Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1114/24.7T8CBR-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
PRAZO DE CADUCIDADE
CONSTITUIÇÃO DE ADVOGADO
ACESSO AO DIREITO
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 09/16/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE COIMBRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 55.º, N.º 3, E 123.º, N.º 1, DO CIRE
Sumário: I – A figura utilizada para a impugnação dos atos prejudiciais para a massa insolvente é a resolução em beneficio da massa, a efetuar extrajudicialmente, mediante o envio de carta registada com aviso de receção, competindo ao outro contraente, caso pretenda opor-se, a interposição de ação judicial de impugnação (artigo 123º, nº1 do CIRE).

II – A circunstância de ter pedido autorização do tribunal para poder contratar advogado com o propósito de resolver o negócio, não o impede de proceder à sua resolução extrajudicial, para a qual não é necessária a constituição de advogado.

III – A interpretação de que o prazo de seis meses para a declaração de resolução começa a correr independentemente da obtenção de autorização para a constituição de mandatário judicial, prevista no nº 3 do artigo 55º, CIRE, não se afigura inconstitucional.

IV – Não envolve qualquer negação do acesso ao direito – o administrador não se encontrava impedido de proceder à resolução pela via prevista na lei, a qual não depende da constituição de advogado –; ou por violação de expectativas legitimas – a lei é clara em fixar um prazo de seis meses para a declaração de resolução, sendo indiscutido tratar-se de um prazo de caducidade, que não se suspende nem se interrompe.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral: Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: Paulo Correia

2º Adjunto: José Avelino Gonçalves

                                                                                               

Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

A Massa insolvente de AA, representada pelo Administrador de Insolvência, Dr. BB, veio propor, por apenso, a presente ação de resolução em benefício da massa, contra CC,

pedindo que se declare resolvido, de forma incondicional, a favor da massa insolvente, o negócio jurídico de doação celebrado em 01/02/2024, relativamente ao bem imóvel que identifica, nos termos da al. b) do nº1 do art. 121º do CIRE.

O Réu apresenta contestação, pugnando pela sua absolvição da instância ou do pedido, invocando as seguintes exceções:

a nulidade do processo por omissão da forma prescrita, porquanto o artigo 123º, nº1, do CIRE, impõe que a resolução seja efetuada por carta registada com aviso de receção;

a ilegitimidade da requerente, pois quem tem legitimidade para proceder à resolução dos atos prejudiciais à massa é administrador de insolvência;

a caducidade da ação, pois o A.I. teve conhecimento da doação, pelo menos, no dia 28.03.2024, aquando da consulta da certidão permanente do prédio em causa.

Procedeu-se a audiência preliminar, na qual foi facultada ao Ilustre Mandatário da Autora a possibilidade de responder às exceções arguidas pelo Réu na sua contestação, tendo o mesmo dito que:

- a alegada exceção de caducidade não se verifica, porquanto, tendo o senhor Administrador da Insolvência requerido autorização, nos termos do disposto no art.º 55º, n.º 3 do CIRE, para contratação de advogado para propositura da presente ação, a mesma apenas veio deferida em dezembro de 2024.

- relativamente à arguida exceção de ilegitimidade da Autora, entende que a mesma também não se verifica, uma vez que o Administrador da Insolvência é o legal representante da massa insolvente.

- por fim, quanto à nulidade arguida por omissão da forma legalmente prescrita para resolver o negócio, refere que esta pode também ser efetuada judicialmente através da competente ação a interpor pela massa insolvente.

Considerando conterem os autos todos os elementos necessários para tal, pelo juiz a quo proferido Despacho Saneador a:

a) julgar improcedente a invocada exceção da nulidade do processo por omissão da forma legalmente prescrita;

b) julgar improcedente a invocada exceção da ilegitimidade da requerente;

c) julgar verificada a exceção da caducidade do direito da autora em resolver o negócio jurídico que é objeto da presente ação, julgando a ação improcedente.


*

Não se conformando com o decidido, a autora, massa insolvente, dele interpõe recurso de Apelação, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:  

1. O objeto do presente recurso cinge-se à questão da (in)constitucionalidade da interpretação do art.º 123.º, n.º 1 do CIRE segundo a qual o prazo de seis meses para o Administrador da Insolvência (AI) exercer o direito de resolução de atos em benefício da massa se inicia e decorre independentemente de o AI já estar autorizado, nos termos do art.º 55.º, n.º 3 do CIRE (a contratar mandatário forense para propor a competente ação judicial).

2. Na sentença recorrida, tal interpretação conduziu à declaração de caducidade do direito de resolução, por se ter considerado que o AI propôs a ação para além do prazo de 6 meses desde o conhecimento do negócio resolúvel.

3. A decisão recorrida ignorou que, dentro desse prazo, o Sr. AI requereu tempestivamente autorização para constituição de advogado (em 16/09/2024) e que a autorização apenas foi concedida em data posterior ao esgotamento do prazo.

4. A situação fática e legal dos autos evidencia um conflito normativo: de um lado, o art.º 123.º/1 CIRE impõe um prazo curto (caducidade semestral) para a resolução de atos prejudiciais; de outro, o “novo” artº. 55.º/3 CIRE obriga o administrador a obter prévia concordância da Comissão de Credores ou do Juiz para contratar advogados e agir em tribunal.

5. A aplicação estrita e cumulativa de ambos, sem temperamentos, cria um impasse em que o Sr. AI não pode exercer o direito dentro do prazo, não por inércia, mas por cumprimento das formalidades impostas pela lei.

6. O prazo de seis meses previsto do artº. 123.º/1 CIRE, é unanimemente considerado um prazo de caducidade visando “abreviar o estado de sujeição” dos negócios suspeitos.

7. A exigência superveniente de autorização para agir alterou profundamente o quadro de possibilidades de cumprimento desse prazo.

8. A interpretação restritiva adotada pelo tribunal a quo – contagem do prazo desde o mero conhecimento factual do ato, mesmo enquanto o AI aguardava autorização – torna praticamente inviável o acesso aos tribunais pela Massa Insolvente, no âmbito do direito de resolução, violando o art.º 20.º da CRP.

9. Como referido pelo Tribunal Constitucional, o acesso à justiça não veda a existência de prazos de caducidade, desde que estes não sejam arbitrariamente curtos ou desadequados, dificultando de forma irrazoável o exercício do direito de ação.

10. No presente caso, exigir o cumprimento do prazo sem ajustamento equivale a impor à Massa Insolvente um ónus impossível, frustrando por completo a tutela jurisdicional efetiva do seu direito.

11. A decisão recorrida viola o princípio da proporcionalidade (art.º 18.º/2 CRP).

12. A decisão recorrida viola, também, o princípio da proteção da confiança (ínsito no art.º 2.º CRP).

13. A própria legislação processual demonstra sensibilidade semelhante em contextos análogos: nos termos do art.º 24.º, n.º 4 da Lei 34/2004, a apresentação de pedido de apoio judiciário com nomeação de patrono interrompe imediatamente o prazo em curso no processo principal.

14. Impõe-se uma interpretação conforme à Constituição do art.º 123.º/1 do CIRE, que consistiria em considerar que, nos casos em que o Administrador da Insolvência carece de autorização nos termos do art.º 55.º/3 para a contratação de mandatário, o prazo de seis meses apenas começa a correr após obtida a referida autorização, ou, pelo menos, que fica suspenso/interrompido entre a data do requerimento de autorização e a data da decisão que a concede.

15. A interpretação adotada pelo tribunal a quo referente ao art.º 123.º, n.º 1 do CIRE é inconstitucional, na interpretação que o prazo de seis meses para o Administrador da Insolvência (AI) exercer o direito de resolução de atos em benefício da massa se inicia e decorre independentemente de o AI já estar autorizado para a contratação de advogado, nos termos do art.º 55.º, n.º 3 do CIRE, por violação do art.º 2, art.º 18.º/2 e art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa.


*

TERMOS EM QUE, nos melhores de Direito que V.Exas doutamente suprirão, deverá o presente recurso ordinário de apelação ser aceite, por tempestivo, julgando-se o mesmo totalmente procedente e, por conseguinte:

I - Declarar, com força obrigatória no caso concreto, a inconstitucionalidade da norma do art. 123.º, n.º 1 do CIRE, na interpretação segundo a qual o prazo de seis meses aí previsto se inicia e corre independentemente de o Administrador da Insolvência dispor da autorização exigida pelo art. 55.º, n.º 3 do CIRE (redação da Lei 9/2022) para a contratação de mandatário forense, por violação dos arts. 20.º, 18.º, n.º 2 e 2.ºda Constituição da República Portuguesa;

II - Declarar válido e tempestivo o exercício do direito de resolução pela Massa Insolvente, determinando o prosseguimento da ação de resolução em benefício da massa insolvente (ou, se for o caso, julgando desde já válida a resolução do negócio impugnado, caso entenda dispor de elementos suficientes para tanto).

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Não foram apresentadas contra-alegações no prazo legal.
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Cumpridos que foram os vistos legais, nos termos previstos no artigo 657º, nº2, in fine, do CPC, cumpre decidir agora do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, a questão a decidir é uma só:
1.  Se a interpretação adotada pelo tribunal a quo referente ao artigo 123º, nº1 do CIRE – de que o prazo de seis meses para o AI exercer o direito de resolução de atos em beneficio da massa se inicia e decorre independentemente de o AI já estar autorizado para a contratação de advogado, nos termos do artigo 55º, nº3 do CIRE –, é inconstitucional, por violação dos artigos 2º, 18º, nº2, e 20º da CRP
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Na contestação por si deduzida, o réu defendeu-se por exceção, invocando a caducidade da presente ação, por se mostrar excedido o prazo de seis meses para a resolução do negócio previsto no artigo 123º do CIRE, uma vez que o administrador de insolvência teve conhecimento da doação, pelo menos, no dia 28.03.2024.

Na resposta a tal exceção, a massa insolvente alega não se verificar tal caducidade porquanto, tendo o A.I. requerido autorização, nos termos do disposto no artigo 55º, nº3, do CIRE, para contratação de advogado para a propositura da presente ação, a mesma apenas veio a ser deferida em dezembro de 2024.

O tribunal recorrido veio a julgar procedente a invocada caducidade do direito da autora de resolução do negócio jurídico objeto da presente ação, com base nas seguintes considerações:

(…), de acordo com a factualidade dada por provada, dúvidas não restam de que, efetivamente, o senhor AI teve conhecimento da doação que ora pretende resolver, pelo menos, em 27.05.2024, data em que apresentou nos autos principais de insolvência o relatório do artigo 155.º do CIRE, fazendo menção expressa da celebração do negócio jurídico em causa e juntando certidão predial do prédio objeto da mesma, atestando o registo da sua aquisição a favor do ora Réu, por doação.

Ou seja, tendo em conta que a presente ação judicial apenas foi apresentada em Juízo em 14.01.2025, é manifesto que o senhor AI teve conhecimento do negócio jurídico objeto da mesma mais de 6 meses antes.

Alega o senhor AI que a exceção de caducidade não se verifica, porquanto, tendo requerido autorização ao Tribunal, nos termos do disposto no artigo 55.º, n.º 3, do CIRE, para contratar de advogado para propositura da presente ação, dentro do referido prazo de 6 meses, a mesma apenas veio a ser deferida em dezembro de 2024.

Conforme decorre da factualidade provada, é certo que o senhor AI requereu autorização ao Tribunal para a MI poder contratar advogado, a fim de interpor ação judicial com a finalidade de resolver o negócio em referência, em 16.09.2024, ou seja, ainda dentro do prazo de 6 meses previsto no artigo 123.º, n.º 1, do CIRE.

O que não é certo, porém, é que tal requerimento tenha a virtualidade de fazer sustar o decurso do aludido prazo de 6 meses, por falta de qualquer norma legal que o preveja, nem o mesmo constitui, sob qualquer forma, justo impedimento para não ter procedido, em tempo, à resolução do negócio por outra via.

Como já referido supra, não obstante a via judicial seja obviamente admissível, resulta do artigo 123.º, n.º 1, do CIRE uma clara preferência legislativa pelo meio de resolução que ali especificamente se consagra: a carta registada com aviso de receção (AR).

A elaboração e envio da aludida carta pode ser efetuada pelo senhor AI, sem necessidade de constituição de mandatário judicial para o efeito, sendo que o recurso à via judicial é uma opção que cabe àquele tomar, mas que não o desvincula do cumprimento dos prazos legalmente previstos.

Aliás, porque a MI requereu o benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, podia também ter requerido tal apoio na modalidade de nomeação e pagamento da compensação de patrono, sendo que, nesse especifico caso, ao abrigo do disposto no artigo 24.º, n.º 4, da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, o prazo em curso interromper-se-ia com a junção aos autos do documento comprovativo da apresentação do requerimento com que é promovido o procedimento administrativo.

Tudo visto, conclui-se que a caducidade do direito de resolver o negócio em causa, constituindo uma exceção de direito material com efeitos extintivos do direito de resolução, foi arguida e provada, pelo que deve, assim, ser declarada, fazendo-se improceder a presente ação.”

 A autora/Apelante centraliza todas as discordâncias com o decidido na invocação da inconstitucionalidade do artigo 123º, nº1, do CIRE, na interpretação que lhe é dada pelo tribunal recorrido, de que o prazo de seis meses aí estabelecido para o exercício do direito de resolução pelo administrador de insolvência, começa a correr antes de este dispor da autorização legalmente exigida pelo artigo 55º, nº3 do CIRE para a contratação de mandatário.

No seu ponto de vista, a situação fáctica e legal dos autos evidencia um conflito normativo entre o artigo 123º/1 CIRE que, por um lado, impõe um prazo muito curto para a resolução de atos prejudiciais, e o “novo” artigo 55º/3 do CIRE, por outro lado, que obriga o administrador a obter prévia concordância da concordância da Comissão de credores ou do Juiz para agir em tribunal:

a interpretação do tribunal viola o principio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva – o A.I. absteve-se de agir judicialmente porque a lei o impunha;

viola o principio da proporcionalidade, previsto no artigo 18º, nº2, da CRP - “será necessário e adequado que o prazo corra quando o AI está impedido de agir judicialmente?”

e viola o principio da proteção da confiança ínsito no artigo 2º da CRP – ao cumprir a nova exigência de pedir autorização para constituir mandatário, atuou no espírito da lei, jamais prevendo que estaria com isso a “queimar” parte substancial do prazo de resolução.

Cumpre apreciar, desde já, se adiantando não ser de dar razão à Massa Insolvente/Apelante.

A Apelante faz assentar o juízo de inconstitucionalidade da interpretação dada pela decisão recorrida, no pressuposto, errado, de que, concedendo o artigo 123º, nº1, CIRE, um prazo de seis meses para a resolução, o administrador da insolvência se encontrava obrigado a esperar pela autorização para constituir advogado (artigo 55º, nº3, CIRE) para o exercício da resolução em benefício da massa, quando a resolução em beneficio da massa não exige a constituição de mandatário.

Como tal, não há que convocar o disposto no artigo 55º nº3 do CIRE, inexistindo qualquer conflito entre as citadas normas, que urja resolver por via interpretativa, como passamos a explicar.

Dispõem as normas do CIRE, citadas pelo Apelante:

Artigo 123º

Forma de resolução e prescrição do direito

1 - A resolução pode ser efetuada pelo administrador da insolvência por carta registada com aviso de receção nos seis meses seguintes ao conhecimento do ato, mas nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência.

Artigo 55º

3. O administrador da insolvência, no exercício das respetivas funções, pode ser coadjuvado sob a sua responsabilidade por advogados, técnicos ou outros auxiliares, remunerados ou não, incluindo o próprio devedor, mediante prévia concordância da comissão de credores ou do juiz, na falta dessa comissão.”

A figura utilizada no CIRE para a impugnação de atos prejudiciais à massa insolvente, é a da resolução em benefício da massa, a efetuar pelo administrador de insolvência, mediante o envio de carta registada com aviso de receção, sendo a respetiva impugnação necessariamente efetuada mediante ação judicial de impugnação da resolução, a instaurar no prazo de três meses, como dependência do processo de insolvência (artigo 125º CIRE).

 “Em coerência com o regime geral da resolução, que estabelece que a mesma se pode fazer por simples declaração à outra parte (artigo 436º, nº1, CC), o artigo 123º, nº1, não exige que a resolução seja realizada por ação judicial, bastando-se para o efeito com uma simples comunicação por carta registada com aviso de receção. É antes aos destinatários da resolução que incumbe o ónus de impugnar a mesma em ação dirigida contra a massa insolvente (…)[1]”.

“Assinale-se ainda que a possibilidade de utilização da via extrajudicial inverte o ónus de acionar, facilitando amplamente a resolução em benefício da massa insolvente. Compete assim ao outro contraente, caso pretenda opor-se à declaração em causa, acionar judicialmente a massa insolvente, impugnando a resolução, com todas as consequências que daí decorram, designadamente ao nível dos encargos com a sua propositura[2]”.

O uso da carta registada com aviso de receção tem ainda a vantagem de que, tendo a declaração resolutiva natureza receptícia, se torna eficaz logo que chega ao poder do destinatário ou é dele conhecida (artigo 224º, nº1, CC).

A solenidade prevista para a resolução, a expressão utilizada pelo legislador “pode ser efetuada” aponta para que a forma aí prevista – carta registada com aviso de receção – constitua o formalismo mínimo, não permitindo o uso de forma menos solene[3], dividindo-se a doutrina quanto à eventual admissibilidade do recurso de ação judicial para o efeito[4].

Admitindo a possibilidade de utilização de um formalismo superior e permitindo-se a defesa por via de exceção (artigo 123º, nº2, do CIRE), Fernando Gravado de Morais[5] admite que o uso da ação judicial não se encontre excluído: “A questão está em saber se há interesse específico nisso”.

No caso em apreço, encontrando-se assente que, pelo menos a 27 de maio de 2004 (data da apresentação do relatório do art. 155º CIRE), o A.I. já tinha conhecimento do ato a resolver, e optando pela via judicial, veio, a 16 de setembro de 2024, requerer autorização, ao abrigo do artigo 55º, nº3 do CIRE, para a contratação de advogado com o propósito de resolver o negócio consistente na doação em causa. Só por despacho de 02.12.2024 o A.I. foi autorizado a contratar advogado para a aludida finalidade, despacho notificado ao AI a 04.12.2024. A presente ação de resolução em beneficio da massa insolvente deu entrada em tribunal a 15.01.2025.

Segundo a Apelante, a alternativa extrajudicial, embora juridicamente possível, não elide a necessidade pratica da assistência jurídica nem o entrave da autorização; não se pode censurar o AI por ter seguido estritamente o procedimento legal: identificou o ato suspeito (incluiu-o no relatório), requereu autorização para agir judicialmente e aguardou a decisão do juiz; tinha a legitima expectativa de obtida a autorização, exercer o direito dentro do prazo ou, caso o prazo se esgotasse por motivos alheios à sua vontade, ver essa contingência reconhecida como impedimento justificado;

entendeu-se que o relógio começou a correr em 27/05/2024 (conhecimento do ato) e parou, inexoravelmente, em 27/11/2024, pouco importando que, durante grande parte desse período, o Sr. AI estivesse legalmente impedido de mover a ação por não ter, ainda, autorização para constituir advogado.

A argumentação da Apelante não convence. Mesmo a admitir-se que o A.I. necessitasse de assistência jurídica para a declaração de resolução (a efetuar por via extrajudicial ou por via judicial) – algo que só agora alega e sem qualquer concretização), só a 16 de setembro solicitou autorização ao tribunal para constituir advogado, estranhando-se que tenha levado quase quatro meses a chegar à conclusão de que tal apoio lhe seria imprescindível.

É certo que sem autorização do tribunal se encontrava impedido de propor a ação judicial, por esta exigir a constituição de mandatário. Mas, para proceder à resolução do contrato pela forma prevista no artigo 123º, nº1 do CIRE – mediante o envio de carta registada com aviso de receção – não é necessária a constituição de advogado.

Se o administrador de insolvência “pode” efetuar a resolução mediante o envio de carta registada com aviso de receção, ato para o qual não é necessária a constituição de mandatário, não faz qualquer sentido que o pedido de constituição de mandatário – desnecessário à pratica do ato – possa ter por efeito a suspensão do prazo para a resolução.

Assim como, a pretensão da Apelante de que se interprete o artigo 123º, nº1 do CIRE, no sentido de que o prazo de seis meses aí previsto não começa a correr antes de este dispor da autorização legalmente exigida pelo artigo 55º, nº3, do CIRE para a contratação do mandatário, não tem qualquer cabimento legal.

A lei é perfeitamente clara quando ao modo de contagem do prazo concedido ao A.I. para proceder à resolução do negócio para a massa – nos seis meses seguintes ao conhecimento do ato e nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência.

Não se reconhece que a interpretação dada pelo tribunal seja violadora do principio constitucional do acesso ao direito: o prazo de seis meses concedido para a resolução do negócio afigura-se-nos como razoável e mais do que suficiente[6] para o envio da declaração na forma prevista por lei e para a respetiva receção pela contraparte.

Durante os seis meses do decurso do prazo, o A.I. nunca se encontrou impedido de proceder à declaração de resolução, não tendo de aguardar pela autorização para a constituição de advogado para o efeito.

É certo que ele se encontrava impedido de agir judicialmente enquanto não lhe fosse concedida autorização para a constituição de mandatário, mas o exercício do seu direito não exigia a propositura de qualquer ação judicial.

Como reconhece a Apelante nas suas alegações de recurso, sendo o prazo de seis meses um prazo de caducidade, o mesmo não se suspende nem interrompe, senão nos casos em que a lei o determine (artigo 328º do CC).

Como tal, não se pode sustentar que o A.I. tivesse a expectativa jurídica de que lhe viesse a se reconhecido que, apenas após a autorização de constituição de advogado por parte do tribunal, se iniciaria a contagem do prazo para a resolução do contrato.

Segundo o apelante, a interpretação do tribunal a quo viola o princípio da proporcionalidade, ínsito no artigo 18º, nº2, da CRP[7], porquanto o prejuízo causado pela perda do direito de resolução excede, em muito, o beneficio da rígida observância do prazo (a ação foi proposta cerca de um mês e meio após o termo do prazo de seis meses e dentro do prazo de dois anos desde a data da declaração de insolvência).

O tribunal não tem aqui que efetuar qualquer ponderação de valores quanto à conjugação dos arts. 123º, nº1 e 55º, nº3, do CIRE, porquanto se o administrador de insolvência não exerceu em tempo o direito à resolução do negócio para a massa, tal só a si pode ser assacado, pela escolha da via judicial, já de si menos célere (e mais onerosa) e por ter formulado o pedido de autorização para constituição de advogado quase quatro meses após o conhecimento do direito.

A apelação é de improceder.


*

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar improcedente a Apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pela Autora/Apelante

                                                Coimbra, 16 de setembro de 2025       


 V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
(…).


[1] Luís Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação Anotado, Almedina, p. 149.
[2] Fernando de Gravato Morais, “Resolução em Benefício da Massa”, Almedina, pp. 154.
[3] Neste sentido, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2ª ed., Coimbra Editora, p. 536, Fernando de Gravato Morais, “Resolução em Benefício da Massa”, Almedina, pp. 152-153, e Júlio Vieira Gomes, “Nótula sobre a Resolução em benefício da massa insolvente”, in “IV Congresso de Direito da Insolvência”, Almedina, p. 120.
[4] Em sentido afirmativo, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2ª ed., Coimbra Editora, p. 536; no sentido de que não faz sentido instaurar uma ação judicial para declarar a resolução, se pronuncia Luís Menezes Leitão, in Código da Insolvência e da Recuperação Anotado, Almedina, p. 149.
[5] “Resolução em Benefício da Massa”, Almedina, pp. 152-153.
[6] Atentar-se-á em que o CIRE alargou consideravelmente o prazo de resolução que o nº3 do artigo 156º do CPEREF fixava em três meses, alargamento este objeto de reservas por parte de Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, com o argumento de que a escassez de tal prazo de três meses se justificava pela necessidade de rapidamente se pôr termo à incerteza quanto ao destino dos atos em causa, tanto mais que em certos casos eles revestem natureza onerosa – “”Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2ª ed., QUID JURIS, p. 536.
[7] Segundo o artigo 18º, nº2, da CRP, “qualquer restrição a direitos, liberdades e garantias deve limitar-se ao necessário, adequado e proporcional ao objetivo legitimo a atingir.”