Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1913/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO ATAÍDE
Descritores: DIFAMAÇÃO
Data do Acordão: 01/25/2006
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 180º, N.º 1 E N.º 2, DO C. PENAL E ARTIGOS 570º E 563º, DO C. P. PENAL
Sumário: I- Basta, para a existência do crime de difamação, o perigo de que o dano, à honra e consideração, se possa verificar.
II- O interesse legítimo (n.º 2, al. a) do C. Penal) confundindo-se como interesse público, existe quando o acontecimento “assume significado emblemático para a colectividade” e exige a necessidade do meio, isto é, a sua indispensabilidade para a realização dos interesses protegidos.

III- A boa fé tem de assentar numa imprescindível dimensão objectiva, ou seja, exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação.

IV- A culpa do lesado (que pode ser simultânea ou sucessiva) tanto pode reportar-se ao facto ilícito causador do dano, como directamente ao dano proveniente desse facto.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em audiência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

No processo comum nº 546/98 do 1º Juízo Criminal de Coimbra, após audiência de discussão e julgamento a arguida:

A...,

Foi condenada a pagar ao A. – B... - a título de indemnização por danos patrimoniais ( lucros cessantes – danos futuros ), a importância que se liquidar em execução de sentença e a título de indemnização por danos não patrimoniais ou morais, a importância de dois mil e quinhentos euros ( € 2.500,00 ), acrescida de juros de mora sobre tal montante, à taxa de 7%, desde a notificação até 30.04.2003 e 4% desde 1.05.2003 até integral pagamento.
Este processo tinha subjacente um crime, p. e p. pelos art. 181.º e 184.º, ambos do Cód. Penal, e amnistiado este nos termos do art. 7.º d) da Lei 29/99, de 12.05 foi ordenando o cumprimento do disposto no art. 11.º, 3 da referida lei.
Na sequência dessa notificação o A -B... -, deduziu pedido de indemnização cível contra a arguida, concluindo pela procedência do pedido e condenação daquela a pagar-lhe a quantia de 25.200.000$00, acrescida de juros à taxa legal de 7%, desde a notificação até integral pagamento.
Inconformada com a decisão proferida a arguida interpôs recurso e formulou as seguintes conclusões:
1.- As expressões usadas na carta que deu origem ao presente processo, não são injuriosas e apenas se quis dizer - e objectiva e literalmente é o que está lá escrito - que considerava que no contexto de uma missão para preparação de uma exposição, paga e com a tutela institucional do Conselho de Ministros, era deontologicamente inadmissível que se comprassem peças que se destinassem a outro fim que não aquele.
2.- Com isto a recorrente não queria, obviamente, ofender a honra e a respeitabilidade do autor.
3.- Queria tão somente dizer que achava aquilo deontologicamente errado.
4.- Tal reacção enquadra-se na figura da livre crítica dos cidadãos, não é, nem objectiva nem subjectivamente, ofensiva do ponto de vista criminal.
5.- Dos autos não resultam indícios da existência do propósito da arguida atingir a honra e consideração do A., nem a consciência, por parte dela, de que tal conduta era de molde a produzir a ofensa desses bens jurídicos.
6.- É certo que a recorrente refere que as peças compradas pelo autor terão sido expedidas por mala diplomática, mas isso apenas porque estava convencida da bondade dos seus argumentos, conforme referiu no seu depoimento, tanto mais que foram instaurados os pertinentes inquéritos
7.- Deste modo, não se pode concluir, como faz a sentença recorrida, que a "arguida/demandada era conhecedora do significado ofensivo (da honra e consideração do A.) das palavras proferidas, que tal pela mesma foi pretendido e que sabia que a sua conduta era contrária à lei e passível de censura criminal".
8.- As expressões utilizadas não são objectivamente injuriosas, conforme é referido pela sentença recorrida.
9.- De qualquer modo, diga-se que toda a publicidade que posteriormente foi dada ao incidente só pode ter sido da inteira responsabilidade e autoria do A. , conforme resulta dos depoimentos de Vassalo e Silva, José Felgueiras, Aguiar Branco, Paulo Varela Gomes e António Hespanha, transcritos na sentença.
10.- O A., numa entrevista dada ao jornal O Independente aos 7 de Novembro de 1997, junta aos autos como doc. 2 da p.i., deixa transparecer que a recorrente o terá acusado "de ter, em conivência com a nossa embaixada em Nova Deli, ou com algum dos seus funcionários, importado peças de arte". E é sobre essa acusação que o A. presta declarações, referindo que "tais acusações são de tal forma graves que para além de não poderem passar incólumes poderão levantar tensões melindrosas nas nossas relações diplomáticas com a União Indiana."
11.- Referindo ainda, no mesmo jornal, que da carta da recorrente se poderia deduzir que "era um trapaceiro, que nos finais do séc. XX, com dinheiro de todos nós e à revelia das regras, trouxe arte da índia, de forma ilícita, via mala diplomática”.
12.- Foram exactamente as declarações do A. nos jornais e o modo como contou o caso aos amigos e colaboradores que suscitaram a referência e, pelos vistos, a divulgação de que a recorrente terá acusado o A. da prática actos ilegais
13.- O A. fez alarde daquilo que a carta dizia, mas também daquilo que não dizia.
14.- A sentença deveria ter dado estes factos como provados e com a devida importância para a decisão da causa.
15.- Não foram as expressões referidas na sentença que levaram o A. a demitir-se uma vez que é ele próprio que refere na sua carta de demissão que o que o levou a demitir-se da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses se prende exclusivamente com a apreciação da Coordenadora Adjunta do CNCDP, ora R., relativamente ao seu trabalho como Comissário Cientifico das exposições que lhe foram confiadas.
16.- A sentença deveria ter dado estes factos como provados e com a devida importância para a decisão da causa.
17.- A hipotética perturbação e o incómodo do A. causado pela carta aqui em apreço deve-se, pois, a factos e a referências que não constam na citada carta, mas que a ela, inadvertida e injustamente, passaram a estar associados sem que, efectiva e objectivamente, pudesse ser feita tal conexão e sem ser, naturalmente, essa a vontade da recorrente.
18.-Também não se aceita que se conclua que o pedido de demissão se impunha.
19.- Não é verdadeiro que o A. teve de demitir-se da Comissão Nacional. Demitiu-se porque quis.
20.- Por isso mesmo, a decisão de atribuir uma indemnização ao A. por danos patrimoniais é ilógica e ilegal.
21.- Não existe qualquer nexo de causalidade entre o acto da recorrente e os "danos patrimoniais", sob a forma de "lucros cessantes", que a sentença acaba por atribuir ao A. .
22.- De qualquer modo, não se aceita que se dê como provado, tal como faz a sentença recorrida, que o A. exercia as funções de comissário científico, na qual auferia a quantia líquida de 200.000$00 mensais pela elaboração de guiões das exposições e respectivos catálogos e acompanhamento do desenvolvimento dos guiões.
23.-Só pode concluir-se que o A. fazia parte da comissão científica e que nessa qualidade só lhe eram pagas as despesas e que os 200.000$00 mensais apenas lhe eram pagos quando o A. organizava exposições.
24.- Não se tem conhecimento que alguma das exposições referidas pelas testemunhas tenha sido efectivamente realizada, sendo que competiria ao A. efectuar a prova caso tal tenha sucedido.
25.- Assim, é evidente que a sentença não podia atribuir qualquer indemnização por efeito de o A. não ter participado em exposições, pois não se provou que as mesmas se tenham realizado.
26.- Os danos não patrimoniais não têm qualquer nexo de causalidade com a carta enviada pela recorrente.
27.- Terá que admitir-se que poderá ter sido a carta enviada pelo Professor António Hespanha.
28.- A perturbação do A. - terá que admitir-se - poderá ter tido a ver com a falta de solidariedade do Comissariado, que aceitou a sua demissão, e não propriamente com a carta da R.
29.- Por outro lado, não pode aceitar que "o estado psicológico em que ficou e o tratamento respectivo o impediu de trabalhar regularmente (como fazia antes).
30.- No caso dos autos, além dos factores referidos, tem de se atender também à participação que o próprio requerente - "lesado" no quadro que se está a descrever - teve em todo o decorrer dos acontecimentos relacionados com o presente processo.
31.- Por fim, chama a atenção para o disposto no art. 570°, n° 1 do CC, onde se lê que "quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou o agravamento dos danos, cabe ao Tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.
32.- Termos pelos quais, por erro de avaliação na matéria de facto e por não valoração de provas determinantes para o apuramento da verdade nos autos, deve a presente sentença ser revogada e, consequentemente, absolver-se a recorrente do pedido de indemnização cível.

O recurso foi admitido.

Na contra-motivação apresentada o assistente concluiu:
1.- A análise dos factos dados como provados, da carta do assistente e até da motivação da arguida demonstra que este, ainda que em termos algo contundentes, critica um trabalho em concreto, o qual, no seu entender, não tem valor científico, pelo que não poderia ser publicado e essa carta do assistente nunca é criticada por ser injuriosa.
2.- Esta carta demonstra bem a razão de ser da carta da arguida, que não gosta de ser criticada, tendo passado ao ataque e, não podendo criticar o assistente no mesmo plano científico, de forma claramente intencional e revelando a raiva e o despeito que a invadiam, resolve inventar factos e acusá-lo de contrabando de peças de arte a partir da Índia
3.- A carta do assistente, tem, pelo menos, a virtude de demonstrar a real motivação da arguida, quando escreveu a carta que é objecto dos presentes autos, bem como a forma dolosa e com perfeita consciência do que estava a fazer quando escreveu a carta em que injuriou o assistente.
4.- As expressões usadas são objectivamente injuriosas.
5.- Qualquer pessoa bem formada, com a noção exacta dos valores e das palavras, não pode deixar de considerar estas afirmações como objectivamente injuriosas, por atentarem contra o bom nome e a consideração devidas ao visado e não se faz apenas, como pretende a arguida, uma censura à falta de ética do assistente, esquecendo que essa falta de ética tem de basear-se em factos verdadeiros e não em falsidades.
6.- Grave é afirmar que as peças são enviadas por mala diplomática para evitar pagar direitos e ficou demonstrado que esse facto é falso.
7.- A assistente tinha o dever de, antes de escrever, verificar se os factos eram ou não verdadeiros, omitindo esse dever de diligência prévia, não sendo o mesmo substituído pelo facto de o boato ter sido propalado também pelo Prof. Hespanha.
8.- A carta não é privada, pois foi enviada em papel timbrado da Comissão dos Descobrimentos, tem referências desta mesma Comissão dos Descobrimentos - é o ofício n°. 5605 -, tendo nesta ficado uma cópia da mesma carta, portanto acessível a quaisquer pessoas que ali trabalham e foi a própria arguida quem promoveu a divulgação dessa carta perante os membros da Comissão, quer junto do seu Presidente, quer junto dos restantes membros.
9.- Nenhuma outra carta foi recebida pelo ora assistente, além da que foi remetida pela arguida ao assistente e aquela em que o Presidente da Comissão dos Descobrimentos aceita a demissão do assistente, solicitada por este, cuja carta de demissão aponta claramente no sentido de que foram os factos referidos na carta da arguida e que foi objecto dos presentes autos, que determinaram essa demissão, pelo que deve manter-se o facto dado como provado, de que "por causa dessas afirmações, o A. demitiu-se da Comissão Nacional dos Descobrimentos ".
10.- Qualquer pessoa com consciência dos valores éticos e sociais que enformam a vida em sociedade e que pauta a sua conduta por esses valores não pode ficar indiferente que lhe chamem traficante de arte, sob a capa de actividade científica e o assistente que preza muito o seu bom nome pessoal e científico, nomeadamente atendendo à sua qualidade de Professor Catedrático de História de Arte não pode estar sujeito a insinuações de que se serve desse estatuo para fazer tráfico de objectos de arte, pois quem não se sente, não é filho de boa gente.
11.- Termos em que o recurso tem de improceder.

Começando por delimitar o âmbito e objecto do recurso, verifica-se que o mesmo visa o reexame de facto e de direito. Após a reposição dos factos, que considera provados, para além daqueles que foram consagrados em 1ª instância, a recorrente pretende demonstrar que as expressões usadas não são objectivamente injuriosas e foi o assistente que deu publicidade à carta. Subsidiariamente, depois de considerar que não há acto ilícito que justifique a atribuição de qualquer indemnização, alega que não há qualquer dano patrimonial ou não patrimonial, bem como qualquer nexo de causalidade entre eventuais prejuízos e a sua conduta.
Para além destas pertinentes questões de facto e de direito, e nos limites da sua aceitação do mérito da decisão recorrida, pede a este tribunal que pondere a conduta do assistente na precipitação dos factos e nas suas consequências.



1.- Da apreciação da matéria de facto .

Pretende a recorrente demonstrar que não praticou o crime de injúrias, p.p. no art. 181 o do CP, conforme é referido pela sentença recorrida e, consequentemente o presente pedido de indemnização cível não podia ser deduzido no presente processo e muito menos aceite pela sentença.
Para tanto alega que na carta enviada pela arguida ao Autor apenas quis dizer - e objectiva e literalmente é o que está lá escrito - que considerava que no contexto de uma missão para preparação de uma exposição, paga e com a tutela institucional do Conselho de Ministros, era deontologicamente inadmissível que se comprassem peças que se destinassem a outro fim que não aquele.
Com isto a recorrente não queria, obviamente, ofender a honra e a respeitabilidade do autor. Queria tão somente dizer que achava aquilo deontologicamente errado. Aliás, indo ao encontro do "aviso à navegação" feito pelo Presidente da Comissão dos Descobrimentos, Prof. António Manuel Hespanha de que "as missões à índia eram pagas pela Comissão e que não deveria haver misturas com compra de peças pelos particulares", como é expressamente referido no depoimento dessa testemunha, assinalado e transcrito pela sentença na análise desse depoimento.
Por outro lado, não podem restar dúvidas, face aos depoimentos das testemunhas Vassalo e Silva, José Felgueiras e Aguiar Branco, transcritos na sentença, que o A. comprou para si diversas peças nas missões que realizou à índia, aliás como outros elementos da missão oficial (Arq. José Felgueiras), que algumas dessas peças serviram para decorar a sua casa (a arca e o pote) e que pelo menos uma dessas missões científicas foi acompanhada por um negociador de arte (Pedro Aguiar Branco, antiquário).
A recorrente na sua carta limitou-se a dizer isto mesmo, considerando que tal, dado o circunstancialismo da missão, era por ela considerado deontologicamente inadmissível, aliás no seguimento das recomendações do próprio Presidente da Comissão dos Descobrimentos e atrás transcritas.
É certo que a recorrente refere que as peças compradas pelo autor terão sido expedidas por mala diplomática, mas isso apenas porque estava convencida da bondade dos seus argumentos, conforme referiu no seu depoimento, tanto mais que foram instaurados os pertinentes inquéritos.

Apreciando:
No essencial a recorrente pretende demonstrar que na carta que dirigiu ao Autor exerceu um poder / dever de crítica imanente a qualquer cidadão sem que objectiva ou subjectivamente, se verifique qualquer ofensa do ponto de vista criminal.
Apenas sobre a questão e a alusão à mala diplomática admite alguma precipitação, na medida em que os factos referidos fogem à verdade dos factos. Contudo mesmo sobre este ponto, objectivamente injurioso, afasta a sua ilicitude argumentando que foi induzida em erro.
Nos termos do art. 428º n. 1 do Código Processo Penal o tribunal da relação conhece de facto e de direito.
Na motivação do recurso o recorrente versando a matéria de facto deve especificar as provas que devem ser renovadas – art. 412º n.3 .
A recorrente, sobre a decisão da matéria de facto fixada na 1ª instância, na motivação do seu recurso, pretende que o tribunal vá mais longe e considere provados factos absolutamente pertinentes para a melhor apreciação da sua conduta. Suscita várias questões que necessariamente se prendem com a reapreciação da prova, nomeadamente averiguar: o aviso expresso do Presidente da Comissão; se o Autor efectivamente comprou ou não peças na Índia; como o fez, com que intenção e com quem se fez acompanhar; reapreciar o depoimento da arguida e verificar se, como ela diz, houve precipitação desculpante na sua carta sobre o episódio da mala diplomática; por quem e como foi difundida a carta.

Mas apreciemos o depoimento da arguida, do Profº António Hespanha e das testemunhas Vassalo e Silva, José Felgueiras e Aguiar Branco, como nos é pedido.
Antes de extrair qualquer conclusão de facto deste meio probatório, convém referir que este pedido de indemnização cível corre os termos do Código Processo Penal e como tal o tribunal deve apreciar os factos alegados pela acusação e defesa, e bem assim os que resultarem da discussão da causa, relevantes para: a determinação da culpa; verificação de alguma causa de exclusão da ilicitude e do pressupostos de que depende o arbitramento da indemnização civil – art. 368º n.2 do Código Processo Penal.
Como é sabido esta apreciação de mérito deve ter em conta o princípio da vinculação temática à peça fundante, normalmente a acusação pública, excepcionalmente, como no caso, o pedido de indemnização cível, sob pena de alteração substancial dos factos.
Neste aspecto parece-nos que o tribunal recorrido manteve-se muito circunscrito às peças processuais e não tomou em conta um conjunto de factos que ressaltando da discussão da causa são absolutamente pertinentes em termos de culpa e de apreciação jurídico-criminal da conduta da arguida. Porventura, encaminhou o raciocínio jurídico numa perspectiva civilista, enformada pelo princípio do dispositivo.
Relativamente à alusão à mala diplomática a arguida a fls. 4 da transcrição refere com interesse para apreciação da culpa, o seguinte:
«Relativamente à mala diplomática eu gostaria de, não diria retratar-me mas diria que efectivamente tomei da sequência de um processo anterior efectivamente irregular de expedição que não vem a este processo, de expedição de manuscritos por parte de uma pessoa ligada ao professor Pedro Dias… Assumi precipitadamente e relativamente a isso peço desculpa, que estes elementos poderiam ter sido expedidos por mala diplomática».
Se conjugarmos este depoimento, com outros elementos, nomeadamente o depoimento do Profº António Hespanha e demais esclarecimentos que foram prestados sobre um incidente que se verificou com uma partitura que foi expedida da Indía por mala diplomática para acções do interesse do Estado português, podemos dar como provado o seguinte facto:
- A arguida quando aludiu à mala diplomática estava erradamente convencida que os objectos adquiridos pelo Profº Pedro Dias aquando da sua permanência na Índia, tinham sido enviados por mala diplomática e por esse facto apresentou desculpas em audiência de discussão e julgamento.

Com implicações directas sobre este facto, por estar estreitamente conexionado com ele, devemos averiguar se efectivamente o Profº Pedro Dias comprou ou não objectos de arte nesta deslocação à Índia.
Sobre esta questão, parece não haver qualquer dúvida, o depoimento dos seus acompanhantes é absolutamente concludente, confº depoimento da testemunha Vassalo e Silva ( fls. 103) – comprámos algumas coisa na Índia … fls. 18-tomo ll – o Profº Pedro Dias comprou uma arca nova de madeira, uns saris..; depoimento do Arquitecto José Felgueiras a fls. 71, 84 do vol. ll; depoimento de Pedro Aguiar Branco a fls. 5 do vol.lll – o Profº Pedro Dias comprou uma arca, um pote e uma janela).
Tanto basta para concluir que efectivamente o Profº Pedro Dias comprou algumas peças de artesanato nesta deslocação à Índia.
E neste contexto acrescenta-se o seguinte facto:
- O Profº Pedro Dias nesta deslocação á Índia comprou, em Coxim, uma arca, um pote e uma janela.

Ainda a propósito, e porque a recorrente quer dele extrair conclusões, atentemos nos avisos do Profº António Hespanha sobre as deslocações Índia e a aquisição de peças de arte.
Na fundamentação a sentença recorrida ( fls. 743) expressamente refere que o Profº António Hespanha sempre referiu que as missões à Índia eram pagas pela comissão e não deveria haver misturas com compras de peças pelos particulares e fez um aviso à navegação por ouvir uns zunzuns. Este facto é demonstrado (embora de forma deficiente por questões técnicas) na transcrição do seu depoimento a fls. 23 do vol. lV.
Na medida em que é absolutamente pertinente à apreciação do mérito da causa e aproveita à defesa da arguida, podemos e devemos dar como provado que:
- O Profº António Hespanha, Presidente da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, sempre referiu que as missões à Índia eram pagas pela comissão e não deveria haver misturas com compras de peças pelos particulares e fez um aviso à navegação por ouvir uns zunzuns.

Ainda neste contexto, porque é claro dos depoimentos destas testemunhas e assumido pessoalmente pelo próprio visado, é oportuno dar como provado que a comitiva na visita a Coxim fez-se acompanhar de um negociante de arte. Este facto prende-se com as alusões injuriosas e torna-se pertinente porque ilustra parcialmente a verdade dos factos ( confº entre outros o depoimento do próprio a fls. 2 e 3 do Vol. lll das transcrições).
Assim consigna-se em termos de facto:
- A comitiva, na visita a Coxim, fez-se acompanhar do Srº Pedro Aguiar Branco negociante de obras de arte.

Ainda no âmbito das observações reportadas pela recorrente sobre a matéria de facto, convém acrescentar ao 1º ponto da matéria resultante da contestação, conforme teor de documento de fls. 406, por forma a permitir a análise global documento.

Do próprio teor da carta e das declarações da arguida resulta claro que foi enviada cópia ao Comissário geral da CNCDP Pofº Doutor António Hespanha e que este mostrou as duas cartas ao responsável pelo pelouro e ao presidente, após o pedido de demissão ( confº fundamentação da sentença recorrida e pag.24 do Vol. lV das transcrições).
Então por oportuno para a boa decisão da causa acrescenta-se á matéria de facto provada o seguintes facto:
- A arguida enviou cópia da carta ao Comissário geral da CNCDP Pofº Doutor António Hespanha, que por sua vez a mostrou ao responsável pelo pelouro e ao presidente, após o pedido de demissão do autor.

Porque as declarações ao Independente de 7/11/97 não são minimamente questionados pelo próprio Autor e o teor da notícia não é igualmente questionado, ter-se-á que dar como provado o seguinte facto:
- Em 7/11/97 o Autor prestou declarações ao Independente, conforme teor de doc. de fls.4.

O autor recorrido argumenta que a carta de demissão aponta claramente no sentido de que foram os factos referidos na carta da arguida e que foi objecto dos presentes autos, que determinaram essa demissão.
Sobre esta questão o tribunal deu como provado que:
10.- Por causa dessas afirmações o A. demitiu-se da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, na qual empenhara o seu trabalho, ciência e conhecimento – demissão que foi aceite; e
Antes de proferir ou extrair qualquer ilação da carta, será mais fidedigno dar o teor da carta como reproduzido e depois na parte de decisão de direito concluir se há nexo de causalidade entre a difamação e os lucros cessantes.
Seguindo este raciocínio reformulando o ponto 10 da matéria de facto dada como provada, consideramos provado o seguinte facto:
10.- Em 26/10/97 o Autor endereçou ao Coordenador da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses uma carta de demissão inserta a fls. 725 e seguintes dos autos ( cujo teor damos por integralmente reproduzido) onde se refere sobre o ponto 4 a seguinte afirmação:
Serve ainda a enumeração anterior, para contestar a afirmação contida no ponto 2.2 a de ter eu a coordenação “.. coordenação científica de uma área exterior ao seu domínio e que qualifica publicamente em termos cultural e politicamente insultuosos, efectivamente atentatórios do bom nome desta comissão…”. Sendo essa a apreciação da coordenadora adjunta da CNCDP, relativamente ao meu trabalho como comissário-científico da exposição que me foram encomendadas por V. Exª, mais não me resta do que cessar, imediatamente, a minha colaboração com o organismo que dirige.


É do seguinte teor a decisão da matéria de facto, após a reformulação detalhada que efectuámos:
1.- . Por carta, remetida em Outubro de 1997, a arguida/demandada enviou ao A. o ofício n.º 5605, da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses (CNCDP ), na qualidade de Coordenadora Adjunta da CNCDP ( conforme teor do documento de fls. 406 ).
2.- Nesse ofício, ao insurgir-se quanto às críticas que o A. fizera – por carta que lhe enviara –, dirigida ao catálogo da exposição “Memórias Árabo-Islâmicas em Portugal”, organizada pela própria, escreve a demandada o seguinte:
“...Ora embora tenha eu crescido na aprendizagem, por educação e por formação, da tolerância e do entendimento da diversidade dos comportamentos humanos, não encontro referências para categorizar a sua reclamação, tendo em conta atitudes deontologicamente inadmissíveis: compra de peças de arte para decoração de habitação própria ou para negócio e especulação em “missões” na Índia, pagas por um órgão da Presidência do Conselho de Ministros – para preparação de uma exposição comemorativa do Quinto Centenário da Viagem de Vasco da Gama – e respectiva expedição por mala diplomática; comissariados científicos que integram negociantes de arte; coordenação científica de uma área exterior ao seu domínio e que qualifica publicamente em termos cultural e politicamente insultuosos, efectivamente atentatórios do bom nome desta Comissão e das boas relações entre Portugal e a Índia.”
3.- A arguida/demandada agiu livre e conscientemente.
4.- Conhecedora do significado ofensivo ( da honra e consideração do A. ) das palavras proferidas, coisa que pretendeu e conseguiu.
5.- Sabia a sua conduta contrária à lei e passível de censura criminal.
6.- Tal matéria foi publicitada pela imprensa no jornal “O independente”, de 7.11.97, e no jornal “Público”, de 8.11.97.
7.- Ao tempo o A. era membro da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses ( CNCDP ) – exercendo as funções de comissário científico –, na qual auferia a quantia líquida de 200 000$00 mensais pela elaboração de guiões das exposições e respectivos catálogos e acompanhamento do desenvolvimento dos guiões;
8.- Encontrava-se a preparar a exposição “À Maneira de Portugal e da Índia”, a realizar na Alfândega do Porto em 1998;
9.- Previa-se que o trabalho que o A. desenvolvia para a CNCDP se prolongasse até final do ano 2000.
10.- Em 26/10/97 o Autor endereçou ao Coordenador da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses uma carta de demissão inserta a fls. 725 e seguintes dos autos ( cujo teor damos por integralmente reproduzido) onde se refere sobre o ponto 4 a seguinte afirmação:
Serve ainda a enumeração anterior, para contestar a afirmação contida no ponto 2.2 a de ter eu a coordenação “.. coordenação científica de uma área exterior ao seu domínio e que qualifica publicamente em termos cultural e politicamente insultuosos, efectivamente atentatórios do bom nome desta comissão…”. Sendo essa a apreciação da coordenadora adjunta da CNCDP, relativamente ao meu trabalho como comissário-científico da exposição que me foram encomendadas por V. Exª, mais não me resta do que cessar, imediatamente, a minha colaboração com o organismo que dirige ( matéria reformulada ).

11.- Ficou profundamente afectado pela afectação do seu bom nome e reputação pessoal e profissional.
12.- Andou em tratamento psiquiátrico durante cerca de um ano.
13.- Por força da sua demissão deixou de receber mensalmente a referida quantia de 200.000$00 líquidos.
14.- O A. é Professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Decano da História de Arte em Portugal, pertencia à Associação Internacional de Críticos de Arte, Academia de Belas Artes de Espanha – entre outras instituições –, já dirigiu o Museu Machado de Castro.
15.- Devido ao seu prestígio nacional e internacional recebia convites para conferências, publicação de obras e organização de exposições históricas.
16.- O estado psicológico em que ficou e o tratamento respectivo impediu-o de trabalhar regularmente ( como fazia antes );
17.- Sofreu e sofre pelo facto de não ter continuado os seus trabalhos e de ver perdido parte do trabalho que realizara para algumas exposições e conferências.

Da contestação:

18.- Na carta que o A. enviara à demandada – e precedera a resposta desta – dirigindo críticas ao catálogo da exposição “Memórias Árabo-Islâmicas em Portugal”, organizada pela própria, empregava expressões como: “o pobre Correia Campos, ridicularizado (...)”, “espantosa conclusão”, “igualmente escandaloso”, “a sua autora (...) por maldade ou ignorância total”, “bibliografia (...) patética e ridícula”.
19.- A demandada enviou ao Comissário-Geral da Comissão Nacional, Professor Doutor António Manuel Hespanha, cópia das duas cartas;
20.- Este deu conhecimento do facto a António Camões Gouveia, membro da Comissão Executiva.
21.- O A. mostrou a carta que lhe dirigiu a demandada a várias pessoas, entre elas elementos da Comissão e amigos.
22.- Em consequência da demissão do A. a Exposição “À Maneira de Portugal e da Índia” teve de ser anulada.
23.- O A. continuou a exercer a sua actividade profissional, a participar em conferências e colóquios e a ter actividade editorial.
24.- Após os factos dos autos o A. trabalhou na obra contratada com o Círculo de Leitores, publicada em II volumes: “o Espaço do Índico” e “O Espaço do Atlântico”, impressa e ilustrada, vendida no mercado livreiro.

E ainda:
- A arguida quando aludiu à mala diplomática estava erradamente convencida que os objectos adquiridos pelo Profº Pedro Dias aquando da sua permanência na Índia, tinham sido enviados por mala diplomática e por esse facto apresentou desculpas em audiência de discussão e julgamento.
- O Profº Pedro Dias nesta deslocação á Índia comprou, em Coxim, uma arca, um pote e uma janela.
- O Profº António Hespanha, Presidente da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, sempre referiu que as missões à Índia eram pagas pela comissão e não deveria haver misturas com compras de peças pelos particulares e fez um aviso à navegação por ouvir uns zunzuns.
- A comitiva, na visita a Coxim, fez-se acompanhar do Srº Pedro Aguiar Branco negociante de obras de arte.
- A arguida enviou cópia da carta ao Comissário geral da CNCDP Pofº Doutor António Hespanha, que por sua vez a mostrou ao responsável pelo pelouro e ao presidente, após o pedido de demissão do autor.
- Em 7/11/97 o Autor prestou declarações ao Independente, conforme teor de doc. de fls.4.

2.- Do crime de Injúrias

Rectificada a matéria de facto vejamos se é possível extrair as conclusões de direito pretendidas pelo recorrente, nomeadamente se a reacção da arguida se enquadra na figura da livre critica dos cidadãos, sem qualquer juízo ofensivo do ponto de vista criminal.
E, caso se mantenha esta intenção, se é possível concluir, como faz a sentença recorrida, que a arguida/demandada era conhecedora do significado ofensivo (da honra e consideração do A.) das palavras proferidas, que tal pela mesma foi pretendido e que sabia que a sua conduta era contrária à lei e passível de censura criminal".
Comete o crime de injúria:
Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.”
À difamação e à injúria são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão. – art. 181º e 182º do Código Penal.
Como vem citado na sentença recorrida:
Injúria é a manifestação, por qualquer meio, de um conceito ou pensamento que importe ultraje, menoscabo, ou vilipêndio contra alguém, dirigida ao próprio visado. O bem jurídico lesado pela injúria é, prevalentemente, a chamada honra subjectiva, isto é, o sentimento da própria honorabilidade ou respeitabilidade pessoal.” (Vd. NELSON HUNGRIA citado por LEAL HENRIQUES e SIMAS SANTOS, in “Código Penal de 1982” 1986, Ed. Rei dos Livros, Vol. II , pag. 203. No mesmo sentido vd. JOSÉ DE FARIA COSTA, in “Comentário Conimbricence do Código Penal”, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, pag. 629.)
“Honra «é a essência da personalidade humana, referindo-se, propriamente, à probidade, à rectidão, à lealdade, ao carácter...».
Consideração é «o património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspecto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros».
Por outras palavras pode dizer-se que a honra é a dignidade subjectiva, ou seja, o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui. Diz assim respeito ao património pessoal e interno de cada um - o próprio eu.
A consideração será o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objectiva, que é o mesmo que dizer, a forma como a sociedade vê cada cidadão - a opinião pública.” (Vd. LEAL HENRIQUES E SIMAS SANTOS, in obra citada, pag. 196).
Como escreve JOSÉ FARIA DA COSTA ( In obra citada, pag. 604.) “...entre nós, BELEZA DOS SANTOS: “a lei não exige, como elemento do tipo criminal, em nenhum dos casos, um dano efectivo do sentimento da honra ou da consideração. Basta, para a existência do crime, o perigo de que aquele dano possa verificar-se.”

Comete o crime de difamação quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo…art. 180º n.1 do Código Penal .

Com pertinente implicação jurídica, para o nosso caso, diremos antes demais que a conduta ilícita da arguida, se a houver, reconduz-nos a crime de difamação e não de injúrias, como foi abordado na sentença. Embora continuem justificadas as observações sobre o conceito de honra.
Do teor da missiva não se retira qualquer expressão injuriosa, mas antes um conjunto de factos que atentam contra a dignidade do Profº Pedro Dias.

Esta questão é pertinente porque nos termos do n.2 do art. 180 a conduta não é punível quando a imputação for feita para realizar interesses legítimos e o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.
A lei fala de interesse legítimo, como causa de justificação.
A realização do interesse legítimo no quadro das ofensas à honra, no nosso caso dependerá do conteúdo da carta e da circunstância da narração servir à consecução do interesse público, mais ainda se a mesma foi difundida perante os elementos da Comissão e o Ministério dos Negócios Estrangeiros.
O interesse público surge como o cerne de aplicação da causa justificadora, aqui confundindo-se com o interesse legítimo a que alude o normativo.
Dizer isto não significa, porém, que o interesse público seja equivalente ao interesse nacional, nem ao simples interesse do público, nem que decorra, por força, do facto de as pessoas visadas pertencerem à chamada vida pública, ou da natureza pública do facto narrado. Com efeito, e em primeiro lugar, o interesse público da notícia não se verifica, apenas, quando os factos narrados digam respeito a toda a comunidade nacional. Na verdade, existem acontecimentos cuja relevância directa é limitada apenas a algumas pessoas, mas que podem assumir um significado emblemático para a vida da colectividade inteira. Decisiva é, pois, a circunstância de a narração possuir uma ressonância que ultrapasse o círculo restrito das pessoas envolvidas (Profº José faria Costa em anotação ao preceito no Comentário Conimbricense.).
Ainda neste domínio do interesse público, a doutrina exige a necessidade do meio. Desta exigência decorre que nem todas as narrações de factos pertencentes à função pública são justificáveis. Na verdade, a necessidade só existe quando a forma utilizada para a divulgação da notícia se mostra indispensável para a realização dos interesses protegidos. O mesmo é dizer que, “ entre vários meios igualmente eficazes, o agente deve escolher o que resultar menos gravoso para o ofendido (Profº Costa Andrade in Liberdade de Imprensa – pag. 371 -citado na obra supra)..
Para além deste interesse público a lei impõe, ainda, que o agente prove a verdade da imputação ou que haja tido fundamento sério para, em boa fé, a reportar verdadeira.
Porém, se se chega à conclusão de que a imputação desonrosa não cumpre um interesse legítimo, nos termos assinalados, não há lugar para qualquer produção de prova em ordem a demonstrar a verdade desses factos. Uma interpretação contrária implicaria que à lesão decorrente da primeira imputação deveria somar-se uma segunda lesão a cargo do próprio tribunal.
Porém o legislador admite a possibilidade de justificação mesmo em situações em que não se logre fazer a prova da verdade. Tal justificação pode ocorrer, ainda, no caso em que, apesar de não se ter feito a prova da verdade dos factos, o agente tivesse fundamentos sérios para, em boa fé, os reputar como verdadeiros.
Esta concessão legal, é normalmente aplicável à comunicação social associada à ideia de risco permitido, com os limites inerentes à boa fé.
Assim, a boa-fé não pode significar uma pura convicção subjectiva por parte do agente na veracidade dos factos, antes tem de assentar numa imprescindível dimensão objectiva. A boa fé referida na lei exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade dos factos.
Ente muitos outros aspectos, a observância de tal dever concretiza-se no cuidado na recolha de informações e na selecção e credibilidade das fontes (Confronte as anotações do Profº Faria Costa em alusão aos cuidados exigíveis á comunicação social)..
Estas observações, válidas para a comunicação social, como limite à função pública da imprensa, são directamente aplicáveis ao caso que apreciamos por duas ordens de razão, primeiro porque não há limitação legal ao domínio da sua aplicabilidade, segundo porque os factos que nos são reportados e a sua repercussão pública assim o determina. Estamos perante uma coordenadora de um serviço público que anota os desmandos dos seus serviços. Resta saber se com a parcimónia e veracidade que a lei exige.
Analisemos o texto e as expressões dirigidas ao A. na carta que lhe envia a arguida/demandada - “...Ora embora tenha eu crescido na aprendizagem, por educação e por formação, da tolerância e do entendimento da diversidade dos comportamentos humanos, não encontro referências para categorizar a sua reclamação, tendo em conta atitudes deontologicamente inadmissíveis: compra de peças de arte para decoração de habitação própria ou para negócio e especulação em “missões” na Índia, pagas por um órgão da Presidência do Conselho de Ministros – para preparação de uma exposição comemorativa do Quinto Centenário da Viagem de Vasco da Gama – e respectiva expedição por mala diplomática; comissariados científicos que integram negociantes de arte; coordenação científica de uma área exterior ao seu domínio e que qualifica publicamente em termos cultural e politicamente insultuosos, efectivamente atentatórios do bom nome desta Comissão e das boas relações entre Portugal e a Índia.”.

Deste texto sobressaem várias imputações de facto, manifestamente atentatórias da honra devidas ao autor. A saber:
1.- o autor, em missão na Índia, paga por um órgão da Presidência do Conselho de Ministros, para preparação de uma exposição comemorativa do Quinto Centenário da Viagem de Vasco da Gama, comprou de peças de arte para decoração de habitação própria ou para negócio e especulação;
2.- Nessa expedição integrou negociantes de arte;
3.- Expediu o material adquirido por mala diplomática.
Porém, considerando que a arguida desempenha um lugar de particular relevo no âmbito da Comissão é aceitável, desejável e até aconselhável que acompanhe a par e passo todas as iniciativas da comissão denunciando com as necessárias regras de cuidado todos os comportamentos que considere desviantes do objectivo da instituição que serve.
A arguida se o fizer cumpre e realiza um interesse legítimo, mesmo que os factos reportados atentem contra a honra do visado, resta contudo que os mesmos correspondam necessariamente à verdade ou no limite que a arguida os repute como verdadeiros, segundo critério objectivo de boa-fé.
Ao denunciar a situação descrita, caso a mesma seja verídica, atentos os valores em causa, a arguida cumpre um interesse legítimo. E fá-lo na medida estritamente necessária, denuncia a situação ao presidente e estende-a ao Ministério do Negócios Estrangeiros, entidades pública e directamente interessadas no melhor esclarecimento do que vem descrito.
Resta saber se o fez segundo rigoroso critério de verdade e as melhores regras de cuidado.
De verdade temos que o autor, em missão na Índia, paga por um órgão da Presidência do Conselho de Ministros, para preparação de uma exposição comemorativa do Quinto Centenário da Viagem de Vasco da Gama, comprou peças de arte para decoração de habitação própria e nessa expedição integrou um negociante de arte.
De infundado temos que não as adquiriu para negócio e especulação e não as expediu por mala diplomática.
Mas sobre esta questão temos como assente que a arguida quando aludiu à mala diplomática estava erradamente convencida que os objectos adquiridos pelo Profº Pedro Dias aquando da sua permanência na Índia, tinham sido enviados por mala diplomática e por esse facto apresentou desculpas em audiência de discussão e julgamento.
Resta saber se este facto releva no âmbito do risco permitido aberto na aliena b) do n.2 do art. 180 n.2 do Código Penal quando alude ao fundamento sério para, em boa fé, reputar a imputação como verdadeira.
Como referimos a boa-fé não pode significar uma pura convicção subjectiva da veracidade dos factos, tem de assentar numa imprescindível dimensão objectiva. A arguida podia e devia, antes de emitir qualquer juízo de censura e de, particularmente, dar nota do sucedido ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, informar-se se o autor tinha ou não aproveitado a as facilidades concedidas pelos serviços da mala diplomática.
Como é sabido a mala diplomática afasta os cuidados alfandegários usuais e como tal podia permitir ao autor proceder à remessa de obras de arte da Índia para Portugal à revelia das autoridades do país de origem.
Esta insinuação é atentatória da honra e consideração devida ao visado e devia ter sido evitada. E mesmo as justificações apresentadas em audiência, com o fundamento sério da sua veracidade, não relevam segundo critérios de boa-fé, para afastar o carácter ilícito da conduta.
Conjugando a globalidade da informação colhida e os critérios de boa-fé analisados, podemos relevar a alusão ao comércio de arte, porque a comitiva efectivamente fazia-se acompanhar de um negociante, à revelia dos sérios avisos do presidente da comissão. Há um critério objectivo, uma realidade palpável, uma situação demonstrável, que permite esta conclusão precipitada.

Portanto, de ilícito juridicamente censurável, temos a imputação do uso da mala diplomática pelo arguido para expedição de obras de arte, o que equivale a dizer que o arguido traficou obras de arte.
Expurgadas de censura jurídico - criminal algumas das imputações da arguida ao Autor, não restam dúvidas que subjaz este residual difamatório de incontornável desvalor.
É certo que a arguida reconhece-o e por ele se penitencia, porém sem qualquer utilidade jurídico - criminal que não seja a ponderação do dolo em sede de culpa.
Dispõe o art. 186º do Código Penal que o tribunal dispensa de pena o agente quando este der em juízo esclarecimentos ou explicações da ofensa que foi acusado, se o ofendido os aceitar como satisfatórios.
E acrescenta o n.3 que se o ofendido ripostar, no mesmo acto, com uma ofensa a outra ofensa, o tribunal pode dispensar de pena ambos os agentes ou só um deles, conforme as circunstâncias.
Há situações especiais no âmbito do direito penal que pela diminuição da culpa não merecem uma censura superior à dispensa de pena. A dispensa da pena nestes casos surge como a franja inferior da relevância punitiva. No âmbito do crime de difamação esta medida impõe-se no caso da aceitação de esclarecimentos ou explicações da ofensa (aceitação das vulgarmente chamadas desculpas ) e é facultativa no caso da retorsão.
E neste domínio impõe-se ponderar jurídico - criminalmente a carta de fls. 406 que no fim de contas provocou o comportamento e atitude da arguida.
Nesta carta o autor aprecia criticamente o catálogo de exposição de Memórias Árabo-Islâmicas em Portugal da responsabilidade da CNCDP e por isso de dirige à demandada. Nesta missiva é bastante cáustico na apreciação e profere algumas expressões que manifestamente ultrapassam os limites da livre critica e raiam a provocação. Ressalvamos entre elas a alusão expressa de que a autora do catálogo terá actuado com maldade ou ignorância total e que a iniciativa do CNCDP ( aqui alusão directa à coordenação da demandada) traz mau nome ao sector de investigação e ensino.
Aceitamos e louvamos as atitudes corajosas de denúncia do erro, mas compreendemos que ao nível institucional as relações se devem pautar pela maior cortesia, afastando-se do ataque pessoal.
Com esta provocação o Autor despoletou uma reacção excessiva da autora, com laivos de verdade como atrás verificámos, mas também com imprecisões que resvalam para o âmbito da difamação como igualmente detectámos.
Então temos as explicações apresentadas pela arguida em julgamento, assumindo que errou por força de informação deturpada que colheu e por noutra perspectiva intuímos que esta carta surge como uma resposta a uma ofensa previamente colhida. Ou seja temos uma atitude de retratação, juridicamente inválida por não ter sido considerada satisfatória pelo ofendido, e de retorsão.
Ponderando todos estes factores em sede de culpa, facilmente concluímos que a censura jurídico - criminal não se afastaria da sua mínima relevância punitiva, apontando para a isenção de pena.
Pelo exposto concluímos que a arguida utilizou expressões manifestamente difamatórias da honra e consideração devidas ao autor e como tal cometeu um crime de difamação previsto e punido no art. 180º do Código Penal, com todo o conjunto de circunstâncias atenuantes que acabamos de analisar e circunscrito apenas à alusão da mala diplomática.

3.- Da culpa do lesado

Alega a recorrente que toda a publicidade que posteriormente foi dada ao incidente só pode ter sido da inteira responsabilidade e autoria do A..
Sobre esta questão e na medida em que tem forte repercussão para a fixação da indemnização devida, convém verificar que publicidade foi dada a carta, quem a deu e em que termos.
Do próprio teor da carta e das declarações da arguida resulta claro que foi enviada cópia ao Comissário geral da CNCDP Pofº Doutor António Hespanha e que este mostrou as duas cartas ao responsável pelo pelouro e ao presidente, após o pedido de demissão ( confº fundamentação da sentença recorrida e pag.24 do Vol. lV das transcrições).

Também com pertinência para questão da conculpabilidade na produção dos danos convém averiguar que publicidade deu o autor à carta.
Resulta dos depoimentos de Vassalo e Silva, José Felgueiras, Aguiar Branco, Paulo Varela Gomes e António Hespanha, transcritos na sentença e reproduzidos nas transcrições que foi o próprio autor que lhes deu conhecimento do teor da carta.
Por isso está provado na sentença recorrida que o Autor mostrou a carta que lhe dirigiu a demandada a várias pessoas, entre elas elementos da comissão e amigos.
Mas para além desta publicidade restrita é pertinente ponderar as declarações do ofendido aos jornais e daí extrair as necessárias conclusões de facto.
Como alega a recorrente, o autor numa entrevista dada ao jornal O Independente aos 7 de Novembro de 1997, junta aos autos como doc. 2 da p.i., deixa transparecer que a recorrente o terá acusado "de ter, em conivência com a nossa embaixada em Nova Deli, ou com algum dos seus funcionários, importado peças de arte". E é sobre essa acusação que o A. presta declarações, referindo que "tais acusações são de tal forma graves que para além de não poderem passar incólumes poderão levantar tensões melindrosas nas nossas relações diplomáticas com a União Indiana."
Referindo ainda, no mesmo jornal, que da carta da recorrente se poderia deduzir que "era um trapaceiro, que nos finais do séc. XX, com dinheiro de todos nós e à revelia das regras, trouxe arte da índia, de forma ilícita, via mala diplomática.

Neste contexto conclui a recorrente que foram as declarações do A. nos jornais e o modo como contou o caso aos amigos e colaboradores que suscitaram a referência e, pelos vistos, a divulgação de que a recorrente terá acusado o A. da prática actos ilegais ou o absurdo, se se acreditar que é possível, que "as pessoas perguntavam sobre o assunto - traficantes de obras de arte?", conforme é referido pelo testemunha José Felgueiras e transcrito pela sentença. Ora é manifesto que da carta em apreço não se pode retirar qualquer daquelas considerações e, muito menos, que era essa a intenção da recorrente.
A reacção do autor ao teor da carta e a publicidade que lhe deu reveste-se de particular importância, porquanto é da sua divulgação que resulta o maior ou menor atentado à honra e dignidade do visado e porque, como verificámos, parte dos factos correspondem á verdade e não sendo juridicamente censuráveis não abonam as boas práticas.
Ainda neste domínio defende a recorrente que não foram as expressões referidas na sentença que levaram o A. a demitir-se uma vez que é ele próprio que refere na sua carta de demissão que o que o levou a demitir-se da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses se prende exclusivamente com a apreciação da Coordenadora Adjunta do CNCDP, ora R., relativamente ao seu trabalho como Comissário Cientifico das exposições que lhe foram confiadas.
No seu entendimento o Autor demitiu-se por causa da frase do ponto 2.2 da carta da demandada que terá levado o A. a demitir-se, conforme o mesmo refere no ponto 4 da sua carta de demissão.
Sobre esta questão o Professor António Manuel Hespanha, a quem foi dirigida carta de demissão, no seu depoimento transcrito pela sentença refere que o A. enviou ao depoente, na qualidade de presidente da comissão, uma carta – a 26.10.97 – onde dizia: “...acabo de receber uma carta (...) sendo essa a apreciação da coordenadora adjunta do CNCDP (...) mais não me resta do que cessar imediatamente a minha colaboração no organismo que dirijo.
O autor recorrido argumenta que a carta demissão aponta claramente no sentido de que foram os factos referidos na carta da arguida e que foi objecto dos presentes autos, que determinaram essa demissão.

Sopesando o texto de fls. 725 ( ponto 10 ), a carta anterior e todo o ambiente que se gerou à volta desta polémica, parece-nos que a demissão do Professor Pedro Dias, entre outras razões, também tem a teve a ver com os parágrafos da carta da demandada que fazem referência a viagens à índia e a malas Diplomáticas. Esta questão remete-nos de imediato para a apreciação dos danos.

Com pertinência a recorrente chama a atenção para o disposto no art. 570°, n° 1 do CC, onde se lê que "quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou o agravamento dos danos, cabe ao Tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.

Para que o tribunal goze da faculdade conferida é necessário que o acto do lesado tenha sido uma causa do dano, consoante os mesmos princípios de causalidade aplicáveis ao agente ( art. 563º do Código Civil ). Deve, além disso, o lesado ter contribuído com a sua culpa para o dano. A culpa do lesado tanto pode reportar-se ao facto ilícito causador dos danos, como directamente aos danos provenientes desse facto. Falando no concurso do facto culposo para a produção dos danos ou para o agravamento deles, a lei pretende sem dúvida abranger os dois tipos de situações.
As culpas do lesado e do responsável tanto podem ser simultâneas como sucessivas (Confronte Profº Antunes Varela em anotação ao art. 570º do Código Civil.).

Antes de prosseguir temos que aferir se efectivamente a demissão do autor ocorre por causa da carta da demandada e só depois, caso ocorra, ponderar a culpa do lesado na sua causa e consequente repercussão ou agravação.
Analisando o texto da carta de fls. 725 temos que distinguir duas situações distintas: as más relações institucionais latentes e o juízo critico que a arguida faz da conduta do autor. No primeiro plano o autor deixa latente que a arguida vê com maus olhos a coordenação científica de uma área exterior. No outro plano é claro que o Autor também pede a demissão porque a coordenadora adjunta (ora arguida) para além de não aceitar a coordenação considera que a comissão foi insultada com a critica rasgada e ousada que o autor fez ao catálogo que precedeu esta carta e deu origem a todo a problemática.
Este ponto tem que ser articulado com o teor da missiva anterior, no seu ponto 2.2, e toda a problemática precedente, até porque sobre os aspectos particulares da ofensa o autor dedica o ponto 5 da sua missiva e daí não resulta qualquer alusão à demissão.
Desta análise podemos concluir que não foi por causa da difamação e da alusão ao incidente da carta diplomática que o autor pediu a demissão da comissão. Pode tê-lo feito também por essa causa, mas sobre este aspecto convém agora ponderar as determinações do art. 570 do Código Civil.
Como vem referido foi o autor numa atitude excessiva que deu azo às hostilidades com a arguida, desconsiderando seu trabalho com qualificativos impróprios entre instituições. Ainda no âmbito da apreciação do facto ilícito gerador dos danos não nos podemos esquecer que alguns dos factos reproduzidos na carta correspondem à verdade e desrespeitam as normas de conduta que a CNCDP tinha previamente estipulado sobre as deslocações ao estrangeiro, nomeadamente sobre a oportunidade das compras e a mistura com o comércio de obras de arte.
Daqui resulta que o autor contribuiu seriamente para a produção dos danos e se o fez sobre a origem pior andou na sua repercussão.
Com efeito, da matéria de facto provada parece claro que a arguida fez circular a missiva num círculo muito restrito e no mais estrito cumprimento da costumada lealdade institucional, não nos podemos esquecer que a carta responde àquilo que a arguida considerou um desrespeito ao trabalho da comissão. Por esta última razão, embora não devesse responder nos termos em que o fez, devia dar conhecimento dela ao seu superior hierárquico.
O autor, bem pelo contrário, divulgou-a profusamente, contactou amigos e pessoas distantes e necessariamente todos os elementos da comissão, bem como o embaixador de Portugal na Índia, o Ministro dos Negócios Estrangeiros e o Srº Primeiro Ministro.
Maior divulgação seria difícil, portanto não é de admirar que depois surja a comunicação social com a repercussão daí derivada.
Manda a lei, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, reduzir ou excluir a indemnização. Sobre esta questão, para além de ser claro que o pedido de demissão não tem necessariamente origem na difamação, também se nos afigura que o autor foi o maior causador dos seus próprios danos pela forma intempestiva como reagiu, sem esquecer que está fortemente implicado na origem da atitude da arguida.
Ponderando todos estes factores e o disposto no art. 570º e art. 563º do Código Civil consideramos que o pedido de indemnização por danos patrimoniais deve ser excluído.

Sobre os danos não patrimoniais, particularmente naqueles que se repercutem no binómio restrito arguida/autor, há danos indemnizáveis, porque alheios a qualquer conduta do autor.
Ou seja, se os demais prejuízos se verificaram por mediação do próprio visado e á margem da alusão à mala diplomática, a ofensa à honra mantém-se.
Defende a recorrente que a prova não permite concluir que o estado psicológico do A. no ano de 1998 se deveu à carta enviada pela recorrente.
Do depoimento do Drº Carlos Saraiva surpreende-se a versão de facto que foi dada como provada. Refere esta testemunha que o A. foi seu cliente e que a carta que se discute neste processo – cujo articulado não conhece mas sabe do seu conteúdo, uma vez que chegou até a ver um artigo num jornal relacionado com o assunto – afectou-o no seu narcisismo, na sua postura e forma de estar na vida; afectou-o no sono, emocionalmente; ele não se sentia bem no reconhecimento público, fechava-se em casa, faltava às aulas, aos compromissos, evitava situações sociais de confronto.
Basta este depoimento, corroborado pela experiência comum e a análise objectiva dos demais factos para concluir que o tribunal decidiu correctamente quando considerou que:
O autor ficou profundamente afectado pela afectação do seu bom nome e reputação pessoal e profissional e andou em tratamento psiquiátrico durante cerca de um ano. Sofreu e sofre pelo facto de não ter continuado os seus trabalhos e de ver perdido parte do trabalho que realizara para algumas exposições e conferências.
Sobre esta questão acompanhamos de perto as conclusões da sentença recorrida, que sopesando as culpas concorrentes e os critério estabelecido pelo art. 570º arbitrou a quantia de 2.500€ a título de danos não patrimoniais.
Na verdade importa aqui considerar que a carta enviada e dirigida ao A. pela demandada é a resposta a uma outra que o A. dirigira àquela. Os termos usados em ambas em termos penais são identicamente tutelados por censuráveis. Daqui se pode extrair, como concluiu a sentença recorrida, e já analisámos exaustivamente para os demais danos, que o A. “provoca” ou concorre para o eclodir do evento final (carta resposta da demandada ao mesmo); para além disso, o A. também contribui de forma decisiva para o agravamento dos danos, quando exibe a carta a várias pessoas – estamos perante culpas concorrentes na verificação do evento e agravamento dos danos.
Acrescem a estas razões todas as demais razões que aferimos sobre a culpa.
Neste aspecto particular dos danos morais consideramos que não é de excluir totalmente a indemnização, porque há um forte pendor na sua verificação na conduta da arguida.
Correcta também nos parece a ponderação económica do lesante e lesado na fixação desta indemnização.

Termos em que se acorda dar parcial provimento ao recurso, decidindo excluir o arbitramento de qualquer indemnização a título de danos patrimoniais, mantendo nos seus precisos a quantia de 2.500 € a título de indemnização por danos não patrimoniais, arbitrada na sentença recorrida.
Custas por recorrente e recorrido na proporção do vencido.
Coimbra 25 de Janeiro 2006
************

Voto a decisão com o seguinte esclarecimento:

A responsabilidade civil ora em apreciação conquanto, emergente de um crime, é regulada pela lei civil.

Para fazer valer a responsabilidade civil resultante da prática de um crime, a Lei seguiu a via da adesão obrigatória, como tal consagrada no artº 71º do CPP.

No entanto, para alguns autores(como p. ex. o Prof. Germano Marques da Silva -Curso de processo Penal, Vol. I, pag. 79), ficam algumas dúvidas do regime consignado neste artigo até ao artigo 84º,isto porque segundo ele, ao contrário do que sucedia com o Código de processo penal de 1929,mesmo no caso de absolvição pelo crime de que o arguido é acusado, o Tribunal condena o mesmo arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado.

Daqui o ilustre professor extrai a autonomia da responsabilidade civil da responsabilidade criminal.

É evidente que a responsabilidade civil é do ponto de vista conceptual autónoma da responsabilidade criminal, isto pela própria essência e compreensão dos conceitos.

Nesta perspectiva diremos que o pedido de indemnização civil a deduzir no processo penal tem necessariamente por causa de pedir o facto ilícito criminal, ou sejam, os mesmos factos que constituem também o pressuposto da responsabilidade criminal.

Apesar da consagração do regime da acção civil conexa com a penal, a indemnização mantém a natureza civil (cfr. designadamente o disposto no artº 129º do Código Penal) e não a de uma consequência da condenação penal.

Daí a possibilidade de o pedido por ser formulado por simples lesados (artº 74º, nº 1) ou mesmo contra pessoas com responsabilidade meramente civil(artº 73º, nº 1), alheias ,portanto à questão criminal.

E assim se compreende que é por força da autonomia entre as duas responsabilidades que o Tribunal absolva da responsabilidade criminal, mas possa conhecer da responsabilidade civil.

Nesta conformidade estabelece o artº 377º, nº 1 do CPP: “ A sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado (….)

Só que esta última é a responsabilidade emergente do facto ilícito criminal, ou seja a responsabilidade a que se refere o artº 483º, nº 1 do Código Civil.

Esta responsabilidade vem assim definida:

Aquele que com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.

Desta forma ,o nº 1 do artº 377º do CPP, quando manda condenar a indemnização civil, tem como pressuposto que esta indemnização resulte de um facto ilícito criminal e no fundo, tendo como base o já citado artº 483º do Código Civil.

A responsabilidade civil por factos ilícitos reconduz-se à existência do facto, a ilicitude ,o vínculo de imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 17 de Junho de 1999,publicado no Diário da república I-A de 3 de Agosto de 1999, nos termos do artº 445º do CPP, fixou a seguinte jurisprudência:

“Se em processo penal for deduzido pedido civil, tendo o mesmo por fundamento um facto criminal, verificando - se o caso previsto no artº 377º , nº 1 do Código de processo penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana , com exclusão da responsabilidade civil contratual.

No caso dos autos conquanto a arguida não haja sido formalmente absolvida do facto típico de que foi acusada, a verdade é que viu declarado extinto, por amnistia, o comportamento delituoso pela qual foi acusada.

Servem estes considerandos para concluir que o que sustenta a causa de pedir no pedido civil são, além doutros, os factos nas quais se alicerça a acusação, não tendo reflexos, nesta perspectiva o enquadramento jurídico penal.


#

#


Coimbra, 2006-01-25

(João Trindade)