Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | BELMIRO ANDRADE | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE POR FACTO ILÍCITO | ||
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Data do Acordão: | 10/12/2005 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE CANTANHEDE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO CRIME | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ART.º 71º E 377º, N. 1, DO C. P. PENAL | ||
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Sumário: | I. O tribunal, apreciando e julgando a matéria de facto, deve extrair as consequências civis desse julgamento, ainda que por qualquer circunstância relevante para efeitos penais, esteja excluída a decisão penal condenatória, desde que se radique na mesma causa de pedir -ou seja, nos mesmos factos que são também pressupostos da responsabilidade criminal II. A não apresentação tempestiva da queixa não constitui fundamento de caducidade do direito à acção de indemnização com fundamento na responsabilidade civil. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM, EM AUDIÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA Nos presentes autos de processo comum com intervenção do Tribunal Colectivo, após realização da audiência de discussão e julgamento, foi proferido acórdão em que foi decidido: - absolver o arguido A..., do imputado crime continuado de coacção sexual agravado, p e p pelos artigos 163º, n.º1 e 177º, n.º4, e de coacção sexual p e p pelo art. 163º, n.º1 do C. Penal; e - julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização cível, condenando o arguido a pagar à assistente e demandante civil, B..., a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros), a crescida de juros de mora, à taxa legal, actualmente de 4%, desde a prolação da sentença até integral pagamento, absolvendo-o do demais peticionado. * De tal decisão recorrem: - o arguido A...; e - a assistente e demandante civil B.... O arguido formula as seguintes CONCLUSÕES: 1 - O tema em apreço resume-se a saber se existe responsabilidade civil conexa com a criminal, no caso de absolvição criminal 2 - Absolvido o arguido da prática do crime, restará a possibilidade de ter existido, residualmente ilícito civil ou responsabilidade fundada no risco. 3 - Mas não basta que se provem factos que consubstanciem uma obrigação de natureza civil; é necessário um ilícito civil que produza o dever de indemnizar. 4 - Assim, só será possível a condenação em indemnização civil nos termos do artigo 377º, n.º1, do Código de Processo Penal se os factos integrantes do objecto do processo na sua vertente estritamente penal e simultaneamente constitutivos da causa de pedir do pedido de indemnização civil estão provados, integrando ilícito criminal. 5 - Assim, o pedido de indemnização civil só pode considerar-se “fundado” para efeitos do disposto na mencionada norma legal se com suporte bastante nos aludidos factos simultaneamente essenciais à integração do ilícito criminal e dos pressupostos da responsabilidade civil que tem a sua fonte naquela fonte. 6 - O que se não verifica no caso sub-judice e o que leva à absolvição do demandado civil e o que assim se reclama, em virtude de não “se revelar fundado”, uma vez que improcederam os fundamentos essenciais invocados e de conhecimento possível neste processo os factos integrantes da prática do crime de que vinha acusado. 7 – O direito de queixa da assistente caducou ou prescreveu e inexistindo crime, não há lugar a indemnização civil pois nos termos do n.º1 do artigo 71º do C.P.P. indemnização civil em processo penal tem sempre que fundar-se na prática de um crime – extinto o direito de queixa fica prejudicada a apreciação do pedido civil 8 – Não podia o Tribunal “a quo”, salvo melhor opinião em sentido contrário, e o que uma vez mais se ressalva - apreciar “factos” prescritos por caducidade do direito de queixa, fazendo-os renascer na apreciação da questão cível em processo puramente penal como o presente. 9 - Assim se violando direitos constitucionalmente previstos na nossa Lei Fundamental - maxime os da dignidade da pessoa humana, princípios de igualdade, integridade pessoal e outros direitos pessoais. 10 – Estando assim feridos de inconstitucionalidade os artigos 84º e 377º do Código de Processo Penal em abstracto, quer em concreto na apreciação feita no douto recorrido e que aqui expressa mente se invoca. 11 - Quando assim se não entenda — o que apenas se admite por mera hipótese de raciocínio — ainda assim, o montante indemnizatório arbitrado é manifestamente exagerado. 12 - Atenta a situação de vida do demandado - com mulher e dois filhos a seu cargo, com um rendimento (magro) de € 473,00/mensais “condenar” o arguido a pagar € 20.000,00 de indemnização é colocá-lo a si e a seu agregado familiar em situação de maior miséria e poderá mesmo não ser passível de ser pago. 13 - Usando da equidade e ponderação — aceitar-se tal possibilidade — o montante indemnizatório não deverá exceder os € 2.500,00 num critério de perfeita razoabilidade para o caso sub-judice e que expressamente se consigna. 14 - Por isso o mui Douto Acórdão recorrido violou, entre outros, os comandas legais contidos nos artigos 71º, 84º, 377º, do C. Proc. Penal; 129º, do C. Penal; 562º, 483º, 496º e 70º, do Código Civil e artigos 1º, 3º, 12º, 13º, 25º, 26º e sgs e 207º da Constituição da República Portuguesa. Nestes termos, e nos mais de Direito aplicável, deve ser concedido provimento ao recurso na parte cível atinente e substituído por outro que decida de harmonia com o exposto nas presentes alegações e respectivas conclusões. * Por sua vez a assistente, formula as seguintes CONCLUSÕES: 1.Coforme se alcança do douto acórdão a situação da B... perturba o observador mais desatento 2. Esta jovem é vítima de um conjunto de circunstâncias negativas onde avulta a actuação criminosa do arguido mas que se agrava pelo ambiente adverso que a acolhe e estamos a crer que a sujeição a um insensível procedimento criminal com a inerente exposição quase pública de uma intimidade forçada de que guarda tão pesada culpa não será a melhor ajuda que poderia receber 3 - Ao invés de adquirir a auto- consciência e poder de afirmação correlativos ás transformações morfofisiológicas próprias da puberdade, foi repugnantemente agrilhoada pela influência despudorada e sem escrúpulos de alguém em quem depositava uma confiança infantil, ao mesmo tempo que a acompanhava uma profunda ataraxia de um seio familiar dormente e imperturbável. 4 - Não surpreende a atitude para suicidária. 5 - Com efeito, em consequência directa das práticas que o arguido levou a cabo em e com a ofendida, esta carregará sempre consigo a lembrança destas práticas 6 - A B... ‘‘antes de todo este drama’’ começar era uma pessoa com muita alegria de viver e com um futuro risonho. 7 - Em consequência da conduta do arguido a B... jamais terá a qualidade de vida que teria se não tivesse sido objecto daquelas práticas. 8 - Uma indemnização deverá traduzir o prestígio dos valores e direitos fundamentais da pessoa humana, no caso sub-judice, os direitos de personalidade. 9 - O quantitativo da indemnização por danos não patrimoniais terá de ser apurado, sempre segundo critérios de equidade, “atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular de indemnização. 10 - Existe a necessidade de serem abandonadas as indemnizações miserabilistas em matéria de danos não patrimoniais, devendo a compensação por tais danos, em que se incluem os direitos de personalidade, ter um alcance significativo e não meramente simbólico, assumindo consequentemente uma forma de reprovação civilística pela conduta do agente. 11 - Tendo presente os factos apurados, julgamos, salvo o devido respeito, que a sentença peca por defeito pelo que consideramos que o valor de indemnização propugnado no pedido cível, atento os factos apurados são os ajustados e equilibrados, ou seja, 75.000,00 Euros, valores estes consentâneos com a gravidade dos danos que visam compensar. * Respondeu o arguido ao recurso interposto pela assistente, sustentado a sua total improcedência. Tendo o arguido recorrido para o Tribunal da Relação e a assistente para o Supremo Tribunal de Justiça, versando os recursos sobre decisão final do Tribunal Colectivo e exclusivamente sobre a matéria de direito, foi o recurso admitido para o STJ. O Supremo Tribunal de Justiça, embora a decisão recorrida tenha sido proferida pelo Tribunal Colectivo e o recurso versar exclusivamente sobre a matéria de direito, apesar do disposto no art. 430º, al. d) do CPP, declarou-se incompetente e remeteu os autos, para apreciação a este Tribunal. Vista aquela decisão, não se verificando obstáculos ao conhecimento de mérito, procedeu-se a julgamento em audiência. Cumpre conhecer e decidir. *** São as questões sumariadas pelo recorrente nas conclusões que o tribunal de recurso tem que apreciar, sendo o âmbito do recurso definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação – Cfr. Germano Marques as Silva, Curso de processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), bem como Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., p. 74 e decisões ali referenciadas. Resumindo-se assim, no caso, as questões a decidir, a apurar: - se, face à decisão penal não condenatória, pode, ainda assim, ser proferida decisão sobre o pedido de indemnização formulado nos autos, com fundamento em responsabilidade civil conexa com a criminal, apesar de não verificados os pressupostos da condenação penal; e - caso a primeira questão seja decidida pela afirmativa, determinar o montante da indemnização, tendo por referência as críticas dirigidas ao valor arbitrado pelo acórdão recorrido, tido por exagerado pelo arguido e reputado de escasso pela assistente. Apesar de a primeira questão poder ser vista como questão prévia, obstativa da apreciação de mérito, será mais facilmente equacionada tendo presente a matéria de facto apurada – e não questionada - no sentido de verificar se a decisão recorrida se afastou dos pressupostos da responsabilidade extra-contratual ou aquiliniana, ou, pelo contrário se a decisão assenta em pressupostos distintos da responsabilidade criminal. ** II. A matéria de facto provada é a seguinte 1 - A assistente, B..., nasceu em 09.06.1984. 2 - O arguido foi desde sempre um amigo bastante chegado da família da assistente, sendo visita assídua da sua residência à qual tinha total acesso mesmo quando mais ninguém se encontrava em casa. 3 - Era considerado por todos como um membro da família sendo inclusivamente tratado por “padrinho” pela própria B..., embora apenas fosse padrinho de baptismo do irmão mais velho desta. 4 - O arguido acompanhava a B... desde criança levando-a à escola a pedido dos próprios pais que nele depositavam inteira confiança. 5 - O arguido tem um filho com a mesma idade da B... e ambos cresceram juntos, atenta a proximidade das duas famílias. 6 - Também a filha mais nova do arguido, actualmente com 14 anos, foi praticamente criada em casa dos pais da B.... 7 - A mãe da B... e a esposa do arguido foram, durante anos, muito amigas, deslocando-se juntas com frequência, nomeadamente à missa ou a locais de festividade e recreio. 8 - Estabeleceu-se, assim, entre o arguido e a B... um relacionamento muito próximo em que esta deixava transparecer por aquele um sentimento de afeição. 9 - Frequentemente eram vistos juntos e, mesmo na presença de familiares ou vizinhos, a B... costumava sentar-se ao colo do arguido, o que continuou fazendo após ter iniciado a sua adolescência. 10 - A família da B..., em especial a mãe, por força da amizade que unia os dois agregados familiares, permitia tal proximidade entre o arguido e a filha a quem, por respeito ao padrinho, chegava a impor que o acompanhasse a diversos locais, nunca suspeitando de segundas intenções por parte deste. 11 - Em data não concretamente apurada, mas antes de a assistente ter completado os 14 anos de idade, o arguido deu-lhe um beijo na boca, fazendo-se valer da circunstância de não se encontrar mais ninguém nas imediações. 12 - A B... achou surpreendente tal atitude mas manteve-se em silêncio pois habituara-se a ver o arguido como se fosse seu pai. 13 - Depois disso, o arguido passou a acompanhá-la com mais frequência, pedindo-lhe regularmente que com ele fosse aos vários cafés que frequentava na zona, também durante a noite, des1ocando-se ambos, para o efeito, na motorizada do arguido. 14 - No regresso, durante o trajecto do café para casa, em algumas ocasiões (em número exacto não apurado), o arguido parava a motorizada nos pinhais existentes no percurso e ordenava à assistente que baixasse as calças, apalpando-lhe os seios e beijando-a, dizendo-lhe que seria inútil contar aos pais pois estes apenas nele acreditariam. 15 - Em ocasião cuja data se não apurou, mas anterior a 1999, o arguido chegou a apertar-lhe os braços e a dar-lhe uma bofetada quando a assistente quis oferecer resistência a contacto físico do tipo descrito. 16 - Noutras ocasiões, já depois de a assistente ter completado 14 anos de idade, metia-lhe a mão por baixo das cuecas e acariciava-lhe a vagina, ao mesmo tempo que a beijava e lhe apalpava os seios. 17 - Aquando do início deste comportamento do arguido para com a assistente, esta, incapaz de avaliar toda a extensão e significado dos acontecimentos e sentindo-se ansiosa e indecisa, manteve-se em silêncio pensando, mesmo, que ninguém acreditaria na sua história caso revelasse o que se passava. 18 - Apenas uma vez o confidenciou a uma prima, emigrada nos Estados unidos Esta, todavia, nada revelou, nessa época, aos familiares da assistente. 19 - Parecia à assistente que o tipo de atrevimentos que o arguido se permitia consigo, tais contactos físicos íntimos, não eram apropriados, visto tratar-se de homem mais velho, casado, pai de filhos, um deles com a mesma idade da assistente. 20 - Porém, a ousadia do arguido, iniciando e continuando de forma reiterada aquele comportamento, acompanhada da autoridade quotidiana que sobre ela tinha, como se fosse pai, aliados ao respeito e afecto que por ele nutria, ao considerá-lo como tal, fizeram-na manter-se em silêncio e tornaram-na incapaz de se opor frontalmente quando o arguido a procurava para com ela manter os descritos contactos físicos. 21 - Com efeito, o arguido passou a assumir-se como protector e controlador da B..., vigiando a roupa que vestia, impedindo-a mesmo, em certa ocasião, de usar mini-saia, acompanhando-a à escola e trazendo-a no regresso, bem como aos ensaios do grupo de folclore que a B... integrava, mostrando desagrado se algum rapaz se aproximava naturalmente da B... e chegando a oferecer-lhe um telemóvel como prenda de Natal no ano de 2001, sendo certo que não presenteou da mesma forma o irmão desta, seu verdadeiro afilhado. 22 - Com o decurso do tempo o arguido passou a exercer cada vez maior controlo e a conseguir mais pretextos para se encontrar com a assistente, fazendo-se valer da amizade de que era credor junto dos progenitores desta e do ascendente e da autoridade que sobre ela vinha mantendo. 23 - Os encontros entre ambos passaram, então, a acontecer também em casa do arguido, outras vezes em casa e no quarto da própria assistente, quando o arguido ficava ali a sós com ela e, na maior parte das vezes, em Covão do Lobo, numa residência não habitada, pertença de amiga do arguido, emigrada no estrangeiro, casa de cujas chaves dispunha o arguido. 24 - Com efeito, o arguido e B... assistiam à missa naquela freguesia para onde se deslocavam aos Domingos, por volta das 11:00h., fazendo-se ambos transportar na motorizada do primeiro, após o que seguiam juntos para referida residência. 25 – Repetiam-se aí, então, em número indeterminado de vezes as mesmas situações atrás descritas de cariz sexual. 26 - Circunstâncias no âmbito das quais o arguido procurava ir sempre mais além, passando também, em número não concretamente apurado, a partir de certo momento após os 15 anos da B..., não só a masturbar-se em frente a esta, exibindo-lhe o seu pénis, como a colocar-se em cima dela, esfregando o pénis erecto na vulva da assistente até ejacular, fazendo-o sempre exteriormente. 27 - Por vezes, a assistente exprimia oposição a tais investidas e, a partir dos seus 16/17 anos, compreendeu a exacta extensão moral e ética da situação descrita, começando a sentir-se revoltada e a manifestar repulsa pelo padrinho, mostrando-se cada vez mais contrariada quando tinha de o acompanhar. 28 - Contudo, por força da ascendência exercida poio arguido, do receio da reacção dos pais se colocados a par do que vinha sucedendo, do medo que não acreditassem no modo como estes episódios foram tendo lugar e que pudesse magoar a madrinha (mulher do arguido), e também em virtude da afeição que aprendera a sentir peio arguido e do sentimento de culpa que a assaltava, a assistente manteve-se em silêncio, tendo o arguido conseguido, ao longo de anos, continuar aquela conduta sexual até Setembro de 2002. 29 - Em Julho ou Agosto de 2002 a assistente, perante insistência da colega de trabalho, Regina Santos, que a via constantemente triste, resolveu contar-lhe o que se passava, pedindo-lhe ajuda para acabar com o relacionamento que vinha mantendo com o arguido. 30 - Apesar de a colega Regina lhe ter recomendado vivamente que não comparecesse aos encontros marcados pelo arguido, a assistente continuou a manter com ele os mencionados contactos físicos. 31 - Nos dois meses que se seguiram à confidência que fez à colega, assistente tomou anticoncepcionais por via oral. 32 - Fê-lo aconselhada pela Regina Santos pois esta última convenceu-se, pelo relatado pela assistente, que existia risco de gravidez uma vez que os encontros com o arguido persistiam. 33 - No íntimo da assistente permanecia o receio de que em si não acreditassem os progenitores caso os colocasse a par destes acontecimentos, nomeadamente desde quando vinham ocorrendo. 34 - Por isso, após ter narrado a situação à colega Regina, agravou-se a agressividade que vinha exigindo perante todos na sua casa. 35 - De facto, havia já vários meses que a família da B... assistia, inerte e passivamente, a crescentes manifestações de intolerância desta, sobretudo perante o padrinho, e à constante tristeza e abatimento que demonstrava, procurando o isolamento e esquivando-se ao diálogo. 36 - Sem perceber o que se passava a progenitora interpelava-a, mas nunca obteve resposta esclarecedora. 37 - Por isso resolveu procurar acompanhamento psiquiátrico para a filha. 38 - A B... foi, assim, assistida em consulta por médico psiquiatra a 27.09.2002, 18.10.2002, 12.05.2003 e 19.11.2003. 39 - Na primeira das consultas mostrou um quadro de depressão reactiva (não pós-traumática) o qual teria iniciado cinco meses antes e que se manifestava por uma tristeza permanente, humor depressivo, sentimentos de auto depreciação, verbalização de ideias suicidas, insónia, irritabilidade e diminuição da concentração e da capacidade de expressar ideias. 40 - Iniciou, então, tratamento com anti-depressivos. 41 - Nessa altura à mãe da assistente o médico psiquiatra recomendou que vigiasse a filha nos dias seguintes ao início do tratamento químico pois, em função do efeito desinibidor deste, poderiam ocorrer os anunciados comportamentos suicidários. 42 - Após esta primeira consulta quer os familiares da assistente quer amigos mais próximos ficaram, finalmente, conhecedores dos acontecimentos relatados. 43 - No dia 7 de Outubro de 2002, quando familiares e conhecidos já estavam a par dos acontecimentos, a assistente ingeriu dez comprimidos de composição que se desconhece. 44 - Recebeu tratamento hospitalar mas sem necessidade de internamento, tendo-se aí entendido tratar-se de uma atitude para- suicidária. 45 - Na segunda consulta de psiquiatria a assistente mantinha humor depressivo e baixa auto estima, agressividade e impulsividade, mas já não ideação suicida. 46 - Foi-lhe aconselhado aumento de medicação. 47 - Na terceira consulta já não apresentava patologia do humor, mostrando ter regularizado o apetite e o sono e expressando objectivos pessoais alegria de viver. 48 - Na verdade, recomeçara a conviver com amigas com quem passou a sair, comportamento que não tinha havia largos meses. 49 - Na quarta consulta deixou, ainda, transparecer um baixo grau de auto estima e deficitária rede de afectos, sendo visível que o contexto em que melhor se sentia era o laboral. 50 - A B... é oriunda de meio rural, socialmente pouco evoluído e de mentalidade tradicionalmente limitada. 51 - Nasceu e cresceu no seio de unia família com recursos económicos regulares, para a respectiva circunstância social, mas de depressiva formação cultural e intelectual. 52 - A assistente abandonou a escola quando tinha 17 anos de idade, frequentando, então, o 9º ano de escolaridade, remontando o seu insucesso escolar ao 7º ano, grau de escolaridade em que foram evidentes as suas dificuldades escolares pelas quais perdeu interesse. 53 - Após um período de total ausência de ocupação iniciou percurso laboral tendo trabalhado em locais diversos e, mais recentemente, numa unidade fabril da área da sua residência. 54 - Ao actuar da forma atrás descrita o arguido fê-lo de modo livre, voluntário e consciente com o único propósito de satisfazer os seus instintos sexuais, aproveitando sempre as circunstâncias por si geradas aquando da primeira situação ocorrida, logrando alcançar um meio apto, acessível, fácil e duradouro para consumar os seus desígnios, beneficiando, por isso, de uma situação exógena que facilitou e propiciou a sua actuação. 55 - Não obstante conhecer a idade da assistente o arguido não desistiu de alcançar o seu intuito, bem sabendo que a sua conduta atentou contra a liberdade e autodeterminação sexual daquela e pós em causa o livre desenvolvimento da sua personalidade na esfera sexual. 56 - Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei. 57 - O arguido não tem antecedentes criminais. 58 - Completou a 6ª classe e trabalha como electricista por conta de Licínio Ramos, L.da, em Vagos, auferindo cerca de € 473,00 por mês. 59 – Habita com a mulher, doméstica, e os dois filhos do casal em dependência cedida pelos progenitores daquela. 60 – É proveniente de ambiente social e cultural idêntico ao da assistente, mostrando uma personalidade decadente e tacanha. *** III. 1. Postula o art. 71º do CPP que “O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”. Consagrando assim, por princípio, o regime da adesão obrigatória ou vinculada da pretensão civil ao processo penal, no sentido de assegurar menor onerosidade e morosidade, permitindo ainda dignificar a vítima, colocando-a em pé de igualdade com os restantes sujeitos processuais. Apesar da consagração do regime da acção civil conexa com a penal, a indemnização mantém a natureza civil (cfr. designadamente o disposto no art. 129º do C. Penal) e não a de uma consequência da condenação penal. Daí a possibilidade de o pedido poder ser formulado por simples lesados (art. 74º, n.º1), ou mesmo contra pessoas com responsabilidade meramente civil (art. 73º, n.º1) alheias, portanto à questão criminal. Bem como a obrigação de a indemnização ser arbitrada mesmo em caso de sentença penal absolutória – desde que verificados os pressupostos da responsabilidade civil conexa com a criminal. Nesta conformidade, estabelece o art. 377º, n.º1 do CPP: “a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado (…)”. Reproduzindo este preceito o já disposto anteriormente no art. 12º do DL 65/75 de 03.11. Evitando ainda que, tendo o tribunal penal conhecido da matéria de facto constitutiva da responsabilidade civil, um novo tribunal volte a apreciar os mesmos factos, bem como a repetição de actos das partes e de produção de prova, obrigando todos os intervenientes a percorrer de novo um caminho já antes percorrido penosamente. Aliás, no caso em apreço, caso a pretensão do recorrente proceda, não fica definitivamente resolvida a questão civil, podendo vir a ser demandado, com base nos mesmos factos, para efeitos meramente civis. Desde logo porque nem o recorrente questiona que os factos provados em que a decisão se fundamente (supra transcritos, por facilidade de exposição) são ilícitos, culposos e causadores de danos, como tal susceptíveis de o fazer incorrer em responsabilidade civil, nos termos dos artigos 483º e segs., 562º a 566º e 496º do C. Civil. Sendo certo que não vem invocada qualquer causa de extinção da responsabilidade civil por facto ilícito. Nem o recorrente ousa afirmar que a sua conduta, retratada na descrição da matéria de facto, não é ilícita, bem como do nexo de causalidade adequada entre a mesma e danos de natureza moral, pressupostos, como se referiu da responsabilidade civil por facto ilícito. Como refere Maia Gonçalves CPP Anotado, ed. Almedina, 13ª ed., em anotação ao art. 377º “este artigo exige que haja sentença, portanto decisão que conheça, a final do objecto do processo (cfr. art. 97º, 1, a)). É portanto, necessário, que tenha havido julgamento”. Radicando o espírito da lei em que o tribunal, tendo apreciado e julgado a matéria de facto correspondente, extraia as consequências civis desse julgamento, ainda que por qualquer circunstância relevante para efeitos penais, esteja excluída a decisão penal condenatória. Clarificando o preceito referido, decidiu o Acórdão do Pleno das Secções Criminais do STJ, para harmonização de jurisprudência, n.º 7/99, DR IS-A de 03.08.1999: “Se em processo penal for deduzido pedido civil, verificando-se a absolvição do arguido, este só pode ser condenado se o pedido se fundar em responsabilidade civil extracontratual, excluindo-se a responsabilidade contratual”. Proibindo-se, afinal, que a decisão, para feitos civis, proceda à alteração da “causa de pedir” – alteração essa que nem seria consentida em processo civil, para efeitos meramente civilistas – cfr. artigo 268º e ar. 272º do CPC. Como decidiu o AC. STJ de 10.01.2001, SASTJ n.º47, p. 65 “Em face do art. 377º, n.º1 do CPP, mesmo no caso de absolvição da responsabilidade criminal, para que o tribunal possa conhecer da responsabilidade civil, tem necessariamente que existir a mesma causa de pedir, ou seja, os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal”. Assim, no processo penal deve ser arbitrada indemnização não só quando os factos preenchem os requisitos da responsabilidade criminal, mas ainda quando, não existindo responsabilidade criminal, os factos preenchem os requisitos da responsabilidade civil conexa, de âmbito menor, seja com base em mera culpa negligente ou mesmo com base em responsabilidade no risco. Aliás de acordo com o entendimento que vem sendo sustentado, em processo civil que de que o pedido formulado com base na culpa tem implícito o pedido (e a causa de pedir) com base no risco que assenta no mesmo facto, mas em que falta apenas a culpa. Ora, no caso em apreço importa assinalar liminarmente, que a decisão não assenta em qualquer tipo de responsabilidade contratual. Nem, por outro lado, o tribunal recorrido procedeu, para a apreciação do pedido, a qualquer alteração do “objecto do processo”, ou da “causa de pedir”, o mesmo é dizer dos factos que vinham descritos na acusação como fundamento da responsabilidade penal e da responsabilidade civil conexa com aquela. Na verdade, no caso em apreço, a decisão sobre a indemnização assenta antes e apenas, exclusivamente, na matéria descrita na acusação que ficou provada, em resumo nos factos ilícitos, culposos e causadores de danos. Sendo certo que o recorrente nem sequer impugna essa decisão da matéria de facto. Matéria de facto essa que, em termos de direito, constitui a violação ilícita do bem jurídico protegido pelo crime pelo qual o arguido vinha acusado - violação da liberdade sexual ou do direito de auto-determinação sexual. É certo que o arguido foi absolvido dos crimes de coacção sexual por que vinha acusado. No entanto importa ter presentes as razões por que tal sucedeu – não questionadas, insiste-se, pelo recorrente. Ora da decisão da acção penal resulta, em rigor, que o arguido não foi absolvido da prática de crime contra a liberdade sexual. Na verdade o tribunal, depois de produzida e ponderada a prova, em audiência de discussão e julgamento, dirimiu a matéria de facto definida na acusação – e não qualquer outra, repete-se - estabeleceu aquela que julgou provada e não provada (havia matéria da acusação que foi dada por não provava, descrita por 32 artigos). E, em face da matéria provada, entendeu que os factos não preenchem o elemento do tipo objectivo dos crimes pelos quais o arguido vinha acusado “coacção grave” ou simples “coacção”. Não concluiu que a matéria de facto provada seja irrelevante do ponto de vista criminal. Muito menos que os factos apurados no processo não constituíssem facto ilícito gerador de responsabilidade civil. Com efeito o acórdão recorrido refere expressamente a dado passo (cfr. fls. 284) que “A assistente foi vítima de um crime de abuso sexual de crianças p e p pelo art. 172º, n.º1 do C. Penal, até completar 14 anos”. Acrescentando: “Todavia, tendo existido crime o procedimento devia ter sido iniciado com queixa apresentada até 6 meses depois de a B... ter completado 16 anos de idade. Não o fez e por isso há muito se extinguiu o direito de o fazer, estando já caducado em Outubro de 2002 quando pretendeu exercê-lo” – cfr. fls. 284, imediatamente antes do início da apreciação do pedido de indemnização civil (sublinhados nossos). Depois de fixar a matéria de facto apurada o tribunal recorrido concluiu pela ausência de um pressuposto do crime – a “coacção”. Mas pela existência de responsabilidade criminal por crime da mesma natureza, ainda que de âmbito menos restrito (p. e p pelo art. 172º, 1 do CP) pelos factos praticados até aos 14 anos da assistente. Só não tendo condenado por este crime devido à falta do referido pressuposto de procedibilidade. Por outro lado, no que toca aos factos praticados pelo arguido depois de a menor atingir os 14 anos, apesar de não integrarem o crime por que o arguido vinha acusado – por não caracterizado o referido elemento “coacção”, entendeu o tribunal recorrido preencherem os requisitos do acto ilícito, no caso violador dos direitos da personalidade da assistente e, como tal geradores de responsabilidade civil. De qualquer forma, mesmo no que toca aos factos posteriores ao completamento dos 14 anos pela assistente o tribunal, para a condenação civil, não alterou a matéria de facto constante da acusação, nem o objecto do processo, o chamado “recorte de vida” submetido à apreciação do tribunal e que define o âmbito da sua vinculação temática. Ou falando em termos civilistas, não alterou, nem teve necessidade de o fazer, a “causa de pedir”. Muito menos condenou o arguido por responsabilidade contratual. Não tendo o recorrente sido surpreendido por fundamentos sobre que não pudesse ter-se pronunciado. Apenas decidiu que os factos provados que vinham qualificados como crime de coacção sexual, integravam, até aos 14 anos da assistente, o crime de abuso sexual e, a partir dessa data, esses mesmos factos, embora não relevantes constituindo crime, fazem incorrer o arguido em responsabilidade civil, por violadores dos seus direitos da personalidade. Aliás o arguido, apesar da a decisão ter entendido que se verificam os pressupostos do crime de abuso sexual de menor até aos 14 anos desta (crime menos grave por referência ao crime da mesma natureza por que vinha acusado, mas menos grave – ali coacção e aqui mero abuso) não impugnou tal decisão, antes se conformou com ela. E, por outro lado não questiona que os factos provados, a partir dos 14 anos da assistente constituem efectivamente acto ilícito. Havendo, consequentemente, que daí extrair todas as consequências para efeitos civis. A fundamentação do recurso assenta ainda num pressuposto que não se verifica: o de que, verificando-se a caducidade do direito de queixa para efeitos de prossecução da acção penal, “caducou” automaticamente o direito à indemnização civil pelos danos resultantes desse crime. Ora, ao contrário do que parece sustentar o recorrente, a não apresentação tempestiva da queixa, não constitui fundamento de caducidade do direito à acção de indemnização com fundamento na responsabilidade civil. Civilmente não existe (nem o recorrente a invoca verdadeiramente, confundindo-as com a caducidade do direito de queixa) qualquer fundamento de caducidade do direito de acção de indemnização ou causa de extinção do direito em si. Assim, em conclusão, situando-se os pressupostos da indemnização dentro do objecto do processo e assentando em responsabilidade extra-contratual ou aquiliana cujos pressupostos coincidem com os da responsabilidade penal, ainda na parte em que tais factos não constituem crime mas preenchem os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, não existe obstáculo, antes se impõe, a apreciação do pedido cível formulado nos autos. Pelo que improcede o recurso relativamente a esta primeira questão. ** 2. Relativamente à quantificação da indemnização – tida de um lado por excessiva e de outro por escassa - verifica-se que o acórdão recorrido se mostra fundamentado na lei e nos padrões seguidos pela jurisprudência que cita. Sem que a fundamentação quer do recurso interposto pelo arguido quer do recurso interposto pela assistente rebatam tal fundamentação ou apresentem argumentos legais ou jurisprudenciais relativas a casos semelhantes que apontem no sentido do exagero pretendido pelo recorrente ou de míngua sustentada pela assistente. De onde que, resumindo-se a argumentação dos recursos em reputar o valor arbitrado de demasiado alto num caso e baixo no outro, sem aduzir argumentos legais ou jurisprudenciais susceptíveis de rebater os fundamentos da decisão, tanto basta para a respectiva improcedência. Sempre se dirá porém que o valor arbitrado não merece censura. A respeito da indemnização – no caso relativa apenas a danos não patrimoniais - estabelece o art. 496º, n.º1 do C. Civil: Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. Postulando, no n.º4 que “O montante será fixado equitativamente tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494º”. Sendo as circunstâncias referidas no art. 494º “o grau de culpabilidade do agente, situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso que o justifiquem”. Assumem a natureza de danos não patrimoniais aqueles (como as dores físicas, os desgostos mortais, os vexames, a perda de prestígio e de reputação, os complexos e ordem estética) que, não sendo susceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a perfeição física, a honra, o bom nome) que não atingem o património do lesado, apenas podendo ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta “mais uma satisfação do que uma indemnização” – cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. 1, 7ª ed, p. 60. Como escreveu Vaz Serra (BMJ 38º, p. 83) “a satisfação ou compensação dos danos morais não é uma verdadeira indemnização, no sentido de um equivalente do dano, isto é, de um valor que reponha as coisas no seu estado anterior à lesão. Trata-se de dar ao lesado uma satisfação ou compensação do dano sofrido, uma vez que esta, sendo ofensa moral, não é susceptível de equivalente”. Não visando a indemnização o enriquecimento do lesado à custa do autor do facto ilícito nem a restauração natural da situação anterior à lesão, impossível, pela natureza das coisas, mas apenas proporcionar uma compensação pelo sofrimento causado, ou proporcionar uma quantia susceptível, de alguma forma de proporcionar um “quantum de prazer” que neutralize, quanto possível, o sofrimento causado. “O julgador deve ter em conta todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida, sem esquecer que semelhante reparação tem natureza mista, já que visa reparar o dano e também punir a conduta” – cfr. Acórdão do STJ de 10.08.98 na CJ-STJ, I, 65 e referências doutrinais e jurisprudenciais ali enunciadas. É de ter em conta, além do grau de sofrimento inerente à lesão, a condição económica dos titulares do direito, a desvalorização da moeda desde os danos até ao encerramento da discussão (momento mais recente atendível) e ainda ao padrões seguidos pela jurisprudência para casos idênticos – cfr. Antunes Varela, Obrigações, ed. de 1970, 499 e o Ac S.T.J. de 27.05.79, in BMJ 287º, 292. Assistindo-se ainda à tendência da jurisprudência em arbitrar indemnizações ajustadas aos padrões da vida actual – cfr., entre outros, os Acórdãos do STJ de 16.12.93, na CJ-STJ, 1993, III e de 06.02.96, no BMJ 454º, 690. Ora no caso, a decisão recorrida enuncia os fundamentos em que assenta, de forma densa e lapidar, sendo ocioso repeti-la. Em termos de gravidade objectiva da ofensa trata-se, em resumo, de um adulto que abusou sexualmente de uma criança antes de ela ter completado 14 anos de idade. Abuso esse que se prolongou durante anos a fio (apenas cessaram quando ela, já após ter completado os 18 anos, conseguiu libertar-se da teia em que o arguido a envolveu). Aproveitando-se o arguido da relação de amizade familiar e da confiança nele depositada por toda a família da vítima, como também ela própria, que via no arguido como um pai. Por outro lado, no que se refere às consequências, para além daquelas inerentes à gravidade dos factos em si, do cerceamento do desenvolvimento da sexualidade e da própria personalidade da vítima, da destruição da confiança familiar, como sucederia com qualquer criança no período crítico da adolescência, no caso a vítima sofreu traumas profundos no seu desenvolvimento moral e afectivo. Acrescidos pela perturbação causada à medida que ia crescendo e despertando para a reprovação moral da conduta do arguido, de que se queria libertar, sentindo-se porém constrangida não só pelas consequências da divulgação dos factos com que era ameaçada do arguido, como ainda pelo confronto que tal implicava da sua versão com a dele, perante os pais e a “madrinha”, mulher do arguido. Num meio rural e religioso (o arguido aproveitava ida à missa com a ofendida para a levar para uma casa onde mantinha as práticas sexuais com ela) onde a vítima acaba por ficar marcada para toda a vida. O que no caso redundou aliás na tentativa de por termo à própria vida, pela interiorização de culpas que só ao arguido cabem. Deixando sequelas do foro psicológico que perdurarão por toda a vida. Verificando-se ainda um elevadíssimo grau de culpa do arguido, não só pelo aproveitamento da relação de amizade, traindo essa relação, como ainda pelo largo período de tempo durante o qual manteve a conduta, ao longo de anos, apenas tendo terminado já depois de ela ter completado os 18 anos. Sem que o arguido haja revelado qualquer arrependimento ou manifestado censura pelo seu comportamento. Assim, a quantia pretendida pelo recorrente (€ 2.500,00 – equivalente a 500 contos) mostra-se manifestamente inadequada para a compensar a gravidade e a reiteração do dano, além de manifestamente desproporcionada face ao grau de culpa. Tendo designadamente por referência o valor de indemnizações arbitradas pelos Tribunais por danos resultantes de crimes de injúrias ou ofensas corporais simples, com sequelas incomensuravelmente inferiores ao caso dos autos. O único argumento do recorrente consiste na sua situação económica. Mas a quantia já teve em conta essa realidade. Tendo a indemnização como primeira finalidade reparar/compensar o dano sofrido pela vítima. Só podendo ser fixada em montante inferior “desde que o grau de culpa e outras circunstâncias do caso, entre elas a situação do agente e do lesado o justifiquem”. Fixação em montante inferior ao dano afastada, no caso, pelo grau intensíssimo da culpa e ainda pela situação económica do lesado. No caso, fosse o arguido rico e a indemnização deveria ser muito mais elevada, atentos os restantes factores a que se fez referência. Em contrapartida o montante pretendido pela assistente, apesar de se valorar a circunstância de, no caso, a indemnização ser recebida directamente pela vítima, afigura-se exagerado, tendo em conta designadamente não só o factor da situação económica do arguido a que se fez referência, como ainda os valores das indemnizações arbitradas pelos tribunais pela privação do direito à vida, bem jurídico supremo, ou pelos danos não patrimoniais sofridos pela vítima mortal no tempo que decorre entre a lesão e a morte – v. a este respeito o estudo do Conselheiro SOUSA DINIS publicado na CJ/STJ 1997, II, 11 e segs., actualizado na CJ/STJ, 2001, Tomo I, p 1 a 12, bem como os valores arbitrados pelos referidos danos no mediático “Caso de Entre os Rios” onde o Provedor de Justiça recomendou a atribuição de 5.000.000$00 pela perda do direito à vida de cada uma da vítimas e igual montante por danos não patrimoniais de cada vítima. Situando-se a indemnização arbitrada pelo acórdão recorrido, no caso, no valor arbitrado pelo Ac. STJ de 15.06.2000, acessível em htt://www.stj.pt/, num crime sexual também prolongado durante anos, contra uma criança, com aproveitamento da relação de confiança familiar e em que a situação económica do arguido era também próxima do caso dos autos. Assim, concluindo, tendo presente tudo o que acaba de ser ponderado, a gravidade da ofensa, período de tempo por que se prolongou, grau de culpa do arguido, idade em que a assistente despertava para a vida adulta, gravíssimas sequelas psicológicas, padrão socio-económico do arguido e da ofendida, os padrões seguidos pela jurisprudência, designadamente acórdãos do STJ acessíveis em http://www.cidadevirtual.pt/sj/jurisp/html, conclui-se que a quantia arbitrada é ajustada ao caso. ** IV. Termos em que, com os fundamentos expostos, se acorda: - negar provimento ao recurso interposto pelo arguido; e - negar também provimento ao recurso interposto pela assistente, com a consequente manutenção integral da decisão recorrida. ------------O arguido pagará 6 UC de taxa de justiça. E a assistente pagará 2 UC de taxa de justiça. As restantes custas serão pagas na proporção de 5/7 pela assistente e 2/7 pelo arguido. Sem prejuízo do apoio judiciário concedido. |