Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4261/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. COELHO DE MATOS
Descritores: COMPETÊNCIA
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
TRIBUNAL COMUM
Data do Acordão: 04/27/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FUNDÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: ART.º 4.º, N.º 1, F); 51.º, N.º 1, H) DO E.T.A.F.(DEC. LEI N.º 129/84, DE 27/04); ARTIGO 224.º DO DEC. LEI N.º 405/93, DE 10/12; ARTIGO 66.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E ARTIGOS 483.º E 562.º DO CÓDIGO CIVIL.
Sumário:

1. O acto de construção duma estrada é inquestionavelmente de “gestão pública” e, como tal, está legitimado, mas já não o é o acto que, por causa da construção dessa estrada, atinja ilicitamente a propriedade privada não expropriada.
2. Em tal caso trata-se de conhecer do direito de propriedade, da lesão desse direito e do dano e nunca de apreciar da legalidade do acto administrativo que legitimou o Estado a ocupar as áreas expropriadas.
3. Por isso, articulando-se na petição inicial que um instituto público com competência para construir estradas públicas causou prejuízos na propriedade privada não expropriada, quando construía no terreno expropriado, e pedindo-se a condenação numa indemnização e outras no sentido de reparar os danos, será competente em razão da matéria o tribunal comum e não o tribunal administrativo
Decisão Texto Integral:
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Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1. AA e outros demandaram, na comarca do Fundão, BB, CC, FF, SA., DD e o EE, pedindo a condenação solidária destes a pagar-lhes:
a) 5.065.850$00, correspondente à perda de produção de fruta;
b) 946.000$00, a título de compensação pela ocupação abusiva de terrenos;
c) 2.106.000$00, correspondentes à reposição do satus quo ante no que se refere à charca sita no Segundo;
d) 784.000$00, correspondentes à reparação da destruição de Pomares;
e) 150.000$00, referentes à indemnização pela destruição da “vala enrucada”;
f) 40.000$00, decorrentes da destruição da placa de sinalização;
g) 673.800$00, decorrentes das despesas e prejuízos por causa das obras;

A realizar as seguintes prestações de facto ou, em alternativa, a pagar o preço correspondente a tais trabalhos, a liquidar em execução de sentença:
h) Abertura de Vala de escoamento para águas em substituição de alvanel destruído pela pedreira em Vale do Ramil;
i) Abertura de acesso ao prédio urbano substituindo o anterior destruído pela pedreira em Vale do Ramil;
j) Limpar o terreno das pedras de grande dimensão originárias da pedreira em Vale do Ramil;
k) Limpeza e desassoreamento de várias charcas localizadas na propriedade, excluindo a referida no número anterior, em Corxoa;
l) Na reposição das vedações em 200 metros lineares

E ainda a pagar-lhes os danos a liquidar em execução de sentença, decorrentes da conduta ilícita descrita nos autos, incluindo os danos decorrentes da danificação do sistema de rega centralizado e na campanha agrícola de 2000, acrescidos dos juros de mora à taxa legal, desde a data da sentença condenatória até integral pagamento.

2. Alegam, em síntese, que os danos que assim pretendem ver reparados foram provocados pelo consórcio GG, rés acima identificadas, aquando da execução dos trabalhos de construção do IP2, a quem o Estado – EE (ao tempo HH) - adjudicou a obra, após expropriação das respectivas parcelas de terrenos pertencentes aos autores.
A acção das executoras dos trabalhos foi ilícita e culposa, na medida em que causou os danos nas propriedades dos autores, danos esses de que agora pretendem ser ressarcidos. Os danos e os factos que os causaram são os descritos na petição inicial.

3. Partindo do pressuposto de que um dos demandados é o Estado, e porque entendeu que decorre do artigo 224.º do Dec. Lei n.º 405/93, de 10 de Dezembro a competência do foro administrativo para conhecer da causa, a Sra. Juiz, no saneador, julgou o tribunal comum incompetente em razão da matéria e absolveu os réus da instância.
Inconformados aos autores agravam para esta Relação, concluindo:
1) Ao entender que na presente acção “se discute a execução de uma empreitada de obras públicas e como tal rege o D.L. n° 405/93 de 10 de Dezembro”, o Tribunal a quo parte de uma errada identificação da causa de pedir da presente acção e de uma errada interpretação do art. 224.º do citado Dec. Lei n.º 405/93.
2) A simples leitura da petição inicial revela que na presente acção os autores, ora agravantes pedem a reparação dos danos provocados pela actuação ilícita dos réus, ora agravados, no decurso e por força da empreitada de obras públicas identificada nos autos, pelo que a causa de pedir da presente acção consiste, assim, na violação do direito de propriedade dos autores, ora agravantes, e consequente direito de reparação dos danos provocados pela actuação dos réus.
3) Não está, por isso, em causa nos presentes autos a interpretação, validade ou execução do contrato de obras públicas celebrado entre as rés empreiteiras e o 5.º réu, não estão em causa as relações jurídicas administrativas estabelecidas entre as partes por força do referido contrato, até porque, como é manifesto, os ora agravantes não são partes do mesmo.
4) O art. 224° do cito Dec. Lei n.º 405/93, ao estatuir que os tribunais administrativos são competentes para conhecer as questões que se suscitem sobre interpretação, validade ou execução do contrato de empreitada de obras públicas, apenas se quis referir às questões emergentes do próprio contrato, isto é, a questões suscitadas entre as partes, atinentes às relações jurídicas administrativas constituídas entre os contraentes, já que o contrato apenas produz efeitos entre eles.
5) O citado art. 224° não pode ser interpretado de modo a atribuir aos tribunais administrativos competências que extravasem a própria jurisdição administrativa, tal como ela se encontra definida nos artigos 3°, 4°, n° 1, al. f), e 51 °, n° 1, al. h) do ETAF.
6) Tal como se decidiu no Acórdão do S.T.A. de 27 de Fevereiro de 2002, muito embora a natureza administrativa de um contrato de empreitada de obras públicas seja relevante para efeitos de inclusão do conhecimento das questões dele emergentes no âmbito da jurisdição administrativa, por serem legalmente qualificadas como relações jurídicas de direito administrativo as que se estabelecem entre os contraentes, já a existência desse contrato não implica que os actos ou omissões praticados na sua execução que lesem terceiros emergentes de outros factos jurídicos sejam considerados como actos de gestão pública.
7) Ainda que o dono da obra seja um ente público, não há, na concepção e execução de uma empreitada, seja de obras públicas seja de obras particulares, o exercício de qualquer poder público ou a realização de qualquer função pública, antes se encontrando todas as partes envolvidas submetidas às normas de direito privado, designadamente ao dever de respeitar os direitos de propriedade de terceiros que sejam afectados ilicitamente no decurso da empreitada.
8) Os actos de que os autores ora agravantes fazem emergir o direito à sua indemnização pelos réus ora agravados não constituem actos de gestão pública, mas sim privada (aliás, a actuação das rés, empreiteiras nunca poderia deixar de ser assim qualificada, dado que o contrato de empreitada de obras públicas não lhes confere quaisquer poderes públicos).
9) Deste modo, não pode deixar de se concluir que os tribunais administrativos são materialmente incompetentes para o conhecimento da causa sub judice, tal como resulta do preceituado nos arts. 4°, n° 1, al, f), e 51°, n° 1, al. h) (a contrario), do ETAF.
10) Por isso, não poderia ter sido julgada procedente a excepção de incompetência absoluta, antes se devendo concluir serem competentes os tribunais judiciais, tal como se preceitua no art. 66° do Código de Processo Civil.


4. Contra-alegaram os réus no sentido da confirmação do julgado. Foi proferido despacho de sustentação. Estão colhidos os vistos legais. Cumpre agora conhecer e decidir, tendo em conta que a questão assenta nos factos referidos no ponto 2 supra.
A única questão a conhecer é a de saber se o tribunal da comarca do Fundão (tribunal comum) detém a competência material para conhecer do objecto da acção ou se, pelo contrário, não será antes da competência do tribunal administrativo de círculo.
Como vimos, o que os autores pretendem é que se condenem os réus em indemnização por actos ilícitos, isto é, por terem danificado os seus terrenos na sequência da execução dos trabalhos de construção da estrada em áreas que o Estado lhes havia expropriado, para tal fim.
Os agravados defendem a competência do tribunal administrativo, porque a construção da estrada constitui um acto de gestão pública.
A Sra. Juiz entendeu que a competência é dos tribunais administrativos, porque tal decorre do artigo 224.º do Dec. Lei n.º 405/93, de 10 de Dezembro.
Diz o preceito que: “1 – as questões que se suscitem sobre interpretação, validade ou execução do contrato de empreitada de obras públicas, que não sejam dirimidas por meios graciosos, poderão ser submetidas aos tribunais.
2 - Os tribunais competentes são os administrativos, podendo as partes todavia acordar em submeter o litígio a um tribunal arbitral.”
Terá razão a Sra. Juiz? A atribuição da competência aos tribunais administrativos decorrerá deste normativo? Já veremos que não.

5. Sobre a competência dos tribunais administrativos e fiscais diz a Constituição da República (CR), no seu artigo 212º, n.º 3 que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais. Nesta linha o artigo 3º do E.T.A.F. (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo Dec. Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, ainda aplicável ao caso dos autos, por força do disposto no n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 13/2002, de 19/02 - ( De notar que, nesta matéria, a lei actual mantém os mesmos princípios.)) estabelece que “incumbe aos tribunais administrativos e fiscais, na administração da justiça, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais.
E a al. h) do n.º 1 do art. 51º do E.T.A.F. coloca na competência dos tribunais administrativos de círculo o conhecimento “das acções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso”.Daqui resulta que se os actos dos executores da obra, alegadamente lesivos do direito de propriedade dos autores, for considerado um acto de gestão pública será o tribunal administrativo de círculo o competente para conhecer do pedido de indemnização e outros que os autores formulam, todos no sentido da reparação dos prejuízos alegadamente causados nos seus terrenos.
Será, então, um acto de gestão pública esse que os réus praticaram?
O Prof. Vaz Serra (in Rev. Leg. Jur. ano 110º, pág. 315) define os actos de gestão pública como sendo os “praticados no exercício de uma função pública, para os fins de direito público da pessoa colectiva, isto é, os regidos pelo direito público, e, consequentemente, por normas que atribuem à pessoa colectiva pública poderes de autoridade - jus imperii- para tais fins”.Construir uma estrada é, efectivamente, um acto que se insere nas atribuições da ré EE (hoje II e ao tempo HH), conforme legislação que se dispensa de citar. E é, por isso, um acto que assume normalmente o carácter de um acto de gestão pública.
Mas uma coisa é construir uma estrada em obediência às normas disciplinadoras dessa actividade - entre as quais se contam as que legitimam a ocupação da propriedade privada- e outra coisa é construir essa mesma estrada sem respeito pela propriedade privada, ocupando-a ou danificando-a sem consentimento do proprietário à margem do competente processo de expropriação. Neste último caso não se pode falar de um verdadeiro acto de gestão pública, porque esta é legalmente vinculada. Só a actividade regida pelo direito se pode considerar de administração pública ou de gestão pública, porque é a lei reguladora que confere ao ente público o carácter de jus imperii com que age perante os particulares. Se essa mesma actividade não tem qualquer suporte legal, se o ente público age fora dos poderes públicos legalmente controlados, então age sem estar imbuído do jus imperii; age como se fosse um particular. Por isso os danos que causar em ofensa à lei que tutela direitos privados e, como tal, ilícitos, não são danos originados por actos de gestão pública. Tudo se passa como se fosse um particular a causar danos a outro particular.

6. São da competência dos tribunais judiciais, diz o artigo 66º do Código de Processo Civil, as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional; e o artigo 67º diz que as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada. É, assim, a própria ordem jurídica a reconhecer a necessidade da existência de jurisdições especializadas, por ver “vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram”. (Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, pág. 207)Tem isto a ver com a própria natureza da relação jurídica que se discute. Como diz o já citado artigo 3º do E.T.A.F. “incumbe aos tribunais administrativos e fiscais (....) dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais.”Por isso, a linha de demarcação da competência dos tribunais administrativos reside na existência de uma relação jurídica administrativa que enquadre o acto sujeito a apreciação, ou seja “uma relação da vida social disciplinada pelo direito administrativo e dirigida à satisfação do interesse público ou das necessidades colectivas e que resulta da actividade da administração desenvolvida sob a égide do direito público” (cfr. M. Andrade, Teoria Geral, I, pág. 2 e Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, I, págs. 132 e 134).
Este tipo de relação jurídica, como é sabido, pressupõe sempre a intervenção da Administração Pública investida do seu poder de autoridade “jus imperium”, impondo aos particulares restrições que não têm na actividade privada. É para dirimir os conflitos de interesses surgidos no âmbito destas relações e com vista à garantia do interesse público que se atribui competência específica aos tribunais administrativos.
É por aqui que se deve caminhar quando se pretende saber o que é ou não da competência dos tribunais administrativos e não, por princípio, do que decorre da norma do n.º 2 do artigo 224.º do Dec. Lei n.º 405/93, de 10/12, que regula uma situação específica. Parece claro que de tal preceito apenas decorre a atribuição da competência dos tribunais administrativos quando se trata de conhecer das “questões que se suscitem sobre interpretação, validade ou execução do contrato de empreitada de obras públicas”, que nada tem a ver com o caso em análise, como parece óbvio.

7. No caso em apreço, a avaliar pelo pedido e causa de pedir, como se verifica da petição inicial, a relação jurídica exposta tem como sujeitos os autores e o EE, como dono da obra a executar pelos restantes réus, em que aqueles pedem a estes uma indemnização por actos de ocupação (ainda que temporária) e lesão de terrenos de que são proprietários. O acto de ocupação para a construção da estrada originou, na óptica dos autores, danos colaterais (no sentido de que se trata de danos não provenientes da ocupação do terreno expropriado, mas que surgiram à margem dela, em consequência dos trabalhos de construção da estrada) pelos quais os autores entendem deverem ser indemnizados, face à ilicitude e ao nexo de causalidade, como dispõem os artigos 483º, n.º 1 e 562º do Código Civil.
Não está em causa nada que tenha a ver com o que se passou ou passa nas parcelas expropriadas, mas sim o que se passou ou passa nas zonas limítrofes e fora dessa área; os danos que aí terão sido causados estão fora das áreas expropriadas. Foi, é certo, a Junta Autónoma da Estradas que, através dos executores dos trabalhos, quem alegadamente causou os danos, mas estes não se confinam nos limites das áreas expropriadas, antes atingem áreas não expropriadas, alegadamente propriedade dos autores.

8. Para conhecer deste pedido não há que conhecer de nenhuma relação jurídica em que o Estado (na sua concepção ampla, abrangendo os institutos públicos) réu intervenha com as vestes de “jus imperium”, porque estas, como vimos, pressupõem a legalidade do acto lesivo consubstanciado em terrenos abrangidos pela expropriação; logo, não estando em causa terrenos abrangidos pela expropriação, há total ausência duma relação legitimadora.
Diferente seria se os alegados actos lesivos tivessem sido praticados sob o manto da legalidade administrativa, pois então se falaria, com propriedade, de “gestão pública”. Ou seja, o acto de construção da estrada é inquestionavelmente de “gestão pública” e está legitimado, mas já não é o acto que, por causa da construção dessa estrada, atinja ilicitamente a propriedade privada não expropriada.
Se não se fizesse esta distinção então nenhum acto do Estado, autarquias ou institutos públicos, que atingissem a propriedade privada sairia da alçada da jurisdição administrativa, por ser considerado de “gestão pública”. A colisão duma viatura do Estado (v.g.), transportando um ministro em serviço, quando colide com um veículo particular e lhe causa danos, não pode ser considerada um acto de “gestão pública”, para efeito de atribuição da competência aos tribunais administrativos, porque a apreciação jurisdicional do facto não precisa de recorrer a normas de direito público; tem isso sim de apreciar normas de direito privado e só de direito privado, ainda que uma das partes seja o Estado no exercício da sua actividade.

9. Logo, nada justifica ou impõe que a nossa questão seja retirada da esfera da jurisdição comum e os critérios legais não apontam para a submissão à jurisdição administrativa. Como se escreveu no acórdão do STJ, de 4/3/97 (Col. Jur. Supremo, (1997) vol. I, pág. 125) “os tribunais administrativos só dirimem litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e nunca questões de direito privado”. Ora, a questão posta pelos autores é uma questão de direito privado; trata-se de conhecer do direito de propriedade, da lesão desse direito e do dano e nunca de apreciar da legalidade do acto administrativo que legitimou a ex JAE a ocupar as áreas expropriadas. Só em tais circunstâncias se impunha a atribuição da competência ao foro administrativo.
Tratando-se de uma questão de direito privado, prescreve o n.º 1, al. f) do art. 4º do citado Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que estão excluídos da jurisdição administrativa e fiscal os recursos e as acções que tenham por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público.
Por outro lado segundo o art. 51º n.º 1, h) desse mesmo diploma, compete aos tribunais administrativos de Círculo conhecer das acções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso.
Ora, no articulado inicial não se configura a prática pelos réus de qualquer acto de gestão pública mas, ao invés, de ocupação e danos na propriedade privada, fora da legitimação inerente à expropriação, ou seja um acto de anti-gestão pública, já que a gestão pública, como acima referimos, é apenas aquela que é exercida segundo o “jus imperii” legitimado pela lei, completamente omitido no petitório. Danificar a propriedade privada quando se constrói uma estrada não é gestão pública; construir a estrada e fazer da área expropriada o previsto no acto de expropriação, sim. Donde não ter aplicação "in casu" o art. 51º nº1, al. h) do E.T.A.F. que alude a actos de gestão pública.
Como se expendeu no Acórdão desta Relação de 7/7/93, in C.J. 1993, tomo IV, pág. 34, “não se põe em dúvida que uma Câmara Municipal [o Estado] tenha na sua esfera pública de actuação a construção de estradas, mas as actuações abusivas não estão consentidas nem reguladas por qualquer diploma de direito administrativo, nem por ele reguladas como actos administrativos, e não se tratando de um acto destes, ou de um acto das funções de uma autarquia [Estado], não se chega a pôr a possibilidade de os tribunais administrativos poderem arbitrar indemnizações por actos públicos legalmente atribuídos a essa autarquia”.
Tem sido esta, aliás, a posição desta Relação onde noutro acórdão sobre um caso idêntico (cfr. Acórdão de 2/7/96, cr. CJ. (1996), tomo IV, págs. 27.) se escreveu: “estando em causa um comportamento da administração pública que se julga ilegal ou arbitrário, ( No caso este conceito aplica-se à actuação da JAE fora das áreas expropriadas) o tribunal competente será o comum, estando em jogo, como está, o exercício de actividades de gestão privada, regulado de modo completo pela lei civil, pois o que foi posto em prática foi a via de facto ( Repete-se o referido na nota anterior), fora da actividade administrativa, pois o acto administrativo que se não conforma com a lei não cabe no exercício da função administrativa, ditando o direito civil (artigos 500º e 501º do Código Civil) os termos em que os comitentes respondem pelos actos causados pelos comissários e os termos da responsabilidade do Estado e de outras pessoas colectivas públicas”.
É, pois, de concluir que articulando-se na petição inicial que um instituto público com competência para construir estradas públicas causou prejuízos na propriedade privada não expropriada, quando construía no terreno expropriado, e pedindo-se a condenação numa indemnização e outras no sentido de reparar os danos, será competente em razão da matéria o tribunal comum e não o tribunal administrativo.
Procedem, pois, as conclusões.

10. Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes desta Relação em conceder provimento ao agravo, revogando o despacho agravado, para que o processo prossiga no tribunal comum, por ser o competente em razão da matéria.
Custas a cargo dos agravados, tendo em conta a isenção do EE
Coimbra
Relator: Coelho de Matos; Adjuntos: Custódio Costa e Ferreira de Barros