim no direito francês – embora esta conclusão não seja inteiramente incontroversa – em que o mandato é necessariamente representativo (art.º 1984.º do Code Civil)[12].

O mandato, na sua configuração típica, é sempre no interesse do mandante e este interesse mantém-se ainda que concorra interesse de terceiro[13]. O mandato deve ser cumprido pelo mandatário, no interesse do mandante. Actuar no interesse do mandante não é a mesma coisa que actuar um interesse de outrem: agir no interesse alheio é agir em benefício ou vantagem de outrem, defendendo aquilo que se sabe – ou se pensa ser – o interesse dessa pessoa.

Não deve confundir-se a actuação da interposta pessoa no interesse do principal com a contemplatio domini, que constitui uma das condições da representação. A contemplatio domini não significa propriamente actuação do representante no interesse do representado – mas sim que aquele deve revelar que realiza o acto em nome deste.

O conhecimento pela outra parte de tal situação – conhecimento que, aliás, pode resultar das circunstâncias – é indispensável para se dar a eficácia directa total do negócio representativo sobre a esfera jurídica do representado.

O negócio representativo só produz os seus efeitos na esfera do representado se ocorrerem dois elementos: o poder de representação, concedido pela lei ou pelo representado, e a actuação do representante em nome deste. É evidente que não se torna indispensável empregar a expressão em nome de; pode usar-se de outras fórmulas, ou pode mesmo a contemplatio domini resultar das circunstâncias.

A declaração de actuar em nome alheio tem um triplo significado e alcance: o mandatário não quer que o negócio produza efeitos na sua esfera jurídica; esses efeitos ficam à disposição da pessoa em cujo nome o negócio foi praticado; a outra parte não pode impedir que os efeitos se projectem sobre o representado, se este efectivamente declarou ou vier a declarar que deles se apropria.

Note-se que a obrigação de prestação de contas que vincula o mandatário se verifica, quer o mandato seja representativo quer não.

A movimentação do saldo de uma conta bancária está, á partida, reservada ao respetivo titular, sendo indiferente para o detentor da conta – o banco – a circunstância, meramente eventual, de aquele não ser o proprietário económico do dinheiro depositado. A movimentação da conta pode, porém, ser confiada a um terceiro pelo titular dela, através da atribuição de poderes de representação – procuração, acoplada ou não a contrato de mandato – ou através de uma simples autorização. No primeiro caso é o titular, ele mesmo, nos termos gerais, quem juridicamente movimenta a conta; no segundo é o autorizado, agindo em nome próprio, quem procede a essa movimentação, mas munido da legitimidade que lhe foi conferida pelo titular. Tanto num caso como noutro os efeitos patrimoniais da movimentação da conta repercutem-se na esfera do titular dela, embora por vias ou técnicas diferentes. E não falta doutrina e jurisprudência quem veja na autorização da movimentação da conta um mandato – e um mandato com representação[14] - embora pareça juridicamente mais exacto qualificar a autorização como contrato de autorização gestória, cujo regime jurídico é concretizado pelo regime do mandato, mas sem nunca perder a importância central da autorização[15].

Importa, por último, neste domínio, reiterar que a obrigação de prestação de contas que vincula o mandatário só surge ou só se justifica se a sua execução tiver reflexos patrimoniais entre ele e o mandante, i.e., quando haja, entre e um e outro, créditos e débitos recíprocos[16].  Ponto que é confirmado pela lei de processo: se as contas devem ser apresentadas, pelo réu ou pelo autor, conforme o caso, sob a forma de conta corrente – i.e. num sistema especial diagráfico de escrituração em colunas de débito e de crédito – é porque se supõe que, por exemplo, o mandante e o mandatário se constituíram recíprocamente, por força da execução do mandato, credores e devedores, de tal modo que operada a compensação de débitos e créditos se apure um saldo favorável a um ou a outro (art.ºs 943.º, n.º 1, e 944.º, n.º 1, do CPC). É certo que o mandatário está adstrito a obrigações de informação, relativa à gestão que empreendeu, e de comunicação (art.º 1161.º, b) e c) do Código Civil). Se o mandatário não cumprir voluntariamente qualquer destas obrigações, pode ser-lhe exigido judicialmente que as cumpra, mas através de acção de processo comum, nunca através do processo especial de prestação de contas: este processo destina-se, unicamente, a resolver o conflito sobre o saldo da conta, o que pressupõe que a execução do mandato se repercutiu na esfera patrimonial do mandatário e do mandante, através da constituição de créditos e de dívidas recíprocas que, por força do actuação do mecanismo da compensação, dá lugar a um saldo final exigível. Aquele que reclamar a prestação de contas há-de, pois, alegar, de modo concludente e concretizado, que a execução do mandato teve repercussões ou reflexos patrimoniais na esfera do mandante e do mandatário, nos termos indicados.

Na espécie do recurso, a Sra. Juíza de Direito não se convenceu da realidade, desde logo, dos seguintes enunciados: que EE conferiu aos réus poderes para movimentar a sua conta bancária, existente no ... – ... (...04) ..., com o seguinte n. º ...26, podendo  nomeadamente, depositar e levantar dinheiro, passar e assinar cheques, saldar contas, efetuar transferências da referida conta bancária, bem como receber os respectivos juros; que desde .../.../1978, foram os réus que administraram e movimentaram exclusivamente essa conta bancária, tratando, de todos os assuntos com ela relacionados.

E é o julgamento, designadamente, destes pontos de facto capitais que merece a frontal discordância dos apelantes: no seu ver, o decisor de facto da 1ª instância incorreu, desde logo, neste segmento da decisão correspondente num error in iudicando, por erro na apreciação ou valoração das provas, documental e testemunhal, produzidas.

A controvérsia gravita, pois, em torno desta quaestio facti:  importa, por isso, tornar patentes a finalidade e os parâmetros dos poderes de controlo desta Relação no tocante à decisão da questão de facto da 1ª instância.

3.4. Error in iudicando por erro em matéria de provas.

3.4.1. Finalidades e parâmetros sob cujo signo são actuados os poderes de controlo desta Relação relativamente à decisão da matéria de facto.

O controlo da Relação relativamente à decisão da matéria de facto pode ter, entre outras, como finalidade, a reponderação da decisão proferida. A Relação pode reapreciar o julgamento da matéria de facto e alterar – e substituir – a decisão da 1ª instância, designadamente se a prova produzida – designadamente a prova pessoal produzida na audiência final, desde que tenha sido objecto de registo – impuser decisão diversa (art.º 640 nº 1 do CPC).

Todavia, esse controlo é actuado na ausência de dois princípios que contribuem decisivamente para a boa decisão a questão de facto: o da oralidade e da imediação - a decisão da Relação não é atingida por forma oral – mas através da audição de registos fonográficos ou da leitura, fria e inexpressiva de transcrições – e sem uma relação de proximidade comunicante com os participantes processuais, de modo a obter uma percepção própria do material que há-de ter como base dessa mesma decisão.

Note-se que o conhecimento, pelo tribunal de recurso, de questões de facto e a actuação dos seus poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto do tribunal a quo nem sempre está, realmente, na dependência do registo dos actos de prova levados a cabo oralmente na instância recorrida.

Além disso, esse controlo orienta-se pelos parâmetros seguintes:

a) Do exercício da prova – que visa a demonstração da realidade dos factos – apenas pode ser obtida uma verdade judicial, jurídico-prática e não uma verdade, absoluta ou ontológica, matemática ou científica (art.º 341.º do Código Civil);

b) A livre apreciação da prova assenta na prudente convicção – i.e., na faculdade de decidir de forma correcta - que o tribunal adquirir das provas que foram produzidas (art.º 607.º, nº 5, do CPC).

c) A prudente obtenção da convicção deve respeitar as leis da ciência, da lógica e as regras da experiência - entendidas como os juízos hipotéticos, de conteúdo geral, desligados dos factos concretos objecto do processo, procedentes da experiência, mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram deduzidos e que, para além desses casos, pretendem ter validade para casos novos – e que constituem as premissas maiores de facto às quais são subsumíveis factos concretos;

d) A convicção formada pelo juiz sobre a realidade dos factos deve ser uma convicção subjectiva fundada numa convicção objectiva, assente nas regras da ciência e da lógica e da experiência comum ou de normalidade maioritária, e portanto, uma convicção cognitiva e não volitiva, voluntarista, subjectiva ou emocional.

e) A convicção objectiva é uma convicção argumentativa, i.e., demonstrável através de um ou mais argumentos capazes de se impor aos outros;

e) A apreciação da prova vincula a um conceito de probabilidade lógica – de evidence and inference, i.e., segundo um critério de probabilidade lógica prevalecente, portanto, segundo o grau de confirmação lógica que os enunciados de facto obtêm a partir das provas disponíveis: os elementos de prova são assumidos como premissas a partir das quais é possível extrair inferências; as inferências seguem modelos lógicos; as diversas situações podem ser analisadas de acordo com padrões lógicos que representam os aspectos típicos de cada caso; a conclusão acerca de um facto é logicamente provável, como uma função dos elementos lógicos, baseada nos meios de prova disponíveis[17].

Note-se – de harmonia com a doutrina que se tem por preferível – que se a Relação tem o dever de proceder ao exame crítico das provas - novas ou mesmo só renovadas – que sejam produzidas perante ela e de formar, relativamente às provas submetidas à sua livre apreciação, uma convicção prudente sobre essas provas – não há razão bastante – legal ou sequer epistemológica - para que não proceda àquele exame e à formulação desta convicção - e à sua objectivação - no caso de reapreciação das provas já examinadas pela 1ª instância (art.º 607.º, nº 5, ex-vi art.º 663.º,  nº 2, do CPC). O controlo da correcção da decisão da matéria de facto da 1ª instância exige, realmente, que a Relação construa – autonomamente, embora com os limites decorrentes da sua vinculação à impugnação do recorrente - não só a sua própria convicção sobre as provas produzidas, mas igualmente que a fundamente[18].

A conclusão da correcção ou da incorrecção da decisão da questão de facto do tribunal da 1ª instância exige um juízo de relação ou de comparação entre a convicção que o decisor de facto daquela instância extrai dos elementos de prova que apreciou e a convicção que a Relação adquire da reapreciação dessas mesmas provas. Se a convicção do juiz da 1.ª instância e da Relação forem coincidentes, a decisão da matéria de facto daquele tribunal deve ter-se por correcta, com a consequente improcedência da impugnação deduzida contra ela; se a convicção do decisor da 1.ª instância e da Relação forem divergentes, a Relação deve fazer prevalecer a sua convicção sobre o convencimento do juiz da 1ª instância e, correspondentemente, revogar a decisão deste último e logo a substituir por outra conforme aquela mesma convicção[19].

A Relação deve, pois, formar uma convicção verdadeira – e fundamentada - sobre a prova produzida na 1.ª instância, independente ou autónoma da convicção do juiz a quo, que pode ou não ser coincidente com a deste último – não se limitando a controlar a legalidade da produção da prova realizada naquela instância e a aceitar o resultado do exercício da prova - salvo casos em que esse julgamento seja ilógico, irracional, arbitrário, incongruente ou absurdo[20].

3.4.2. Reponderação das provas.

A sentença impugnada declarou provado – na alínea A) – que os réus figuram na conta bancária, detida pelo banco ..., ..., ..., de que era titular EE como mandatários –  o que, sem qualquer dúvida, é inculcado pelo documento, escrito em língua francesa, emitido pelo detentor da conta, identificada pelos autores pela letra A. Simplesmente, logo declarou como não provado que a titular da conta tivesse conferido aos apelados poderes para a movimentar. E esta resposta seria imposta pela circunstância de apesar de a testemunha LL – filho da autora e não dos autores como, por erro, se escreveu na sentença – ter sugerido a outorga de procuração se desconhecer o seu teor e a sua data e de aquela testemunha, por virtude da sua relação de parentesco com a autora, ter natural interesse no desfecho da causa.

Quanto a este ponto, é claro o equívoco em que incorreu a decisão impugnada, desde logo, pela incompreensão sobre o alcance e efeitos que, considerando o contexto em aquela expressão é utilizada, se lhe deve atribuir.

Estando assente que os réus eram mandatários (mandataires[21], em língua francesa), desta qualidade decorre – desde logo considerando o significado e o alcance que aquela expressão se reveste no país em que a conta se encontra sedeada – os poderes para movimentar essa conta. Na técnica jurídica e na prática bancária francesas mandataire  tem, pois, um significado e um alcance inteiramente homótropo aquele que, entre nós, se deve assinalar ao contrato de mandato representativo – com a diferença de que no quadrante jurídico francês, esse mandato é sempre representativo – e mesmo à autorização:  a concessão a um terceiro, pelo titular da conta bancária, de poderes para a movimentar –  o que, aliás, como abaixo melhor se detalhará, decorre linearmente do depoimento da testemunha LL.

E não há decerto prova mais convincente de que, os réus tinham, realmente, poderes para movimentar a conta de que era titular a mãe da autora e do primitivo autor e do réu CC do que o facto de eles a terem movimentado ao longo de vários anos já que não é razoável supor, de harmonia com regras de experiência e critérios sociais, que o banco aceitasse essa movimentação sem reconhecer aos apelados – que não eram reconhecidamente titulares da conta - um qualquer título que a legitimasse. E esse título era, para o banco, o facto de os apelados serem mandataires da titular da conta.

E a prática de uma multiplicidade de movimentos na conta pelos apelados decorre dos depoimentos acordes sobre o ponto das testemunhas MM e LL – filhos da apelante – e de NN, que foi casado com a autora, mas que e apesar do divórcio, vivem em conjunto à mesma.

A Sra. Juíza de Direito depreciou ou desvalorizou, nitidamente, estes depoimentos, embora só o tenha feito expressamente no tocante às declarações de LL, com o fundamento no natural interesse no desfecho da causa.

Como é da experiência comum, as questões relacionadas com constas bancárias são indelevelmente marcadas, quer no tocante ao titular da conta, que relativamente ao banco que a detêm – pela reserva. No tocante ao banco, porque está vinculado a um especial e estrito dever de sigilo ou de segredo; relativamente ao titular da conta, dado que o facto correspondente releva da sua intimidade ou da sua vida privada. Do que decorre que as vicissitudes da conta bancária são, quando muito, do conhecimento do titular e das pessoas que lhe são próximas, maxime das pessoas a quem se mostra ligada pelos vínculos jurídico-familiares – casamento, parentesco, etc.

Situando-se os factos relativos a titularidade e às vicissitudes da conta bancária no âmago da intimidade do seu titular ou ao menos da sua vida doméstica, não há dúvida que as pessoas ligadas àquele pelo vínculo do parentesco ou por uma qualquer relação de proximidade, são as únicas que, em princípio – se exceptuarmos o banco – conhecem os factos relativos ás vicissitudes da conta e, além disso, estão num posto de observação que torna especialmente qualificados os seus depoimentos: a sua razão de ciência sobreleva consideravelmente a de pessoas estranhas á família.

Todavia, uma coisa é os filhos de uma parte ou pessoa que viva com esta em união de facto terem uma fonte de informação e de conhecimento superior à das pessoas estranhas à família – outra é eles acharem-se em condições de independência e de isenção que lhe permitam fazer um depoimento consciencioso e verdadeiro. Eles conhecem talvez os factos melhor que ninguém e, por isso, merecem mais crédito dos que as pessoas estranhas, talvez mais independentes, mas ignorantes da verdade dos factos; resta, porém, saber se a sua situação relativamente à parte não os privará da liberdade e espontaneidade necessárias para dizer a verdade e só a verdade.

Portanto, no caso, o que é relevante – e, decerto espinhoso - é saber se a relação de filiação que liga as testemunhas MM e LL à autora, e de comunhão de vida que une esta e a testemunha NN, os priva da serenidade e objectividade necessárias para narrar os factos com perfeita isenção e imparcialidade.

Decerto que é natural que o juiz fique de sobreaviso, na apreciação da força probatória dos depoimentos de filhos e do unido de facto da parte. Todavia tudo dependerá, em última extremidade, da razão de ciência de que aqueles se socorram, i.e., do modo porque adquiriram os factos que narram, a fonte de conhecimento que apresentam.

Se, por exemplo, o filho dá como razão de ciência ter ouvido contar o facto a quem esse facto favorece e com quem mostra solidarizado é natural que força persuasiva do seu depoimento deva ser depreciada. Se, porém, o filho dá como razão de ciência, por exemplo, ter visto ou presenciado o facto, não se vê, prima facie, razão para desvalorizar esse depoimento.

Na espécie sujeita, o decisor da 1ª instância foi terminante em depreciar, na motivação do julgamento de facto, a força persuasiva do depoimento da testemunha LL por ser filho da autora e ter interesse na decisão da causa, julgando, assim, que a testemunha é suspeita e não merece crédito – mas faz derivar essa suspeição não da análise crítica do depoimento em si - a que não procedeu - mas apenas de determinadas circunstâncias de carácter externo: a relação de filiação com a autora e o interesse no desfecho da causa. O tribunal da audiência não declara que o depoimento daquela testemunha – e das demais -  são falsos, que aquela testemunha faltou a verdade ou que a razão de ciência invocada pela testemunha não é verdadeira, e, portanto, não põe em causa directamente nem os factos narrados pelo depoente nem ataca a fonte de conhecimento que ele aponta. Limita-se a invocar o vínculo de parentesco relativamente à autora e afirmar vagamente o seu interesse na decisão da demanda

 Porém, ouvido o registo sonoro da prova produzida oralmente na diligência de inquirição, tem-se por certo que não há motivo fundado para proceder à apontada depreciação ou desvalorização e para recusar aos depoimentos, ao menos radicalmente, qualquer força persuasiva, considerada a razão de ciência que os anima, o modo como foram prestados e o carácter circunstanciado do seu conteúdo.

Assim, a testemunha LL – que é bancário e como asseverou a pergunta da Sra. Juíza trabalha desde 1999 numa outra agência do ... em ... - foi terminante em afirmar que a avó tinha uma conta bancária no ..., República, e que eles – os réus – eram mandatários da conta e que a avó não sabia ler nem escrever nem sabia falar francês e que se ela ia - ao banco – era com alguém, sozinha é que não ia. Noutro passo do depoimento, garantiu que – os réus – podiam movimentar a conta, nem lhes perguntam nada, porque eles têm procuração na conta, têm validação para movimentar a conta. E, mais adiante, afiançou que pedimos ao banco quem é que movimentou a conta e que a conta era movimentada enquanto a minha avó estava em Portugal. Confrontado, a pedido da Exma. Advogada dos apelantes com os documentos A, 1, 3 e 7 a testemunha explicou que os dois primeiros documentavam transferências para Portugal, o terceiro levantamentos em dinheiro e transferências para Portugal e o último o valor da pensão de EE. Esclareceu ainda que o que entrava – na conta – era a pensão de reforma – de EE – à volta de € 1 200.00, que o dinheiro que caía na conta era só das pensões e tudo o que era da segurança social.

Por sua vez, a testemunha MM, assegurou igualmente que a avó não sabia falar francês, que o dinheiro era da reforma da avó – mas quem movimentava a conta eram os tios. Garantiu ainda que o dinheiro não foi transferido para a conta da avó, foram feitas – as transferências - para as contas o OO e da DD e que o banco só deu os elementos desde 2002. A instâncias do Exmo. Advogado dos apelados, esclareceu que quando a avó transferiu os € 10 000,00, estava acompanhado pelo tio BB, pelo meu pai e pela minha mãe, era para o meu outro tio não tirar o dinheiro.

Por seu lado, a testemunha NN asseverou que os réus, em ..., viveram sempre em casa dos meus sogros e que só eles é que tinham acesso à conta, e que em 2012 a Sra. EE mudou a conta. Salientou ainda que aquela assinava com o dedo e ela sozinha não ia – ao banco. Declarou ainda que em 2011, 2012, não pode precisar, houve transferências que quando ela – EE – estava em Portugal e foi por essas transferências que souberam que ele – o réu – andava a servir-se do dinheiro da mãe para a vida dele. Assegurou, enfim, que a sogra recebia, mais ou menos de reforma por mês à volta de € 1 200,00, da reforma dela e do marido, e que as transferências eram feitas para uma conta do CC. A instâncias do Exmo. Advogado dos apelados, esclareceu que a minha sogra fez a transferência de € 10 000,00 com a filha.

Já o depoimento da testemunha PP – presidente do Centro Social ..., no qual EE esteve institucionalizada durante cerca de dois meses antes da sua morte – deve ter-se por inconclusivo, dado ter-se limitado a declarar, de útil, que aquela tinha uma reforma do estrangeiro. Não assim, porém, relativamente ao depoimento da testemunha QQ, já que garantiu que a velhinha lhe disse que a pensão era de mil e tal euros, que dizia que o filho CC tinha tirado todo o dinheiro do banco, que o filho lho tinha roubado  e – a instâncias do Exmo. Advogado dos recorridos – afiançou que ela chorava, andava triste, e que afirmou que o CC foi um ladrão que lhe roubou o dinheiro – o que concorre para inculcar que, na verdade, o apelado tinha acesso à conta da mãe e a movimentou.
O resultado da actividade de julgamento da matéria de facto pode exprimir-se numa afirmação susceptível de ser considerada verdadeira ou falsa. Contudo, essa verdade não é uma verdade absoluta ou ontológica, sendo antes uma verdade judicial, jurídico-prática.
No julgamento da matéria de facto não se visa o conhecimento ou apreensão absoluta de um acontecimento, tanto mais que intervêm, irremediavelmente, inúmeras fontes possíveis de erro, quer porque se trata de conhecimento de factos situados no passado, quer porque assenta, as mais das vezes, em meios de prova que, pela sua natureza, se revelam particularmente falíveis. Está nestas condições, notoriamente, a prova testemunhal.
A prova de um facto não visa, pois, obter a certeza absoluta, irremovível, da verificação desse facto. A prova tem, por isso mesmo, atenta a inelutável precariedade dos meios de conhecimento da realidade de contentar-se com certo grau de probabilidade do facto: a probabilidade bastante, em face das circunstâncias concretas, para convencer o decisor, conhecer das realidades do mundo e das regras de experiência que nele se colhem, da verificação da realidade do facto[22].

As provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma certeza absoluta acerca do facto a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida. Nestas condições, uma prova, considerada de per se ou criticamente conjugada com outras, é suficiente para demonstrar a realidade – não ontológica, mas jurídico-prática – de um facto quando, em face dela seja de considerar altamente provável a sua veracidade ou, ao menos, quando essa realidade seja mais provável que a ausência dela.

Revertendo ao caso do recurso,  considerando que a conta titulada por EE se encontrava sedeada numa agência de um banco português em ..., ..., que aquela era analfabeta e não sabia falar francês, que documentos produzidos pelo detentor da conta garantem que os réus eram mandataires da primeira e que aquela conta – ao menos no arco temporal compreendido entre 2002 e 2012 foi objecto de uma multiplicidade de movimentos e era alimentada por pensões de reforma, e que três testemunhas – MM e LL e NN - são acordes na afirmação de que os réus movimentaram ao longo de vários anos a conta, pergunta-se: a regra da avaliação prudencial da prova é violada se se declarar provado que EE conferiu aos réus poderes para movimentar aquela conta, podendo depositar e levantar dinheiro, passar e assinar e assinar cheques, saldar contas, efectuar transferências daquela conta, bem como receber os respectivos juros, que EE conferiu esses poderes porque necessitava que a auxiliassem na movimentação dessa conta, que nesta conta eram creditadas as pensões que auferia  e que os réus administraram e movimentaram essa conta, tratando dos assuntos com ela relacionados, até mesmo após EE ter vindo residir para Portugal? Não, não é A decisão contrária é que assenta numa convicção que não foi alcançada com o uso da prudência, i.e., da faculdade de decidir de forma correcta[23].

Uma avaliação prudente da prova convence, decerto, que na conta bancária titulada por EE eram creditadas as pensões que auferia – mas não que essa conta fosse alimentada apenas por essas pensões. A este propósito importa ter presente que os documentos demonstrativos do movimento da conta se restringem ao período compreendido entre 2002 e 2012 – alguns dos quais, apesar da dificuldade de leitura dos acrónimos em língua francesa, registam movimentos a crédito de origem diversa - e que é razoável admitir que a conta bancária se deve ter por aberta em momento em que EE ainda trabalhava – em limpezas -  e, portanto, não estaria reformada. Identicamente, se deve ter-se como demostrado que os apelados movimentaram a apontada conta -  os elementos de esclarecimento e convicção disponíveis não inculcam que o tenham feito de modo exclusivo e muito menos de 1978, já que em face da prova produzida – designadamente os depoimentos das apontadas testemunhas – não é de excluir que EE tenha, ela mesma, movimentado a conta, ainda que com a assistência e o concurso de terceiros. Foi justamente isso que sucedeu – de harmonia com as declarações concordantes das testemunhas MM e LL e NN, com a transferência da quantia de € 10 000,00 para a autora. Também não é possível, em face das provas apontadas, concluir que a administração da conta pelos apelados ocorre desde 1978, desde logo porque que não foi adquirido para o processo o documento demonstrativo da abertura da conta e nenhuma das testemunhas se referiu sequer a uma tal data ou a qualquer outra.

O conjunto de considerações anteriormente expostos é suficiente para mostrar que o decisor de facto da 1ª instância incorreu na avaliação das apontadas provas – documental e pessoal - no error in iudicando acusado pela apelante, embora esse erro não tenha a extensão que aqueles lhe assinalam. Ora como a convicção que esta Relação extrai das provas produzidas na instância recorrida não é coincidente com a do decisor da 1ª instância, importa proceder à alteração daquela decisão, julgando provados os factos seguintes.

E) EE conferiu aos réus poderes para movimentar aquela conta referida em A), podendo depositar e levantar dinheiro, passar e assinar e assinar cheques, saldar contas, efectuar transferências daquela conta, bem como receber os respectivos juros;

F) EE conferiu esses poderes porque necessitava que a auxiliassem na movimentação dessa conta;

G)  Na conta referida em A) eram creditadas as pensões auferidas por EE;

H) Os réus administraram e movimentaram essa conta, tratando dos assuntos com ela relacionados, até mesmo após EE ter vindo residir para Portugal.

Resta saber se esta modificação da decisão da matéria de facto garante aos apelantes a procedência do recurso.

3.5. Concretização.

A matéria de facto provada que se deve ter por adquirida – na sequência da atuação por esta Relação dos poderes de controlo apontados – inculca a conclusão entre EE, antecessora dos apelantes e dos apelados, de um contrato de mandato- e mesmo de um mandato representativo - no interesse da primeira, em execução do qual os últimos movimentaram a conta bancária titulada por aquela. Simplesmente, para que o mandatário deva ser vinculado a prestar contas da gestão que fez dos interesses do mandante é exigível de harmonia com a doutrina que se tem por preferível, que aquela execução tenha reflexos patrimoniais entre um e outro sujeito do contrato de mandato, que se constituam, em relação a ambos, débitos e créditos recíprocos.

Este facto essencial não está demonstrado. E não está provado por esta razão simples – mas sólida: não foi alegado. E como são os apelantes que estão vinculados ao ónus de demonstrar esse facto, na falta da sua prova há que proferir uma decisão contra eles (art.ºs 342.º, n.º 1, do Código Civil, e  414.º do CPC).

O recurso deve, pois, improceder.

A retórica argumentativa do acórdão bem pode cristalizar-se nestas proposições:

- A decisão da matéria de facto está sujeita a um regime diferenciado de valores negativos - a deficiência, a obscuridade ou contradição dessa decisão ou a falta da sua motivação - a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação: qualquer destes vícios não é causa de nulidade da sentença, antes é susceptível de lugar à actuação por esta Relação dos seus poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto da 1ª instância;

- A Relação constrói – autonomamente, embora com os limites decorrentes da sua vinculação à impugnação do recorrente - a sua própria convicção sobre as provas produzidas, que deve fundamentar, de modo a convencer os destinatários do bem fundado dessa convicção;

- A conclusão da correcção ou da incorrecção da decisão da questão de facto do tribunal da 1ª instância exige um juízo de relação ou de comparação entre a convicção que o decisor de facto daquela instância extrai dos elementos de prova que apreciou e a convicção que a Relação adquire da reapreciação ou reponderação dessas mesmas provas; se a convicção do decisor da 1.ª instância e da Relação forem divergentes, a Relação deve fazer prevalecer a sua convicção sobre o convencimento do juiz da 1ª instância e, correspondentemente, revogar a decisão deste último e logo a substituir por outra conforme aquela mesma convicção.

- Do exercício da prova – que visa a demonstração da realidade dos factos – apenas pode ser obtida uma verdade judicial, jurídico-prática e não uma verdade, absoluta ou ontológica, matemática ou científica, dado que as provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma certeza absoluta acerca do facto a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível, sendo suficiente que determinem um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida;

- O mandatário está, ex-vi legis, vinculado a uma obrigação de prestação de contas, mas esta obrigação só surge ou só se justifica se a sua execução tiver reflexos patrimoniais entre ele e o mandante, i.e., quando haja, entre e um e outro, créditos e débitos recíprocos, competindo a quem exige a prestação das contas alegar, de modo concludente, essa repercussão patrimonial recíproca.

Os apelantes sucumbem no recurso. Devem, por isso, suportar as respectivas custas (art.º 527.º, n.ºs e 2, do CPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos:
a) Altera-se a decisão da matéria de facto da 1.ª instância, nos termos suprarreferidos:
b) Nega-se provimento ao recurso.

Custas pelos apelantes.

                                                                                         2022.06.28





[1] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Coimbra Editora, 195, pág. 140; Ac. STJ 10.05.2021 (3701/18.3T8VNG.P1.S1)
[2] Ac. RC 20.01.2015 (2996/12.TBFIG.C1).
[3] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1998, pág. 472, e Paula Costa e Silva, Meios de Impugnação, de Decisões Proferidas em Arbitragem Voluntária no Direito Interno Português, 199, n. 29.  Notando a incompreensível atracção que é revelada em múltiplos recursos pela arguição de nulidades, António Santos Abrantes Geraldes – Recursos em Processo Civil, 7.ª edição actualizada, Almedina Coimbra, 2022, pág. 183, nota 318.
[4] António Menezes Cordeiro, Responsabilidade por informações dadas em juízo; levantamento da personalidade colectiva; dever de indemnizar, ROA, Ano 64, vol. I/II, Nov. 2004 (Anotação ao Acórdão do STJ de 9-Jan-2003), Jorge Ferreira Sinde Monteiro, Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações, Almedina, Coimbra, 1989, págs. 418 e 419, Vaz Serra, Obrigação de prestação de contas e outras obrigações de informação, BMJ nº 79, págs. 149 e ss., e Acs. do STJ de 2003, BMJ nº 432, pág. 375 e de 21.11.06, www.dgsi.pt.
[5] Ac. da RL de 08.03.90, CJ, XV, II, pág. 123.
[6] Vaz Serra, Obrigação de Prestação de Contas e Outras Obrigações de Informação, BMJ nº 79, págs. 149 e ss. e José Alberto dos Reis, Processos Especiais, Coimbra, 1982, vol. II, pág. 303.
[7] Acs. RG 23.04.2020 (2629/18.1TBVNG.G1, STJ 16.06.2011 (3717/05.OTVLSB.L1). Diferentemente, AC. RL 04.06.2020 (1510/19.1TBCSC.L1-2).
[8] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, Almedina, Coimbra, 2005, pág. 74.
[9] Galvão Telles, Contrato Civil, BFDUL, vol. IX, págs. 210 e 211.
[10] Januário Gomes, Em Tema de Revogação do Mandato Civil, Coimbra, 1989, págs. 87 a 90.
[11] Januário Gomes, Contrato de Mandato, Direito das Obrigações, 3º volume, AAFDL, 1991, sob a coordenação de António Menezes Cordeiro, págs. 279 e 280.
[12] Januário Gomes, cit., págs. 229 e 230.
[13] Irene de Seiça Girão, Mandato de Interesse Comum, Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, volume III, Direito das Obrigações, 2007, Coimbra Editora, págs. 24 e 25.
[14]Maria Paula Gouveia Andrade, Autorização para a Movimentação de Contas de Depósito à Ordem. Um Problema de Responsabilidade Civil do Comitente. Do Contrato de Tradução, Elcla Editora, Porto, pág. 25; Ac. RL 19.09.2009 (8379/08-2).
[15] Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, A Autorização, Coimbra Editora, 2012, pág. 327.
[16] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 4.ª edição, revista e aumentada, Coimbra Editora, pág. 795 e Januário Gomes, Contrato de Mandato, cit., pág. 354; Acs. STJ 01.07.2003 (05B4061), 09.02.2006 (05B4061) e 02.06.2011 (421/08.OTVPRT.P1.S1) e RE 27.06.2019 (1597/16.2T8ENT.E1).
[17] Michelle Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, págs. 42 e 43.
[18] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, cit., pág. 237 e João Paulo Remédio Marques, A Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, págs. 638.
[19] Miguel Teixeira de Sousa, “Prova, poderes da Relação e convicção: a lição da epistemologia – Ac. do STJ de 24.9.2013, Proc. 1965/04, in Cadernos de Direito Privado, nº 44, Outubro/Dezembro 2013, págs. 33 e ss.
[20] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, pág. 226.
[21] Mandataire, neste contexto, é a pessoa que tem uma procuration bancaire, que lhe permite movimentar a conta do mandant, que é o dador daquela procuração.
[22] Antunes Varela, RLJ Ano 116, pág. 330.
[23] João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL Editora, 2022, pág. 521.