Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1055/22.2PBVIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: CÚMULO
PENAS DE MULTA
PERDÃO
Data do Acordão: 04/24/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE VISEU – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 3º, Nº 2, ALÍNEA A) DA LEI Nº 38-A/2023, DE 2 DE AGOSTO
Sumário: No caso do artigo 3º, nº 2, alínea a) da Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, também se deve considerar apenas perdoável a pena em cúmulo que seja igual ou inferior a 120 dias de multa, não o sendo a fixada em medida superior, mesmo que integre nela penas consideradas de forma autónoma perdoáveis ao abrigo desta lei de clemência.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
***

Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I - RELATÓRIO
           
           1. A DECISÃO RECORRIDA

No processo sumário nº 1055/22.... do Juízo Local Criminal de Viseu (Juiz ...), foi proferido o seguinte despacho, datado de 17 de Setembro de 2023 (transcrição da parte do despacho que releva para a decisão do recurso intentado):  
«DESPACHO
            (…)
            O arguido AA, nascido a ../../1999, foi condenado nos presentes autos por Sentença proferida a 15 de Setembro de 2022, transitada em julgado a 17 de Outubro de 2022, pela prática, em concurso efectivo, a 31.08.2022, de um crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, previsto e punido pelo disposto no artigo 3.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03/01, na pena parcelar de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco) e de um de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º, n.º 1 do Código Penal, na pena parcelar de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 (cinco) meses. Mais decidiu o Tribunal operar o cúmulo jurídico das penas de multa parcelares, condenando o arguido na pena única de 130 (cento e trinta) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco), o que perfaz a quantia de € 650 (seiscentos e cinquenta) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 (cinco) meses.
           Veio o Ministério Público promover o perdão do remanescente da pena única que vai além do montante de 70 dias de multa (respeitante à pena parcelar aplicada pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez que, à luz do referido diploma é imperdoável), ou seja, o perdão de 60 dias de multa.
            Apreciando.
            De harmonia com o disposto no artigo 2º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto – que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude – estão abrangidas pela Lei em apreço as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º da mesmo Diploma.
           De harmonia com o disposto no artigo 3º, n.º1, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto e sem prejuízo do estabelecido no artigo 4º do mesmo Diploma (relativo à amnistia de infracções penais), é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.
           Preceitua o artigo 3º, n.º2, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, que “[s]ão ainda perdoadas: a) As penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão; b) A prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa; c) A pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição; e d) As demais penas de substituição, exceto a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova.”
          Acrescenta o n.º4 do artigo 3º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto,  que “[e]m caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única”.
            De notar que o n.º 7 do Diploma em apreciação elenca todas as situações em que os agentes não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, sendo as excepções consagradas em função dos crimes em causa, tendo em conta o bem jurídico protegido e os elementos constitutivos (n.º 1, alíneas a) a f)) ou, independentemente dos concretos crimes, das respetivas vítimas (n.º 1, alíneas g), e n.º 2) de determinadas qualidades ou características do agente (n.º 1, alíneas h), k) e l)), da pena aplicada (n.º 1, alínea i)) ou, ainda, da verificação de determinada agravante geral (n.º 1, alínea j)).
            Ora, uma das excepções previstas no mencionado preceito é o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, conforme estatui o artigo 7.º, n.º1, alínea d), ii), da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto,
            Diferentemente, no que tange ao crime de condução de veículo sem habilitação legal, considerando a idade do arguido à data da prática do crime, pena aplicada e tipo de ilícito e atentando ao disposto nos artigos 2.º, 3.º, 7.º e 8.º da Lei n.º38-A/2023, de 2 Agosto, haverá lugar à aplicação do perdão.
            Com efeito, decorre do disposto no n.º3 do citado artigo 7.º que a exclusão do perdão não prejudica a aplicação deste quanto a outros crimes, mais resultando expresso do disposto no n.º4 do artigo 3.º da Lei n.º38-A/2023, de 2 Agosto que, em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única. Deve o perdão incidir, assim, sobre a pena única obtida a partir do cúmulo jurídico de todas as penas parcelares.
           Neste conspecto, considerando a idade do arguido à data da prática dos crimes em que foi condenado, penas aplicadas e tipo de ilícitos em causa nos autos e atento o disposto nos artigos 2.º, 3.º, 7.º, a contrario, e 8.º da Lei n.º38-A/2023, de 2 Agosto, estando verificados os pressupostos previstos no aludido diploma, haverá lugar ao perdão de 90 (noventa) dias de multa na pena única de 130 (cento e trinta) dias de multa aplicada, o que se determina, sendo o perdão causa de extinção da pena, nos termos previstos no artigo 127.º, n.º3 do Código Penal.
           Considerando que o perdão é concedido sob a condição resolutiva prevista no artigo 8.º, n.º1 da Lei n.º38-A/2023, de 2 Agosto, mais determino que, neste particular, os autos aguardem por 1 ano, após juntando CRC actualizado do condenado.
(…)».



            2. O RECURSO
Inconformada, a Exmª Magistrada do Ministério Público recorreu do despacho em causa, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

1. «O arguido AA foi condenado pela prática, como autormateriale naforma consumada, e em concurso efetivo,de um crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco) e de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 70 (setenta) dias demulta,à taxa diáriade€5(cinco),a titulo de penas principais, tendo sido condenado, em cúmulo jurídico,  na  pena única de 130 (cento e trinta) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco);
2. A Mm.ª Juíza, ao abrigo da Lei n.º38-A/2023, de 2 Agosto, perdoou 90 dias de multa na pena única de 130 (cento e trinta) dias de multa aplicada;
3. A Mm.ª Juíza a quo, decidindo (e bem) que ao crime de condução em estado de embriaguez não é aplicável o perdão, entendeu (também correctamente) que é de aplicar o perdão ao crime de condução sem habilitação legal que integra a pena única do concurso, havendo reformulação do cúmulo efectuado
4. A exclusão do perdão quanto ao crime de condução em estado de embriaguez, não prejudica a aplicação deste quanto a outros crimes, no caso quanto ao crime de condução sem habilitação legal (7º., nº 3 da lei 38-A/2023 de 02.08)
5. A nossa discordância prende-se com o facto da Mm.ª Juíza, assim decidindo, não ter aplicado o perdão da pena de multa prevista no artigo 3º,nº2a) da lei citada, à pena perdoável deixando intocada a imperdoável.
6. O perdão previsto no artigo 3º desta lei, em caso de condenação em cúmulo jurídico, incide sobre a pena única (artigo 3º, nº 4 da lei em referência) e apenas pode ser aplicada à pena única se todos os crimes forem perdoáveis
7. Pois que, se um dos crimes que integrar a pena única, não for perdoável há que desfazer o cumulo jurídico e aplicar o perdão às penas perdoáveis deixando de fora as imperdoáveis
8. É isso mesmo que inculca a expressão literal deste artigo 3º, nº 4 da lei n.º38-A/2023, de 2 Agosto, dado que não há aplicação de perdão ao crime de roubo, e este normativo dispõe sobre a aplicação de um perdão que “existe” e que se vai aplicar/fazer incidir sobre uma pena, o que não sucede com o crime de condução em estado de embriaguez
9. O teor do nº 4 do artigo 3º deste diploma está limitado às situações previstas no nº 1 e 2. Se o perdão não existe (e quanto ao crime de condução em estado de embriaguez dúvidas não há de que não existe) não pode se feito incidir sobre a pena única.
10. Vigora nesta sede o principio geral de direito de que as medidas de graça, como providências de excepção que são, constam de normas que devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas, devendo, pois, ser objecto de uma interpretação declarativa
11. No caso concreto, o reformular do cumulo jurídico reconduzir-se-ia tão só a aplicar o perdão previsto no art. 3º, nº 2 a) citado, à pena parcelar do crime de condução sem habilitação legal, perdoando-se os 90 dias de multa que foi aplicado a este crime e deixando intocada a pena não perdoável
12. O que a Mm.ª Juíza deveria ter feito era desfazer o cumulo jurídico efectuado e aplicar o perdão à pena perdoável (a da condução sem habilitação legal – 90 dias de multa), deixando intocada a pena não perdoável (a da condução em estado de embriaguez – 70 dias de multa).
13. Nas anteriores medidas de graça (por exemplo o artigo 8º da Lei n.º 15/94, de 11.05), previa-se “diferentes medidas” do perdão consoante a dimensão da pena, o que não sucede com a lei 38-A/2023 de 02.08, em que não há diferentes medidas de perdão.
14. Sendo que no caso do autos o cumulo é apenas entre duas penas singulares: uma perdoável outra não, pelo que estamos em crer que os pressupostos do perdão sobre a pena única se alteraram.
15. As penas perdoadas não integram o cumulo jurídico, pelo que a pena aplicada ao crime de condução sem habilitação legal, não pode, por integralmente perdoada, integrar este cumulo.
16. Ao reformular-se, o Tribunal deveria ter desconsiderado a pena perdoada, nesse caso a pena aplicada ao crime de condução sem habilitação legal, mantendo a imperdoável intocada».


            3. Não houve respostas em 1ª instância.

4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora da República pronunciou-se neles, corroborando as contra-alegações do Magistrado do Ministério Público de 1ª instância, sendo seu parecer no sentido do não provimento do recurso, não sem antes deixar de defender que o recurso não é tempestivo, questão que já foi decidida no despacho liminar dos autos (cfr. despacho datado de 9.4.2024).

5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea b) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO
           
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso

Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [cfr. artigos 119º, nº 1, 123º, nº 2, 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242, de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271 e de 28.4.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193, explicitando-se aqui, de forma exemplificativa, os contributos doutrinários de Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335 e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113].
           Assim, é seguro que este tribunal está balizado pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso.
Também o é que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar - se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.
Assim sendo, são estas as questões a decidir por este Tribunal:
· Como deveria ter sido aplicado, no cúmulo de penas outrora efectuado, o perdão total da pena aplicada ao arguido pela prática do crime de condução de veículo com motor sem habilitação legal?

2. Sobre a sequência de factos processuais:
a) O arguido, nascido a ../../1999, foi condenado nos presentes autos por Sentença proferida a 15 de Setembro de 2022, transitada em julgado a 17 de Outubro de 2022, pela prática, em concurso efectivo, a 31 de Agosto de 2022, de:
i. um crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, previsto e punido pelo disposto no artigo 3.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03/01, na pena parcelar de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco) e
ii. de um de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º, n.º 1 do Código Penal, na pena parcelar de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 (cinco) meses;
b) Em cúmulo jurídico das penas de multa parcelares, foi condenado o arguido na pena única de 130 (cento e trinta) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco), o que perfaz a quantia de € 650 (seiscentos e cinquenta) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 (cinco) meses.
c) Foi promovido pelo MP a aplicação do perdão da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, à pena de multa aplicada ao crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal (no caso, o remanescente da pena única que vai além do montante de 70 dias de multa, respeitante à pena imperdoável, ou seja, 60 dias de multa).
d) O tribunal entendeu perdoar 90 dias à pena de 130 dias do cúmulo.
           
3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

           3.1. Está em causa decidir se há que proceder, e como, à aplicação do perdão previsto no artigo 3º, nº 2, alínea a) da dita Lei da Amnistia (Lei 38-A/2023, de 2/8), que estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude (artº 1º).
Estão abrangidas pela referida Lei (que entrou em vigor em 1 de Setembro de 2023), no que agora releva, as sanções penais relativas aos ilícitos que, reunidos os demais pressupostos por ela estabelecido, tenham sido praticados até ao final do dia 18 de Junho de 2023, ou seja, até à meia-noite desse dia (artº 2º/1).
Por outro lado, o agente, à data dos factos, tem de ter entre 16 e 30 anos de idade, inclusive (art.º 2º/1).
No caso dos autos, está pacificamente adquirida a verificação dos pressupostos de idade e temporalidade do facto atrás referidos.
            A fisionomia do nosso caso conta-se assim:
a) O arguido, nascido a ../../1999, foi condenado nos presentes autos por Sentença proferida a 15 de Setembro de 2022, transitada em julgado a 17 de Outubro de 2022, pela prática, em concurso efectivo, a 31 de Agosto de 2022, de:
  • um crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, previsto e punido pelo disposto no artigo 3.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03/01, na pena parcelar de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco) e
  • de um de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º, n.º 1 do Código Penal, na pena parcelar de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 (cinco) meses;
b) Em cúmulo jurídico das penas de multa parcelares, foi condenado o arguido na pena única de 130 (cento e trinta) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco), o que perfaz a quantia de € 650 (seiscentos e cinquenta) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 (cinco) meses.
c) Foi promovida pelo MP a aplicação do perdão da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, à pena de multa aplicada ao crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal (no caso, o remanescente da pena única que vai além do montante de 70 dias de multa, respeitante à pena imperdoável, ou seja, 60 dias de multa).
d) O tribunal entendeu perdoar 90 dias à pena de 130 dias do cúmulo.
e) O MP recorre, querendo que o perdão seja só de 60 dias de forma a manter inalterada a pena imperdoável (os 70).

3.2. Temos como assente o seguinte:
a. A amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução, tanto da pena e dos seus efeitos, como da medida de segurança (cfr. artº 128º, nº 1, do Código Penal).
b. O perdão genérico extingue a pena, no todo ou em parte (cfr. artº 128º, nº 3, do CP).
c. A amnistia prefere sempre à aplicação do perdão.
d. O perdão incide sobre a pena concretamente aplicada, não se referindo a qualquer pena abstracta.
e. Estão abrangidos pela amnistia e perdão estabelecidos pela Lei nº 38-A/2023, de 2/8, entrada em vigor em 1/9/2023, as infracções que, reunindo os demais pressupostos por ela estabelecidos, tenham sido praticadas até ao final do dia 18/6/2023, ou seja, até à meia-noite de 18/6/2023.
f. Se após a realização da audiência de julgamento existirem dúvidas sobre a data concreta em que a infracção que ficou demostrada foi praticada, dando-se como provado na decisão condenatória que, por exemplo, os factos foram praticados em data indeterminada de Junho de 2023, após a determinação da pena concreta deverá aplicar-se o perdão, se a ele houver lugar.
g. O agente, à data dos factos, tem de ter entre 16 e 30[1] anos de idade, inclusivé.
h. Nas infracções permanentes deverá atender-se ao dia em que cessar a consumação.
i. Nas infracções continuadas e nas infracções habituais, leva-se em conta o dia da prática do último acto.
j. Nas infracções não consumadas, atende-se ao dia do último acto de execução.
k. Ao contrário do que se passa com as infracções e sanções penais, no que se refere às sanções acessórias relativas a contraordenações e às infracções disciplinares, a Lei em apreço aplica-se às infracções praticadas até à meia-noite de dia 18-06-2023, independentemente da idade do agente à data dos respectivos factos.

3.3. No nosso caso, não estamos perante crimes amnistiáveis à luz do artigo 4º da Lei em causa.
Só poderá estar em causa a aplicação do PERDÃO à pena aplicada pelo crime de condução sem habilitação legal, assente que o crime do artigo 292º do CP está no elenco dos crimes que não são nunca amnistiáveis ou perdoáveis em termos de pena [cfr. artigo 7º[2], nº 1, d) ii da Lei].

3.4. E que dizer agora do PERDÃO plasmado no artigo 3º da Lei nº 38-A/2023, de 2/8?
Temos neste campo como certo que, quanto a penas de prisão:
a. Prevê-se um perdão até 1 ano de prisão em todas as penas de prisão aplicadas, a título principal, em medida inferior ou igual a 8 anos. Na verdade, se a pena de prisão aplicada for inferior a 1 ano terá que ser perdoada a totalidade da pena de prisão aplicada, na medida fixada. No caso de a pena de prisão aplicada ser superior a 1 ano, mas inferior ou igual a 8 anos, será perdoado 1 ano de prisão. Contudo, como é óbvio, em caso de pena de prisão já parcialmente cumprida no momento da entrada em vigor da Lei em apreço, caso o remanescente por cumprir seja inferior a 1 ano de prisão, o perdão é apenas na medida dessa parte da pena ainda não cumprida.
b. Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.
c. No caso de o mesmo agente ter sido condenado em diferentes processos em diversas penas, existindo uma relação de concurso entre os factos em causa nas diversas condenações, o que conduz a um cúmulo jurídico das penas aplicadas, em primeiro lugar deverá proceder-se a este e só depois, se for o caso, deverá aplicar-se o perdão à pena única fixada.
d. Em caso de condenação, em cúmulo jurídico, numa pena única de prisão, e estando algum ou alguns dos correspondentes crimes abrangidos pela amnistia dever-se-á, em primeiro lugar, por despacho, declarar o crime ou crimes em causa amnistiados, bem como, no caso de a condenação já ter transitado em julgado, também declarar cessada a execução das penas parcelares correspondentes aos mesmos crimes.
e. Caso o referido cúmulo jurídico abranja apenas uma outra pena parcelar aplicada pela prática de um crime não amnistiado, desfeito o cúmulo em consequência daquele despacho, a dita pena parcelar recupera autonomia, devendo ser aplicada à mesma o perdão, se for o caso.
f. Caso o referido cúmulo jurídico abranja outras duas ou mais penas parcelares aplicadas pela prática de crimes não amnistiados, haverá, em seguida, que proceder à reformulação do cúmulo jurídico dessas penas, atenta, desde logo, a alteração da moldura abstrata, aplicando, por fim, se for o caso, o perdão à pena unitária fixada.
g. Para a reformulação do cúmulo jurídico, será necessário designar dia para a realização da competente audiência (cfr. artº 472º do Código de Processo Penal - CPP), com a prolação da subsequente decisão.
h. Não estando englobados no cúmulo jurídico penas parcelares aplicadas por crimes abrangidos pela amnistia, não sendo sequer variável a medida do perdão em função da medida concreta da pena de prisão aplicada, ao contrário do que se passou com a Lei nº 16/86, de 11 de Junho [cfr. artº 13º, nº 1, al. b)], com a Lei nº 23/91, de 4 de Julho [cfr. artº 14º, nº 1, al. b)], com a Lei nº 15/94, de 11 de Maio (cfr. artº 8º, nº 1, al. d)] e com a Lei nº 29/99, de 12 de Maio (cfr. artº 1º, nº 1), não se verificando a alteração da moldura abstrata, não se impõe reformular o cúmulo jurídico de penas já efectuado, pelo que nada obsta à aplicação do perdão à pena única por despacho, sem necessidade de designar dia para a realização de nova audiência e subsequente prolação de decisão
i. São apenas merecedores do perdão aqueles que, nas demais condições previstas, tenham sido condenados numa pena de prisão não superior a 8 anos – a lei fala em todas as penas de prisão até 8 anos, esclarecendo que, em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única: assim, no caso de condenações sucessivas atende-se à medida de cada pena de prisão aplicada em cada decisão e, em caso de condenação em cúmulo jurídico, à pena única dado que, neste caso, o perdão incide não sobre a pena parcelar mas sobre a pena única.
j. É a pena efectivamente aplicada que se terá que ter em conta para decidir sobre a sua eventual substituição por outra pena e não o remanescente resultante da aplicação do perdão.
k. Não existindo entre várias condenações sofridas pelo mesmo agente uma relação de concurso geradora de cúmulo jurídico das penas aplicadas, tratando-se, pois, de uma situação de cumprimento sucessivo de várias penas, o perdão aplica-se a cada uma das penas, reunidos os demais pressupostos, seja qual for o número de processos em causa.
l. A aplicação do perdão à execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação fica sujeita aos limites estabelecidos no nº 1.
m. Para efeitos do disposto no artº 122º do CP (prazo de prescrição das penas), a pena que importa ter em conta é a pena em que o agente foi condenado e não o remanescente resultante da aplicação do perdão.
n. Como o perdão incide sobre a pena, extinguindo-a, no sentido segundo o qual, na parte em causa, não terá que ser cumprida, e não sobre a responsabilidade criminal, a condenação não é apagada, podendo ser valorada a primitiva condenação.

3.5. E quando estiverem em causa apenas penas de multa, como é o nosso caso?
Prescreve o artigo 3º, nº 2, alínea a) da Lei em causa que:
«São ainda perdoadas:
a) As penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão».
Aqui chegados, há que coordenar este precito com a norma do nº 4 desse normativo que nos diz que «em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única».
Já há basta e recente jurisprudência sobre a interpretação a dar a esse nº 4, quando está em causa o perdão de penas de prisão.
Seguimos também nós a tese – brilhantemente explorada no aresto da Relação de Lisboa, datado de 23/1/2024, no Pº 1161/20.8PBSNT-D.L1-5 – consistente no seguinte:
«I- A medida de perdão fixada pela Lei 38-A/2023-2agosto, nas regras estabelecidas pelos n.ºs 1 e 4 do art.º 3.º, só é aplicada, verificados os demais pressupostos, a penas que não sejam superiores a 8 anos de prisão.
II – Tal assim é, não só quando a pena de prisão superior a 8 anos tenha sido aplicada apenas por um crime, como também quando se está perante uma pena única em resultado de cúmulo jurídico de várias penas parcelares, ainda que cada uma delas de medida inferior a 8 anos.
III – Trata-se dum outro nível de exclusão da medida de perdão, consubstanciado na gravidade da conduta ou na multiplicidade de condutas determinantes de uma pena de prisão superior ao limite fixado no art.º 3.º/1, independentemente do tipo de ilícito praticado, sendo que este evidenciado alargamento do campo de exclusões constante da Lei 38-A/2023 não consubstancia uma qualquer novidade, antes se inscreve numa tendência de vontade do Legislador que se vem desenhando em antecedentes leis de clemência, com a introdução de concretas exclusões que vão além da tipologia dos crimes, e antes se focam especificamente nos agentes do crime ou na posição funcional das vítimas».
Deixamos aqui, pelo seu manifesto interesse, face à explanação histórica das várias leis de Amnistia em Portugal, parte do seu argumentário, o qual secundamos em absoluto:
«É admissível a medida de perdão, no âmbito da Lei 38-A/2023-2agosto, numa pena única superior a 8 anos de prisão?
(…)
No caso dos autos, está pacificamente adquirida a verificação dos pressupostos de idade e temporalidade do facto atrás referidos.
Tendo tal constatado, sucede que a decisão recorrida (no que agora, em sede de recurso, é acompanhada pelo Ministério Público, de 1.ª instância e junto deste Tribunal ad quem) entende que não opera a medida de perdão numa pena única superior a 8 anos de prisão [in casu foi aplicada a pena única de 16 (dezasseis) anos e 6 (seis) meses de prisão]. Funda-se, para tanto, no teor do art.º 3.º/1/4, in fine, da Lei 38/2023 - 2agosto, chamando ainda à colação o art.º 7.º.
Por seu turno, o Arguido recorrente (no que foi inicialmente acompanhado pelo Ministério Público de 1.ª instância) perfilha o entendimento que há lugar à aplicação da medida de perdão [de 1 (um) ano] a uma pena única de 16 (dezasseis) anos e 6 (seis) meses, quando uma das penas parcelares é inferior a 8 (oito) anos de prisão e corresponde a crime não excluído do perdão, o que ocorre no caso dos autos, uma vez que o Arguido, entre o mais, foi condenado, pela prática de um crime de detenção de arma proibida (p. p. pelo art.º 86.º/1c), com referência aos art.ºs 2.º/1 p), s) /3p), 3.º/6 e 8.º/2 a), todos do RJAM), na pena (parcelar) de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão.
E daí que, no seu entendimento, possa invocar que a decisão recorrida viola o art.º 7.º/3 da Lei 38-A/2023.
Face a tal delimitação, dir-se-á que o dissenso passa, então e no nosso modo de ver a situação, pela interpretação e aplicação dos n.ºs 1 e 4 do art.º 3.º da Lei 38-A/2023 (devendo ainda ser ponderada a interpretação do n.º 3 do art.º 7.º, única norma que o Arguido recorrente chama à colação em sede de conclusões).
O art.º 3.º/1 estabelece que “é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos” (a ressalva do disposto no art.º 4.º não tem relevo para o caso dos autos, significando apenas que a aplicação da amnistia aí prevista prefere à aplicação do perdão). O art.º 3º/4 estabelece que “em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única”.
O art.º 7.º/3 estabelece que “a exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3º e da amnistia prevista no artigo 4º relativamente a outros crimes cometidos”.
Cientes que cabe na discricionariedade normativa do legislador ordinário eleger, quer a medida do perdão de penas - o quantum do perdão -, quer, em princípio, as espécies de crimes ou infrações a que diga respeito a pena aplicada e perdoada, quer a sujeição ou não a condições, desde que o faça de forma geral e abstrata, para todas as pessoas e situações nela enquadráveis, perante o conteúdo normativo (na concreta formulação dada pelo legislador), surge a questão da sua interpretação, certo que toda a fonte necessita de interpretação, para que revele a regra que encerra.
É dizer, a amplitude do perdão é dada pelo diploma que o concede, o qual define os seus contornos, não podendo deixar de se reconhecer ao legislador, na concretização da política criminal referente à efetivação das penas aplicadas pela prática dos crimes definidos na lei, uma “discricionariedade normativo-constitutiva na conformação do seu conteúdo”(embora não ilimitada).
E, neste ponto, desde já se estabelece que é princípio geral de interpretação, não exclusivo da análise jurídica, que a conclusão a retirar não seja suscetível de conduzir a um resultado absurdo ou inadequado. Quadro este que assume particular relevo quando se está perante a necessidade de ponderação duma faceta da dimensão pro libertate (como principio geral no domínio dos direitos fundamentais que nos inculca a regra de que, na dúvida, se deve optar pela solução que, em termos reais, seja menos restritiva ou menos onerosa para a esfera de livre atuação dos indivíduos – cfr. José Carlos Vieira de Andrade, in Os Direitos Fundamentais – Na Constituição Portuguesa de 1976, Almedina, 1983, 9 131), mas sempre com os limites muito próprios que impõe estabelecer ao nível da interpretação das “leis de clemência” como leis de excecionalidade.
A propósito dos problemas de interpretação e consequente aplicação que, ao longo dos tempos, as Leis de amnistia e perdão têm levantado, a jurisprudência, desde há décadas a esta parte, sempre afirmou e vem afirmando que as normas de tais leis devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas.
Neste sentido, cfr. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, relatados por Avelino da Costa Ferreira (de 16março1977, in BMJ 265.º, p. 145), onde em sumário se pode ler “I - Os diplomas que concedem amnistias e perdões, como providências de excepção, que são, devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que neles não venham expressas.”; por José Saraiva (de 21julho1987, in BMJ 369.º, p. 381), onde em sumário se pode ler “I - Sendo a amnistia um facto restritivo do procedimento criminal, ela faz desaparecer a infracção, pelo que a sua aplicação deve fazer-se nos estritos limites da lei que a concede, de modo a evitar que se atinjam outras condutas susceptíveis de procedimento criminal. II - Como providência de excepção, a lei da amnistia deve interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, observando-se um critério de interpretação estrita, que exclua a interpretação extensiva, restritiva ou analógica, ainda que daí resultem situações de injustiça relativa.”; e por Vaz dos Santos (de 29março1995, in BMJ 445.º, p. 146), onde em sumário se pode ler “I - A aplicação das leis de amnistia deve fazer-se nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas.”
Daí a razão de se poder afirmar, conforme se referiu no Assento do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça 2/2001, de 25outubro2001 (DR 264, Série I-A, de 14novembro2001, acessível in www.diariodarepublica.pt), em termos aqui convocáveis, que “com a institucionalização do Estado de direito social e democrático, todos os actos de graça são actos que se movem no mundo do direito, desde logo no do direito constitucional, pelo que estão sujeitos ao seu império, portanto ao controlo jurisdicional. (…) Sucede ainda que o direito de graça subverte princípios estabelecidos num moderno Estado de direito sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais, porquanto permite a intromissão de outros poderes na administração da justiça, tarefa para a qual só o poder judicial se encontra vocacionado, sendo por muitos consideradas tais medidas como instituições espúrias que neutralizam e até contradizem as finalidades que o direito criminal se propõe. Razão pela qual aquele direito é necessariamente considerado um direito de «excepção», revestindo-se de «excepcionais» todas as normas que o enformam. É pela natureza excepcional de tais normas que elas «não comportam aplicação analógica» - artigo 11.º do Código Civil -, sendo pacífico e uniforme o entendimento da doutrina e da jurisprudência de que, pela mesma razão, não admitem as leis de amnistia interpretação extensiva ou restritiva, «devendo ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas» (v. a título exemplificativo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Dezembro de 1977, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 272, p. 111 - «a amnistia, na medida em que constitui providência de excepção, não pode deixar de ser interpretada e aplicada nos estritos limites do diploma que a concede, não comportando restrições ou ampliações que nele não venham consignadas» -, de 6 de Maio de 1987, Tribuna da Justiça, Julho de 1987, p. 30 - «O STJ sempre tem entendido que as leis de amnistia, como providências de excepção, devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas» -, de 30 de Junho de 1976, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 258, p. 138 - «A aplicação da amnistia deve fazer-se sempre nos estritos limites da lei que a concede, de modo a evitar que vá atingir, na sua incidência como facto penal extintivo, outra ou outras condutas susceptíveis de procedimento criminal» -, de 26 de Junho de 1997, processo n.º 284/97, 3.ª Secção - «As leis de amnistia como leis de clemência devem ser interpretadas nos termos em que estão redigidas, não consentindo interpretações extensivas e muito menos analógicas» -, de 15 de Maio de 1997, processo n.º 36/97, 3.ª Secção - «A amnistia e o perdão devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliação nem restrições» -, de 13 de Outubro de 1999, processo n.º 984/99, 3.ª Secção, de 29 de Junho de 2000, processo n.º121/2000, 5.ª Secção, e de 7 de Dezembro de 2000, processo n.º2748/2000, 5.ª Secção, para mencionar apenas os mais recentes). Sendo, assim, insusceptíveis de interpretação extensiva (não pode concluir-se que o legislador disse menos do que queria), de interpretação restritiva (entendendo-se que o legislador disse mais do que queria) e afastada em absoluto a possibilidade de recurso à analogia, impõe-se uma interpretação declarativa, em que «não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo» - Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, Coimbra, 1978, p. 147. Na interpretação declarativa «o intérprete limita-se a eleger um dos sentidos que o texto directa e claramente comporta, por ser esse aquele que corresponde ao pensamento legislativo» - Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, p. 185.”. (sublinhados nossos) (cfr, ainda, o referido por Maia Gonçalves, in Código Penal Português, Anotado, 16.ª ed., p. 439).
Neste sentido, igualmente, o Acórdão do Pleno das Secção Criminais do Supremo Tribunal de Justiça 2/2023, de 15dezembro2022 (DR 23/2023, Série I, de 1fevereiro2023, acessível in www.diariodarepublica.pt) onde se pode ler “[p]or outro lado, tratando-se de medidas de exceção, a interpretação e aplicação da lei que as consagra deve ser feita nos seus precisos termos, sem extensões, nem restrições que nela não venham expressas. Ou seja, a interpretação deve, no caso, ser feita de forma muito próxima da literalidade (interpretação dita declarativa), qua tale, trait pour trait, Zug um Zug, numa afloração do princípio da especialidade. O qual, nas palavras impressivas e algo metaforicamente exuberantes do Prof. Fernando Capez, explicitando o quid que especifica esse tipo de norma não meramente geral, refere: "a caixa com um laço de fita vermelho prevalece sobre a caixa sem tal adereço" (Apud CUNHA LIMA, Ronaldo/LIMA DE OLIVEIRA, Leonardo Cunha, Princípios e Teorias Criminais (Verbetes), Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 17). (…) Ademais, devemos ter presente que, como se referiu, as leis de perdão não admitem qualquer tipo de interpretação moduladora (tal como a extensiva, restritiva ou analógica), as palavras de tais leis mantêm o chamado "código forte", ou seja, denotativo e não conotativo.”
Nos termos do art.º 9.ºCC: 1 - A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 2 - Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3 - Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Assim, em conformidade com tal normativo, a letra é não só o ponto de partida da interpretação, mas, também, o seu limite (n.º 2).
Nos casos em que o elemento literal (o exame literal do texto da norma) se mostra ambíguo, impõe-se o recurso aos demais elementos de interpretação previstos no art.º 9.º do Código Civil: partindo do teor verbal, como elemento literal/gramatical (tendo em conta o uso corrente da linguagem e os modos de expressão técnico-jurídica), acrescenta-se o elemento lógico-sistemático (a coerência interna do preceito, o lugar em que se encontra e as suas relações com outros preceitos), o elemento histórico (a situação que se verificava anteriormente à lei e toda a evolução histórica, bem assim a história da génese do preceito, que resulta particularmente dos trabalhos preparatórios) e, finalmente, o elemento teleológico (o fim particular da lei ou do preceito em singular).
Retomando o caso dos autos, comecemos pela delimitação de interpretação que merece a norma do art.º 7.º/3 (a única que o Arguido recorrente chama à colação) a qual nos diz que [a] exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos”
Esta norma regula a situação em que coexistem, no mesmo processo, crimes excludentes do perdão e da amnistia com crimes deles não excludentes.
É o caso dos autos, na relação do crime de homicídio qualificado (excluído pelo art.º 7.º/1 a) - i)] com o crime de crime de detenção de arma proibida (o qual não o faz parte do catálogo dos crimes excecionado).
Na interpretação que se entende ser a adequada, tal preceito tão só esclarece que, “estando em causa vários crimes, a exclusão da amnistia e do perdão quanto a um ou alguns deles não prejudica a aplicação da amnistia e do perdão relativamente a algum ou alguns dos outros, verificados que estejam os necessários requisitos.”(cfr. Pedro José Esteves de Brito in “Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude”, Revista Julgar, online, agosto2023)
E dai que a leitura que aqui deva ser feita tenha que reportar, essencialmente, a uma confrontação histórica, de específica ligação à antecedente Lei de Graça, a Lei 9/2020-10abril, onde se estabeleceu um “Regime excepcional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID -19”, Lei na qual, ao nível do art.º 2.º/6 se determinava que, “ainda que também tenham sido condenados pela prática de outros crimes, não podem ser beneficiários do perdão” os condenados pela prática de qualquer um dos crimes elencados nas várias alíneas subsequentes.
Ou seja, face a esta cláusula de “contaminação”, decorria dessa norma que não podia ser aplicado qualquer perdão no caso de o recluso [que à data de 11abril2020 o fosse e cuja(s) condenação(ões) tenha(m) transitado em julgado em data anterior à referida, ou seja, até 10abril2020, pois só a este se aplicava, como veio a esclarecer o já referido Acórdão do Pleno das Secção Criminais do Supremo Tribunal de Justiça 2/2023] ter sido condenado a prisão pela prática de qualquer um desses crimes, quer estivessem em causa apenas crimes dessas naturezas ou tipos, quer eles coexistissem com outros não abrangidos pelas apontadas exclusões legais, quer estivesse em causa apenas uma pena, singular ou única, quer estivesse em presença, no momento da ponderação, mais penas determinantes de prisão, singulares ou únicas, neste último caso quer as penas estivessem já cumpridas, total (caso em que operava ultra-actividade dos efeitos da condenação, como sucede, por exemplo, no caso do instituto da reincidência) ou parcialmente, quer estivesse a decorrer a sua execução, quer esta não se tivesse ainda iniciado. (sobre o conceito de contaminação ou comunicabilidade, cfr. José Quaresma, in Regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19 - Estado de Emergência - COVID-19 Implicações na Justiça, ebook CEJ p. 426)
Assim, para o caso de condenação em cúmulo jurídico, à luz da Lei 9/2020-10abril não haveria que aplicar qualquer perdão à pena única quando aí tivesse sido englobada pelo menos uma pena parcelar aplicada pela prática de um crime excludente do perdão (mesmo que também englobasse outras penas parcelares aplicadas pela prática de outros crimes que não determinavam a sua exclusão).
Não é esta, porém, a solução que se mostra comtemplada na Lei 38-A/2023.
É dizer, continuando a seguir as palavras de Pedro José Esteves de Brito, que
“em caso de cúmulo jurídico, haverá sempre que ter em conta que o perdão incide sobre a pena única aplicada (cfr. art.º 3.º, n.º 4, da Lei em análise) determinada de acordo com as regras estabelecidas nos art.ºs 77.º e 78.º do C.P. e, assim, mesmo que englobando penas parcelares aplicadas por crimes excluídos do perdão e penas parcelares aplicadas por crimes dele não excluídos. Deste modo, nesses casos, o perdão não é afastado pela circunstância de no cúmulo jurídico estarem englobadas, para além de penas parcelares aplicadas por crimes dele não excluídos, pelo menos outra pena parcelar aplicada por crime dele excluído. Saliente-se que não foi essa a solução implementada pela Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, que, nos casos de condenação em cúmulo jurídico, determinou que não havia que aplicar qualquer perdão à pena única desde que naquele estivesse englobada pelo menos uma pena parcelar aplicada pela prática de um crime excludente do perdão e, assim, mesmo que também englobasse outras penas parcelares aplicadas pela prática de outros crimes que não determinavam a sua exclusão (cfr. art.º 2.º, n.ºs 3 e 6).”
Esclarecida a interpretação que temos como correta para a norma do art.º 7.º/3, dir-se-á, então, que não é a dita norma que soluciona o caso em presença. A fonte de solução está, então, na norma do art.º 3.º/1/4, a qual, relembre-se, estabelece que “é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos” sendo que “em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única”.
Forçosa, de imediato, é a conclusão de que a literalidade do texto da norma não serve de solução ao problema de interpretação colocado para decisão, visto que a expressão legal “todas as penas de prisão até 8 anos” tanto pode significar as penas singulares, como as penas parcelares de prisão em caso de cúmulo jurídico (ambas até 8 anos), como igualmente significar as penas singulares e as penas únicas de prisão em caso de cúmulo jurídico (ambas até 8 anos). Neste último caso, não será aplicado o perdão caso a pena única de prisão resultante de cúmulo jurídico ultrapassasse os 8 anos, ainda que houvesse pena ou penas parcelares inferiores a 8 anos que, abstratamente, beneficiariam do perdão.
Logo, o recurso aos demais elementos de interpretação, acima referidos, revela-se determinante.
Como é salientado no Assento 2/2001 (tal qual no Acórdão que aí figura como acórdão recorrido – TRPorto, de 21junho2000 – Processo 575/00), a ponderação do elemento histórico na interpretação de normas das leis de amnistia e perdão deve ter em devida conta os precedentes legislativos em matéria de leis de clemência.
No caso dos presentes autos, tais precedentes são os que estabelecem o perdão de penas em função de um limite de gravidade das concretas penas de prisão aplicadas. É dizer, vem-se atendendo à medida da pena de prisão aplicada para estabelecer uma diferenciação para a medida do perdão.
A consideração da medida da pena (de prisão) como critério para a aplicação do perdão [e também para determinar a medida do perdão, por ex., 1/6 da pena)] é habitual nas leis de clemência:
Na Lei 3/81-13março, o art.º 2.º/1, estabelecia que:
“1 – São perdoados, relativamente às penas correspondentes às infracções cometidas até à data referida no artigo 1.º:
a) As penas de prisão até seis meses correspondentes a infracções cometidas por delinquentes primários;
b) Três meses nas penas de prisão até seis meses;
c) Um sexto, nunca inferior a três meses, das restantes penas de prisão;
d) Um oitavo, nunca inferior a quatro meses, das penas de prisão maior variáveis;
e) Um décimo, nunca inferior a doze meses, das penas de prisão maior fixas.”
Na Lei 17/82-2julho, o art.º 5.º/1, estabelecia que:
“1 – São perdoados, relativamente às penas correspondentes às infracções cometidas até à data referida no artigo 1.º:
a) 1 ano em todas as penas de prisão nas infracções cometidas por delinquentes primários;
b) 6 meses em todas as penas de prisão nas infracções cometidas pelos restantes delinquentes;
c) Um sexto, nunca inferior a 10 meses, das penas de prisão maior variáveis, correspondentes a infracções cometidas por delinquentes primários;
d) Um oitavo, nunca inferior a 6 meses, das penas de prisão maior variáveis [correspondentes a infracções] cometidas pelos restantes delinquentes;
e) Um oitavo, nunca inferior a 18 meses, das penas de prisão maior fixas, correspondentes a infracções cometidas por delinquentes primários;
f) Um décimo, nunca inferior a 15 meses, das penas de prisão maior fixas, correspondentes a infracções cometidas pelos restantes delinquentes.”
Na Lei 16/86-11junho, o art.º 13.º/1b) estabelecia que:
“1 – Relativamente a delitos cometidos antes de 9 de Março de 1986, são perdoados
(…)

b) Um ano em todas as penas de prisão, ou um sexto das penas de prisão até oito anos, ou um oitavo ou dezoito meses das penas de prisão de oito ou mais anos, consoante resultar mais favorável ao condenado.”
Na Lei 15/94-11maio, o art.º 8.º/1d), estabelecia que:
“1 – Relativamente às infracções praticadas até 16 de Março de 1994, são perdoados
(…)

d) Um ano em todas as penas de prisão, ou um sexto das penas de prisão até oito anos, ou um oitavo ou um ano e seis meses das penas de prisão de oito ou mais anos, consoante resultar mais favorável ao condenado.”
Na Lei 29/99-12maio, o art.º 1.º/1, estabelecia que:
“1 – Nas infracções praticadas até 25 de Março de 1999, inclusive, é perdoado um ano de todas as penas de prisão, ou um sexto das penas de prisão até oito anos, ou um oitavo ou um ano e seis meses das penas de prisão de oito ou mais anos, consoante resultar mais favorável ao condenado.”.
É também habitual as leis de clemência estabelecerem que, em caso de cúmulo jurídico, o perdão é aplicado à pena única:
Na Lei 17/82-2julho, o art.º 6.º estabelecia que: “Em caso de cúmulo jurídico o perdão incidirá sobre a pena unitária.”
Na Lei 16/86-11junho, o art.º 13.º/2, estabelecia que: “O perdão referido no nº 1 (…), em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena unitária (…).”
Na Lei 15/94-11maio, o art.º 8.º/4, estabelecia que: “Em caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única (…).”
Na Lei 29/99-12maio, o art.º 1.º/4, estabelecia que: “Em caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única (…).”
A Lei 3/81-13março, não previa norma para o caso de haver concurso de infrações e inerente cúmulo jurídico, o que provocou divergência jurisprudencial, dando origem ao Assento 5/83, de 21outubro1983 (in DR, 1.ª Série, de 11novembro1983, p. 3798 e 3799), com o seguinte teor: “No caso de concurso real de infracções em que, nos termos do artigo 102.º do Código Penal de 1886, tem de aplicar-se ao réu uma pena única, é sobre esta, e não sobre as penas parcelares que o § 2.º do mesmo artigo manda também indicar, que deve incidir o perdão previsto pelo artigo 2.º da Lei nº 3/81, de 13 de Março.”
Aqui chegados logo nos confrontamos com especificidades na presente Lei 38-A/2023 com relação à “normalidade” das antecedentes.
É que, não obstante haver sintonia de aplicação da medida de perdão sobre a pena única, não só o modo de tal aplicação operar, como a dosimetria do perdão, diferem.
Quanto à primeira questão, parece ser linear que no caso de inexistência de crimes abrangidos pela amnistia, sequer se mostra necessário proceder a reabertura de audiência para pela via de aplicação da medida de perdão proceder a reformulação de cúmulo jurídico.
De facto, se recorremos à comparação do teor do art.º 5.º/5 da Proposta de Lei 97/XV/1.ª com o teor do que acabou por ser o art.º 7.º/3 da Lei, fácil constatamos que o trecho final
“devendo, para o efeito, proceder-se a cúmulo jurídico, quando aplicável” foi abandonado por imperativos de, digamos, agilização procedimental duma Lei que exigia entrada em vigência num momento em que a realização da diligência processual de inerência – realização de audiência de reporte ao art.º 472.ºCPP - sequer era viável, sendo mesmo desnecessária à luz do que o teor de Lei final consagrou.
Neste caso, uma vez mais recorrendo às palavras de Pedro José Esteves de Brito [n]ão estando englobados no cúmulo jurídico penas parcelares aplicadas por crimes abrangidos pela amnistia, não sendo sequer variável a medida do perdão em função da medida concreta da pena de prisão aplicada, ao contrário do que se passou”[com antecedentes leis] “não se verificando a alteração da moldura abstrata, não se impõe reformular o cúmulo jurídico de penas já efetuado, pelo que nada obsta à aplicação do perdão à pena única por despacho, sem necessidade de designar dia para a realização de nova audiência e subsequente prolação de decisão.”
Já quanto à segunda questão, a Lei 38-A/2023 em absoluto difere das antecedentes, pois ao contrário das mesmas não estabelece escalões de medida de perdão em função da dosimetria concreta de pena aplicada, sim fixa um padrão único de 1 ano.
Continuamos, porém, sem solução para a questão em apreço.
Recorrendo ao teor da Proposta de Lei 97/XV/1.ª, constatamos que o teor do então art.º 3.º/1 é aquele que veio a ser consagrado na Lei (com exceção da referência do valor da medida, então por extenso). Quanto ao teor do então art.º 3.º/3 este passou a constar do art.º 3.º/4 da Lei, sem qualquer alteração de teor.
Aqui chegados, para efeitos de interpretação, não podemos olvidar que tendo sido propósito do legislador afastar a aplicação desta medida de clemência, quer às situações de criminalidade grave – aquela usualmente sentida na sociedade como já integrante do patamar de criminalidade hedionda, e por isso mesmo em certos casos, tais quais os das condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública, tratada ao nível do art.º 1.º l) CPP como integrante do conceito de “criminalidade especialmente violenta” - (cfr. art.º 7.º, a contrario sensu), quer às penas de prisão de grande duração, a única interpretação que parece ser consentânea com esse espírito, sob pena de beneficio do Arguido que pratica crimes em acumulação, é a de que apenas são objeto do perdão de 1 ano de prisão as penas únicas fixadas em medida não superior a 8 anos, o que aqui se não verifica.
Ou seja, o legislador estabeleceu aqui um outro nível de exclusão, consubstanciado na gravidade da conduta ou na multiplicidade de condutas determinantes de uma pena de prisão superior ao limite fixado no art.º 3.º/1, independentemente do tipo de ilícito praticado, sendo que este evidenciado alargamento do campo de exclusões constante da Lei 38-A/2023 não consubstancia uma qualquer novidade, antes se inscreve numa tendência de vontade do Legislador que se vem desenhando desde a Lei 29/99, com a introdução de concretas exclusões que vão além da tipologia dos crimes, antes se focam especificadamente nos agentes, como sejam os delinquentes condenados como reincidentes, agora mantida na lei em análise, ou na posição funcional das vítimas, como é o caso dos membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários, como consta da Lei 9/2020 e agora limitadamente se mantém na lei em análise (dada a exceção da menção “guardas dos serviços prisionais”, ali justificada face à inerência de os beneficiários serem, em exclusividade, os reclusos).
E de facto, também à luz da letra da Lei assim parece resultar inequívoca a opção do legislador, porquanto fosse intenção de que tal medida de perdão incidisse não sobre a pena única, mas sim sobre o quantum das penas parcelares que estão quantificadas no cúmulo, bastaria para tal não manter este n.º 4 do art.º 3.º na redação que lhe deu.
Pronunciando-se sobre aquela que, ab initio, parecia ser uma linear interpretação, Pedro José Esteves de Brito, no estudo em referência já nos dizia, em comentário a este art.º 3.º, que “[a]s penas de prisão aplicadas em medida superior a 8 anos não beneficiam de perdão.” Contudo, face às interpretações que vieram a terreiro – dentre as quais a invocada pelo Arguido recorrente em NUIPC que reporta - afirma Pedro José Esteves de Brito (agora in “Mais algumas notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude”, Revista Julgar, online, janeiro2024) que “só as penas de prisão inferiores ou iguais a 8 anos são suscetíveis de beneficiar do perdão (cfr. art.º 3.º, n.º 1, da dita Lei), sejam elas parcelares, em caso de diferentes condenações sucessivas, ou únicas, no caso de condenação em cúmulo jurídico, conclusão a que se chega com base nos seguintes elementos: É novamente utilizada a preposição “até”, expressão inclusiva; e A lei fala em “todas as penas de prisão até 8 anos” (cfr. art.º 3.º, n.º 1 da dita Lei), esclarecendo que, em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única (cfr. art.º 3.º, n.º 4, da dita Lei). Assim, no caso de diferentes condenações em penas de prisão de cumprimento sucessivo terá que se atender à medida de cada pena de prisão aplicada em cada decisão e, em caso de condenação em cúmulo jurídico, à pena única, independentemente da medida fixada para as penas parcelares, dado que, neste caso, o perdão incide não sobre as penas parcelares, mas sobre a pena única. Dos trabalhos preparatórios resulta que, de resto, foi assim que a norma foi interpretada, ou seja, que em caso de condenação em cúmulo jurídico, para beneficiar do perdão de penas, a pena única de prisão não pode exceder 8 anos. Na verdade, consta do parecer do Conselho Superior da Magistratura: “Nestes casos, a aplicação da lei não suscita dificuldades: o perdão incidirá sobre a pena única, sendo perdoado um ano, com o limite previsto no n.º 1 do art.º 3.º (a pena não exceda 8 anos de prisão)”. Em bom rigor, trata-se de uma opção legislativa de apenas considerar merecedores do perdão aqueles que, nas demais condições previstas, tenham sido condenados numa pena de prisão não superior a 8 anos. Ora, não se pode dizer que a limitação seja política - criminalmente infundada. Na verdade, uma vez que uma pena de prisão de 8 anos é uma pena grave, não se afigura arbitrário considerar que um agente condenado numa pena de prisão de duração superior a 8 anos não é merecedor de qualquer medida de graça, tenha tal pena sido aplicada apenas por um crime ou se trate de uma pena única em cúmulo jurídico de várias penas parcelares porventura, cada uma delas, de medida inferior. Por outro lado, no passado, já se atendeu à medida da pena de prisão aplicada para estabelecer uma diferenciação para a medida do perdão (cfr. arts. 1.º, n.º 1, da Lei n.º 29/99, de 12 de maio, 8.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 15/94, de 11 de maio, 14.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 23/91, de 4 de julho, 13.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 16/86, de 11 de junho).”
No mesmo sentido, ainda que em abordagem lateral à questão, se pronuncia Ema Vasconcelos (in “Amnistia e perdão – Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto”, Revista Julgar, online, janeiro2024) quando nos diz que[v]ale isto por dizer que, ainda que uma pena parcelar seja objecto de perdão, caso a mesma venha, posteriormente, a integrar um cúmulo jurídico de conhecimento superveniente, tal perdão poderá deixar de ser aplicável, por força da pena única que venha a ser aplicada [p. ex: superior a 8 anos, no caso da actual Lei n.º 38-A/2023, de 2.8], ou passar a ser aplicável em diferente medida [vide, artigo 1.º, n.º 1 da Lei n.º 29/99, de 12.05].”
Cabe então responder à subsequente vertente da pergunta dos autos, no sentido de perceber se é razoável cogitar se qualquer pena superior a 8 anos, que não excluída pela tipologia de crime, de especificidade de agente ou de qualidade de vítima, possa ainda assim ser objeto de perdão.
A resposta deve ser, evidentemente, negativa, não só porque perfilhamos integralmente a posição supra exposta, o que fazemos por ser a única que à luz da globalidade dos elementos de interpretação chamados à colação permite o cumprimento da regra supra enunciada de respeito pelos princípios gerais inerentes, como também porque pensar solução diferenciada – tal qual a da tese propugnada pelo Arguido recorrente - somente conduziria a resultado inadequado e absurdo à luz de qualquer olhar, jurídico ou não.
Consequentemente, não obstante, verificada a delimitação subjetiva de idade do agente e a delimitação objetiva do tempo do ilícito, in casu a aplicação da medida de perdão sempre se mostra excluída pelo quantum da pena única aplicada, porquanto manifestamente superior a 8 anos.
Resta, face à alegação do Arguido por reporte ao art.º 412.º/2 a) CPP, afirmar que não se vislumbra qualquer afronta aos princípios de equidade e igualdade, em especial na vertente constitucional, decorrente da não aplicação ao caso concreto da medida de perdão.
Trata-se, como se disse, duma opção do legislador, no âmbito do seu poder de discricionariedade normativa, na certeza de que qualquer lei de amnistia e perdão, ao menos por força do seu âmbito temporal de aplicabilidade, conduz necessariamente a situações de injustiça relativa.

Diga-se, ainda e por último, que neste sentido vai igualmente a jurisprudência por ora conhecida, como são os casos dos relatos de José António Rodrigues da Cunha e de Maria dos Prazeres Silva, em Acórdãos do TRPorto, datados de 10janeiro2024, respetivamente nos NUIPC 996/04.3JAPRT.P2 e 441/07.2JAPRT-E.P1 (necessariamente ainda inéditos), no primeiro do qual se colhe que “definidas com precisão, como estão na lei, as regras aplicadas, nos seus precisos termos, concretamente que o perdão só tem lugar se a pena de prisão a que possa ser aplicado for até 8 anos [art.º 3.º, n.ºs 1 e 4], índice inultrapassável de gravidade de comportamento do agente adoptado pelo legislador, a interpretação da lei nos exactos termos em que se mostra redigida veda in casu a aplicação do pretendido direito de graça. Se assim não fosse, careceria, aliás, de sentido a fixação daquele limite” e no segundo que [i]mporta notar que a punição do concurso de crimes, efetivada de acordo com as regras estabelecidas no artigo 77.º do Código Penal, exprime a gravidade do comportamento global do arguido que, no caso, justificou a imposição de pena de prisão superior a 8 anos, constituindo essa gravidade fundamento para a não aplicação de perdão da pena única.”».
Ou seja, resolvida está a aparente incoerência entre a letra do artigo 3º, nº 4 e a letra do artigo 7º, nº 3 da Lei da Amnistia, estando assente para nós que, atento o disposto nos nºs 1 e 4 do artº 3º da Lei, não é aplicável o perdão de 1 ano de prisão ali previsto à pena única de prisão superior a 8 anos em que um arguido tenha sido condenado na sequência de cúmulo jurídico efetuado.
E se estiverem em causa penas de multa aplicadas a título principal ou como penas de substituição?
Aplica-se o mesmo raciocínio?

3.6. Não vislumbramos motivos para não o fazer.
Interpretando parte do raciocínio feito por Pedro Brito, nos artigos mencionados no aresto acima referenciado, diremos que, relativamente às penas de multa, se o legislador tivesse estabelecido um perdão de uma parte de todas as penas de multa ainda que fixadas até 120 dias, não haveria grande diferença relativamente ao regime estabelecido para o perdão das penas de prisão.
Acontece que foi estabelecido um perdão que obedece a uma lógica diferente.
Assim, para as penas de multa (principais ou de substituição) foi estabelecido um perdão com uma lógica diferente do perdão das penas de prisão, pois prevê-se um perdão da totalidade das penas de multa aplicadas em medida inferior ou igual a 120 dias – portanto, não se perdoa uma parte das penas de multa – caso em que se estipularia são perdoados 120 dias de todas as multas – mas sim as multas aplicadas até essa medida.
Veja-se que, no passado, quando o legislador pretendeu perdoar as penas de multa referiu que eram perdoadas as penas de multa (cfr. art.º 14.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 23/91, de 4 de Julho), sendo que quando pretendeu perdoar uma parte das penas de multa, aplicadas a título principal ou em substituição de penas de prisão, referiu que eram perdoados um número concreto de dias das multas (cfr. art.º 8.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 15/94, de 11 de Maio).
E em caso de cúmulo jurídico de penas?
Nesta caso, tem de ser equacionado a letra do artigo 3º, nº 4, que literalmente é aplicável ao perdão estabelecido no artº 3º, nº 2 [onde se consagrava na al. a) o perdão das penas de multa], sendo a questão ainda mais complicada quando nos deparamos com um cúmulo jurídico em que foi aplicada uma pena única de multa, englobando penas parcelares de multa, uma por crime perdoável e outra por crime imperdoável [como acontece no caso em causa – cfr. artº 7º, nº 1, al. d)-ii e nº 3].
A solução que nos parece mais consentânea com a unidade do próprio sistema jurídico, interpretado habilmente à luz do artigo 9º do CC (e trazendo para aqui todo o raciocínio exposto no acórdão da Relação de Lisboa acima transcrito), é a de que, neste nosso caso, não deveria nunca ter havido PERDÃO de pena pois o perdão incide sobre a pena única (cfr. artº 3º, nº 4) e a pena única fixada ultrapassa a medida estabelecida na lei [cfr. artº 3º, nº 2, al. a), já que, no caso, foi fixada em 130 dias, acima dos 120 dias[3]].
De facto, face ao que resulta do disposto no nº 4 do artigo 3º, que refere «pena» e não «crimes», entendemos que não deverá ser aplicado qualquer perdão caso a pena única de multa seja superior a 120 dias.
Ora, este entendimento não cria desigualdade na aplicação da Lei da Amnistia, não sendo violado o princípio da igualdade previsto no artigo 13º, nºs 1 e 2 da CRP, bem como o artigo 26º do mesmo diploma. 
Como bem lembra o acórdão da Relação do Porto, datado de 21/2/2024 (Pº 476/18.0PIPRT-AS.P1), aplicando-se o mesmo raciocínio quando estamos perante penas de multa:
            «Contudo, a criação do limite máximo previsto no artº 3º nº 1 da Lei nº 38-A/2023 reveste carácter geral e abstrato, pois ao definir o âmbito de exclusão do perdão com base numa pena única de prisão, faz apelo à espécie e quantum da pena aplicada e, por outro lado, aplica-se a todos os arguidos que se encontrem na situação ali descrita que, assim, são em número indeterminado, pelo que não viola o princípio da igualdade, pois a ideia de igualdade só recusa o arbítrio, as soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis.
            O Tribunal Constitucional vem entendendo, com significativa reiteração, que o legislador da clemência tem liberdade de estabelecer os critérios e a forma de determinar o perdão, mantendo uma significativa margem de discricionariedade, de forma a cumprir os objetivos que lhe estão subjacentes. Como tal, “cabe na discricionariedade normativa do legislador ordinário eleger, quer a medida do perdão de penas — o quantum do perdão —, quer, em princípio, as espécies de crimes ou infracções a que diga respeito a pena aplicada e perdoada, quer a sujeição ou não a condições, desde que o faça de forma geral e abstracta, para todas as pessoas e situações nela enquadráveis.
            Ao aplicar o perdão de um ano apenas às penas únicas até 8 anos de prisão, o legislador não está a tratar de forma desigual situações semelhantes, mas antes a excluir da aplicação do perdão "todos" os arguidos aos quais tenha sido aplicada uma pena única superior àquele limite».

Por isso, comungamos da tese de que, no caso do artigo 3º, nº 2, alínea a) da lei em causa, também se deve considerar apenas perdoável a pena em cúmulo que seja igual ou inferior a 120 dias de multa, não o sendo a fixada em medida superior, mesmo que integre nela penas consideradas de forma autónoma perdoáveis ao abrigo desta lei de clemência (o nosso caso).
Em síntese, não encontramos fundamento para interpretar o artigo 3º, nº 4, da Lei de Amnistia, de uma forma quanto às penas de prisão e de outra quanto às penas de multa.
Se tem vindo a ser decidido nas Relações – e são já muitos os arestos nesse sentido - que a medida de perdão fixada pela Lei 38-A/2023, nas regras estabelecidas pelos nºs 1 e 4 do art.º 3.º, só é aplicada, verificados os demais pressupostos, a penas que não sejam superiores a 8 anos de prisão, não só quando esteja em causa a pena aplicada apenas por um crime, como também quando se está perante uma pena única em resultado de cúmulo jurídico de várias penas parcelares, ainda que cada uma delas de medida inferior a 8 anos, não vemos que fundamento poderá ser apresentado para entender que, no caso da multa, o limite até 120 dias, em caso de cúmulo, não se aplica à pena única conjunta.
Face ao exposto, a nossa posição é a de que, neste caso, não deve haver lugar a qualquer perdão da pena de multa (seja em que medida for)[4].
 
3.7. Uma outra questão agora se coloca face ao sentido da deliberação que vai tomar esta Relação.
Estará ela a colocar em causa o princípio da proibição da reformatio in pejus?
O instituto da proibição da “reformatio in pejus” está consagrado no art. 409º, nº 1, do CPP, que estabelece que quando o recurso da decisão final é interposto somente pelo arguido, ou pelo Ministério Público no exclusivo interesse do arguido, o tribunal superior não pode agravar, na espécie ou na medida, as sanções impostas na decisão recorrida.
Esta regra radica na própria estrutura acusatória do processo penal e constitui uma garantia básica do direito do arguido ao recurso de sentença condenatória, ao preveni-lo contra o risco de uma decisão mais gravosa do tribunal superior.
Sem essa proibição, o exercício do direito (constitucional) ao recurso envolveria sempre e inevitavelmente um risco, pela incerteza da decisão a proferir pelo tribunal superior, que poderia funcionar como elemento gravemente dissuasor do uso desse direito, que é um direito fundamental do arguido.
Dito de outra forma: se não interviesse, em qualquer dos casos, a garantia da proibição da reformatio in pejus, o arguido ficaria limitado no seu direito de impugnação de uma decisão que considerasse injusta, pois, sabendo que correria o risco de ver a sua posição agravada, se requeresse a anulação do julgamento ou suscitasse alguma questão que pudesse determinar essa anulação, ficaria naturalmente receoso de recorrer.
No fundo, a inexistência da garantia da proibição da reformatio in pejus afectaria incontestavelmente o direito de impugnação, o que é insustentável, por violar frontalmente as garantias de defesa.
A propósito do instituto, tem-se entendido jurisprudencial e doutrinalmente que:
· para que se aplique a proibição é obrigatório que tenha havido recurso, pelo que o princípio não funciona fora das situações de recurso, não podendo assim ser afirmado como um princípio geral de processo penal, mas sim como um princípio de recursos em processo penal;
· é a vertente sancionatória da sentença que o instituto visa salvaguardar, proscrevendo qualquer agravação da mesma, quer se trate das penas (principais, acessórias ou substitutivas), quer de medidas de segurança. De fora da proibição fica porém a pena de multa, mas somente quanto ao quantitativo do dia/multa, que não ao número de dias de multa, no caso de melhoria da situação económica e financeira do condenado (nº 2 do mesmo art. 409º).
· no caso de concurso de crimes, se o recurso abranger, além da pena única, as penas parcelares, também estas estão abrangidas pela mesma proibição.
· em caso de anulação de julgamento, por decisão do tribunal superior, os efeitos da proibição estendem-se ao novo julgamento a realizar em 1ª instância – isto significa que o tribunal de 1ª instância não pode agravar as penas aplicadas no primeiro julgamento.
Por conseguinte, o princípio da proibição da reformatio in pejus estabelece que quando o arguido, ou o Ministério Público no interesse daquele, recorrem para um tribunal superior, este tribunal não poderá modificar, em prejuízo do arguido, a pena imposta pelo tribunal recorrido, sendo diversa a situação quando for o Ministério Público a recorrer sem ser no interesse do arguido, ou quando for o assistente a recorrer, situações em que não se aplicará, naturalmente, a proibição.
Ora, nos nossos autos não houve recurso do arguido e o presente recurso do MP não foi intentado no exclusivo interesse do arguido, acrescentando-se ainda que o conhecimento do Direito – de preferência, do «bom» Direito - é oficioso pelos tribunais.
Se estivesse em causa um recurso interposto pelo MP no exclusivo interesse do arguido, julgamos que a “revogação” pelo tribunal ad quem do perdão de pena concedido pelo tribunal recorrido estaria abrangida pela proibição da “reformatio in pejus”, conforme há muitos anos foi decidido pelo Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 498/98, datado de 2/7/1998, que julgou inconstitucional, por violação do artigo 32º, n.ºs 1 e 5, da Constituição, a norma do artigo 409.º, n.º 1, do CPP, na interpretação segundo a qual a proibição da reformatio in pejus não abrange a revogação pelo tribunal superior do perdão de pena concedido pela 1ª instância.
Já anteriormente, aliás, o mesmo tribunal, no Acórdão nº 499/97[5], datado de 10/7/1997, decidira julgar inconstitucional, “por violação do artigo 32.º n.ºs 1 e 5, da Constituição, as normas dos artigos 409.º, nºs 1 e do Código de Processo Penal e 9º, nº 3, alínea a), da Lei n.º 15/94, de 11 de Maio, conjugadamente, na interpretação segundo a qual a revogação pelo Supremo Tribunal de Justiça do perdão concedido na primeira instância por aplicação da Lei n.º 15/94, de 11 de Maio [artigo 8.º, n.º 1, alínea d)], fundamentada no artigo 9.º, n.º 3, alínea a), do mesmo diploma, não se encontra subordinada à proibição da reformatio in pejus consagrada no artigo 409.º, nºs 1 e 2, do Código do Processo Penal.”
Note-se que em ambos os recursos, a revogação oficiosa pelo tribunal ad quem da decisão recorrida na parte em que aplicou o perdão, num caso de interposição de recursos exclusivamente no interesse do arguido (por ele próprio e/ou pelo Ministério Público), o que não é o NOSSO caso.
Nestes autos, a 1ª instância perdoa 90 dias de multa.
O MP quer que apenas se perdoem 60 dias de multa.
Decidindo esta Relação que, afinal, não há perdão nenhum a aplicar, tal configura inequivocamente um agravamento da posição do arguido relativamente à definida na decisão recorrida – ora, revogar a dita decisão recorrida quanto à aplicação do perdão não viola, como atrás se insinuou, a proibição de reformatio in pejus, tendo em conta que o recurso não é do arguido e nem do MP no exclusivo interesse daquele.
No entanto, reconhece-se que a concretização desta perspectiva resultaria numa verdadeira "decisão surpresa"[6] para o arguido, que não foi confrontado com ela no recurso, podendo na sua resposta tê-la passado por alto ou mesmo ter entendido nem responder (na nossa situação, nem sequer houve resposta do arguido).
Por isso, entendemos não aplicar a proibição do artigo 409º do CPP, tendo-se optado, em sede de despacho proferido pelo relator em 9/4/2024, por lançar mão da opção do artigo 3º, nº 3 do CPC[7], aqui aplicável por força do artigo 4º do CPP – aí se estipula que: «O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem».
Entendeu-se, claro está, não se estar perante um caso de «manifesta desnecessidade» desse contraditório.
Fez-se então esse contraditório, e nada veio a ser dito pela defesa no prazo de 10 dias que lhe conferimos.
Assim sendo, não encontramos qualquer obstáculo legal a que possamos revogar a decisão recorrida, com pressupostos diversos dos invocados pelo MP recorrente (este pede, a final, e afinal, também a revogação do despacho recorrido).
Na realidade, não fazemos uma interpretação do artigo 409º, em função da qual o recurso do MP, que não é no exclusivo interesse do arguido, balize a actuação do tribunal ad quem, impondo como limite, por exemplo, a pena proposta pelo MP no recurso interposto de uma condenação[8].
Por isso, tenderemos a pensar que não estará assim este recurso limitado à questão da mera «medida» do perdão, entendendo-se que a nossa decisão de não aplicação de qualquer dia de perdão – aquela que, na nossa perspectiva, coloca o Direito no seu devido lugar - não extravasa o objecto do recurso[9].

3.7. Se assim é, e pelos fundamentos acima descritos, só pode proceder parcialmente este recurso, na medida em que revogaremos o despacho recorrido – já que se entende não haver lugar a qualquer perdão dessa pena de 130 dias de multa -, sem que, contudo, o substituamos pelo preconizado pelo MP.

3.8. Diremos em sumário:
No caso do artigo 3º, nº 2, alínea a) da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, também se deve considerar apenas perdoável a pena em cúmulo que seja igual ou inferior a 120 dias de multa, não o sendo a fixada em medida superior, mesmo que integre nela penas consideradas de forma autónoma perdoáveis ao abrigo desta lei de clemência.

                                                           *


            III – DISPOSITIVO       

            Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em conceder parcial provimento ao recurso intentado pelo Ministério Público, revogando-se o despacho recorrido e determinando-se que, na presente situação, não é aplicável qualquer perdão à pena de multa fixada em cúmulo jurídico, ao abrigo da Lei nº 38-A/2023, de 2/8.

Sem tributação.

Coimbra, 8 de Maio de 2024
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94º, nº 2, do CPP -, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria 267/2018, de 20/09)
 
Relator: Paulo Guerra
Adjunto: Alexandra Guiné
Adjunto: João Bernardo Peral Novais




[1] Temos também para nós que esta «lei reveste carácter geral e abstracto, pois aplica-se a todos os arguidos que se encontrem na situação por si descrita, portanto em número indeterminado, a delimitação do seu âmbito de aplicação está devidamente justificado e não se mostra arbitrária, nem irrazoável, pelo que não padece de inconstitucionalidade a limitação constante do nº 1 do artigo 2º» (Ac. desta Relação, datado de 22/11/2023 – Pº 39/07.5TELSB-H.C1).
E, como bem disserta o aresto da Relação de Évora, datado de 23/1/2024 (Pº 3873/20.7T9FAR.E1):
«As leis de amnistia e perdão têm caracter de clemência, não é um direito dos cidadãos;
O Estado goza de grande liberdade conformativa no conteúdo das leis de amnistia e perdão, sendo que as suas razões e objetivos não estão concretizadas em lei;
Não podendo ocorrer o arbítrio ou discriminação infundada, o Estado pode escolher o momento da entrada em vigor da amnistia/perdão, que tipos legais ou condutas serão passiveis de amnistia/perdão, qual a abrangência da amnistia/perdão (penal, contraordenacional, disciplinar …), que grupos de indivíduos amnistiar/perdoar (Lei 9/96, de 23 de Março, conhecida pela Amnistia às FP25), isto é, desde que justificada a sua restrição não existe inconstitucionalidade.
Ora, no caso em apreço não se vislumbra qualquer arbítrio ou falta de fundamento material.
Na verdade, tratou-se de assinalar a vinda do Papa às JMJ, estabelecendo-se vários limites: idade, data da prática dos factos, tipos de infracções.
Tal e qual se estabeleceu em anteriores amnistias.
A fixação da idade dos 30 anos, e não de outra qualquer, mesmo que por referência a jovens, está também bem explicitada, parecendo desrazoável a discussão acerca da idade até à qual se pode considerar uma pessoa jovem. E muito menos por referência ao conceito de jovem para muitos outros efeitos (até para jovem agricultor!).
Tratou-se apenas de equiparar com a idade considerada para participação nas JMJ.
Por outro lado, é bem compreensível que se associe à vinda do Papa e às JMJ à concessão de um “benefício” a quem sendo jovem, mais facilmente merece “incentivo” para uma melhor ressocialização.
Resulta de tudo o exposto que com a fixação do limite dos 30 anos não se vislumbra qualquer contrariedade aos preceitos constitucionais ou da carta dos direitos fundamentais dos cidadãos da união europeia».
[2] E temos por certo que as excepções previstas no art. 7º da Lei da Amnistia aplicam-se também às condutas ainda não julgadas ou transitadas em julgado.
[3] Se fosse a pena cumulada igual ou inferior a 120 dias, dever-se-ia, só aí, adoptar o raciocínio do MP recorrente neste caso.
Ou seja: a pena pelo crime de condução sem habilitação legal é perdoável, mas como o perdão incide sobre a pena única do concurso, tem o perdão de ficar limitado de modo a deixar intangível a pena não perdoável (a da condução em estado de embriaguez); no fundo, o perdão ficaria em 60 dias, remanescendo da pena única os 70 que são os da pena parcelar não perdoável.
Na verdade, a proceder-se como o fez o tribunal recorrido, estar-se-ia a beneficiar o infractor – no nosso caso, o arguido, se fosse condenado por um só crime de condução em estado de embriaguez, sofreria uma pena de multa (90 dias de multa) superior à que lhe seria aplicada pela prática de dois crimes, por força da aplicação deste perdão de 90 dias sobre a pena de cúmulo (nesta situação, apenas cumpriria 40 dias de remanescente de pena), o que é intolerável.
Ou seja, apenas se deveria perdoar o remanescente da pena única que vai além do montante de 70 dias de multa - respeitante à pena imperdoável -, no caso, 60 dias de multa. 
Nessa situação, procederia totalmente o recurso do MP.
[4] Já se defendeu que a circunstância de apenas serem perdoáveis penas de multa até 120 dias, não sendo possível perdoar 120 dias de multa a multas fixadas em medida superior, seria inconstitucional perante a possibilidade de se poder perdoar 1 ano de prisão a penas muito mais graves, até 8 anos de prisão.
Veja-se o teor do acórdão da Relação de Guimarães, datado de 6/2/2024 (Pº 90/23.8PBGMR.G1):
«I- O perdão de penas previsto no artigo 3.º n.º 2 al. a) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, apenas é aplicável às penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão, pelo que estão excluídas da aplicação do perdão as penas de multa aplicadas em medida superior a 120 dias de multa a título principal ou em substituição de penas de prisão.
Até 120 dias a medida de graça vigora; acima desse número, o legislador entendeu que a gravidade denunciada pela medida concreta da pena não autoriza a medida de clemência.
No caso de ter sido fixada uma multa por um período superior a 120 dias não pode, por conseguinte, aplicar-se o perdão e efetuar-se o pertinente desconto.
II- Esta interpretação da norma do artigo 3.º n.º 2 al. a) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto não enferma de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP)».
Aí se deixou escrito:
«…o recorrido invoca a inconstitucionalidade interpretativa por se considerar que a lei coloca em pé de igualdade um ano de prisão e multa de 120 dias – a equiparação pura e dura de um perdão ou uma amnistia de 1 ano de prisão a um perdão ou a uma amnistia de 120 dias de multa (no fundo, as condenações por factos criminosos mais gravosos e com penas mais graves (365 dias de prisão) teriam um tratamento mais favorável que condutas menos graves, com penas menos graves (120 dias de multa).
Esta maneira de ver viola, em seu entender, o princípio constitucional da igualdade.
(…)
Ora, não se vê como possa estar em causa o princípio da igualdade quando as normas em causa se aplicam de modo precisamente igual a todos os cidadãos por ela abrangidos.
(…)
O que talvez se possa surpreender no pensamento do recorrido neste campo tem que ver com a sua posição de que é desigual equiparar um ano de prisão a multa de 120 dias; mas essa equiparação é feita pela lei e não pelo intérprete, como se demonstrou. E, deve dizer-se, que se compreende a estrutura do pensamento legislativo, não se lobrigando aí qualquer inconstitucionalidade: elegeu-se o primeiro terço das molduras abstratas máximas legalmente admissíveis de cada espécie de pena para fazer incidir o ius condonandi - prisão de 8 anos corresponde grosso modo a um terço do limite máximo da pena de prisão de 25 anos, e 120 dias corresponde exatamente a um terço do limite máximo da pena de multa de 360 dias (artigos 41.º, n.º 2, e 47.º, n.º 1, ambos do Código Penal); depois, determinou-se o perdão de 1 ano de prisão caso a pena aplicada seja de prisão de 8 anos e até 120 dias caso esse número não seja ultrapassado pela decisão. Assim, ao contrário do que afirma o recorrido, proporcionalmente, o perdão previsto para as penas principais de multa é muito superior ao que está previsto para as penas de prisão, pois pode exaurir um terço completo da sua amplitude legal, ao passo que no que diz respeito à pena de prisão, apenas um ano desse primeiro terço completo da sua amplitude legal pode eclipsar-se por força da graça.
É verdade que o abalo provocado por um ano de prisão é certamente incomparavelmente superior ao pagamento de uma pena de 120 dias de multa, especialmente se tivermos em conta o tradicional comedimento dos tribunais portugueses na correspondência monetária diária da multa mas uma pena de 120 dias de multa a que corresponda um montante diário de €500,00, legalmente previsto no artigo 47.º, n.º2 do Código Penal, certamente para alguém com muitas posses, não deixará de causar um mal disfarçado ranger de dentes. De qualquer modo, uma pena de prisão de 8 anos referir-se-á, indubitavelmente, a um facto muito mais grave do que a um outro punido com 120 dias de multa, pelo que se compreende e não se considera desconforme à constituição, designadamente na sua vertente de consagração da igualdade, a opção legislativa.
Nesta conformidade, em nosso entender, não ocorre qualquer inconstitucionalidade nas normas em causa nem na interpretação proposta no recurso e acolhida nesta decisão».

[5] Extraímos do eloquente texto relatado pela Conselheira Fernanda Palma o seguinte trecho:
«Não decorre, obviamente, da Constituição uma proibição absoluta da reformatio in pejus, pois isso seria conflituante com o direito ao recurso da acusação e com a realização da Justiça. Mas tem que ser garantida, num certo grau, a estabilidade das sentenças judiciais. A sua revogabilidade não pode ser referida a um plano de justiça absoluta, mas apenas ao plano do recurso e da recorribilidade (cf. Bettiol, ob.cit., p. 307). O próprio direito ao recurso pressupõe a verificação de requisitos determinados, os quais justificam uma reapreciação dos factos provados ou do direito aplicado dentro da matéria recorrida, sendo o recurso a emanação de um poder não ilimitado de  controlo pelos  tribunais superiores das decisões proferidas em primeira instância.
Ora, a proibição da reformatio in pejus é reclamada pela plenitude das garantias de defesa, quer porque a reformatio in pejus poderia surgir inesperadamente ou de modo insusceptível a ser contraditada pela defesa quer porque restringiria gravemente as condições de exercício do direito ao recurso.
São, assim, princípios constitucionais, na sua concretização no sistema jurídico, que exigem a configuração de uma certa medida de proibição de reformatio in pejus (nesse sentido, Giorgio Spengher, Enciclopédia del Diritto, vol. XXXIX, 1988, p. 297, sobretudo notas 134 e 135, referindo-se à obtenção de um direito à não reforma da pena baseado em princípios constitucionais)».
[6] Sobre ela, dissertou o Acórdão do STJ, datado de 19/6/2019, no Pº 273/17.JAAVR.P1.S1):
«A questão da decisão-surpresa adquire na doutrina italiana a designação de “sentenza di terza via” ou “decisioni solitarie” ou “solipsisticamente adoptata” e vem regulada nos artigos 101.º e 183.º do Códice di Procedura Civile. No domínio da legislação italiana, tal como na maioria da legislações, onde se pretendem estabelecer regras de um processo justo – processo organizado e estruturado de modo a garantir, no limite do possível, a justiça do resultado - o juiz tem o dever de participar na decisão do litígio participando na indagação do direito – iura novit cura – sem que esteja peado ou confinado à alegação de direito feita pelas partes. A indagação do direito sofre, no entanto, constrangimentos endoprocessuais que atinam com a configuração factológica que as partes pretendam conferir ao processo. Este confinamento factológico, balizante da capacidade cognoscente do tribunal, não impede o tribunal de enveredar pelo conhecimento de questões que as partes não tenham enunciado ou não tenham qualificado durante, ou no desenvolvimento, da lide processual. A questão que se coloca na doutrina é saber se tendo, por exemplo, dirigido ao tribunal um pedido para, segundo determinada factologia, apreciar se ocorreu um inadimplemento de um contrato e o juiz, oficiosamente, na apreciação de mérito a que procede declara a nulidade do contrato. Vale por dizer se é legítimo nesta caso o juiz decidir sobre a nulidade de um contrato sem que qualquer das partes tenha suscitado a questão e sem que, previamente, tenha convocado as partes a pronunciar-se sobre esta hipótese decisão.
O exemplo, académico, que se convocou dilucida de forma paradigmática o que deve ser tido por decisão-surpresa ou “decisão solitária” do juiz. O juiz de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeqúe a uma correcta e atinada do litígio. Não tendo, no entanto as partes configurado a questão na via adoptada pelo Juiz caber-lhe-ia dar-lhes a conhecer a solução jurídica que pretenderia vir a assumir para que as partes pudessem contrapor os seus argumentos.

Não subsistirão dúvidas de que na estruturação de um processo justo, o tribunal deve prevenir e, na medida do possível, obviar a que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões para as quais as suas exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração. A questão da falta ou ausência de participação das partes na formação do juízo decisório do tribunal deve ser, contudo, objecto de uma disquisição mais aprofundada. Trata-se de emanações dos princípios fundantes do processo justo como sejam os princípios de cooperação, boa fé processual e colaboração entre as partes e entre estas e o tribunal.
O n.º 2 do artigo 101.º do Códice di Procedura Civile, na reforma de 18 de Junho de 2009, Lei n.º 69, taxa de nulidade a assumpção de uma decisão que seja tomada pelo Juiz sem que tenha sido assegurado o contraditório. Esta normativa vem correlacionada com o artigo 183.º do mesmo diploma legal que impõe ao Juiz o dever de indicar às partes, no decurso da audiência, as questões relevantes que, oficiosamente, possam surgir e que o tribunal julgue ou prospec-tive virem a ser objecto de tratamento na decisão que pensa vir a tomar, a final. Se o não fizer nesta sede sempre terá a possibilidade de o vir a fazer ou impulsionar nos termos do já citado artigo 101.º.
A falta ou ausência de contraditório originou na jurisprudência italiana orientações diversas que foram desde a crismada linha rigorista ou garantística até á linha formalista. Porém a sentença n.º 20935, de 30 de Setembro de 2009, das secções unidas da Corte de Cassação, tomando posição sobre a controvérsia gerada afirma “[que] resta todavia, aberto o nó problemático se omitida a indicação da questão relevante de oficio possa não comportar, ipso facto, a nulidade da sentença, pois que tudo se transporta a uma justiça ou injustiça da decisão, ou então se tal nulidade seja indefectível consequência do dever de imparcialidade do Juiz, pela sua posição super partes, que conota todo o justo processo”. (tradução nossa). Também a doutrina italiana se tem dividido na taxação de nulidade da sentença de “terza via”, como dá nota o artigo que vimos citando.

A jurisprudência conhecida, mais significativa, e que, em nosso juízo melhor, melhor atina com o ordenamento jusprocessual vigente vem plasmada no douto acórdão do Conselheiro João Bernardo, datado de 4 de Junho de 2009.
Embora o artigo 3.º, n.º 3 do Código Processo Civil exija do juiz uma diligência aturada de observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo o princípio do contraditório, salva os casos em que ressalte uma manifesta desnecessidade. O que deve entender-se por manifesta desnecessidade constitui-se como o nódulo ou punctum crucis da questão e só a praxis pode ajudar a desbravar e obtemperar.

Na esteira da jurisprudência supra citada, advogamos a tese de poder a vingar a arguição de nulidade de uma decisão quando, e se, a solução opcionada pelo tribunal se desvincule totalmente do alegado pelas partes, na sua substancialidade ou na sua adjectividade. Vale por dizer que as partes terão direito a insurgir-se contra uma decisão se a via nela seguida não se ativer, com um mínimo de arrimo, ao que foi alegado e sufragado pelas partes durante o curso do processo. Assim, se as partes não tiveram hipótese de aportar e debater factos (novos e condizentes com a realidade jurídica prefigurada pelo tribunal antes da decisão “solipsisticamente adottata”) que poderiam trazer alguma luz sobre a “terza via”, oficiosamente assumida pelo tribunal, então as partes terão o direito de tentar refazer a actividade do tribunal de modo a encarrilar e adequar a estrutura do processo ao resultado decisório. Na última situação prefigurada o tribunal apartou-se do dever de cooperação, colaboração e boa fé que deve nortear o princípio de imparcialidade e de posição supra partes constitucionalmente atribuído ao Julgador. Neste caso, se o juiz envereda por uma “terza via” e as partes não alegaram factos ou tomaram posição concreta sobre a solução “solitária”, a decisão pode tornar-se injusta e acarretar um juízo de parcialidade que afecta a estrutura regente de um processo justo e despejado de desvios processuais ou substantivos que desvirtuem a decisão ou o resultado final que se espera venha a ser assumido pelo tribunal».
[7] A opção de lançar mão do artigo 424º, nº 3 do CPP é forçada face ao seu literal texto – aí se estipula que «sempre que se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na decisão recorrida ou da respectiva qualificação jurídica não conhecida do arguido, este é notificado para, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias» (fala-se da deliberação no Tribunal da Relação).
De facto, a norma respeita apenas a alterações de factos e/ou à sua qualificação jurídica, sendo certo que nesta nossa situação o que se trata é da procura de uma solução para estrito problema de direito.
[8] Como responderíamos à questão: se um arguido for condenado em 1 ano e 6 meses de prisão, pela 1.ª instância, e o MP recorre, pedindo o agravamento da pena que considera benévola, indicando uma pena de 2 anos de prisão, poderá o tribunal de recurso conceder provimento ao recurso e condenar o arguido em 2 anos e 6 meses, dentro do consentido pela moldura penal abstracta, ou aqueles 2 anos que o MP indica ou sugere no seu recurso limitam o tribunal? Desde que não estejamos no estrito campo de aplicação do artigo 409º do CPP, não vemos inconveniente nisso, assente que não se estará a extravasar de forma irreversível e absoluta o objecto do recurso.

[9] Reconhece-se alguma pertinência na tese contrária que sente alguma dificuldade em ultrapassar o que se designaria por caso julgado (formal) parcial quanto à aplicação do perdão (não já quanto à respectiva “medida”).
Para tal tese:
· mesmo em caso de recurso interposto pelo MP no interesse da acusação (como foi o caso), pensamos que a parte “não impugnada” da decisão, em princípio, transita, formando caso julgado parcial;
· conforme refere Pinto de Albuquerque, «este princípio está agora consagrado explicitamente no novo artigo 402.º, n.º 3, que manda que se tenha em conta o efeito do caso julgado parcial na determinação do âmbito subjetivo do recurso do MP. A disposição que consagra a boa jurisprudência do STJ (…) é aplicável, por interpretação extensiva, à delimitação do âmbito objetivo do recurso do MP interposto no interesse da acusação (…)», o que significaria que o efeito do caso julgado parcial na delimitação do âmbito do recurso interposto pelo MP no interesse da acusação vedaria a desconsideração do perdão (cujo decretamento beneficiou o arguido);
· no nosso caso, o MP não só não reagiu, por via do recurso, a uma “suposta” “incorreção da decisão”, como manifestou a sua expressa concordância (com a aplicação do perdão) – vide ponto 3 das conclusões -; deixou, por isso, de impugnar directamente a parte do despacho que decidiu pela aplicação do perdão.
Como tal, tal tese tenderá a defender que os poderes de cognição da Relação se contêm no quadro dos estritos limites traçados pelo recorrente, assistindo-se à consolidação da decisão recorrida na parte restante (assistindo-se a uma vinculação intraprocessual que vai condicionar intraprocessualmente o poder de decisão à não alteração em desfavor do arguido) – ao invés, assistir-se-ia à “correcção” de um (suposto) erro de direito, com repercussões desfavoráveis para o arguido.
Não a seguiremos por se entender que a justiça material aqui se deve sobrepor à formal, reafirmando-se que, no caminho trilhado, não se estará a extravasar de forma irreversível e absoluta o objecto do recurso.