Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
752/13.8TMCBR-V.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: INCUMPRIMENTO DA REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
INDEFERIMENTO LIMINAR POR MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO
Data do Acordão: 10/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTIGO 41.º, 3, 2.ª PARTE, DO RGPTC
ARTIGOS 195.º, 1, D); 590.º, 1 E 615.º, 1, D), DO CPC
Sumário: A prolação de despacho de “indeferimento liminar”, por manifesta improcedência do pedido, só pode ser proferido se não houver interpretação possível ou desenvolvimento possível da factualidade articulada que viabilize ou possa viabilizar o pedido, ou seja, se a evidência da improcedência tiver um caráter absoluto e objetivo, para poder sê-lo, se nenhuma outra construção jurídica for possível, além da expressa no despacho de indeferimento liminar.
Decisão Texto Integral: Apelações em processo comum e especial (2013)

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     Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]  *


1 – RELATÓRIO

AA instaurou em 09.07.2024 contra BB incidente de incumprimento da regulação das responsabilidades parentais alegando, em síntese, ter comunicado a este, pai do seu filho, até ao final mês de março, como acordado entre ambos e em conformidade com o direito que lhe assistia, o período que pretendia gozar de férias de verão com ele – a última quinzena de julho e de agosto – e que, a 31 de março, o pai do seu filho lhe comunicou, por mensagem eletrónica/e.mail, que teria de alterar, pois a criança passaria consigo a última quinzena de julho, acrescendo que em mensagem última, desta vez através duma rede social, o pai «(…) reafirma que o menino não passará os últimos 15 dias de julho com a mãe».

Juntou 4 documentos para prova do alegado (prints das mensagens).

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Em despacho liminar, datado de 15.07.2024, a Exma. Juíza de 1ª instância decidiu indeferir liminarmente este incidente, por “manifesta improcedência”, tendo-o mais concretamente feito nos seguintes termos:

«(…)

Nos termos do disposto no artigo 41.º, n.º 1, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de setembro, se, relativamente à situação da criança, um dos pais ou a terceira pessoa a quem aquela haja sido confiada não cumprir com o que tiver sido acordado ou decidido, pode o tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro progenitor, requerer, ao tribunal que no momento for territorialmente competente, as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respetivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou de ambos.

A requerente não alegou qualquer factualidade que sustente o incumprimento das responsabilidades parentais por parte do pai, posto que escolheu ter o filho consigo na última quinzena de julho e de agosto e tal período começa no dia de hoje, não podendo afirmar a existência de qualquer incumprimento.

A suspeita, suposição ou expectativa de incumprimento são insuscetíveis de configurar um incumprimento propriamente dito.

Nesta ordem de ideias, face à factualidade elencada pela requerente e à ausência de factualidade que sustente a verificação dos pressupostos de que depende o incumprimento das responsabilidades parentais, o pedido é manifestamente improcedente.

Face ao exposto e ao abrigo da disposição legal citada e do disposto nos artigos 590.º, n.º1, do Código de Processo Civil e 33.º, n.º 1, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível indefiro liminarmente o requerimento inicial.

Advirto a requerente que futuros requerimentos desta natureza, cuja falta de fundamento não pode ser ignorada, poderão vir a ser apreciados à luz do instituto da litigância de má fé.

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Custas pela requerente (artigo 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

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Valor: € 30.000,01 (artigo 303.º, n.º 1, e 304.º, n.º 1, do Código de Processo Civil)

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Registe e notifique a requerente.»

                                                           *

É com esta decisão que a progenitora/requerente não se conforma e dela vem interpor recurso de apelação, de cujas alegações extraiu as seguintes conclusões:

«a) Em matéria de Direito

1 - Em 09/07/2024, a recorrente apresentou o requerimento que deu origem aos presentes autos, alegando, em suma, que o requerido, ora recorrido está a incumprir nomeadamente, as cláusulas 5) e 8) da sentença porque não aceitou a escolha legítima e a comunicação dentro do prazo, por parte da progenitora, dos períodos das férias de Verão que pretende passar com o filho e, salvo o devido respeito, alegou um conjunto de factos e juntou provas que os atestam.

2 - Em 15/07/2024, os autos foram conclusos à Mma. Juiz a quo e no mesmo dia foi proferida sentença que indeferiu liminarmente o requerimento inicial.

3- Em 16/07/2024 foi a recorrente notificada, via Citius, da sentença proferida

4- Verifica-se que os únicos atos processuais que foram praticados são os seguintes:

- Apresentação de petição inicial

- Abertura de conclusão à Mma. Juiz a quo

- Prolação pelo Tribunal da sentença em causa

- Notificação à ora recorrente da sentença proferida pelo Tribunal

5- A sentença em causa viola o estatuído no artigo 41.º, nº 3 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, na exacta medida em que foi proferida antes da convocação dos pais para uma conferência ou, com indicação dos motivos excecionais, mandar notificar o requerido para, no prazo de cinco dias, alegar o que tiver por conveniente.

6- Assim, a decisão liminar só pode e deve ocorrer após ser dado cumprimento ao disposto no nº 3 do artigo 41º do RGPTC, uma vez que esta é a determinação legal.

7- Por outro lado, o nº 7 do mesmo dispositivo legal dispõe que: «Não tendo sido convocada a conferência ou quando nesta os pais não chegarem a acordo, o juiz manda proceder nos termos do artigo 38.º e seguintes e, por fim, decide.»

8- Logo, forçoso é concluir que a prolação da decisão em sede liminar foi prematuramente proferida, como decorre, aliás, da simples leitura da lei especial aqui aplicável (RGPTC).

9- Mais acresce que a lei geral não permite tal decisão liminar. Ao abrigo da lei supletivamente aplicável, o Código de Processo Civil, por via do disposto no artigo 33º do RGPTC, não se vislumbra fundamento legal para o indeferimento liminar decidido por este Tribunal.

10- Vejamos, o artigo 247º do CPC, aplicável ex vi do artigo 33º do RGPTC, dispõe que:

«1- As notificações às partes em processos pendentes são feitas na pessoa dos seus mandatários judiciais.

2- Quando a notificação se destine a chamar a parte para a prática de ato pessoal, além de ser notificado o mandatário, é também notificada a parte, pela via prevista no nº 5 do artigo 219º, quando aplicável, ou pela expedição pelo correio de um aviso registado à própria parte, indicando a data, o local e o fim da comparência.

(…)

7- A notificação à parte considera-se ainda efetuada, em qualquer circunstância, quando o notificado proceda à consulta eletrónica do processo, nos termos previstos na portaria prevista no nº 2 do artigo 132º.»

11- Portanto, não se vislumbra, também por esta via, que os presentes autos devessem ter sido conclusos à Mma. Juiz a quo e que esta pudesse, como efectivamente o veio a fazer, indeferir liminarmente o peticionado pela ora recorrente, sem que, previamente, fosse convocada uma conferência de pais, ou exececionalmente, o requerido, ora recorrido fosse notificado para alegar o que tivesse por conveniente, irregularidade que influiu na boa decisão da causa.

b) Em matéria de facto

12- Salvo o devido respeito por opinião contrária, a verdade que se nos afigura que o tribunal a quo não apreciou como deveria ser o requerimento inicial e os documentos juntos com o mesmo, como passamos a especificar.

Do incumprimento por parte do ora recorrido das cláusulas 5) e 8) da sentença de Alteração da Regulação das Responsabilidades Parentais (Proc. nº 752/13....)

13- Na sentença de Alteração da Regulação das Responsabilidades Parentais (Proc. nº 752/13....) determina na cláusula 5) que: «As férias escolares de verão do menor serão repartidas pelos pais em períodos de 15 dias interpolados, competindo à mãe a escolha dos períodos que pretende passar com o filho nos anos pares e ao pai nos anos ímpares.» E na cláusula 8) que: «O progenitor a quem compete escolher os períodos de férias e dias festivos deverá comunicar ao outro os períodos concretos que pretende passar com o filho até ao final do mês de setembro quanto às férias de Natal e dias festivos de Natal e fim do ano, até ao final do mês de janeiro quanto às férias da Páscoa e até ao final do mês de março quanto às férias de verão.»

14- De acordo com o estipulado, neste ano, compete a recorrente a escolha dos períodos que pretende passar com o filho as férias de Verão.

15- A entidade empregadora da recorrente, veio definir o período de férias dos seus empregados no final do mês de março de 2024, por isso só no dia 28 de março comunicou ao recorrido, por email (doc.01) junto ao requerimento inicial, os períodos que havia escolhido: a última quinzena de julho e de agosto.

16- Para reafirmar a marcação feita em 28 de março, a recorrente tornou a enviar ao recorrido, em 31 de março um email, (doc.02) junto com o requerimento inicial, no qual informou novamente os períodos por ela escolhidos. O recorrido por sua vez, responde-lhe que ela teria de mudar porque a última quinzena de julho o menor irá passar com o pai, (doc.03) também junto com o requerimento inicial.

17- Entretanto, no dia 01 de julho quando a recorrente estava a falar com o filho por mensagem escrita na rede social facebook e surpreendentemente a conversa foi interceptada pelo recorrente que disse o seguinte: «Só vem perder o seu tempo fui vem claro consigo, e sou eu que neste momento estou a escrever. Eu avisei que os últimos 15 dias de julho o menino iria passar comigo as férias, e se começa a abusar nem em agosto o deixo ir de férias porque não foram marcadas (grifos nossos), fica já a saber,…», conforme (doc.04) junto ao requerimento inicial.

18- Observe-se que nessa última conversa entre ambos, o recorrido diz que a recorrente não marcou e por isso não pode ficar com o menor na segunda quinzena de julho.

19- Ora, isso não é verdade e muito menos uma justificação plausível.

20- O recorrido sob a falsa justificação de que a recorrente não havia marcado os períodos de férias de Verão, pretende inverter o direito de escolha, constante da cláusula 9) que fixa: quem não faz a marcação, a escolha passa a pertencer ao outro progenitor.

21- O incumprimento do recorrido é efetivamente culposo.

Da alegação de factualidade e junção de provas do não cumprimento por parte do recorrido das cláusulas 5) e 8) da sentença de Alteração da Regulação das Responsabilidades Parentais (Proc. nº 752/13....)

22- Compulsados os autos, podemos verificar que a ora recorrente, no seu requerimento inicial efetivamente alegou todos os factos acima elencados, juntou provas dos mesmos e face ao não cumprimento das cláusulas 5) e 8) da sentença de Alteração da Regulação das Responsabilidades Parentais, conclui o pedido requerendo a sua convocação e do ora recorrido para uma conferência de pais ou, excecionalmente, mandar notificá-lo para, no prazo de cinco dias, alegar o que tiver por conveniente, nos termos do disposto no artigo 41º, nº 3 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, a seguir-se os demais trâmites processuais.

23- Requereu ainda a realização das diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e a uma indemnização, a ser determinada pelo tribunal, a favor da requerente conforme o previsto no artigo 41º, nº 1 do RGTPC.

24- Observe-se que em nenhum momento do seu requerimento inicial a ora recorrente afirmou que o incumprimento deu-se pelo facto de o pai não ter entregado o menor no dia 15/07, pois tal dia ainda não havia chegado.

25- Preceitua o artigo 41º, nº 1 do RGPTC: «Se, relativamente à situação da criança, um dos pais ou a terceira pessoa a quem aquela haja sido confiada não cumprir com o que tiver sido acordado ou decidido (grifos nossos), pode o tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro progenitor, requerer, ao tribunal que no momento for territorialmente competente, as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respetivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou de ambos.»

26- Salvo o respeito devido por entendimento conflituante, o incumprimento não se restringe ao não pagamento da pensão de alimentos nem à não entrega do menor nos dias estipulados.

27- O incumprimento configura-se com o descumprimento de qualquer cláusula do acordo/sentença que regula as responsabilidades parentais.

28- No caso sub judice o incumprimento está configurado pelo não cumprimento por parte do ora recorrido, das cláusulas 5) e 8) da sentença de Alteração da Regulação das Responsabilidades Parentais (Proc. nº 752/13....).

29- O recorrido incumpre as referidas cláusulas à medida que não aceita a marcação legítima e atempada da recorrente.

III. CONCLUSÕES GERAIS

Nestes termos e nos melhores de Direito sempre com o superior suprimento de V. Exas, deverá julgar procedente o presente recurso de apelação, com a determinação da anulação da sentença proferida em 15/07/2024 e dos atos subsequentes à mesma e, em consequência, determinar-se que o processo prossiga os seus ulteriores termos, nomeadamente com a convocação dos pais para uma conferência ou, excecionalmente, mandar notificar o ora recorrido para, no prazo de cinco dias, alegar o que tiver por conveniente, a realizar ao abrigo do estipulado no artigo 41º, nº3 do RGPTC e 247º do CPC.

ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA JUSTIÇA »

                                                           *

Por sua vez, apresentou o Exmo. Magistrado do MºPº a sua Resposta, sendo que no final das contra-alegações pugna no sentido de que «Assim, o requerimento apresentado baseia-se apenas na possibilidade de um incumprimento efetivo vir a ocorrer, facto futuro e incerto e que não poderia ser fundamento para a propositura da ação.

Por todo o exposto, concorda-se com a decisão recorrida, pelo que deverá o recurso apresentado ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a sentença nos seus precisos termos.»

                                                           *

A Exma. Juíza a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando pela sua subida devidamente instruído.

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Nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

           2QUESTÕES A DECIDIR: o âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 635º, nº4 e 639º do n.C.P.Civil – e, por via disso, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir são:

- erro de decisão [ao indeferir liminarmente o incidente de incumprimento, com fundamento em “manifesta improcedência”]?

                                                           *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A matéria de facto a ter em conta para a decisão do presente recurso é a que consta do relatório que antecede.

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4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Cumpre entrar sem mais na apreciação da questão supra enunciada, a do erro de decisão [ao indeferir liminarmente o incidente de incumprimento, com fundamento em “manifesta improcedência”].

Será assim?

Começaremos por dizer que, quanto a nós, concluir-se pelo desacerto da prolação do indeferimento liminar com um tal fundamento se afigura como isento de dúvida.

Vejamos.

A progenitora/requerente alegou no requerimento através do qual instaurou o incidente de incumprimento que, de acordo com o estipulado entre a própria e o progenitor/requerido [em acordo/sentença de regulação das responsabilidades parentais], neste ano de 2024, lhe competia a escolha dos períodos que pretendia passar com o filho as férias de Verão, o que fez, comunicando essa escolha com a antecedência igualmente estipulada por acordo, sucedendo que o progenitor/requerido lhe comunicou, por mensagem eletrónica/e.mail, que teria de alterar, pois a criança passaria consigo a última quinzena de julho, acrescendo que em mensagem última, desta vez através duma rede social, o pai «(…) reafirma que o menino não passará os últimos 15 dias de julho com a mãe», sendo face a este contexto que alega haver incumprimento do acordo/sentença que regula as responsabilidades parentais.

Também assim o entendemos.

Na verdade, houve incumprimento por parte do progenitor/requerido na medida em que não respeita [assume-o expressamente], o que constava das cláusulas 5) e 8)[2] da sentença de Alteração da Regulação das Responsabilidades Parentais (Proc. nº 752/13....), mais concretamente, incumpre as referidas cláusulas na medida em que «não aceita a marcação legítima e atempada da recorrente»[3].

Salvo o devido respeito, não está em causa apenas e unicamente o incumprimento traduzido na não entrega do menor no período escolhido pela progenitora/requerente.

Está também e ainda em causa o incumprimento de cláusulas do acordo homologado por sentença que regula as responsabilidades parentais no tocante à marcação dos períodos de férias!

E é por assim o entendermos que não nos merece acolhimento o aduzido nas contra-alegações do Exmo. Magistrado do MºPº – em defesa da decisão recorrida – no sentido de que «(…) o requerimento apresentado baseia-se apenas na possibilidade de um incumprimento efetivo vir a ocorrer, facto futuro e incerto e que não poderia ser fundamento para a propositura da ação».

Com efeito a referida posição/declaração expressa do progenitor/requerido de não aceitar a marcação legítima e atempada da progenitora/requerente do período de férias a gozar com o filho, constitui só por si um incontornável e objetivo incumprimento.

A esta luz, constitui uma leitura desadequada e errada da situação a feita na decisão recorrida quando aí se sustenta que «[A] suspeita, suposição ou expectativa de incumprimento são insuscetíveis de configurar um incumprimento propriamente dito.»

É que, no contexto do vigente acordo/sentença de Regulação das Responsabilidades Parentais, o simples facto de se assumir e dizer que não se respeita nem cumpre a escolha legítima e atempada da contraparte [constante das cláusulas daquele], s.m.j., já é incumprimento!

 De referir que, se é certo que compete o ónus da prova da verificação do invocado incumprimento à Requerente, ora recorrente, já se mostrava feito pelo menos um início de tal com a junção da prova documental que acompanhou a instauração do incidente de incumprimento [citados prints das mensagens contendo a posição/declaração expressa do progenitor/requerido de não aceitar a marcação da progenitora/requerente do período de férias a gozar com o filho].

Donde, passava a competir ao Requerido/recorrido impugnar essa prova [valor probatório], oferecer contraprova válida ou apresentar uma justificação ou motiva válido para essa sua posição.

Ora se assim é, tudo aconselhava a deixar a apreciação e decisão sobre a verificação dos pressupostos da situação de incumprimento por parte do progenitor/requerido, para momento subsequente ao exercício do contraditório por parte deste [Requerido/recorrido], donde, também a esta luz, se conclui pelo desacerto da decisão recorrida.

O que surge reforçado na situação vertente pela decisiva razão de que uma decisão de indeferimento liminar deve ser reservada e circunscrita às situações em que se conclui desde logo e insofismavelmente no sentido de ser manifesta e absolutamente indiscutível a improcedência da pretensão trazida a juízo.

Na verdade, «Havendo várias soluções plausíveis para a questão de direito, não deve o juiz indeferir liminarmente a petição, ainda que tenha por certa a orientação que exclui a possibilidade de vir a ser proferida uma decisão de mérito.»[4] 

Dito de outra forma: «um despacho de indeferimento liminar da petição ou do requerimento inicial, por manifesta improcedência do pedido, só pode ser proferido se não houver interpretação possível ou desenvolvimento possível da factualidade articulada que viabilize ou possa viabilizar o pedido, ou seja, se a evidência da improcedência tiver um caráter absoluto e objetivo, para poder sê-lo, se nenhuma outra construção jurídica for possível, além da expressa no despacho de indeferimento liminar.»[5]

Em reforço e complemento desta linha de entendimento, foi ainda sustentado no aresto por último citado o seguinte:

«(…)

Tal como consta do Ac. da R.E. de 02/10/1986, C.J., XI, 4º, 283, o indeferimento liminar por manifesta improcedência só será de proferir se «não houver interpretação possível ou desenvolvimento possível da factualidade articulada que viabilize ou possa viabilizar o pedido», se a evidência da improcedência tiver um «caráter absoluto e objectivo, para poder sê-lo», se nenhuma outra construção jurídica for possível, além da expressa no despacho de indeferimento liminar.

No Ac. do S. T. J. de 05.03.1987, BMJ 365º, 562, decidiu-se que só será possível o indeferimento «quando a pretensão não tiver quem a defenda, nos tribunais, ou na doutrina, isto é, quando for evidente que a tese do autor não tem condições para vingar nos tribunais.».

No Ac. do S.T.A. de 17.102018, Proc. n.º 646/17.8BEAVR 0121/18 (Casimiro Gonçalves), in www.dgsi.pt, decidiu-se que «o indeferimento liminar, por manifesta improcedência, só deve decretar-se quando tal improcedência for evidente em termos de o seguimento do respectivo processo carecer, em absoluto, de razão de ser.»»

O que tudo serve para dizer que o indeferimento liminar de uma pretensão trazida a juízo, por “manifesta improcedência”, nos termos do disposto no art. 590º, nº1 do n.C.P.Civil, só deverá justificar-se em situações de evidente e absoluta certeza jurídica de que os fundamentos invocados nunca poderiam proceder qualquer que seja a interpretação jurídica que se faça dos preceitos legais, isto é, quando se não tiver na doutrina ou jurisprudência quem os defenda.

O que, salvo o devido respeito, não é o caso…

Vejamos agora das consequências processuais de tudo o vindo de dizer.

Sustenta a progenitora/recorrente que deve ser determinada a «(…) anulação da sentença proferida em 15/07/2024 e dos atos subsequentes à mesma e, em consequência, determinar-se que o processo prossiga os seus ulteriores termos, nomeadamente com a convocação dos pais para uma conferência ou, excecionalmente, mandar notificar o ora recorrido para, no prazo de cinco dias, alegar o que tiver por conveniente, a realizar ao abrigo do estipulado no artigo 41º, nº3 do RGPTC (…)».

O período de férias com o menor que estava em causa era o correspondente à última quinzena de julho e de agosto do corrente ano de 2024, desconhecendo-se o que sucedeu de facto na situação, por não constar dos elementos enviados no apenso que subiu a esta instância de recurso, nem o acesso aos demais processos que pendem na 1ª instância ter sido facultado [via citius]. 

Como quer que seja, tal está objetivamente prejudicado por a apreciação e decisão do presente recurso decorrer no subsequente mês de outubro.

Assim sendo, não tem qualquer sentido processual útil convocar-se agora os pais para uma conferência.

O que pode e deve ser feito é, no quadro previsto na 2ª parte do art. 41º, nº3 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível[6]], mandar “notificar o requerido para, no prazo de cinco dias, alegar o que tiver por conveniente».

Atente-se que está em causa não só a verificação do invocado incumprimento como ainda a condenação em multa do Requerido/recorrido em consequência desse incumprimento…

 Tratando-se de omissão de formalidade imposta por lei e reportando-se a mesma à violação do princípio do contraditório, até se afigura legítimo poder concluir-se no sentido de que o tribunal recorrido incorreu em nulidade secundária relevante por poder influir na decisão da causa (cf. art. 195º, nº1 do n.C.P.Civil).

Importa recordar que tendo tal nulidade decorrido de decisão judicial passível de impugnação judicial, o meio próprio de arguição da mesma era, como foi, o da interposição do presente recurso de apelação.

Com efeito, como já nos foi doutamente ensinado, «dos despachos recorre-se e contra as nulidades reclama-se»[7], extraindo-se desse ensinamento, designadamente, que quando há um despacho ou uma sentença final que contenha, encerre ou consolide um ato viciado, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida não é arguição ou reclamação da nulidade, mas a impugnação do respetivo despacho/sentença pela interposição do competente recurso, pois que a arguição duma nulidade só é admissível quando a infração processual não está ainda indireta ou implicitamente coberta por qualquer decisão judicial.

Dito de outra forma: nesta parte não se verifica a nulidade do art 615º, nº1, al.d), do n.C.P.Civil  [«O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento»], nulidade típica da “sentença” e seu vício estrutural[8], mas antes uma nulidade processual que se projeta na decisão e a inquina enquanto tal[9]

O que tudo serve para dizer o seguinte: deve anular-se a decisão recorrida e todos os atos subsequentes à mesma, devendo ser proferida decisão no quadro do já citado 41º, nº3 do RGPTC.

Donde, os autos devem prosseguir por ora, tendo sido prematura a decisão de imediato indeferimento liminar, decisão esta que tem assim de ser revogada.

Nestes termos procedendo o recurso.

                                                                       *

(…)

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

           Pelo exposto, decide-se a final julgar procedente a apelação e, em consequência, anula-se a decisão recorrida, devendo na 1ª instância ser proferida decisão que dê a sequência processual no quadro do previsto no art. 41º, nº3 do RGPTC, nos termos melhor explicitados supra.

            Custas pela parte vencida a final.

                                                                       *


Coimbra, 25 de Outubro de 2024  
Luís Filipe Cravo

Fernando Monteiro

Carlos Moreira



[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carlos Moreira
 
[2] Na cláusula 5) encontra-se estipulado que:
«As férias escolares de verão do menor serão repartidas pelos pais em períodos de 15 dias interpolados, competindo à mãe a escolha dos períodos que pretende passar com o filho nos anos pares e ao pai nos anos ímpares.»;
E na cláusula 8) que:
«O progenitor a quem compete escolher os períodos de férias e dias festivos deverá comunicar ao outro os períodos concretos que pretende passar com o filho até ao final do mês de setembro quanto às férias de Natal e dias festivos de Natal e fim do ano, até ao final do mês de janeiro quanto às férias da Páscoa e até ao final do mês de março quanto às férias de verão.»
[3] Assim conclui e sintetiza a Requerente ora recorrente nas suas alegações.
[4] Assim no acórdão do TRG de 31.01.2019, proferido no proc. nº 621/17.2T8FAF.G1, acessível em www.dgsi.pt/jtrg.
[5] Citámos agora o acórdão do TRL de 04.02.2020, proferido no proc. nº 959/13.8TBALQ-A.L1­7, acessível em www.dgsi.pt/jtrl.
[6] Aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08/09, doravante “RGPTC”.
[7] Por ALBERTO DOS REIS, in “Comentário ao CPC”, Volume 2º, a págs. 507.
[8] Atente-se que “Questões” submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as exceções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio.
[9] Mais aprofundadamente sobre este aspeto, vide A. ABRANTES GERALDES, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Livª Almedina, 2013, a págs. 21-23.