Acordam em audiência na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.
Por sentença proferida no processo n.º 125/04.3PCACB do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça foi o arguido condenado como autor de um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido nos termos do art.º 25.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro na pena de um ano de prisão cuja execução ficou suspensa por ano e meio.
Inconformado com o decidido, vem o arguido impugná-lo, concluindo assim a respectiva motivação:
A) O presente recurso é interposto da sentença de fls. … que condenou o Arguido pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p., pelo artigo 25°, alínea a), conjugado com o artigo 21°, n° 1, com referência à Tabela I-C, ambos do Decreto-Lei no 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 1 (um) ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano e meio e, consequentemente, no pagamento da quantia de 2 UCs de taxa de justiça, acrescida de 1%, nos termos do artigo 13°, n° 3 do Decreto-Lei n° 423/91, de 30 de Outubro, bem como as demais custas do processo, fixando-se em ¼ de procuradoria;
B) Escorrida a sentença sindicada, resulta que o Tribunal a quo entendeu que, dada a revogação do artigo 40° do DL n.º 15/93, de 22.1, operada pelo art.º 28.º da Lei n° 30/2000, de 29.11, fora dos casos do art.º 2.º desta Lei, a detenção para consumo próprio de uma quantia de estupefacientes super consumo médio individual durante o período de 10 dias deixou de ser p. e p. como crime de consumo de estupefacientes (antes p. e p. pelo revogado art.º 40°) e passou a ser p. e p. como crime de tráfico (no caso dos autos, de menor gravidade) nos termos do disposto no art.º 21° e 25° do Decreto-Lei .° 15/93, de 22.1.
C) Face à mesma factualidade, o Tribunal a quo, converteu o crime de consumo de estupefacientes (p. e p. pelo revogado art.º 40° nos 1 e 2 do Decreto-Lei n° 15/93 de 22.1), num crime de tráfico, isto é, transforma o consumidor em traficante;
D) A Lei n° 30/2000, de 29.11, que operou a revogação do citado art.º 40° (excepto quanto ao cultivo) é uma Lei descriminalizadora/despenalizadora o consumo de estupefacientes (como é o caso sub judice);
E) A lacuna de punição que o legislador criou com a descriminalização decorrente do art.º 28° (Lei n° 30/2000, de 29.1) de todas as condutas de posse de droga para consumo, mesmo aquelas que o sejam em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante dez dias, não pode ser sanada pelo intérprete/julgador nos moldes como o faz o Tribunal a quo.
A tal desiderato se opõem as razões que estiveram na base da aprovação da citada Lei, bem como do elenco de soluções propostas para as contra-ordenações previstas naquele diploma legal (orientadas para o tratamento do toxicodependente ).
Salvo o devido respeito, ao penalizar mais severamente a mesma conduta (antes crime de consumo agora crime de tráfico), o tribunal a quo subverte o sistema e as opções tomadas pelo legislador.
F) Com a revogação expressa do art.º 40° do Decreto-Lei n° 15/93, de 22.1. operada pelo art.º 28° da Lei no 30/2000, de 19.11., o n° 2 do art.º 2° desta Lei deverá ser interpretado no sentido de que o critério legal aí enunciado – quantidade necessária para o consumo médio individual durante 10 dias – é meramente orientador, para distinguir entre o consumo e o tráfico, facto que não impede que tal conduta não possa ou não deva ser enquadrada no n.º 1 da citada norma;
G) Logo, os factos a que se reportam os autos e a data dos mesmos (16.8.2004) — detenção de estupefacientes (resina de canabis, vulgo haxixe) para consumo próprio (entenda-se, exclusivo), em quantidade superior (22,987 grs.) à necessária para o consumo médio individual durante dez dias – não permitem, pois, enquadrar a conduta do Recorrente como autor de um crime de tráfico (ainda que de menor gravidade), mas apenas como autor de uma contra-ordenação;
H) Termos em que, o Tribunal a quo ao qualificar a conduta do agente detenção para consumo próprio de quantidade superior ao consumo médio individual durante o período de 10 dias – como integrando o cometimento de um crime de tráfico, p. e p. nos artigos 25° al. a) em conjugação com o art.º 21°, ambos do Decreto-Lei n° 15/93, de 22.1, faz uma errónea aplicação do Direito, por a mesma não configurar a situação sub judice.
A conduta descrita nos autos só poderia ser qualificada como contra-ordenação e, por via disso, enquadrada (p. e p.) nos artigos 1.º e 2.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n° 30/2000, de 29.11, pelo que ao não tê-lo assim determinado, violou o Tribunal a quo as referidas disposições legais;
Acresce que,
I) A interpretação do tribunal a quo, referida em B) e E) destas conclusões, é manifestamente excessiva, arbitrária e desproporcionada, além de que viola os princípios da necessidade da pena e da culpa e, consequentemente, é ferida de inconstitucionalidade, por violação dos artigos respectivamente 2°, 18° no 2 e 1° e 27° no 1, todos da Constituição da República Portuguesa.
J) O Tribunal a quo errou no julgamento da matéria de facto ao dar como demonstrada a existência de dolo directo, com base nas declarações do Arguido;
K) Da prova produzida e do teor da sentença recorrida não é possível concluir que o Arguido tenha actuado com dolo, seja ele directo seja eventual.
Pelo exposto e sempre com o douto suprimento de V. Ex.ª, deverá revogar-se a sentença proferida, substituindo-se a mesma por Acórdão que, revogando a sentença proferida, determine a absolvição do Arguido/Recorrente como autor material de um crime de tráfico de menor gravidade, porquanto a sua conduta só poderá integrar a prática de uma contra-ordenação.
Assim se fará a costumada JUSTIÇA”
O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.
Respondeu o Digno Procurador Adjunto, manifestando-se pela improcedência do recurso, defendendo a manutenção da decisão recorrida.
Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta, pela improcedência do recurso.
No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal o arguido nada disse.
Os autos tiveram os legais vistos após o que se realizou a audiência.
Cumpre, agora, conhecer do recurso interposto.
Constitui entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos, excepto quanto àqueles casos que sejam de conhecimento oficioso.
É dentro de tal âmbito que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras).
Cumpre ainda referir que é também entendimento pacífico que o termo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir.
O recurso dos autos incide exclusivamente sobre matéria de direito, sem do prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios constantes do no 2 do art.º 410.º do Código Processo Penal.
Questão prévia:
Nas suas conclusões vem o recorrente alegar a inconstitucionalidade da “interpretação do tribunal referida em B) e E) (…) por violação dos artigos respectivamente 2.º, 18.º, n.º 2 e 1.º e 27.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa”.
Ora, sendo tal alegação de inconstitucionalidade matéria de direito, desde logo se conclui que não se mostra minimamente cumprido o determinado pelo art.º 412.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Contudo, não é caso de convite para apresentação de novas conclusões.
Com efeito, após examinarmos atentamente as motivações, verifica-se que nas mesmas não foi feita qualquer referência à indicada inconstitucionalidade pelo que, sendo as conclusões “um apanhado conciso de quanto se desenvolveu no corpo da motivação”( “Recursos em Processo Penal”, de Simas Santos e Leal Henriques, pág. 93) e nelas não tendo sido minimamente aflorado tal vício, nada há a corrigir.
Assim, sendo insanável a deficiência resultante das omissões da motivação (pois que o conteúdo do texto da motivação constitui limite absoluto que não pode ser extravasado nas conclusões)( Neste sentido e entre muitos outros, v.g., Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Dezembro de 2005 (www.pgdlisboa.pt/pgdl/jurel/stj)) e uma vez que as conclusões são logicamente um resumo dos fundamentos porque se pede o provimento do recurso( Neste sentido, v.g., Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Maio de 1998, processo n.º 328/98 (cfr. Código de Processo Penal Anotado de Simas Santos e Leal-Henriques, II Volume, 2ª edição, pág. 824) )), não será apreciada a questão da inconstitucionalidade (que, diga-se, não se vislumbra existir).
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Questão a decidir: Integração jurídica dos factos dados como provados
Diga-se desde já que não se vislumbra na sentença qualquer dos vícios previstos no art.º 410.º do Código de Processo Penal pelo que está definitivamente assentes a seguinte factualidade:
“No dia 16 de Agosto de 2004, pelas 1.30 horas, no Largo Frederico Ullrich, sito nas imediações da Avenida Marginal, em S. Martinho do Porto, área deste Concelho e Comarca de Alcobaça, o arguido A... detinha no interior da meia do pé direito, embrulhados num guardanapo branco, 5 (cinco) pedaços de resina de canabis, substância vulgarmente por haxixe, com o peso líquido de 22,987 grs. (vinte e dois vírgula novecentos e oitenta e sete gramas).
O referido haxixe havia sido adquirido pelo arguido no dia 15 de Agosto de 2004, pelo preço de 50,00 € (cinquenta Euros), a pessoa não concretamente identificada, nas imediações do estabelecimento denominado “Pato Bravo”, sito na Avenida Marginal, em S. Martinho do Porto.
O referido haxixe destina-se ao próprio consumo do arguido A... por um período de tempo de pelo menos 45 (quarenta e cinco) dias.
O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, conhecendo as características do haxixe apreendido e bem sabia que a sua aquisição, detenção, transporte, cessão a outrem, por qualquer forma, mesmo que para seu consumo mas em quantidades superiores às permitidas por lei, como era também o caso, do haxixe que detinha, eram censurados, proibidos e punidos por lei.
O arguido era à data dos factos e sempre foi estudante.
Ocasionalmente, fazia alguns trabalhos remunerados mas de curta duração e sem qualquer carácter regular.
À data dos factos tinha arranjado trabalho na estalagem “Concha” sita em São Martinho do Porto, onde se encontrava a passar férias com o resto da sua família (pais e irmãos).
E a aquisição da substância apreendida havia sido adquirida no final do dia 15 de Agosto de 2004.
À data dos factos o arguido estava bastante desorientado.
…
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Perante o acervo factual assente, foi o arguido foi condenado como autor de um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido nos termos do art.º 25.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
Não concordando com o enquadramento jurídico feito pelo tribunal “a quo”, vem ele atacar tal condenação dizendo que a sua conduta apenas poderá integrar a prática de uma contra-ordenação.
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Vejamos se lhe assiste razão.
A entrada em vigor da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro tem originado grande discussão na jurisprudência e na doutrina quanto à integração jurídica de comportamentos que, como no caso dos autos, o agente detém, para o seu exclusivo consumo, quantidades de produtos estupefacientes superiores necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
São essencialmente três as teses em confronto.
Assim, defendem
1) uns que integra um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido nos termos do art.º 25.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro,
2) outros que constitui contra-ordenação integrável no artigo 2º, n.º 1, da Lei n.º 30/2000 e
3) outros que o artigo 40º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro se mantém em vigor para os casos em que a quantidade adquirida ou detida de substância estupefaciente para consumo excede aquela quantidade.
Referiremos sucintamente os argumentos de cada uma das visões do problema, deixando desde já consignado que subscrevemos esta última posição por nos parecer que é a que melhor se coaduna com a.
Quem defende a primeira posição argumenta que o artº 40º do Decreto-lei 15/93 foi revogado pelo artigo 28º da Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro (excepto quanto ao cultivo) e que, inexistindo retroactividade incriminatória e resultando do disposto no artigo 2º nº 2 que à detenção e aquisição de quantidades superiores às necessárias para dez dias não corresponde comportamento contra-ordenacional, devemo-nos reportar à previsão do art.º 25.º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro para integrar a conduta, dada a menor gravidade da ilicitude( Neste sentido e por todos, v.g., Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 14 de Dezembro de 2004, in www.tre.pt ).
Os defensores da segunda posição sustentam que ao dizer a lei que fica revogado o artigo 40º, do DL 15/93 se descriminalizou o consumo e a aquisição e detenção para consumo próprio de estupefacientes independentemente da quantidade de produto estupefaciente e ainda que, muito embora o n.º 2 do art.º 2.º da Lei n.º 30/2000 inculque a ideia de que o legislador pretendeu sancionar de forma mais gravosa as situações em que a quantidade de produto é superior à necessária para o consumo médio individual durante 10 dias, o certo é que não previu nem estabeleceu o respectivo tipo e sanção, pelo que se deve interpretar o nº 2 do art. 2º da no sentido de que o valor ali referido é meramente indicativo( Neste sentido e por todos, v.g. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 6 de Março de 2006, in www.dgsi.pt/jtrg).
Quem defende a terceira posição considera que o legislador se expressou mal e que descriminalização do consumo de estupefacientes operada pela Lei nº 30/2000 foi apenas parcial, pelo que a detenção ou aquisição para consumo de produtos estupefacientes em quantidade que exceda a necessária ao consumo médio individual durante dez dias continua a integrar o crime tipificado no art. 40º, do DL nº 15/93, que se mantém parcialmente em vigor(Neste sentido e por todos, v.g., Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de 11 de 2004 proferido no processo n.º 3239/04 - 3.ª Secção in www.stj.pt).
Como é evidente, toda esta instabilidade na jurisprudência e na doutrina resulta da deficiente redacção do texto legislativo.
Cabe-nos portanto interpretá-lo.
Vejamos.
Diz-nos o art.º 9.º do CC (Interpretação da lei) o seguinte:
1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Como diz Francesco Ferrara — in “Interpretação e Aplicação das Leis”, 3ª Edição, 1978. pág.s 127 e seg.s e 138 e seg.s — “para apreender o sentido da lei, a interpretação socorre-se de vários meios: em primeiro lugar busca reconstituir o pensamento legislativo através das palavras da lei, na sua conexão linguística e estilística, procura o sentido literal. Mas este é o grau mais baixo, a forma inicial da actividade interpretativa. As palavras podem ser vagas, equívocas ou deficientes e não oferecerem nenhuma garantia de espelharem com fidelidade e inteireza o pensamento: o sentido literal é apenas o conteúdo possível da lei: para se poder dizer que ele corresponde à mens legis, é preciso sujeitá-lo a crítica e a controlo”.
Por seu turno, diz o Prof. Manuel de Andrade — in “Estudo sobre a Teoria da Interpretação das Leis”, pág. 21/26 — “interpretar a lei não é mais do que fixar o seu sentido e o alcance decisivos” e “o escopo final a que converge todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei”.
Diz-nos a este respeito o Professor Antunes Varela — “Direito da Família”, 1980, pág. 13 — que a interpretação da lei “não se reduz uma simples análise gramatical ou lógica dos textos. A formulação do pensamento legal obriga, não a esse puro trabalho de exegese literal, mas a uma reconstituição histórica do conflito de interesses subjacente a cada norma, à inventariação das várias soluções teoricamente possíveis do conflito versado e à descoberta da razão determinante da opção real ou presuntivamente feita pela lei”
Os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, 3ª Ed., pág. 58, em comentário ao art.º3.º do C.C., explicam que “ao mesmo tempo que manda atender às circunstâncias (históricas) em que a lei foi elaborada, o preceito não deixa de expressamente considerar relevantes as condições específicas do tempo em que a norma é aplicada (nota vincadamente actualista)” e sustentam que “o facto de o artigo afirmar que a reconstituição do pensamento legislativo deve fazer-se a partir dos textos não significa, de modo nenhum, que o intérprete não possa ou não deva socorrer-se de outros elementos para esse efeito, nomeadamente do espírito da lei (mens legis). Resumindo, embora sem grande rigor, o pensamento geral desta disposição, pode dizer-se que o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei. Quando, porém, assim não suceda, o Código faz apelo franco, como não poderia deixar de ser, a critérios de carácter objectivo, como são os que constam do n.º 3”.
Passemos então a analisar o diploma em questão.
Em 1 de Julho de 2001 entrou em vigor a Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro.
Da mesma, relevam para a decisão no caso «sub judice» os seguintes artigos:
Artigo 1.º (Objecto)
1 – A presente lei tem como objecto a definição do regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica.
2 – As plantas, substâncias e preparações sujeitas ao regime previsto neste diploma são as constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
Artigo 2.º (Consumo)
1 – O consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior constituem contra-ordenação.
2 – Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
Artigo 28.º (Normas revogadas)
São revogados o artigo 40.º, excepto quanto ao cultivo, e o artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, bem como as demais disposições que se mostrem incompatíveis com o presente regime.
Tomemos ainda em atenção o artigo 40.º (Consumo) do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro
1 - Quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias.
2 - Se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações cultivada, detida ou adquirida pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 5 dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias.
3 - No caso do n.º 1, se o agente for consumidor ocasional, pode ser dispensado de pena.
Da conjugação do disposto nos art.ºs 1.º, n.º 2 e 2.º conclui-se sem qualquer margem para dúvidas que o consumo das substâncias compreendidas nas tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro foi descriminalizado e que o mesmo aconteceu com a aquisição e detenção para consumo próprio dos referidos produtos estupefacientes desde que a sua quantidade não exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias.
A lei é aqui muito clara: tais comportamentos passaram a constituir contra-ordenação.
Não há qualquer divergência a este respeito na jurisprudência ou na doutrina.
Contudo, quando a quantidade adquirida ou detida para consumo próprio excede a necessária para o consumo médio individual de dez dias, a lei nada diz.
Ora, ao nada dizer e vigorando em matéria contra-ordenacional o princípio da legalidade (art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro), que compreende o princípio da tipicidade( «A legalidade dos ilícitos é conseguida através da técnica da tipicidade, que consiste em descrever, de forma clara, precisa e rigorosa, a conduta ou o facto considerados criminalmente reprováveis. Esta descrição é aquilo que constitui o que se chama “tipo” e assim aquela conduta ou aquele facto são chamados “conduta típica” ou ‘facto típico», Teresa Beleza, Direito Penal, 2.” Edição, Volume I, página 73.) e impede a analogia, temos que concluir que, não tendo sido tipificada tal acção, não pode o julgador interpretar tal silêncio noutro sentido que não seja o de que a Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro não prevê como contra-ordenação o comportamento em causa.
Também neste aspecto não há grandes discordâncias na jurisprudência ou na doutrina. Apenas uma pequena parte das mesmas defende que tal comportamento foi também contra-ordenacionalizado( Para além do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães já indicado, esta posição é ainda defendida, por exemplo, por Lourenço Martins, in “Droga – Nova Política Legislativa”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 11, Fasc. 3, pág. 413 a 451 e no Acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra de 15 de Dezembro de 2004, n.º processo n.º 3452/04). No entanto, apresenta argumentos que não só não conseguem ultrapassar a letra da lei como colidem mesmo com o princípio da legalidade.
Pode-se portanto concluir que apenas o consumo e a aquisição e detenção para consumo próprio de produtos constantes nas tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro que não excedam a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias foram descriminalizados e passaram a constituir contra-ordenação.
Ficaram assim de fora do diploma todas aquelas situações em que a quantidade adquirida ou detida ultrapassa aquela quantidade.
Temos assim por adquirido que a Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro apenas converteu em contra-ordenação as condutas menos graves, deixando de fora as demais.
No entanto, diz no art.º 28.º deste diploma que fica revogado o art.º 40.º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, disposição esta que tipifica como crime o consumo e a aquisição e detenção para consumo de produtos estupefacientes, qualquer que seja a quantidade.
Se tomássemos à letra o texto do artigo e entendêssemos que o legislador tinha expressado adequadamente a sua vontade na letra da lei, teríamos que necessariamente chegar à inevitável conclusão de que considerara que a aquisição e detenção de produtos estupefacientes em quantidade superior à indicada no art.º 2.º, n.º 2 não merece suficiente censura para que possa ser considerada crime ou contra-ordenação.
Como é óbvio, não era esta a intenção do legislador. Não fazia qualquer sentido que o seu propósito fosse tipificar as condutas mais leves como contra-ordenação e deixar as mais graves sem qualquer enquadramento jurídico e consequentemente sem sanção.
Qual será então mens legislatoris?
Uma vez que já chegámos à conclusão de que o legislador não pretendeu contra-ordenacionalizar a conduta mais grave, só nos resta considerar que foi sua vontade que a mesma continuasse a constituir crime.
A jurisprudência e a doutrina encontraram dois caminhos para “explicar” o espírito da lei (para além do supra referido entendimento que integra a conduta como contra-ordenação):
- Um que considera que o legislador se expressou devidamente e que tais factos constituem um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido nos termos do art.º 25.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro e
- Outro que entende que o legislador expressou mal a sua vontade e que a conduta em causa integra o crime de consumo, previsto e punido pelo art.º 40.º, n.º 2 do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro com o limite imposto pelo art.º 2.º, n.º 2 da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro.
A primeira posição não consegue ultrapassar dois escolhos: um de carácter estritamente legal e outro o da ratio da própria alteração legislativa.
Começando pelo primeiro diremos que resulta de uma forma muito clara para o intérprete que o art.º 25.º só funciona relativamente às condutas previstas nos art.ºs 21º e 22º, o que não é mais do que a aplicação do princípio geral de que o tipo privilegiado acrescenta ao tipo simples os elementos atenuativos que conduzem ao seu abandono("Quando o legislador prevê um tipo simples, acompanhado de um tipo privilegiado e um tipo agravado, é no crime simples ou no crime-tipo que desenha a conduta proibida enquanto elemento do tipo e prevê o quadro abstracto de punição dessa mesma conduta. Depois, nos tipos privilegiado e qualificado, vem definir os elementos atenuativos ou agravativos que modificam o tipo base conduzindo a outros quadros punitivos. E só a verificação afirmativa, positiva desses elementos atenuativo ou agravativo é que permite o abandono do tipo simples" (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Maio de 2005, processo n.º 244/2005) ).
Ora, o art.º 21.º, n.º 1 diz-nos que “quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 (doze) anos”, ou seja, este artigo exclui expressamente as condutas que agora pretendemos integrar juridicamente.
Assim e uma vez que o elemento atenuativo que é acrescentado no art.º 25.º é a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, temos que concluir que afastando o crime-tipo as situações em que o produto estupefaciente se destina exclusivamente ao consumo do agente, o crime privilegiado mantém a mesma exclusão.
Por outro lado, não fazia qualquer sentido que tendo querido o legislador com a alteração legislativa tratar mais favoravelmente os consumidores, incentivando-os ao tratamento e ajudando-os na integração social, tivesse “transformado” alguns deles em traficantes( Como se diz no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25 de Fevereiro de 2003, in CJ, 2003, tomo I, pág. 141, “não é razoável pensar que uma lei descriminalizadora, benfazeja para o consumidor, pretenda que uns gramas de droga transformem um «doente» a proteger num autêntico traficante, esquecendo-se de salvaguardar situações que a velha lei acautelava”).
É evidente que não foi este o pensamento do legislador.
Conclui-se assim que a solução a encontrar também não comporta a interpretação de que as situações de detenção e aquisição não previstas na Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro integram o crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido nos termos do art.º 25.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
Sobeja pois, o recurso a uma interpretação restritiva da norma revogatória( A interpretação restritiva da lei consiste em “restringir o alcance aparente da lei, reduzindo-o às proporções compatíveis com a vontade real do órgão legislativo” (Pires de Lima e Antunes Varela, in “Noções Fundamentais do Direito Civil”, 4ª Edição, 1.º Volume, pág. 155) ou, como diz Leib Soibelman, in Dicionário Geral do Direito, edição brasileira, volume 2.º, pág. 325, “é a que restringe o sentido de uma lei, admitindo que o legislador disse mais do que queria”.), ou seja, há que interpretar o art.º 28.º de modo a compatibilizá-lo com a vontade real do legislador.
Com efeito e dando como certo que o legislador não tipificou como contra-ordenação a aquisição e detenção de produtos estupefacientes para uso próprio exclusivo de quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante dez dias e também as não descriminalizou, há que concluir que ao dizer que “são revogados o artigo 40.º (…) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro” não expressou claramente no texto da lei o seu pensamento e disse mais do que queria.
Ora, na sequência do que anteriormente dissemos, a única interpretação que se adequa à mens legislatoris e que ainda é compatível com a letra da lei, é a que considera que o art.º 28.º revoga o art.º 40.º apenas na parte relativa às situações agora previstas na Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro.
Posto isto e considerando que o produto apreendido está elencado na tabela I-C anexa ao Decreto Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, que o mesmo era destinado exclusivamente ao consumo do próprio arguido, que este conhecia as características da substância detida, que sabia que a aquisição e detenção da mesma era proibida por lei e ainda que a quantidade era superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias, dúvidas não restam de que cometeu um crime de consumo de estupefacientes previsto e punido pelo artº 40º, nº 2 do Decreto Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.
Vejamos agora a consequência jurídica do crime cometido.
Escolha da pena:
Diz-nos o art.º 70.º do Código Penal que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição” e que são, segundo o n.º 1 do art.º 40.º do mesmo diploma “a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.
Temos assim que a escolha da pena depende de critérios de prevenção geral e especial (v.g. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17 de Janeiro de 1996, CJ, ano XXI, tomo 1, pág. 38) pelo que o julgador, perante um caso concreto, tem que os valorar para depois optar por aplicar uma pena detentiva ou não detentiva.
Como bem explica o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Janeiro de 2001 (processo n.º 3404/00-5ª) “subjaz à norma constante no art.º 70.º, do CP, toda a filosofia informadora do sistema punitivo vertido no Código Penal vigente, ou seja, a de que embora se aceitando a existência da prisão (ou pena corporal) como pena principal para os casos em que a gravidade dos ilícitos, ou de certas formas de vida, a impõem ou justificam, a recorrência deverá ter lugar quando, face ao circunstancialismo que se perfile, se não apresentem adequadas, suficientes ou convenientes, as sanções não detentivas, às quais não é de recusar elevada capacidade (ou potencialidade) ressocializadora. Tudo isto se insere no desiderato de se evitarem as curtas penas de prisão (ou a eventualidade da efectivação dessas penas) donde que, por regra, a alternativa por pena de multa se autorize nos casos em que aos ilícitos caiba pena prisional não demasiado elevada”.
Elucida ainda a este respeito o Professor Jorge de Figueiredo Dias in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, §§ 497 e 498 que “o tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena alternativa ou de substituição sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa ou a de substituição se revelem adequadas e suficientes à realização das finalidades da punição, o que vale logo por dizer que são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efectiva aplicação. Bem se compreende que assim seja: sendo a função exercida pela culpa, em todo o processo de determinação da pena, a de limite inultrapassável do quantum daquela, ela nada tem a ver com a questão da escolha da espécie de pena. Por outras palavras: a função da culpa exerce-se no momento da determinação quer da medida da pena de prisão (necessária como pressuposto da substituição), quer da medida da pena alternativa ou de substituição; ela é eminentemente estranha, porém, às razões históricas e político-criminais que justificam as penas alternativas e de substituição, não tendo sido em nome de considerações de culpa, ou por força delas, que tais penas se constituíram e existem no ordenamento jurídico.”
Explica ainda aquele Ilustre Professor que “o tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa ou de uma pena de substituição quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas” (§ 500) e que leve surgir aqui unicamente sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização. Quer dizer: desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias”.
Em suma “a defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Setembro de 1997, processo n.º 624/97)
Posto isto e atenta a factualidade apurada, consideramos que uma pena de multa realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição
Medida da pena:
A pena a aplicar ao arguido será a resultante da concretização dos critérios do artº 71º do Código Penal, ou seja, num primeiro momento apura-se a moldura abstracta da pena e num segundo momento a medida concreta da mesma.
Assim, no caso "sub judice" e dentro da moldura penal abstracta de prisão até um ano ou multa até cento e vinte dias, há que atender à culpa do agente e às exigências de prevenção, bem como a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo depuserem a favor ou contra o arguido.
Nesta conformidade, há que ter em consideração que a culpa (enquanto censura dirigida ao agente em virtude da sua atitude desvaliosa e avaliada na dupla vertente de culpa pelo facto criminoso e de culpa pela personalidade) para além de constituir o suporte axiológico-normativo da pena, estabelece o limite máximo da pena concreta dado que sem ela não há pena e que esta não pode ultrapassar a sua medida (retribuição justa).
Por outro lado e ainda numa primeira linha, relevam as necessidades de prevenção (com um fim preventivo geral, ligado à contenção da criminalidade e defesa da sociedade — e cuja justificação assenta na ideia de sociedade considerada como o sujeito activo que sente e padece o conflito e que viu violado o seu sentimento de segurança com a violação da norma, tendo, portanto, direito a participar e ser levada em conta na solução do conflito — e com um fim preventivo especial, ligado à reinserção social do agente).
Assim e em termos de prevenção geral, a medida da pena é dada pela necessidade de tutela dos bens jurídicos concretos pelo que o limite inferior da mesma resultará de considerações ligadas à prevenção geral positiva ou reintegração, contraposta à prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente.
Para além de constituir um elemento dissuasor da prática de novos crimes por parte de terceiros, a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas.
No que toca à prevenção especial há a ponderar a vertente necessidade de ressocialização do agente e a vertente necessidade de advertência individual para que não volte a delinquir (devendo ser especialmente considerado um factor que também toca a culpa: a susceptibilidade de o agente ser influenciado pela pena).
Como bem explica o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Janeiro de 2000 (processo n.º 1193/99), “se, por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro, esta nunca pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que — dentro, claro está, da moldura legal —, a moldura da pena aplicável ao caso concreto (“moldura de prevenção”) há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente: entre tais limites, encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social” e também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Outubro de 2000 (processo n.º 2803/00-5ª), “pelo que nos art.ºs 71. °, n.ºs 1 e 2 e 40.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, se plasma, logo se vê que o modelo de determinação da medida a pena é aquele que comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de estabelecer o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma “moldura de prevenção”, cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos — dentro do que é consentido pela culpa — e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro da referida “moldura de prevenção”, que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente.”
Ponderados estes limites, deve ainda o tribunal atender e a quaisquer outras circunstâncias que não fazendo parte do tipo (para que não haja violação do princípio ne bis in idem), deponham contra ou a favor do agente.
Assim e para além do mais (como ensina Jorge Figueiredo Dias in "Direito Penal Português – as Consequências Jurídicas do Crime", pág. 245, § 335 v.g., factores relativos à própria vítima — personalidade, concorrência de culpas, etc. — e/ou relacionados com a necessidade de pena — decurso do tempo), deverá ser sopesado:
- O grau da ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências e o grau de violação dos deveres impostos ao agente
- A intensidade do dolo ou da negligência
- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram
- As condições pessoais do agente e a sua situação económica
- A conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime
- A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
Assim e concretizando:
A culpa é de grau elevado.
As exigências de prevenção geral são prementes e as de prevenção especial mostram-se normais.
O grau de ilicitude é muito elevado (atenta a elevada quantidade de produto estupefaciente detido e não esquecendo o perigo que o domínio de tal porção representa como potenciador da eventual prática de outros ilícitos).
O dolo é directo.
Pondera-se também a situação social do arguido, que não tem antecedentes criminais, que entretanto deixou de consumir produtos estupefacientes e que está socialmente bem inserido.
Atentas todas estas circunstâncias, mostra-se adequado condená-lo em 100 (cem) dias de multa.
Quanto ao montante diário diz-nos o art.º 47.º, n.º 2 do Código Penal que “cada dia de multa corresponde a uma quantia entre € 1 e € 498,80 que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais” o que impõe que “o montante diário da multa deve ser fixado em termos de constituir um sacrifício real para o condenado sem, no entanto, deixar de lhe serem asseguradas as disponibilidades indispensáveis ao suporte das suas necessidades e do respectivo agregado familiar” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Outubro de 1997, in Acs STJ V, 3, 183).
Este critério poderá ser melhor aferido tomando em consideração o seguinte:
O Decreto-Lei nº 47/83 de 29 de Janeiro fixou o salário mínimo nacional geral em 13.000$00 para o ano de 1983 e o Decreto-Lei n.º 242/2004, de 31 de Dezembro fixou-o em € 374,70 para o ano de 2005, ou seja, à data da entrada em vigor do Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro um dia de salário mínimo equivalia a 433$00 (€ 2,16) e à data do julgamento correspondia a € 12,49.
Assim e não esquecendo que com a entrada em vigor do Código Penal revisto pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março o limite diário máximo da pena de multa decuplicou (passou de 10.000$00/€ 49,88 para € 498,80), afigura-se-nos ajustado manter o "esforço" e por conseguinte fazer corresponder o "esforço" actual ao "esforço" exigido no momento da entrada em vigor do Código Penal (sendo de considerar que os "esforços" que actualmente se aproximam mais do limite mínimo de € 1,00 correspondam às situações que no âmbito do Código Penal aprovado pelo Decreto Lei nº 400/82, de 23 de Setembro eram susceptíveis de suspensão de execução da pena de multa nos termos do artº 48º, nº 1 deste diploma).
Posto isto e no que ao caso concreto interessa, não esquecendo que “a pena de multa, se não quer ser um andrajoso simulacro de punição, tem de ter como efeito o causar ao arguido, pelo menos, algum desconforto se não, mesmo, um sacrifício económico palpável” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Junho de 2004, processo n.º 101/03, in www.stj.pt), diremos que se mostra adequado o montante diário de € 8,00.
DECISÃO
Em face do exposto, decide-se conceder parcial provimento ao recurso e consequentemente condenar o recorrente como autor de um crime de consumo, previsto e punido pelo art.º 40.º, n.º 2 do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro em 100 (cem) dias de multa à taxa diária de € 8,00 (oito euros), o que perfaz a multa de € 800,00 (oitocentos euros)
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Custas pelo recorrente, fixando-se em € 12,00 a taxa de justiça.
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Coimbra, 14 de Junho de 2006