Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
150/05.7TTVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: AZEVEDO MENDES
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DO TRABALHO
CRÉDITO DO TRABALHADOR
COMPRA E VENDA EM BENEFÍCIO DA ENTIDADE PATRONAL
COMPETÊNCIA POR CONEXÃO
Data do Acordão: 01/30/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 495º DO CPC; 119º DO CÓDIGO DO TRABALHO; E 85º, ALS. B) E O), DA LOFTJ (LEI Nº 3/99)
Sumário: I – O Tribunal Constitucional pronunciou-se no Acórdão nº 304/05, de 8/06/2005, no sentido da inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade (artº 18º, nº 2 e 3), com referência aos nºs 1 e 4 do artº 20º da Constituição, da norma do nº 1 do artº 77º do Código do Processo do Trabalho, na interpretação segundo a qual o tribunal superior não pode conhecer das nulidades da sentença que o recorrente invocou numa peça única, contendo a declaração de interposição do recurso com a referência que apresenta arguição de nulidades da sentença e alegações e, expressa e separadamente, a concretização das nulidades e as alegações, apenas porque o recorrente inseriu tal concretização após o endereço ao tribunal superior.

II – A referida norma do CPT encontra a sua razão de ser na circunstância da arguição das nulidades serem, em primeira linha, dirigidas à apreciação pelo juiz do tribunal da 1ª instância e para que o possa fazer.

III – No contrato de trabalho podemos dizer que ao lado das obrigações principais que o caracterizam, para efeitos de qualificação jurídica, existem outras obrigações, estas acessórias, que densificam a relação contratual e a dotam de garantias funcionais, todas subordinadas ao princípio geral contido no artº 119º, nº 2, do Código do Trabalho (na execução do contrato de trabalho devem as partes colaborar na obtenção de maior produtividade, bem como na promoção humana, profissional e social do trabalhador).

IV – O que traduz, desde logo, da parte do empregador um dever de cooperação creditória, onde se inclui o fornecimento das matérias-primas, instrumentos e máquinas necessárias à laboração.

V – Se o empregador não cumpre, incorre em mora, nos termos do artº 813º do C. Civ., e se tal suceder terá de indemnizar o trabalhador das maiores despesas que este seja obrigado a fazer com o oferecimento infrutífero da prestação e a guarda e conservação do objecto, nos termos do artº 816º do C. Civ.

VI – Caso o trabalhador faça despesas para assegurar o oferecimento da sua prestação laboral, perante a mora da entidade patronal, tal facto justifica a obrigação de indemnizar por essas despesas, no âmbito do contrato de trabalho, e, consequentemente, justifica a competência directa do tribunal do trabalho para apreciar o dever de indemnizar daí resultante, nos termos do artº 85º, al. b), da LOFTJ.

VII – Mas mesmo na perspectiva jurídica de considerar que, em tais casos, ocorrem duas distintas relações jurídicas, tendo o crédito do trabalhador por despesas efectuadas origem numa fonte de obrigações autónoma (como o mútuo) ao lado do contrato de trabalho, mesmo assim o tribunal do trabalho é materialmente competente para conhecer dessa relação obrigacional, por conexão, nos termos da al. o) do artº 85º da LOFTJ.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. O Autor instaurou contra a Ré a presente acção declarativa sob a forma de processo comum pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 27.093,68, valor correspondente a retribuições não pagas, de indemnização de antiguidade e de ajudas de custo, bem como a materiais adquiridos pela ré e pagos pelo autor, no valor de € 17.773,38.
Alega em resumo que, mediante contrato de trabalho, trabalhou para a ré de 01/10/2003 até 6/12/2004, tendo “rescindido” o contrato, invocando justa causa. Que pagou materiais adquiridos para a ré, não tendo sido reembolsado dessas despesas. E que a ré não lhe pagou todas as retribuições, bem como ajudas de custo, de forma que descrimina.
Contestou a ré pedindo a improcedência parcial da acção, reconhecendo dever ao autor algumas das importâncias por este peticionadas, mas negando dever-lhe outras, designadamente a indemnização reclamada.

Prosseguindo o processo os seus regulares termos veio a final a ser proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, condenando a ré a pagar ao autor a quantia de € 24.725,67, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados do seguinte modo: sobre 22.325,67 euros, desde a citação até ao trânsito em julgado desta sentença; sobre € 24.725,67, a partir do trânsito.

É desta decisão que, inconformada, a ré vem apelar, pretendendo a revogação da decisão recorrida, com as consequências legais.
Arguiu a nulidade da sentença, nos termos da alínea d) e c) do nº 1 do artigo 668° do CPC, sustentando que o tribunal recorrido era incompetente em razão da matéria para conhecer do crédito que o autor tem sobre si em consequência da compra de materiais para a actividade desenvolvida pela ré, bem como por haver contradição entre o documento nº5 junto aos autos com a petição inicial e a decisão do tribunal.
Alegando, conclui:
A) A decisão recorrida é nula nos termos da alínea d), in fine do nº 1 do artigo 668 do CPC pois o Tribunal a quo é parcialmente incompetente em razão da matéria para conhecer do pedido do Autor.
B) A decisão recorrida é nula nos termos da alínea c) do nº1 do art. 668° do CPC
C) As despesas várias efectuadas pelo Autor designadamente em compra de materiais para a actividade desenvolvida pela Ré constituem um crédito obrigacional que em nada se conexiona com a relação laboral mantida entre recorrente e recorrido.
D) Não é exigível à Ré que efectue o pagamento da dívida em questão antes de lhe ser possível, tal como havia sido acordado entre as partes.

Nas contra-alegações o autor bate-se pela manutenção do julgado.
O Ex.mo juiz do tribunal recorrido, quanto às nulidades arguidas, sustentou não se verificarem as mesmas, em fundamentado despacho.
Recebido o recurso e colhidos os vistos legais, pronunciou-se o Exmº Procurador-geral Adjunto no sentido de se negar provimento ao recurso interposto pela ré.
A ré respondeu a este parecer.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
1. De facto
Do despacho de fls. 84/86 que decidiu a matéria de facto, e do qual não houve reclamações, é a seguinte a factualidade que vem dada como provada:
1. A ré, com sede e principal estabelecimento na Quinta do Passal - Canas de Santa Maria - Tondela, tem como objecto e principal actividade a indústria da construção civil e obras públicas.
2. O A. foi admitido ao serviço da ré, em 1/10/2003, mediante a celebração do acordo junto a fls. 8 a 10.
3. Trabalhou em regime de exclusividade, por conta, sob a direcção, fiscalização e autoridade da ré, desde aquela data até 6/12/2004.
4. Desempenhava as funções de “Encarregado Geral”, as quais consistiam no planeamento, acompanhamento, gestão e coordenação das diversas obras e frentes de trabalho, na organização do trabalho, na interpretação de plantas e projectos, elaboração de concursos, na realização de autos de medição de obras.
5. Auferia, como contrapartida do seu trabalho, a retribuição mensal base de 800 euros, acrescida de subsídio de refeição no valor de 4,15 euros por cada dia efectivo de trabalho.
6. Na qualidade de encarregado geral e para evitar a paralisação de obras e trabalhos em curso, o A. pagou, a expensas suas, cimento, areia, tijolo, gasóleo e outros materiais, titulados por facturas/recibos e vendas a dinheiro em nome da ré.
7. O A. entregou nos escritórios da ré os documentos referentes a essas despesas.
8. O valor despendido pelo A. com tais aquisições e gastos com dinheiro adiantado do seu bolso ascende a 17.773,38 euros.
9. A ré não pagou ao A. a importância correspondente a tais gastos.
10. O A. remeteu à ré, por correio registado com A/R, a carta reproduzida a fls. 5, datada de 2/12/2004, na qual, invocando que não lhe tendo sido pagos “os salários vencidos dos meses de Outubro e Novembro de 2004, bem como férias e respectivo subsídio de férias vencidos em 1/01/2004”, comunicava que rescindia o contrato de trabalho “com justa causa nos termos do art.º 441º, n.º 1 e 2, al. a), do CT, com efeitos a partir da recepção da presente comunicação”.
11. A ré recebeu aquela carta em 06/12/2004.
12. A ré não pagou ao autor: as retribuições de Outubro e Novembro de 2004, nem o subsídio de refeição respectivo; as férias vencidas em 2004 nem o respectivo subsídio; as férias, subsídio de férias e de Natal de 2004, proporcionais.
13. O autor era familiar dos sócios gerentes da ré.
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2. De direito
É pelas conclusões das alegações que se delimita o âmbito da impugnação, como decorre do estatuído nos artºs 684º nº 3 e 690º nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil.
Como questão prévia, uma vez que a questão é colocada no parecer do Ex.mo Procurador Geral Adjunto e foi objecto de resposta da recorrente, importa decidir sobre a admissibilidade formal da arguição das nulidades.
O parecer em causa salienta que a recorrente não deu cumprimento ao disposto no nº 1 do artigo 77° do Código de Processo do Trabalho, nos termos do qual a arguição de nulidades da sentença é feita expressa e separadamente no requerimento de interposição de recurso.
Ora, a recorrente apresentou na mesma peça processual a declaração/requerimento de interposição do recurso, seguindo-se-lhe o anúncio da motivação, a qual foi apresentada em quatro distintas partes: as duas primeiras referentes à arguição (e fundamentação) das duas nulidades da sentença já referidas, a terceira referente a alegações de recurso e a quarta referente às conclusões do recurso.
O Tribunal Constitucional pronunciou-se no Acórdão nº 304/05, de 8/6/2005, no sentido da inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade (artigo 18º nºs 2 e 3), com referência aos nºs 1 e 4 do artigo 20º da Constituição, da norma do nº 1 do artigo 77º do Código de Processo do Trabalho, na interpretação segundo a qual o tribunal superior não pode conhecer das nulidades da sentença que o recorrente invocou numa peça única, contendo a declaração de interposição do recurso com a referência que apresenta arguição de nulidades da sentença e alegações e, expressa e separadamente, a concretização das nulidades e as alegações, apenas porque o recorrente inseriu tal concretização após o endereço ao tribunal superior.
A referida norma do CPT encontra a sua razão de ser na circunstância da arguição das nulidades serem, em primeira linha, dirigidas à apreciação pelo juiz pelo tribunal da 1ª instância e para que o possa fazer. Ora, no caso, o Ex.mo juiz da 1ª instância pronunciou-se sobre as mesmas, como se disse.
Assim, mesmo que se considerasse não formalmente cumprido o artº 77º nº1, o certo é que a arguição já foi identificada na 1ª instância, que não notou qualquer irregularidade formal na arguição, pelo que a havê-la deveria ser considerada sanada.
Como acaba por referir o Ex.mo Procurador Geral Adjunto, seria excessivo não conhecer agora das nulidades com fundamento no não cumprimento no disposto na norma em apreço.
Pelo que as nulidades arguidas no recurso devem ser conhecidas.

Decorre do exposto que as questões que importa dilucidar e resolver se podem equacionar da seguinte forma:
- se a sentença recorrida é nula por ter conhecido de questão para a qual o tribunal recorrido era absolutamente incompetente e, portanto, não podia conhecer;
- se a sentença recorrida é nula por os fundamentos estarem em oposição com a decisão;
- se o tribunal recorrido era incompetente em razão da matéria para conhecer do crédito do autor em consequência da compra de materiais para a actividade desenvolvida pela ré.
- se é exigível à ré que efectue o pagamento da dívida em questão antes de lhe ser possível.

1- A questão da nulidade da sentença.
Cumpre afirmar desde já que não se nos afigura existirem as invocadas nulidades.
a) A primeira das nulidades invocadas é fundamentada na alínea d) do artigo 668.º, nº 1 do CPC.
A norma invocada estabelece que a sentença é nula se o tribunal conheceu questão que não podia conhecer. Trata-se, como refere o Conselheiro Amâncio Ferreira (in Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 6ª ed., pag.55), de uma nulidade relacionada com a 2ª parte do nº 2 do artigo 660º do C.P.Civil, onde se proíbe o conhecimento de questões que as partes não tenham suscitado, a menos que a lei lho permita ou lhe imponha o conhecimento oficioso.
A questão da alegada incompetência material do tribunal de trabalho para conhecer do crédito do autor decorrente das compras por este feitas em benefício da ré, não se situa assim no regime da nulidade da sentença por se conhecer de questão de que se não podia tomar conhecimento. A questão do crédito foi colocada nos autos pelo autor, pelo que o juiz dela tinha de conhecer (660º nº2). Sobretudo, quando já tinha afirmado no despacho saneador (fls. 39) não ocorrerem excepções dilatórias, reconhecendo, portanto, a competência do tribunal para o conhecimento das questões colocadas pelo autor.
Como refere o Ex.mo Procurador Geral Adjunto, o efeito da incompetência absoluta é a absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar (artigo 105° do CPC) enquanto a nulidade da sentença daria lugar à elaboração de outra peça extirpada da nulidade.
A questão colocada pela recorrente, da incompetência absoluta, será adiante tratada no âmbito do conhecimento do recurso, mas não se situa, a nosso ver, no âmbito da nulidade da sentença.
Pelo que improcede a arguição desta nulidade.
b) A segunda das nulidades invocadas é fundamentada na alínea c) do artigo 668.º, n.º 1 do CPC.
A norma invocada estabelece que a sentença é nula se houver oposição entre os fundamentos e a decisão. Refere-se a lei, como se diz na obra citada (Manual dos Recursos em Processo Civil), à contradição real entre os fundamentos e a decisão (não a errada subsunção dos factos nas normas jurídicas seleccionadas) - a situação em que os próprios fundamentos referidos pelo juiz conduziriam necessariamente a uma decisão em sentido oposto ou, pelo menos, diferente.
Na nulidade invocada, trata-se de saber se a sentença deveria ter considerado um documento/declaração de dívida em que a ré se obriga a pagar “dentro do prazo possível” ao autor a quantia de € 17.773,38 e, portanto, nunca poderia considerar que tais créditos do autor se encontravam vencidos no momento da citação. A recorrente entende existir “forte e evidente” oposição entre o documento e a decisão do tribunal a quo.
Ora, esta é uma questão de erro de julgamento e não de contradição real entre os fundamentos e a decisão, como já se disse.
Mais do que isso constituiria um erro na apreciação das provas e na decisão da matéria de facto, uma vez que nesta não se consignou qualquer acordo de pagamento “dentro do prazo possível”. A matéria de facto não vem questionada, de resto, o que é confirmado pela ré da sua resposta ao parecer do Ministério Público. Mais do que isso, ainda, como refere o Sr. Juiz na sustentação que fez da sentença, aquilo que a recorrente considera ser um documento titulando um “acordo”, mais não é do que uma declaração unilateral de dívida da ré, não um acordo entre esta e o autor.
A decisão não está assim em oposição aos fundamentos que invoca.
Assim, como começámos por dizer, não ocorrem as nulidades invocadas.

2- A questão da incompetência material do tribunal de trabalho para conhecer do crédito do autor decorrente das compras por este feitas em benefício da ré.
Cumpre começar por dizer que esta é uma questão nova, não antes proposta para discussão na 1ª instância. Ao tribunal de recurso é, contudo, permitido conhecê-la, na medida em que é do conhecimento oficioso (artigo 495º do Código de Processo Civil).
Perante a matéria de facto aceite pela ré na contestação, para além da que se consignou como provada na 1ª instância, sendo certo que a questão da incompetência nunca antes foi levantada, resulta algum espanto que o seja agora.
Vale a pena usar dos poderes que esta Relação tem, nos termos do disposto no artigo 712 al. a) do C.P.Civil (1ª parte) e b) do C. P. Civil, quanto ao julgamento da matéria de facto, para, com base nos elementos de prova disponíveis no processo, ampliar a matéria de facto seleccionada pela 1ª instância como assente.
Assim, como os artigos 9º a 14º da petição inicial não foram impugnados pela ré na contestação devem, na íntegra, ser considerados admitidos por acordo. Também o documento nº 5 junto com a petição inicial (junto a fls. 11 e muito convocado pela recorrente) deve considerar-se provado no seu conteúdo declarativo, já que não foi impugnado pela ré e a ele se refere por remissão o artigo 14º da petição.
Por isso, os pontos 6., 7., e 8. da matéria de facto acima reproduzida devem ter o seguinte teor:
“6. O autor enquanto encarregado geral e no exercício das suas funções, atenta a ausência dos gerentes da ré, e para evitar a paralisação de obras e trabalhos em curso, com os inerentes prejuízos, e também pela não concessão de crédito por parte dos fornecedores da ré, pagou, a expensas suas, com dinheiro adiantado do seu bolso, cimento, areia, tijolo, gasóleo e outros materiais, titulados por facturas/recibos e vendas a dinheiro em nome da ré, no valor total de € 17.773,38.
7. O autor sempre entregou nos escritórios da ré os documentos referentes a essas despesas.
8. A ré emitiu, por escrito, a seguinte declaração, subscrita por gerente:
“DECLARAÇÃO
A Firma R...., declara que deve ao seu trabalhador, Sr. Victor Manuel Gomes de Figueiredo, referente a abonos e despesas por este efectuadas com aquisição de diversos materiais, refeições e outros gastos, enquanto trabalhador com a categoria profissional de encarregado, conforme justificativos por este entregues e em posse da empresa, designadamente facturas, vendas a dinheiro e outros no montante total de 17.773.38€ (dezassete mil setecentos e setenta e três euros e trinta e oito cêntimos), que esta se compromete a restituir-lhe dentro do prazo possível.
Por ser verdade se passa a presente declaração para todos os efeitos legais.
Canas de Santa Maria, 30 de Dezembro de 2004
Ré.......
A Gerência”.
Os factos indicados, não podem deixar de pressupor uma clara conexão entre a relação laboral e o crédito do autor. O autor, como trabalhador com determinadas responsabilidades e perante a impossibilidade da ré o fazer, adiantou dinheiro seu para efectuar pagamentos a fornecedores daquela, com vista a garantir os meios necessários à laboração. Com o consentimento tácito da ré (provou-se que o réu sempre entregou nos escritórios da ré os documentos referentes a essas despesas, o que demonstra o seu conhecimento e revela com toda a probabilidade a sua aprovação – art. 227º do Código Civil), reconhecido, de resto, expressamente no documento confessório acima reproduzido.
A ré nega nas alegações tal conexão e sugere que se o autor procedeu aos adiantamentos, tal sucedeu, não pela relação laboral, mas pela relação familiar que mantinha com os sócios-gerentes da ré.
Ora, não é esta última realidade que está provada.
Quer o Sr. Juiz da primeira instância, quer o autor nas contra-alegações, quer o MºPº, no seu parecer, defendem que o tribunal era competente para o pedido em causa por conexão: sendo o tribunal de trabalho o competente para conhecer do pedido principal é-o também para conhecer da questão conexa, nos termos da alínea o) do artigo 85° da LOFTJ.
No contrato de trabalho, podemos dizer que ao lado das obrigações principais que o caracterizam, para efeitos de qualificação jurídica, existem outras obrigações, estas acessórias que densificam a relação contratual e a dotam de garantias funcionais. Todas subordinadas ao princípio geral contido no artigo 119º do Código do Trabalho, que no seu nº2 (o nº1 enuncia o princípio geral da boa fé que é comum ao regime de todos os contratos – v. art. 762 nº2 do Código Civil) concretiza: “na execução do contrato de trabalho devem as partes colaborar na obtenção de maior produtividade, bem como na promoção humana, profissional e social do trabalhador”.
O que traduz, desde logo, da parte do empregador um dever de cooperação creditória, onde se inclui o fornecimento das matérias-primas, instrumentos e máquinas necessária à laboração (v. Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 12ª ed., pag. 279). Se o empregador não cumpre, incorre em mora nos termos do artigo 813º do Código Civil (mora do credor: incorre em mora quando não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação). Incorrendo em mora terá de indemnizar o devedor (neste caso o trabalhador, devedor da prestação de trabalho) das maiores despesas que este seja obrigado a fazer com o oferecimento infrutífero da prestação e a guarda e conservação do objecto, nos termos do artigo 816º do Código Civil.
Ou seja, no nosso caso o trabalhador para assegurar o oferecimento da sua prestação laboral fez maiores despesas, perante a mora da ré (credor), o que só por si justificava no âmbito do contrato de trabalho a obrigação de indemnização por essas despesas.
O que só por si justifica a competência directa do tribunal do trabalho para tal pedido e causa de pedir, nos termos do artigo 85 al. b) da LOFTJ. A situação de adiantamento de despesas dos empregadores, por parte dos trabalhadores, é muito comum, como se sabe (mesmo na aquisição de materiais de trabalho), embora não na expressão quantitativa que a situação dos autos mostra. Tal realidade, na sua complexidade e riqueza, cobre todo um conjunto de situações que pode normativamente ser observada no artigo 260º do Código do Trabalho (ajudas de custo e outros abonos, incluindo despesas em serviço do empregador), cuja reintegração patrimonial não se considera retribuição e para as quais não se concebe que o tribunal do trabalho não tenha competência directa.
Mas, mesmo que assim não fosse, na perspectiva jurídica de considerar que teriam ocorrido duas distintas relações jurídica, tendo o crédito do autor pelas despesas efectuadas origem numa fonte de obrigações autónoma (mútuo refere a recorrente) ao lado do contrato de trabalho, então o tribunal seria, de facto, competente por conexão nos termos defendidos pelo Sr. Juiz da 1ª instância, atento nexo funcional entre as, então, duas relações autónomas e o disposto na al. o) do art. 85.º da Lei n.º 3/99.
Os tribunais do trabalho são tribunais de competência especializada e a sua competência em matéria cível consta daquele artº 85º. Aí se prevê um extenso conjunto de matérias cuja apreciação pertencem exclusivamente aos tribunais do trabalho, mas, a par dessas, outras há que também podem ser por eles apreciadas, verificados que sejam certos requisitos, apesar de tal competência caber normalmente a outros tribunais.
A alínea o) do art. 85.º, prescreve que os tribunais do trabalho são competentes, em matéria cível, para conhecer “das questões entre sujeitos de uma relação de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementariedade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o tribunal seja directamente competente”. Trata-se de questões de que os tribunais do trabalho não podem conhecer quando se apresentem isoladamente, mas que a lei lhes possibilita o conhecimento quando se cumulem com outras para as quais sejam directamente competentes.
Na presente acção, o autor formulou pedidos de pagamento de remunerações e indemnização pela cessação do contrato de trabalho. Não há dúvidas nenhumas acerca da competência do tribunal para deles conhecer, competência que advém do disposto na alínea b) do art. 85.º da LOTJ. Trata-se de uma competência directa.
O pedido de pagamento das despesas assinaladas, por ele efectuadas em materiais para a ré, foi cumulado, portanto, com esses pedidos para os quais o tribunal tinha competência directa.
Se no caso individualizarmos o contrato de trabalho, por um lado, e outra distinta fonte do crédito do autor, qual seria essa fonte? Mútuo como refere a recorrente ou outra?
A hipótese de simples mútuo esbarra com a situação de facto, na medida em que o autor nada entregou à ré (v. noção de mútuo – artigo 1142 do Código Civil). O que se passa é que o trabalhador, terceiro em relação à prestação devida (da responsabilidade da ré), cumpre ele próprio a prestação, pagando as dívidas. Podia fazê-lo, nos termos previstos no artigo 767º nº 1 do Código Civil.
Como vimos, e resulta dos factos provados, o trabalhador tinha um interesse directo na satisfação dessas dívidas - enquanto encarregado geral e no exercício das suas funções, para evitar a paralisação de obras e trabalhos em curso. A organização empresarial em que estava envolvido e que lhe garantia o sustento (note-se que, como ficou provado, o autor trabalhava em exclusividade para a ré) necessitava dos materiais que pagou para continuar em laboração, ou seja, para ele próprio, como encarregado, continuar o exercício da actividade a que se tinha vinculado pelo contrato de trabalho.
Assim sendo, a situação identificada enquadra-se no disposto no artigo 592º do Código Civil, no que toca a uma situação de transmissão de crédito: a subrogação. O terceiro que cumpre a obrigação fica subrogado nos direitos do credor quando estiver directamente interessado na satisfação do crédito. Trata-se de uma situação de subrogação legal, não dependente do consentimento do credor ou do devedor.
O contrato de trabalho e o negócio jurídico (uma vez que, como se disse, a ré consentiu nesses pagamentos) que vincula a ré à obrigação agora titulada pelo autor, surgem nesta perspectiva, com nitidez, como uma situação de união ou coligação de contratos (v. A. Varela, Das Obrigações em Geral, 2ª ed., Almedina, pag. 225). Existe um nexo funcional, uma relação de dependência entre ambos (dependência unilateral, por parte do segundo), na medida em que o primeiro é motivo do segundo – para defesa da empresa, em relação à qual lhe assiste o dever acessório de cooperação e que lhe garante o emprego, o autor assumiu pagamentos de dívidas daquela.
Ou seja, ambas as relações serão fonte autónoma de obrigações, mas a segunda, atento o sinalagma funcional que as liga é geneticamente dependente da primeira. A conexão é patente e justifica a sua apreciação em conjunto.
Por isso, o tribunal recorrido era materialmente competente para o conhecimento de todos os pedidos, improcedendo nesta parte as conclusões do recurso.

3- A questão de saber se é exigível à ré que efectue o pagamento da dívida em questão antes de lhe ser possível.
Como se viu a ré, na declaração confessória acima reproduzida compromete-se a restituir ao autor a quantia de € 17.773.38 “dentro do prazo possível”.
Trata-se de uma declaração unilateral e não de estipulação contratual de cumprimento “quando possível” ou dependente do arbítrio do devedor (art. 778º do Código Civil).
Assim, visto, como ficou dito, que o autor ficou subrogado nos direitos dos credores da ré a quem satisfez pagamentos, na falta de estipulação ou disposição especial da lei, o autor podia exigir a todo o tempo o cumprimento da obrigação (777º nº1 do Código Civil).
Perspectiva que foi acolhida na sentença da 1ª instância e reafirmada pelo Sr. Juiz no despacho que proferiu após a arguição de nulidades da sentença.
Improcedem, assim, as conclusões do recurso, na totalidade.
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III- DECISÃO
Termos em que se delibera confirmar inteiramente a decisão impugnada, negando provimento ao recurso.
Custas a cargo da apelante.