Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | FERREIRA DE BARROS | ||
Descritores: | DIREITO DE REGRESSO SEGURO OBRIGATÓRIO AUTOMÓVEL CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL NEXO DE CAUSALIDADE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA ÂMBITO DO RECURSO | ||
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Data do Acordão: | 07/10/2007 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE OURÉM - 2º J | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ART. 19º, ALÍNEA C) DO DL N.º 522/85, DE 31.12 E ART. 678º, N.º6 DO CPC | ||
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Sumário: | I- Constitui facto constitutivo do direito de regresso da seguradora contra o condutor causador de acidente, não legalmente habilitado, o nexo de causalidade entre o acidente e a falta de habilitação legal para conduzir. II- É de aplicar a tal caso, por interpretação extensiva, a jurisprudência constante do Acórdão Uniformizador n.º 6/2000, de 28.05, tirado na hipótese de condução sob o efeito de álcool, recaindo sobre a seguradora o ónus de provar o nexo de causalidade. III- No recurso admitido ao abrigo do n.º 6 do art. 678º do CPC, está vedado ao recorrente impugnar a decisão de facto. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra: I)- RELATÓRIO A... – Companhia de Seguros, S.A., instaurou, no Tribunal Judicial de Ourém, acção declarativa, sob a forma de processo sumaríssimo, contra B... , pedindo a condenação do Réu a pagar-lhe a quantia de 3.795,80 euros, acrescida de juros de mora desde a data da citação até integral pagamento. Alegou, para tanto e em síntese, que no 18.08.2004, pelas 09h30m, ocorreu um acidente de viação na Rua 3 de Janeiro em Campina, Ourém, envolvendo o veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula 66-99-XF, [doravante abreviadamente referido por XF], conduzido por D... , e o veículo motocultivador, marca MAGP com o n.º de motor M 802693, sendo que, por força do contrato de seguro que entre si e o proprietário do dito motocultivador, e porque a culpa exclusiva na produção do dito acidente recaiu sobre o seu segurado, satisfez à E... , a quantia de 3.256,09 euros devida pela reparação do XF. Para além disso, liquidou ainda a quantia de 320,00 euros a favor de C.., proprietário do XF, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais. Concluiu que lhe assiste o direito de regresso contra o Réu, seu segurado e condutor do motocultivador, para reaver o montante liquidado por força do contrato de seguro, no montante de 3.576,09 euros, acrescido de juros de mora a contar desde a citação. Regularmente citado veio o Réu apresentar a sua contestação, concluindo pela total improcedência da acção. Em síntese, negou qualquer responsabilidade na produção do acidente de viação, alegando que a culpa exclusiva na produção do mesmo recaiu sobre a condutora do XF, e cabendo à Autora alegar o nexo de causalidade entre a falta de habilitação legal para conduzir o motocultivador e o acidente. Prosseguindo os autos a sua normal tramitação foi, por fim, proferida sentença a julgar a acção procedente e provada, sendo o Réu condenado a pagar à Autora seguradora a quantia de € 3.256,09, acrescida de juros de mora desde a data da citação até integral pagamento. Com fundamento em contrariedade a jurisprudência uniformizada do STJ ( AC n.º 2/2000), e como permite o n.º 6 do art. 678º do CPC, apelou o Réu, insistindo na absolvição do pedido, e extraindo da sua alegação as seguintes conclusões: 1ª-Impunha-se, em face do doc. 2 junto com a p.i, e confirmado pelo Senhor Agente da Autoridade, quando confrontado com este, dar como provado outros factos que impõem uma dinâmica do acidente diferente da dada como provada, devendo ser declarada única culpada a condutora do veículo XF; 2ª-Impunha-se, ainda, em face dos documentos 4 e 5, juntos com a contestação, reproduções mecânicas de documentos autênticos não impugnados, dar como provados os arts. 35º a 42º da contestação; 3ª-O Tribunal a quo, na matéria de direito, não apreciou um aspecto fulcral do direito controvertido, o nexo de causalidade entre o acidente e a falta de habilitação legal; 4ª-A Autora não provou, ou sequer alegou, a existência deste nexo de causalidade; 5ª-As presunções apenas são criadas pela lei e o DL n.º 522/85 não prevê nenhuma presunção; 6ª-O direito de regresso terá que se regular pelas disposições gerais; 7ª-O Tribunal a quo ao condenar o Recorrente, como condenou, violou o disposto no art. 19º do DL 522/85, bem como o art. 342º do CC; 8ª-A sentença está em contradição com o acórdão uniformizador n.º 6/2002, o qual deverá ser interpretado nos termos do art. 10º do CC, por analogia, para o caso dos autos. A Autora contra-alegou, pugnando pela manutenção do julgado, e desde logo suscitando a questão prévia da inadmissibilidade do recurso, porque não satisfeita, in casu, a previsão do art. 678º, n.º 6, do CPC. Porém, tal questão prévia não mereceu procedência, como se vê do despacho preliminar proferido neste Tribunal. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir. II)- OS FACTOS Na sentença sob exame foi dada por assente a seguinte factualidade: 1)- No dia 18.08.2004, pelas 09h30, na Rua 3 de Janeiro, sita em Campina, Ourém, ocorreu um acidente de viação no qual foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros de matrícula 66-99-XF [ doravante abreviadamente referido por XF ] e o motocultivador marca MAGP com o n.º de motor M 802693, tripulado pelo ora Réu. 2)- O Réu, tripulando o dito motocultivador provinha de um caminho de acesso que serve a sua residência e pretendia passar a circular na Rua 3 de Janeiro, no sentido Caranguejeira » » Ponte Grande. 3)-Ao chegar ao ponto em que o caminho que serve de acesso à sua residência entronca com a dita Rua 3 de Janeiro o Réu não imobilizou a marcha do motocultivador por si conduzido. 4)-Antes, atravessou de imediato a faixa de rodagem ocupando momentaneamente a hemi-faixa de rodagem destinada ao trânsito que seguia no sentido Ponte Grande » » Caranguejeira. 5)-Nesta hemi-faixa de rodagem, e tomando o sentido de trânsito Ponte Grande » » Caranguejeira, seguia o XF que, em virtude da manobra levada a cabo pelo motocultivador, foi embater na parte lateral esquerda do dito motocultivador. 6)-Ao avistar o motocultivador a condutora do XF ainda tentou desviar a marcha deste veículo para a esquerda – considerando o sentido de marcha respectivo. 7)-No local a via caracteriza-se por ser uma recta de duplo sentido de trânsito com boa visibilidade. 8)-Em virtude do embate a Autora suportou os custos da reparação do XF, que importaram no montante de 3.256,09 euros. 9)-Suportou ainda a Autora o custo de indemnização devida a título de danos morais paga a C..., no montante de 320,00 euros. 10)-A Autora reclamou em 18.08.2004 junto do Réu o pagamento da quantia de 3.576,09 euros. 11)-A Autora celebrou com o Réu contrato de seguro titulado pela apólice n.º 5291170. 12)-O Réu não é titular de licença de condução que o habilite a exercer a condução de motocultivador. III)- O DIREITO Atentas as conclusões da alegação do Apelante a delimitar o objecto do recurso, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 690º, n.º1, 684º, n.º3, e 660º, n.º2, parte final, todos do CPC), importa dilucidar a seguinte problemática: 1ª)-Reexame da decisão de facto. 2ª)-Necessidade do nexo da causalidade entre a falta de habilitação legal para conduzir e o acidente, como facto constitutivo do direito de regresso da seguradora. III-1)- Vejamos a 1ª questão. O Apelante considerou erroneamente julgada a factualidade vertida nos n.ºs 3,4, 5 e 6 da factualidade assente, que, a seu ver, deveria ser considerada não provada face à participação do acidente elaborada pela Brigada de Trânsito da GNR, junta a fls. 9 a 12. Tal matéria relevou, sem dúvida, para a definição da culpa exclusiva do Apelante na produção do acidente. Como defende, deveria, ainda, ser considerada provada a matéria de facto vertida nos arts. 35º a 42º da contestação, em conformidade com os documentos que juntou com a contestação, a fls. 44 e 45. Mas goza o Apelante, in casu, da faculdade de impugnar a decisão de facto? A presente acção, a que foi atribuído o valor de € 3.721,88, corre sob a forma sumaríssima (art. 462º do CPC). O recurso foi admitido ao abrigo do n.º6 do art. 678º do CPC, com fundamento em contrariedade da sentença impugnada a jurisprudência uniformizada do STJ, concretamente a jurisprudência fixada no Acórdão Uniformizador n.º 6/2002, de 28.05.2002, publicado no DR, Iº-A, n.º 164, de 18.07.2002. A ser este o fundamento do recurso, o seu objecto terá de cingir-se exclusivamente a matéria de direito, e jamais visar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto. O quadro factual apurado não pode ser posto em causa no recurso interposto apenas com aquele fundamento, uma vez que a contradição da sentença recorrida com a jurisprudência uniformizada pelo STJ só é perscrutável no âmbito do julgamento de direito. Tal como, aliás, no n.º 4 do art. 678º do CPC, - prevendo a admissibilidade do recurso por contradição entre acórdãos das Relações - o fundamento é a contradição sobre a mesma questão fundamental de direito. Mostra-se, assim, pertinente a observação da Apelada, ínsita na sua contra-alegação, ao escrever que “a reapreciação da prova documental e testemunhal (que nem sequer foi gravada), tal como o Réu a requer, situa-se fora do âmbito e objecto do recurso nos termos, em que o presente foi interposto, ou seja, fora do caso previsto no n.º 6 do art. 678º do CPC”. Vedado, está, pois, ao Apelante impugnar a decisão de facto, porque o recurso foi admitido ao abrigo do n.º6 do art. 678º do CPC, ficando prejudicado o reexame de tal decisão à luz dos concretos meios de prova alinhados pelo Recorrente. Consequentemente, é de manter inalterado o julgamento de facto. III-2)- Examinemos, agora, a 2ª questão. Conforme se extrai da factualidade assente, o Apelante, aquando do acidente, não era titular de licença de condução que o habilite a exercer a condução de motocultivador. E não se controverte, face a esse quadro factual, maxime, os factos n.ºs 2 a 4, a culpa exclusiva do Apelante na eclosão do acidente ou dos danos. Ora, a Autora, satisfeita a indemnização ao lesado, exerce, com a presente demanda, o direito de regresso contra o Réu, ora Recorrente, condutor da veículo motocultivador interveniente no acidente, e que havia segurado por danos causados a terceiros. Tal direito está previsto na alínea c) do art. 19º do DL n.º 522/85, de 31 de Dezembro, nos termos da qual, “satisfeita a indemnização, a seguradora tem direito de regresso contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência de álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado”. Mas, no caso de condução por pessoa não legalmente habilitada para conduzir, é de exigir o nexo de causalidade adequada entre essa condução e os danos? Como é sabido, o nexo de causalidade entre o facto e o dano é um dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e da obrigação de indemnização (arts. 483º e 563º, ambos do CC). E tal nexo deve ser alegado e provado pela titular do direito, a não ser que lei faça presumir tal nexo. Relativamente ao acidente causado por condutor que tenha agido sob a influência do álcool, o STJ, pelo Acórdão Uniformizador n.º 6/2002, de 28.05.2002, publicado no DR 1-A, n.º 154, de 18.07.2000, fixou a seguinte jurisprudência: “A alínea c) do art. 19º do Dec. Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob a influência do álcool, o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente”. No caso ajuizado não resultou apurado tal nexo de causalidade, até porque a Autora nem sequer tal facto alegou, certamente porque o julgou dispensável. No exame preliminar, a que alude o art. 701º do CPC, foi neste Tribunal decidida a suscitada questão prévia da inadmissibilidades do recurso, considerando que a sentença impugnada contrariou a citada jurisprudência uniformizada, ao prescindir do nexo de causalidade adequada entre a falta de habilitação legal de conduzir e o acidente. Foi mesmo omitida qualquer referência a tal requisito. Como nesse despacho se assinalou, contrariamente à tese sufragada pela Apelada, é de reputar idênticas ou análogas as diversas situações prevenidas na alínea c) do art. 19º do DL n,º 522/85, permitindo o direito de regresso da seguradora, que satisfez a indemnização ao lesado, contra o condutor que não estiver legalmente habilitado, tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos ou quando haja abandonado o sinistrado. Tal analogia releva no tocante ao nexo de causalidade adequada como pressuposto do exercício do direito de regresso por banda da seguradora. E não existindo nenhuma presunção legal do nexo de causalidade, compete à seguradora o ónus de alegação e prova de tal facto constitutivo do seu direito. Como salienta o acórdão do STJ, publicado na CJ 2005, 3º, p. 75, proferido numa hipótese em que o causador do acidente não estava legalmente habilitado a conduzir, “é de aplicar por interpretação extensiva a jurisprudência, fixada no acórdão uniformizador n.º 6/2002, de 28 de Maio, ou seja, que a prova do nexo causal entre a falta de habilitação legal para conduzir do réu, o condutor segurado, e a eclosão do acidente, cabe à seguradora, já que sobre esta impende o ónus da prova do nexo causal entre a condução sob o efeito do álcool e a produção do acidente” [1] . Aliás, no que toca ao abandono de sinistrado, abunda a jurisprudência do STJ [2] , exigindo, como requisito do direito de regresso, que os danos sejam uma consequência típica e adequada do abandono do sinistrado, escrevendo-se no aresto de 09.12.04, “o Acórdão Uniformizador n.º 6/02, decidindo que a alínea c) do art. 19º do DL n.º 522/85, de 31/12, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob a influência de álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito de álcool e o acidente, se aplica também nos mesmos termos ao abandono de sinistrado”. Todas as situações previstas na citada alínea c) estão, pois, em pé de igualdade relativamente aos requisitos da acção de regresso por parte da seguradora contra o condutor, não se vislumbrando qualquer razão justificativa de diferenciação quanto ao ónus de alegação e prova do nexo de causalidade adequada. Como assim, é aplicável, por analogia, ao caso ajuizado, a doutrina constante do citado Acórdão Uniformizador n.º 6/2002. E considerando verificados todos os requisitos do direito de regresso, sem que esteja provado o nexo de causalidade adequada entre condução não legalmente habilitada e o acidente, a decisão recorrida contraria, pois, aquela jurisprudência uniformizada. Poder-se-á dizer que estamos perante a mesma questão fundamental de direito, porque o núcleo da situação de facto é idêntico, não ocorrendo, no essencial, diversidade de factos, e, por isso, o caso concreto é subsumível àquela jurisprudência que perfilhamos. Sendo assim, a tese do Réu/Apelante merece acolhimento, na parte em diverge da subsunção ao direito dos factos provados (cfr. conclusões 3ª a 8ª), não podendo ser mantida a decisão sob exame que condenou o ora Recorrente reembolsar a Autora da indemnização que satisfez ao lesado por força do contrato de seguro automóvel. IV)- DECISÃO Nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em: 1)- Conceder provimento ao recurso. 2)-Revogar a sentença impugnada e absolver o Réu do pedido. 3)- Condenar a Autora nas custas, em ambas as instâncias. -------------------------------------------------------------------------------------- [1] Cfr, ainda, o acórdão do STJ, publicado no BMJ n.º 491º, p. 217. [2] Cfr. entre muitos outros, o acórdãos do STJ , publicados na CJ 2005, 3º, p. 138; na CJ 2003º, 1º, p. 87; BMJ 423º, p. 560; BMJ 442, p. 155, BMJ 455, p. 513 e CJ 1997, 1º, p. 57; CJ 1993, 1º, p. 106 |