Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2359/04.1TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS
PRESCRIÇÃO EXTINTIVA DE SEIS MESES
FORNECIMENTO DE ENERGIA DE ALTA TENSÃO
CESSÃO DA POSIÇÃO CONTRATUAL NO CONTRATO DE FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉCTRICA
Data do Acordão: 01/23/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARAS MISTAS DO TRIBUNAL JUDICIAL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 10º, NºS 1 E 3, DA LEI Nº 23/96, DE 26/07; 310º, AL. G), E 424º, Nº 1, DO C. CIV.
Sumário: I – A prescrição de 5 anos do artº 310º, al. g), do C. Civ.(em cujo âmbito se incluem os créditos por fornecimento de energia eléctrica, água ou gás, por utilização de aparelhos de rádio, televisão ou telefones, ou relativos a prémios de seguros), não é uma prescrição presuntiva, mas sim uma prescrição de curto prazo, de natureza extintiva, destinada a evitar que o credor retarde demasiado a exigência de créditos periodicamente renováveis, tornando excessivamente pesada a prestação a cargo do devedor.

II – A Lei nº 23/96, de 26/07 (Lei de Protecção dos Serviços Públicos Essenciais) criou mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais, designadamente o serviço de fornecimento de energia eléctrica.

III – O artº 10º, nº 1, da Lei nº 23/96 consagra uma prescrição extintiva de seis meses, e não presuntiva, dos créditos provenientes de serviços públicos essenciais (como o fornecimento de energia eléctrica), mas não se aplica tal prazo ao fornecimento de energia eléctrica em “alta tensão” – nº 3 do artº 10º.

IV – Porém, este conceito, para efeitos da exclusão prevista no nº 3 do artº 10º, tem sido objecto de várias interpretações jurisprudenciais.

V – Deve, no entanto, acolher-se a orientação de que o legislador adoptou, quanto aos conceitos de baixa, média, alta e muito alta tensão, as definições e distinções constantes do pacote legislativo de 1995, que regulou o sector eléctrico (Decretos-Lei nºs 182/95, 183/95, 184/95, 185/95, 186/95, 187/95 e 188/95, de 27/07/95), sendo que o actual DL nº 172/2006, de 23/08, manteve as mesmas designações.

VI – Sendo o contrato de fornecimento de energia eléctrica um contrato unitário e duradouro de compra e venda de coisa móvel e, portanto, com prestações recíprocas, pode ser objecto de cessão da posição contratual por parte do cliente (artº 424º, nº 1, do C. Civ.), a qual só é eficaz se o cedido consentir na cessão.

VII – A promessa de liberação ou assunção interna em que o terceiro se obriga perante o devedor a satisfazer a dívida deste não vincula o credor, perante o qual o antigo devedor continua a ser o único obrigado, como decorre do artº 444º, nº 3, do C. Civ., fundado no princípio da relatividade dos contratos.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I – RELATÓRIO

1.1. - A Autora - A...., com sede na Rua Camilo Castelo Branco, 43, em Lisboa, instaurou na Comarca de Coimbra acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra as Rés:
1ª) - B...., representada pelo seu liquidatário judicial, residente na Rua dos Combatentes da Grande Guerra, 29, 1º, em Aveiro;
2ª) - C...., com sede em Via Caduti Sul Lavoro, n.º 16, Salvaterra di Casalgrande, Itália ( por intervenção principal provocada ).
Alegou, em resumo:
A Autora celebrou com a sociedade B.... um contrato de distribuição e venda de energia eléctrica, mas como em 24/10/01 foi declarada a falência, a massa falida e o liquidatário solicitaram a manutenção do fornecimento de energia eléctrica e assumiram o compromisso de proceder ao pagamento das facturas posteriores à declaração de falência, assim cumprindo tudo o que estava acordado antes da declaração de falência.
A energia foi fornecida até 22/7/04, data em que foi interrompido esse fornecimento, mas as quantias debitadas não foram pagas até ao presente e são devidos juros desde o dia subsequente à data da emissão das facturas.
Pediu a condenação das Rés a pagar-lhe a quantia de € 64.253, acrescida de juros vencidos até 15/09/04, no montante de € 3.297,98, e vincendos.

1.2. - Contestou a 1ª Ré, excepcionando a sua ilegitimidade passiva, bem como a prescrição, por haver decorrido o prazo de seis meses sobre a data da prestação dos serviços, nos termos do art.10 nº 1 da Lei 23/96, de 26 de Julho.
O contrato extinguiu-se pela declaração de falência, caso contrário justifica-se a sua modificação por alteração das circunstâncias, impugnando as contagens efectuadas.
Concluiu pela improcedência da acção e requereu a intervenção principal provocada de C... por ter celebrado com ela um acordo mediante o qual esta se comprometia, a partir de 1/9/03, a pagar os serviços de água e energia eléctrica da falida.

1.3. - Admitido o incidente de intervenção principal, a chamada ( 2ª Ré ) não contestou.

1.4. - Replicou a Autora contraditando a defesa por excepção, dizendo que o liquidatário sempre reconheceu a dívida.

1.5. - No saneador julgou-se improcedente a excepção dilatória da ilegitimidade passiva da 1ª Ré, relegou-se para final o conhecimento da excepção da prescrição, afirmando-se, quanto ao mais, a validade e regularidade da instância.

1.6. - Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que decidiu:
a) - Condenar a 1ª Ré a pagar à autora a quantia de 64.253,17 euros (sessenta e quatro mil, duzentos, cinquenta e três euros, e dezassete cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos no montante de 3.297,98 euros e vincendos;
b) - Absolver do pedido a Ré a C....

1.7. - Inconformada, a 1ª Ré recorreu de apelação, com as conclusões que se passam a resumir:
(….)
Contra-alegou a Autora preconizando a improcedência do recurso.
II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – Delimitação do objecto do recurso:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes ( arts.684 nº3 e 690 nº1 do CPC ), impondo-se decidir as questões nelas colocadas, bem como as que forem de conhecimento oficioso, exceptuando-se aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras ( art.660 nº2 do CPC ).
Como resulta das conclusões do recurso, as questões essenciais que importa decidir são as seguintes:
1ª) - Alteração da matéria de facto;
2ª) - A prescrição do direito;
3ª) - O abuso de direito;
4ª) - O acordo entre a 1ª Ré e a chamada C....

2.2. – Os factos provados:
(….)
2.3. – 1ª QUESTÃO / Alteração da matéria de facto:
O tribunal deu como provado que a 1ª Ré consumiu energia eléctrica constantes das facturas de Novembro de 2001 a Julho de 2004, cujos valores estão discriminados ( r.q.3º e 4º ), no valor global de € 64.253,17.
Ao quesito 11º ( “Do valor constante das facturas € 40.710,67 respeitam ao valor do acréscimo de potência “) – respondeu – “Provado apenas que do valor constante das facturas, 39.594,43 euros correspondem ao valor das potências aludidas em 9º e 2.517 euros ao acréscimo da potência entre Fevereiro e Julho de 2004”.
Pretende a apelante a alteração das respostas aos quesitos ( sem dizer em que sentido ), com base nos documentos juntos (facturas), por entender que os valores descritos nas facturas não correspondem à energia efectivamente consumida.
Fazendo a distinção entre “ potência “ e “ energia “, alega, para o efeito, que apenas nas facturas de Novembro e Dezembro de 2001 e Janeiro de 2002 há consumos debitados, figurando nas restantes a potência contratada.
Por outro lado, o valor debitado ( € 2.594,71 ) na factura de Julho de 2004 (fls.44), exceptuando o montante referido à potência contratada e ao tarifário fixo, reporta-se aos consumos acumulados e registados desde Janeiro de 2002 (fls.15), o que significa a importância de € 16.888,58.
Como resulta da fundamentação de fls.271 a 274, as repostas aos quesitos, agora impugnados, basearam-se não apenas na prova documental, mas também na prova testemunhal, que não foi questionada. Refere-se que as leituras dos contadores eram feitas mensalmente, mas em 31/1/02 os funcionários da A... deixaram de ter acesso aos contadores e por isso só eram debitadas as potências. Só em 21/6/04 foi feita uma leitura real dos consumos, expressando-se na factura de fls.44.
Sendo assim, indicando como prova que impõe decisão diversa apenas dos documentos juntos, a sua força probatória, por si só, não é insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, designadamente a testemunhal, que concorreu para a convicção objectivada ( art.712 nº1 b) do CPC ).
Convirá referir que as tarifas e preços para a energia eléctrica e outros serviços regulados obedecem aos princípios estabelecidos nos arts. 5, 29 e 31 do DL n.º 182/95, de 27 de Julho, na redacção que lhe foi dada pelo DL n. 69/2002, de 25 de Março, nos Estatutos da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) aprovados pelo DL n.º 97/2002, de 12 de Abril, no artigo 4.º do DL n.º 187/95, de 27 de Julho, na redacção que lhe foi dada pelo DL n.º 44/97, de 20 de Fevereiro, no Regulamento de Relações Comerciais e no Regulamento Tarifário.
De acordo com o Regulamento Tarifário, então em vigor ( Despacho nº19734-A/2002 da ERSE, publicado no DR II Série de 5/9/2002, 1º suplemento ), as tarifas aplicáveis aos clientes são compostas pelos preços relativos a um termo tarifário fixo ( contratação, leitura facturação e cobrança), potência contratada, potência em hora de ponta, energia activa, energia reactiva.
A potência contratada é a potência que a A... coloca, em termos contratuais, à disposição do Cliente, não devendo ser superior à potência para a qual a ligação foi construída (potência requisitada), sendo que a taxa ou encargo de potência é um valor facturado mensalmente que está associado à potência a disponibilizar para cada instalação, a qual faz parte da prestação do serviço.
Improcede a impugnação da matéria de facto, mantendo-se intangível a descrita na sentença.

2.4. – 2ª QUESTÃO / A prescrição dos créditos:
A 1ª Ré excepcionou a prescrição do direito de crédito, prevista no art.10 nº1 da Lei nº23/96 de 26/7, relativamente às facturas de fls.13 a 42, ou seja, de Novembro de 2001 a Abril de 2004, por haver decorrido o prazo de seis meses à data da citação ( 4/1/04 ).
A sentença recorrida julgou improcedente a excepção peremptória da prescrição semestral (art.10 nº1 da Lei nº23/96 de 26/7) dado ter havido reconhecimento tácito ( art.325 do CC ) do direito por parte da Ré, através do seu liquidatário judicial e comissão de credores, idóneo a interromper a prescrição, pois o liquidatário judicial solicitou à Autora que não interrompesse o fornecimento de energia eléctrica à Ré e, até Junho de 2004, veio prometendo pagar as facturas de energia, adiando o pagamento com a justificação de que o faria com a conclusão do processo de liquidação do activo; em Julho de 2004, sendo que o liquidatário judicial e a comissão de credores da Ré procuraram negociar com a Autora o montante reclamado, propondo pagar parte desse montante contra quitação global.
Em contrapartida, objectou a Ré que, tendo a prescrição natureza extintiva, não é legalmente admissível a interrupção por reconhecimento do direito, e, sem prescindir, ocorrendo a interrupção em 27/6/03, apenas opera quanto aos créditos ainda não prescritos, pelo que já prescreveram os atinentes às facturas de Novembro de 2001 a Janeiro de 2003, bem assim os créditos facturados de Fevereiro a Junho de 2003.
Por seu turno, argumentou a apelada não ser aplicável a norma do art.10 nº1 da Lei 23/96, visto tratar-se do fornecimento de energia eléctrica em alta tensão, superior a 1 KV, logo o prazo prescricional é de cinco anos ( art.310 g) do CC ), não esgotado.
Da natureza e prazo a prescrição:
Nos termos do art.310 al. g), do CC prescrevem no prazo de cinco anos “quaisquer outras prestações periodicamente renováveis”.
Trata-se não de uma prescrição presuntiva, submetida ao regime especial dos arts.312 e segs. do CC, mas de prescrição de curto prazo, de natureza extintiva, destinada a evitar que o credor retarde demasiado a exigência de créditos periodicamente renováveis, tornando excessivamente pesada a prestação a cargo do devedor.
No âmbito da alínea g) do art.310 do CC incluem-se os créditos por fornecimento de energia eléctrica, água ou aquecimento, por utilização de aparelhos de rádio, televisão ou telefones, ou relativos a prémios de seguros ( cf. P.LIMA/A.VARELA, Código Civil Anotado, vol.I, pág.280).
A Lei nº23/96 de 26/7 ( Lei de protecção dos serviços públicos essenciais ) inserida na “ ordem pública de protecção “, concretizando a tutela geral do consumidor, criou mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais, designadamente o serviço de fornecimento de energia eléctrica ( arts. 1 e 2 b) ).
Sob a epígrafe “ prescrição e caducidade “, o art.10 nº1 estipula que – “o direito de exigir o pagamento do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação”.
Consagra-se uma prescrição extintiva (e não presuntiva) dos créditos provenientes de serviços públicos essenciais (como o fornecimento de energia eléctrica), conforme orientação jurisprudencial predominante.
Sobre o início do prazo da prescrição, existem três teses:
a) - O prazo conta-se da prestação dos serviços, e tratando-se de serviços reiterados ou periódicos, desde a prestação mensal do serviço, sem que a apresentação da factura tenha efeito interruptivo (cf., por ex., CALVÃO DA SILVA, RLJ ano 132, pág.138 e segs., Ac do STJ de 6/7/06, Ac RP de 18/5/04, de 9/11/06, disponíveis em www dgsi.pt ).
b) – O prazo de seis meses reporta-se à apresentação da factura, a qual interrompe a prescrição, por acrescer às situações previstas nos arts.323 a 325 do CC, sendo igualmente o prazo de seis meses entre a apresentação e a instauração da acção, sob pena da extinção do direito ao pagamento ( cf., por ex., Ac do STJ de 6/11/02, www dgsi.pt ).
c) – O prazo de seis meses refere-se à apresentação da factura, aplicando-se a partir daí o prazo de prescrição de cinco anos ( art.310 g) do CC ) ( cf., por ex., MENEZES CORDEIRO, Revista O Direito, ano 133, nº4, pág.769 e segs., Ac RP de 25/3/04, de 28/6/04, de 4/4/05, de 26/9/06, de 2/10/06, em www dgsi.pt ).
Mas preceitua o nº3 da Lei 23/96 que “ o disposto no presente artigo não se aplica ao fornecimento de energia eléctrica em alta tensão”.
Sobre o conceito de Alta Tensão ( AT ):
A noção de “Alta Tensão”, para efeitos da exclusão prevista no nº3 do art.10 da Lei 23/96, tem sido objecto se várias interpretações jurisprudenciais.
Segundo determinado entendimento, tal noção abrange não só a alta e muito alta, mas também a média tensão ( cf., por ex., Ac do STJ de 12/7/01, C.J. ano IX, tomo III, pág.34 ), embora nestes casos também há quem defenda que não ocorre a exclusão se o fornecimento for contado em baixa tensão, com base num critério económico e não técnico ( cf.,por ex., Ac STJ de 15/1/04, em www dgsi.pt ).
Noutra perspectiva, com base no argumento literal e teleológico, se entende não estar excluído do regime prescritivo o fornecimento de energia eléctrica em média tensão ( cf., por ex., Ac do STJ de 29/4/04, Ac RL de 19/9/06, em www dgsi.pt ).
Parece ser de acolher a orientação de que o legislador adoptou, quanto aos conceitos de baixa, média, alta e muito alta tensão, as definições e distinções constantes do pacote legislativo de 1995, que regulou o sector eléctrico, tal como se justificou no Ac do STJ de 29/4/04, com exaustiva análise da profusa legislação do sector.
Em 27 de Julho de 1995, com a publicação de sete diplomas ( Decretos-Leis nº182/95, 183/95, 184/95, 185/95, 186/95, 187/95 e 188/95 ), antecipando a aprovação da Directiva 96/92/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 19/12/96, procedeu-se a uma profunda alteração legislativa no serviço público de electricidade, passando a coexistir um Serviço Eléctrico de Serviço Público ( SEP ) e um Sistema Eléctrico Independente ( SEI )
O SEP compreende a Rede Nacional de Transporte de Energia Eléctrica ( RNT ), explorada em regime de concessão de serviço público e o conjunto de instalações de produção e redes de distribuição exploradas mediante regime de licença vinculada.
O DL nº182/95 de 27/7, com as alterações introduzidas pelo DL nº 56/97 de 14/3, então em vigor, estabeleceu as bases da organização do Sistema Eléctrico Nacional ( SEN) e os princípios que enquadram no exercício das actividades de produção, transporte e distribuição de energia eléctrica, prevendo que a RNT ( Rede Nacional de Transporte Nacional de Energia Eléctrica ) seja explorada mediante concessão ( arts.18 e 19 ), sendo actualmente regulado pelo DL nº29/2006 de 15/2 ).
O DL nº185/95, nº 185/95 e nº 186/95, de 27/7, estabeleceu o regime jurídico do exercício da actividade de transporte de energia eléctrica no Sistema Eléctrico nacional e aprovou as bases de concessão da exploração da RNT, prevendo ( art.2º ) que Muito Alta Tensão ( MAT ) é a superior a 110 KV, Alta Tensão ( AT ) é a tensão superior a 45 KV e igual ou inferior a 110 KV, Média Tensão ( MT ) é a tensão superior a 1 KV e igual ou inferior a 45 KV, Baixa Tensão ( BT ), a tensão até 1KV.
Estes diplomas foram entretanto revogados pelo DL nº172/06 de 23/8, que manteve a mesma designação.
Para além do argumento literal, o certo é que apenas decorrido um ano sobre a publicação, em 1995, do regime do sector eléctrico, não é aceitável que o legislador, aquando da Lei nº23/96, não tivesse admitido as definições nele constantes.
Não tendo sido expressamente alegado qual das variantes da tensão eléctrica fornecida à 1ª Ré, cujo ónus de alegação e prova competia à Autora, como facto impeditivo da excepção da prescrição semestral, importa averiguar se os elementos factuais disponíveis permitem concluir que o fornecimento da energia se enquadra na noção de alta ou muito alta tensão.
A este propósito, comprovou-se que o contrato de fornecimento de energia com potência de 4.440,00 KVA/KW ( potência instalada ), sendo a contratada de 1.500,00 KW, posteriormente alterada ( Fevereiro de 2004 ) para 2.064 KW.
Sendo assim, tendo o contrato por objecto o fornecimento de energia em muita alta tensão (MAT), logo não é aplicável o regime prescritivo do nº1 do art.1º da Lei nº23/96, mas antes ao previsto no art.310 g) do CC, ou seja, a prescrição quinquenal.
Como a primeira factura é de Novembro de 2001 e uma vez que a Ré foi citada em 4/10/2004, não decorreu o prazo da prescrição.
De resto, à mesma solução se chegaria, caso o fornecimento fosse em baixa ou média tensão, por parecer mais consistente a terceira das teses elencadas, ao interpretar sistematicamente o conjunto dos normativos no sentido de que o legislador estabeleceu dois regimes de prescrição distintos: (a) o regime geral, respeitante à prescrição de prestações, prevista no art.300 e segs. do CC, cuja interrupção apenas opera com a interpelação judicial ao devedor e (b) um regime especial, aplicável aos serviços de bens públicos essenciais (arts 1º e 10 nº1 da Lei 23/96 ), reportando-se à prescrição ( semestral )do direito de exigir o pagamento, que se impede com a apresentação de cada factura.
Ou seja, prestado um serviço deve ser enviada uma factura (normalmente mensal) e tem de o ser, sob pena de prescrição, no prazo de seis meses contados desde a prestação do serviço (art. 10 nº 1 da Lei 23/96); mas uma vez enviada a factura dentro do prazo, o consumidor deve pagá-la no período de tempo para o efeito concedido e caso não o faça, tem o credor de exigir o pagamento no prazo de 5 anos ( art.310 g) do CC ).

2.5. – 3ª QUESTÃO / O abuso de Direito:
Considera a apelante existir abuso de direito ( art.334 do CC ), na modalidade de “ venire contra factum proprium”, porquanto a Autora não fez a contagem dos consumos de energia eléctrica da Ré todos os meses, por o encerramento das instalações não permitir o acesso aos contadores senão com a autorização prévia e expressa do liquidatário judicial, que a A..., disso sabedora, não pediu (r.q. 7º e 21º) procurando com isso obviar à prescrição dos consumos efectuados até seis meses antes da citação.
O art.334 do CC diz que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Aceitando o legislador a concepção objectiva, não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social e económico do direito exercido.
O instituto do abuso de direito surge como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social em determinado momento histórico e a jurisprudência tem exigido que o exercício do direito se apresente em termos clamorosamente ofensivos da justiça.
O venire contra factum proprium, como uma das manifestações do abuso de direito, equivale a dar o dito por não dito e radica numa conduta contraditória da mesma pessoa, ao pressupor duas atitudes antagónicas, sendo a primeira ( factum proprium ) contrariada pela segunda atitude, com manifesta violação dos deveres de lealdade e dos limites impostos pelo princípio da boa fé.
O Prof. BAPTISTA MACHADO ( Obra Dispersa, vol.1º, pág.415 a 419 ), depois de afirmar que a ideia imanente na proibição do venire contra factum proprium é a do “ dolus praesens “, pelo que é sobre a conduta presente que incide a valoração negativa, sendo a conduta anterior apenas o ponto de referência para se ajuizar da legitimidade da conduta actual, enuncia três pressupostos que caracterizam o instituto: uma situação objectiva de confiança, investimento na confiança e a boa fé da contraparte que confiou. No mesmo sentido, também PAULO MOTA PINTO, “Sobre a Proibição do Comportamento Contraditório”, BFDUC, Volume Comemorativo, 2003, pág.269 e segs., com referências doutrinárias e jurisprudenciais mais actualizadas.
Desde logo, a apelante partiu do princípio da aplicação do regime prescritivo do art.10 nº1 da Lei nº23/96, mas como já se anotou ele não pode ser aqui convocado.
Por outro lado, mesmo seguindo-se a lógica da apelante, não está sequer comprovado que a Autora não solicitasse a autorização prévia para a contagem com o expresso propósito de obviar a prescrição.
Neste contexto, ao reclamar o pagamento dos créditos, não prescritos, é por demais evidente que a Autora não agiu com abuso de direito.

2.6. – 4ª QUESTÃO / O acordo entre a 1ª Ré a 2ª Ré Mectiles:
A sentença recorrida absolveu a 2ª Ré Mectiles, por considerar que o acordo celebrado com a 1ª Ré consubstancia uma cessão da posição contratual, ineficaz por falta de consentimento da Autora.
Por seu turno, a apelante entende que o acordo reduz-se a uma promessa liberatória ( art.444 nº3 do CC ), sendo, por isso, responsável apenas a 2ª Ré pelo pagamento.
Em 26/09/03, a 1ª Ré (primeira outorgante) celebrou com a empresa C... (segunda outorgante) um acordo de desmontagem e remoção dos bens móveis existentes nas instalações daquela, no qual acordaram, a partir de 1/9/03, a continuidade no fornecimento de energia eléctrica, cujos valores ficariam da responsabilidade da Mectiles (cf. doc. fls.98 a 100).
Este acordo foi outorgado em virtude da venda realizada pela 1ª Ré à 2ª Ré dos bens apreendidos, pelo preço de € 625.100,00, convencionando-se na cláusula 5ª nº1):
“ A partir de 01/09/2003, a continuidade do fornecimento e respectivo pagamento dos serviços de água, energia eléctrica, de segurança, vigilância e guarda das instalações dos bens móveis, anteriormente a cargo da primeira outorgante, passam a ser da inteira e exclusiva responsabilidade da segunda outorgante “.
A qualificação jurídica de um contrato postula um problema de interpretação, segundo o critério estabelecido nos arts.236 a 238 do CC, consagrando de forma mitigada o princípio da impressão do destinatário.
Por conseguinte, na interpretação dos contratos prevalecerá, em regra, a vontade real do declarante, sempre que for conhecida do declaratário. Faltando esse conhecimento, o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um destinatário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante ( cf., por ex., Ac do STJ de 14/1/97, C.J. ano V, tomo I, pág.46, de 22/1/97, C.J. ano V, tomo I, pág.258 ).
Neste âmbito, deve recorrer-se para a fixação do sentido das declarações a determinados tópicos, ou seja, à ordem envolvente da interacção negocial, como a letra do negócio, as circunstâncias do tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei, os usos e costumes por ela recebidos, bem assim o comportamento posterior dos contraentes.
Nos negócios formais, se o sentido da declaração não tiver reflexo ou expressão no texto do documento, ele não pode ser deduzido pelo declaratário e não deve por isso ser-lhe imposto ( art.238 do CC ). Isto significa que a letra do negócio (o texto do documento) surge como limite à validade de sentido com que o negócio deve valer, nos termos gerais da interpretação, optando-se por uma orientação objectiva porque se pretende apurar qual o sentido a atribuir à declaração considerada relevante para o direito, em face dos termos que a constituem.
A aplicação do art.237 do CC confina-se, como, desde logo, resulta da sua epígrafe, aos casos duvidosos, mas a sua doutrina não prevalece contra as regras do art.236 do CC, aplicando-se apenas se estas não puderem definir o sentido da declaração.
A intervenção de um terceiro num contrato, a legitimar a modificação subjectiva da relação jurídica, pode derivar de várias fontes, com regimes específicos, seja através, por exemplo, da “promessa de contrato por terceiro”, de um “contrato para pessoa a nomear”, ou de uma “cessão da posição contratual”.
Sendo o contrato de fornecimento de energia eléctrica um contrato unitário e duradouro de compra e venda de coisa móvel, e, portanto, com prestações recíprocas, pode ser objecto de cessão da posição contratual por parte do cliente ( art.424 nº1 do CC ). Porém, se o cedido não consentir na cessão, ela é-lhe ineficaz.
Também o art.126 do Regulamento Tarifário admite expressamente a cessão da posição contratual por parte do cliente, desde que se verifique o respectivo consentimento e nas condições aí exaradas.
Ora, a interpretação da cláusula, segundo um declaratário normal e com correspondência na sua formulação textual, leva a concluir tratar-se de uma cessão da posição contratual do contrato de fornecimento, tanto assim que aí de refere a obrigação da cessionária pela “(...) continuidade do fornecimento e respectivo pagamento (…)”, o que sai ainda reforçado pelo facto desta cláusula se inserir no negócio mais abrangente, que teve como pressuposto aquisição dos bens da massa falida.
Noutra perspectiva, mesmo a admitir-se uma mera assunção de dívida, traduzida no contrato mediante o qual um terceiro se constitui sujeito passivo de uma dívida que vincula outrem, na modalidade de assunção liberatória, sempre pressuporia a ratificação, ainda que tácita, do credor ( art.595 a) do CC ), o que não sucedeu.
Ao lado da assunção externa da dívida existe ainda a chamada promessa de liberação ou assunção interna em que o terceiro se obriga perante o devedor a satisfazer a dívida deste. Mas deste acordo não advém nenhuma nova obrigação para com o credor, perante o qual o antigo devedor continua a ser o único obrigado, como decorre do art.444 nº3 do CC, fundado no princípio da relatividade dos contratos (cf. LEITE CAMPOS, Contrato a Favor de Terceiro, pág.69, P.LIMA/A.VARELA, Código Civil Anotado, vol.I, 3ª ed., pág.581 ).
Por conseguinte, mesmo que fosse de qualificar como promessa de liberação ou de assunção, como ensaiou a apelante, jamais se poderia condenar a 2ª Ré no pagamento reclamado pela Autora, pois neste caso apenas seria legítimo ao promissário exigir o cumprimento da promessa ( cf., por ex., Ac do STJ de 1/7/04, www dgsi.pt ).
Em suma, improcede a apelação, confirmando-se (ainda que com fundamentação diversa) a sentença recorrida.
III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
2)
Condenar a apelante nas custas.