Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | JORGE JACOB | ||
Descritores: | CRIME DE INJÚRIAS EXPRESSÕES INIDÓNEAS | ||
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Data do Acordão: | 01/06/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE POMBAL – 3º J | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 181º CP | ||
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Sumário: | 1. A ofensa à honra ou consideração não é susceptível de confusão com a ofensa às normas de convivência social, ou com atitudes desrespeitosas ou mesmo grosseiras, ainda que direccionadas a pessoa identificada, distinção que importa ter bem presente porque estas últimas, ainda que possam gerar repulsa social, não são objecto de sanção penal 2. Para que se verifique um crime de injúria é necessário que as expressões consistam numa imputação de factos, mesmo sob a forma de suspeita, com um conteúdo ofensivo da honra ou consideração do visado, ou que as palavras dirigidas ao visado tivessem esse mesmo cariz ofensivo da honra ou da consideração. | ||
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Decisão Texto Integral: | I – RELATÓRIO: Nestes autos de processo comum que correram termos pelo 3º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal, após julgamento com documentação da prova produzida em audiência, foi proferida sentença em que se decidiu nos seguintes termos: “(…) Tudo visto e ponderado, o Tribunal decide julgar a acusação particular totalmente procedente e o pedido de indemnização civil parcialmente procedente e, em consequência: a) Condenar o arguido R... pela prática, em autoria material, de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º n.º 1 do Código Penal, na pena de 50 dias de multa à taxa diária de sete euros; b) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente F... e, em consequência, condenar o arguido/demandado a pagar-lhe a quantia de 300€ (trezentos euros), acrescidos de juros civis à taxa legal supletiva desde a data da notificação da sentença até integral pagamento, absolvendo-o do demais peticionado;” Inconformado, o arguido interpôs recurso, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões: 1ª - Na douta sentença recorrida, o Meritíssimo Juiz diz alicerçar a sua convicção na prova testemunhal conjugada com documentos juntos, designadamente a fotografia de fls. 5 (prédio do assistente) e informação de fls. 17 (ofício da TMN dando conta que o nº de telemóvel …… está inscrito em nome a B…), apesar de a acusação particular deduzida pelo assistente não indicar tais elementos probatórios como meios de prova a serem apreciados e considerados na audiência final. 2ª - Os referidos dois elementos tomados em consideração pelo Meritíssimo Juiz não o deviam ter sido para motivação da decisão da matéria de facto, porquanto nos termos do artº 340.°, nº 2 do Código de Processo Penal, o Meritíssimo Juiz nunca poderia tomar em consideração estes dois elementos de prova documental, sem ao menos, dar conhecimento, antecipadamente, aos sujeitos processuais para que estes se pudessem sobre isso pronunciarem-se. 3ª - Tal omissão determina uma nulidade processual, e inquina necessariamente, todo o pressuposto da matéria de facto em que a douta sentença recorrida assenta; 4a - Tal determinará a nulidade do julgamento e a sua consequente repetição; 5ª - Do conserto da prova produzida avulta o testemunho de V…, ao ponto de ter sido, aos olhos da douta sentença recorrida o elemento mais credível que se apresentou no cenário do julgamento, porquanto afirma o Meritíssimo Juiz que a testemunha não conhecia nem arguido nem assistente, o que não é exacto tendo em conta que a testemunha trabalhava por conta do assistente, tendo-lhe de tal feito representação, como aliás consta dos suportes técnicos referidos; 6a - Na identificação que a testemunha faz do arguido não foram observadas todas as formalidades exigidas no art. 147.° do C.P.P. para a produção de prova por reconhecimento, sendo nula a prova feita por reconhecimento, pelo que não poderia a douta sentença recorrida ter por estabelecida a autoria das frases constantes da douta acusação; 7ª - Como se retira da acta, datada de 19 de Maio de 2009, não se observaram as formalidades exigidas pela lei, no art° 147° do C.P.P., nos nºs 1 e 2; 8a - A instâncias da Ilustre Mandatária do Assistente também a mesma testemunha não conseguiu ir além de afirmar que o arguido dizia ao assistente, em voz exaltada embora, «você tem mau feito, por isso é que não aluga o café»; 9a - Nunca a testemunha referiu ao Meritíssimo Juiz que tal indivíduo tivesse proferido as expressões: «você tem um feitio do caralho», «você é fodido» e «se você estivesse aqui partia-lhe os cornos»; 10ª - Ao proferir a expressão «você tem mau feito, por isso é que não aluga o café», o arguido não cometeu o crime de injúria e tão só fez uma crítica e/ou apreciação, do carácter de procedimento social que o assistente tinha; 11ª - O ambiente da conversa telefónica foi emotivo e o comportamento do assistente foi de molde «a tirar o arguido do sério», sendo que a expressão usada além de inócua para o direito penal, não passa de um desabafo proferido no calor de uma discussão; 12a - O arguido devia ter sido, pura e simplesmente, absolvido da acusação contra si formulada; 13a - Acresce, ainda que a douta acusação particular é nula, uma vez que não contém os elementos subjectivos que fazem parte do tipo de crime e que devem constar, obrigatoriamente, da acusação, ou seja, é omissa quanto à consciência da ilicitude de tais factos, ou seja, se o arguido sabia ou não que o seu comportamento era proibido e punido por lei; l4a - Na reabertura da audiência para leitura da sentença, em 28 de Maio de 2009, foi proferido despacho pelo Meritíssimo Juiz, a fls. 103 dos autos, acrescentando à acusação particular que o arguido ao proferir as expressões mencionadas na acusação tinha consciência de ser a sua conduta prevista e punida pela lei penal, sendo que o acréscimo deste facto visa colmatar uma deficiência da acusação, que por via do art. 283°, nº 3, al. b), do CPP, constitui uma nulidade da mesma; l5a - A acusação ao omitir um elemento subjectivo do ilícito e que fundamentará a aplicação de uma pena, inculca de nulidade, nulidade essa que não pode ser suprida com a inclusão de tal facto no despacho proferido pelo Meritíssimo Juiz; 16º - A douta acusação sempre seria nula, uma vez que a mesma tem de conter, sob pena de nulidade, a narração ainda que sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o que, como é sabido, a mesma não contém; 17ª - Uma acusação que descreva as expressões imputadas ao arguido sem que, simultaneamente, se refiram os factos subjectivos integradores do tipo de ilícito, não deveria sequer ter sido recebida, ainda que acompanhada pelo Ministério Publico; 18a - Não estando a acusação em termos de ser recebida, é impensável acolher como pertinente a ideia de que em julgamento se pudesse corrigir a acusação particular por recurso a mecanismos processuais, designadamente o resultante da aplicação do art. 358º do C.P.P; 19ª - Sendo o crime de injurias um crime, essencialmente, doloso, verifica-se que a referida acusação particular é absolutamente omissa relativamente ao citado elemento emocional, ou seja, a consciência da parte do arguido do carácter anti-juridico e criminalmente punível da sua conduta. 20a - A sua falta equivale à não verificação do elemento subjectivo do tipo legal do crime de injúrias, cuja prática foi imputada ao arguido pela acusação particular, pelo que, também por esta via, sempre o arguido teria de ser absolvido; 21a - Admitindo que o ora recorrente houvesse proferido a expressão «se você aqui estivesse partia-lhe os cornos», apenas poderia ser entendida, ao contrário do que entendeu a douta sentença recorrida, como o arguido ter proferido a ameaça de atentar contra a integridade física do seu interlocutor, e apenas isso; 22ª - Do crime de ameaças não foi o arguido acusado, nem pelo Ministério Público, nem pelo assistente e, por isso, por ele não poderia, como não foi, ser condenado; 23a - Mesmo que o arguido tivesse proferido as expressões: «você tem um feitio do caralho» e «você é fodido, por causa disso é que não aluga o café», o que não se concede, sempre teríamos de concluir que só expressões, objectivamente, injuriosas é que trazem a indução imediata do preenchimento do tipo legal de crime, do art° 181º do Código Penal, mas não assim a crítica ou a apreciação critica do comportamento de alguém; 24ª - Tais expressões não integram objectiva ou subjectivamente crime de injúrias por falta de carga ofensiva, podendo apenas pela sua grosseria ou falta de educação ferir a susceptibilidade do assistente; 25ª - No entender da douta sentença recorrida as expressões proferidas surgido «no quadro de uma discussão para a qual não deixou de contribuir a posição de total intransigência do assistente», pelo que dado o comportamento provocatório do assistente ao ponto de tirar o ora recorrente do sério, não há harmonia de conclusão quanto à actuação dolosa de «culpa moderada», e antes caberá a qualificação de culpa muito moderada, reconduzível até à acção ou actuação do arguido a um provocação do ofendido, que até podendo ser lícita, é de qualificar de repreensível, no caso concreto, para efeitos do art.° 186.°, nº 2, do Código Penal, o que deveria ter determinado a própria dispensa de pena, nos termos do comando legal referido; 26ª - A isenção de pena seria a correcta decisão jurídica do caso, pois como se afirma na douta sentença recorrida «tratou-se de uma discussão cujas consequências, apesar de reprováveis, a sociedade em geral tolera»; 27a - O instituto da dispensa de pena, em qualquer dos casos em que a lei o permite não é, nem mais nem menos, que o reconhecimento legal de que, no caso concreto, o fim da pena a aplicar está plenamente conseguido e, por isso, se dispensa a aplicação da pena; 28a - Por erro de interpretação e/ou aplicação foram violados, entre outros, o art. 181° do Código Penal; 29ª - Mostram-se, também, violados os arts 147.°, 358.° e 410.°, nº 2, alíneas a) e c), todos do Código de Processo Penal e 186.°, nº 2, do Código Penal. Termos em que deverá a decisão revogada e, substituída por acórdão a julgar improcedente por não provada a acusação, sendo consequentemente o arguido absolvido, pelos invocados fundamentos. O M.P. respondeu, pugnando pela improcedência do recurso. Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer sufragando a posição assumida pelo M.P. em 1ª instância pronunciando-se também pela improcedência do recurso. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência. Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso. No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que decidir as seguintes questões: - Nulidade decorrente do recurso em sede de sentença a elementos de prova documental não indicados na acusação particular sem que disso fosse dado prévio conhecimento aos sujeitos processuais; - Nulidade da prova por reconhecimento, por inobservância do pertinente formalismo legal; - Nulidade da acusação, por ausência de menção da consciência da ilicitude por parte do arguido; - Ineptidão das expressões proferidas pelo arguido para preenchimento do tipo legal de crime de injúria, p. p. pelo art. 181º do Código Penal; - Dispensa de pena ou isenção de pena. * * II - FUNDAMENTAÇÃO: Na sentença recorrida tiveram-se como provados os seguintes factos: 1. O assistente F... é dono de um prédio urbano sito na Rua …, em Pombal, o qual é composto de rés-do-chão com duas lojas e dois andares com duas habitações autónomas por andar; 2. No dia 22 de Setembro de 2008, o referido prédio estava a ser objecto de obras de conservação e reparação do telhado, tendo para tal, os empreiteiros aí colocado andaimes de acesso; 3. A hora não concretamente apurada, dois indivíduos, sendo um deles o arguido e o outro S…a, apresentaram-se no local referido em 1, alegando que iam proceder à desmontagem e levantamento de uma antena que estava alugada a um sujeito de nome M…, antigo arrendatário do assistente; 4. Fazendo uso dos andaimes instalados, o identificado S… subiu até ao telhado do prédio; 5. Embora os trabalhadores da obra, Srs. V... e D..., tenham comunicado ao S… que deveria falar com o assistente antes de desmontar a antena referida, este, alegando estar já no cimo do telhado e a fim de evitar nova subida, retirou de imediato a antena, comprometendo-se, após, a falar com o assistente; 6. Logo que desceu do telhado, fazendo uso do telemóvel com o n.º…., o S… estabeleceu contacto telefónico com o assistente, ligando para o n.º 914656709, que o D... lhe fornecera; 7. Nessa altura, comunicou ao assistente a intenção de, imediatamente, retirar a antena; 8. O assistente, porém, opôs-se a que a antena fosse retirada naquele dia; 9. A certa altura, o S… passou o telemóvel ao arguido que, perante a posição do assistente, discutindo, dirigiu a este as seguintes expressões: “você tem um feitio do caralho”; “você é fodido e por causa disso é que não aluga o café”; “ se aqui estivesse eu partia-lhe os cornos”; 10. Após, o arguido desligou o telemóvel e, juntamente com o S…, agarrou na antena e abandonou o local; 11. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com intenção de molestar a honra e consideração do assistente, o que conseguiu; 12. Tinha consciência de ser a sua conduta prevista e punida pela lei penal; Mais se logrou apurar que: 13. A certa altura da conversa telefónica o assistente comunicou ao Arlindo que se ele pretendia retirar a antena, então deveria fazer o mesmo a todas as outras que estavam instaladas no telhado; 14. O Arlindo passou o telemóvel ao arguido para que o mesmo falasse com o assistente, face à posição intransigente que este assumira; 15. Por causa das expressões dirigidas pelo arguido, o assistente ficou vexado, humilhado e triste, já que as mesmas lhe imputam o facto de não ser uma pessoa séria e ser pouco sociável; 16. O assistente é visto por familiares e amigos como pessoa séria; 17. O arguido é visto pelos amigos como pessoa séria, calma e honesta e não indelicada; 18. É casado e tem um filho de 12 anos de idade, sendo a esposa advogada; 19. Vive em casa própria – uma vivenda – pela qual paga de prestação ao banco a quantia de 350€ por mês; 20. Tem uma loja de informática, que se encontra em processo de encerramento; 21. Tem três carros, sendo o mais recente um Renault Megane de 2004, que ainda se encontra a pagar; 22. O arguido não tem antecedentes criminais; 23. Tem como habilitações literárias o antigo 2.º ano completo; Relativamente ao não provado foi consignado o seguinte: Em, audiência de julgamento não resultou provado que os factos tenham ocorrido noutro circunstancialismo ou com outras motivações que não os supra descritos, designadamente que: 1. Através dos andaimes, o arguido tenha subido ao telhado do prédio do assistente; 2. O arguido e o indivíduo que o acompanhava se tenham feito apresentar como funcionários da TV Cabo e que tenham dito que a antena que pretendiam desmontar era propriedade de M…; 3. O assistente se quisesse certificar da propriedade da antena e da autorização do seu legítimo dono; A convicção do tribunal recorrido quanto à matéria de facto foi fundamentada nos seguintes termos: A convicção do Tribunal alicerçou-se na prova testemunhal produzida em audiência de julgamento – que gravada está e, por isso, nos abstemos de a reproduzir – conjugada com as declarações do arguido, do assistente e documentos juntos, designadamente a fotografia de fls. 5 (prédio do assistente) e a informação de fls. 17 (ofício da TMN, dando conta que o n.º de telemóvel …… está inscrito em nome a S…). Como vem sendo habitual neste tipo de casos, foram trazidas a juízo duas versões dos factos: uma compatível com a acusação, nos termos da qual o arguido terá dirigido ao assistente as expressões aí referidas; e outra compatível com a defesa, nos termos da qual, embora tendo discutido com o assistente, o arguido apenas lhe terá dito que era um intratável, jamais tendo proferido as expressões mencionadas no libelo acusatório. É sabido que se todas as testemunhas falassem verdade, ou pelo menos, se relatassem integralmente o que viram e ouviram, não omitindo factos, por serem prejudiciais à posição da parte que as convocou, a tarefa do julgador seria bem mais simples. Mas uma vez que tal não sucede, tem a convicção do julgador que se formar conjugando toda a prova produzida, analisando a postura das testemunhas inquiridas, os seus interesses e relações com as partes, de forma a aquilatar a verdade dos factos. Assim, a testemunha V..., trabalhador na obra do assistente, aludiu à chegada ao local de dois senhores com um carro, tendo um deles subido ao telhado, afirmando que ia desmontar uma antena que aí se encontrava. Mencionou que o filho – a também testemunha D... – forneceu-lhes o número de telemóvel do assistente que, após ter sido retirada a antena, os referidos senhores contactaram, sendo certo que a conversa que tiveram a testemunha em causa não escutou, por se encontrar em cima do andaime e os indivíduos no chão. Referiu, ainda, não conhecer ao assistente há muito tempo, só o tendo conhecido na altura em que executou as caleiras para ele. No mais referiu-se à localização do prédio onde a obra em que trabalhava decorria. A testemunha D..., confirmando, no geral as declarações da testemunha V..., seu pai, mencionou ter dito ao sujeito que subiu ao telhado (visto que o outro ficara no chão) que antes de retirar a antena deveria dar disso conta ao assistente, até porque este advertira os trabalhadores da obra de que a antena não seria para retirar. Tendo o indivíduo referido retirado a antena de imediato, apenas para não voltar a subir ao telhado, veio a contactar o assistente através do número de telemóvel que a testemunha lhe forneceu. Nessa altura iniciou uma conversa com o assistente, na qual deu para constar que este não ficara agradado com a situação e que se opunha a que fosse retirada de imediato a antena. Após, o referido individuo passou o telemóvel ao outro que, perante a posição do assistente, acabou por proferir as expressões constantes do libelo acusatório e que a testemunha, que se encontrava a cerca de um metro de distância, ouviu na perfeição. Embora, durante o seu depoimento, a testemunha tenha confundido o nome do arguido com o do indivíduo que o acompanhava, sempre foi aludindo às características físicas de um e outro, referindo ao Tribunal que se os visse era capaz de os identificar, o que sucedeu: na presença da testemunha S… e do arguido, a testemunha em causa não teve dúvidas em afirmar que o S… foi quem subiu ao telhado e retirou a antena, tendo sido também quem falou inicialmente com assistente, enquanto o arguido ficou no chão, tendo falado com o assistente após o S… lhe ter passado o telemóvel. A postura desinteressada e séria que a testemunha em causa assumiu em julgamento, (não conhecia nem o assistente nem o arguido) foi essencial para o tribunal credibilizar por inteiro o seu depoimento e dar como provada a versão dos factos mencionada na acusação. O assistente prestou, igualmente, declarações, as quais, considerando a posição interessada que assume na causa, foram valoradas com particular cuidado. Em todo o caso, serviram as mesmas para formar a convicção acerca da data em que os factos ocorreram – que nenhuma das testemunhas soube indicar com absoluta certeza – e as características do prédio. A testemunha S…, pessoa que acompanhava o arguido e que, como foi referido pelas testemunhas anteriores e o próprio confirmou, subiu ao telhado, retirou a antena e falou primeiramente com o assistente, apresentou uma versão dos factos compatível com a do arguido. Mencionou que o assistente se mostrou discordante com a retirada da antena naquela data, tendo mesmo dito que se assim era, deveriam então ser retiradas todas as antenas instaladas no telhado. Perante esta postura - referiu a testemunha - passou o telemóvel ao arguido, que apenas terá dito ao assistente que o mesmo era um intratável, não tendo proferido as expressões descritas na acusação. A convicção do tribunal relativamente ao depoimento desta testemunha, porém, foi de que, referindo os factos tal como os mesmos ocorreram até certa altura – na parte que foi confirmada pela testemunha D... – adoptou, depois, uma postura defensiva do arguido, omitindo as expressões que o mesmo terá proferido, o que se compreende atento o facto de ambos serem amigos de longa data, tendo trabalhado inclusive juntos. Se é crível que a conversa com o assistente tenha sido bastante desagradável, “capaz de tirar qualquer um do sério” (ao não autorizar a retirada da antena, sabendo que não era proprietário da mesma e alegando que deveriam ser retiradas todas as que estavam instaladas no telhado) – nessa parte as declarações da testemunha pareceram-nos credíveis, até porque compatíveis com o referido pela testemunha D... – já não se acredita que o arguido tenha ficado “impávido e sereno”, concluindo apenas que o assistente era um intratável. Antes se referiu ao seu feitio do jeito mencionado na acusação, em tom bastante exaltado, como referiu D.... No que concerne ao elemento subjectivo, o mesmo resulta das regras da experiência comum e do sentido correntemente atribuído às expressões referidas, indiciador da intenção de molestar e ofender a honra e consideração de outrem, ultrapassando os limites do mero desabafo. Às declarações do arguido, sendo no mesmo sentido dos da testemunha Arlindo Silva, não se atribuiu, deste modo, grande credibilidade. As testemunhas M… e G… referiram-se ao modo de ser do arguido e às suas condições pessoais e económicas. As testemunhas I… e E…, por sua vez, referiram-se ao modo de ser do assistente, e aos sentimentos por este manifestados, em resultado das declarações do arguido. Relativamente às condições económicas do arguido foram tidas em conta as suas declarações, conjugadas com os depoimentos das testemunhas M… e G… referidas. E quanto aos antecedentes criminais valorou-se o CRC de fls. 83. A factualidade não provada resulta de, quanto a ela, nenhuma prova ter sido feita – ou sendo-o, não foi valorada pelo Tribunal – ou estar em contradição com os factos provados. Foram tidos em conta todos factos alegados na acusação relevantes para a imputação e determinação da sanção e não já os factos inócuos em relação a tal fim ou meramente instrumentais e as expressões de teor conclusivo. Todas as provas foram, assim, valoradas de acordo com o princípio da livre apreciação, tendo em conta as regras da experiência e da normalidade do acontecer. * * Apreciando e decidindo: Como é sabido, a vida em sociedade pauta-se por normas, nem todas elas de carácter jurídico. A teia de relações sociais que necessariamente se estabelece em torno de cada indivíduo e que lhe permite interagir com os demais, pressupõe, por força da própria natureza humana, uma regulação normativa. Basicamente, é usual distinguir-se entre normas religiosas, normas de costume, normas morais e normas jurídicas - Para desenvolvimento do tema, veja-se Alessandro Groppali, “Introdução ao Estudo do Direito”, 3ª Ed., pags. 31/35.. As primeiras, valem nas relações entre os crentes de uma mesma religião ou fé e entre estes e o Deus em que acreditam. A violação destas normas importa, para o crente, a sanção do castigo divino e a desaprovação dos outros crentes. As normas de costume respeitam ao comportamento em determinadas circunstâncias; são normas de conveniência, de decoro, de higiene, de etiqueta ou de cerimónia. A sua violação acarreta a reprovação por parte de quem lhes atribui importância, e pode importar ainda um sentimento de mal-estar ou desconforto social para quem, respeitando por princípio essas normas, delas se afastou. A sanção que as acompanha é, pois, essencialmente, uma reprovação social. As normas morais radicam numa noção de “bem” e de “mal”, são normas cuja violação gera uma intensa reprovação por parte dos membros da comunidade e que nos casos mais ostensivos conduz a uma verdadeira desqualificação social do infractor, que se verá olhado com desdém ou deixará de ser aceite em certos círculos sociais. Por fim, as regras jurídicas prendem-se com o núcleo essencial da convivência humana. Tutelam valores de tal modo relevantes para a vida em sociedade que o Estado impõe coactivamente a sua observância, estipulando sanções para os infractores. Todos estes grupos de normas se reflectem, directa ou indirectamente, na personalidade moral dos indivíduos e todas as sociedades, pelo menos, as sociedades de pendor humanista, tutelam a personalidade moral. Assim sucede entre nós, tutelando a Constituição da República Portuguesa a personalidade moral, consagrando a sua inviolabilidade no art. 25º, nº 1 - Art. 25º, nº 1, da CRP: “A integridade moral e física das pessoas é inviolável”.. No desenvolvimento desse princípio, o Código Civil consagra uma tutela geral, estatuindo, no respectivo art. 70º, nº 1, que “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”. O direito penal, por seu turno, tutela a honra e reputação do indivíduo, enquanto expressão da irrenunciável dignidade pessoal. Honra, no sentido pressuposto pelas normas que lhe conferem tutela penal, tanto pode ser a honra subjectiva ou interior, no sentido de juízo valorativo que cada um faz de si mesmo, como honra objectiva ou exterior, correspondente à consideração de que alguém goza entre quem o conhece, ao bom nome e reputação no contexto social envolvente - Para desenvolvimento do tema veja-se José de Faria Costa, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I, pag. 603, em anot. ao art. 180º.. A ofensa à honra ou consideração não é, no entanto, susceptível de confusão com a ofensa às normas de convivência social, ou com atitudes desrespeitosas ou mesmo grosseiras, ainda que direccionadas a pessoa identificada, distinção que importa ter bem presente porque estas últimas, ainda que possam gerar repulsa social, não são objecto de sanção penal. Posto isto, e já com vista à decisão da questão essencialmente colocada no recurso, importa que nos perguntemos se alguma das expressões proferidas pelo arguido tem a virtualidade de causar dano à honra do assistente em qualquer das vertentes penalmente tuteladas, porque se assim não for, a sorte do recurso estará traçada, sem necessidade de maior indagação. Analisada a matéria de facto provada verifica-se que no essencial, para efeitos de imputação da prática do crime de injúria p. p. pelo art. 181º do Código Penal, pelo qual o arguido foi condenado em primeira instância, teve-se como assente que no decurso de uma discussão com o assistente, por telemóvel, o arguido dirigiu-lhe as seguintes expressões: “você tem um feitio do caralho”; “você é fodido e por causa disso é que não aluga o café”; “se aqui estivesse eu partia-lhe os cornos”. Para que se tivesse verificado, em função de tais afirmações, um crime de injúria, necessário seria que pelo menos uma daquelas expressões consistisse numa imputação de factos, mesmo sob a forma de suspeita, com um conteúdo ofensivo da honra ou consideração do visado, ou que as palavras dirigidas ao visado tivessem esse mesmo cariz ofensivo da honra ou da consideração. É certo que a expressão “você tem um feitio do caralho” não é meramente indelicada; é verdadeiramente grosseira, constituindo utilização de linguagem desbragada, denotando profunda falta de educação por parte de quem a profere. Mas daí até que se possa afirmar um atentado à personalidade moral do interlocutor, medeia significativa distância. Aquela expressão não contende com o conteúdo ético da personalidade moral do visado nem atinge valores ética e socialmente relevantes do ponto de vista do direito penal - Cfr. Ac. da Relação do Porto, de 19/04/2006, in www.dgsi.trp.pt , proc. nº 0515927.; não atinge aquele que é o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana - Cfr. Ac. da Relação do Porto, de 19/12/2007, in www.dgsi.trp.pt , proc. nº 0745811.. Também a expressão “você é fodido e por causa disso é que não aluga o café” traduz grosseria e má educação; mas também esta, por razões em tudo idênticas, não assume carácter ofensivo da honra ou da consideração. No contexto em que foram proferidas, as palavras «caralho» e «fodido», não têm outro significado que não seja a mera verbalização das palavras obscenas, sendo absolutamente incapazes de pôr em causa o carácter, o bom-nome ou a reputação do visado. Traduzem um comportamento revelador de falta de educação e de baixeza moral, que fere as regras do civismo exigível na convivência social. Contudo, esse tipo de comportamento, socialmente desconsiderado, tido por boçal e ordinário e violador das normas consuetudinárias da ética e da moral, é destituído de relevância penal - Cfr. Ac. da Relação do Porto, de 25/06/2003, in www.dgsi.trp.pt, proc. nº 0312710.. Quanto à expressão “se aqui estivesse eu partia-lhe os cornos”, também ela grosseira e de baixo jaez, assume essencialmente um significado de desafio ou de provocação; poderia fundamentar uma acusação por crime de ameaça, se tivesse sido deduzida, mas não releva como ofensa à honra ou consideração. Ora, sendo assim, na medida em que as expressões imputadas ao arguido, apesar de censuráveis do ponto de vista moral, não assumem relevância penal nos termos que lhes foram atribuídos, inútil se revela a tarefa de apreciação de todas as demais questões suscitadas no recurso, uma vez que claudica a própria possibilidade de imputar ao arguido uma actuação relevante do ponto de vista do direito criminal. O mesmo é dizer que o recurso se afirma manifestamente como procedente. * * III – DISPOSITIVO: Nos termos apontados, concede-se provimento ao recurso e, consequentemente, revoga-se a sentença recorrida, absolvendo-se o arguido do crime de injúria p. p. pelo art. 181º, nº 1, do Código Penal que lhe havia sido imputado. Sem tributação na instância de recurso. Uma vez que não se verificam os pressupostos do art. 87º, nº 4, do CCJ, em 1ª instância se fixará, após baixa dos autos, a taxa de justiça devida pelo assistente. * Coimbra, ____________ (texto processado pelo relator e revisto por todos os signatários) __________________________________ (Jorge Miranda Jacob) __________________________________ (Maria Pilar de Oliveira) |