Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
251/05.1TTFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GOES PINHEIRO
Descritores: DIREITO A FÉRIAS
VIOLAÇÃO
SANÇÃO
PROVA DOCUMENTAL
CRÉDITO
PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 02/08/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 13º DO DL Nº 874/76, DE 28/12; 38º, Nº 2, E 64º DA LCT; E 381º, Nº 2, DO CÓDIGO DO TRABALHO
Sumário: I – Os artºs 38º, nº 2, da LCT – aprovada pelo DL nº 49.408, de 24/11/1969 – e 381º, nº 2, do actual Código do Trabalho – aprovado pela Lei nº 99/2003, de 27/08 -, preceituam que os créditos resultantes de indemnização por falta de férias, pela aplicação de sanções abusivas ou pela realização de trabalho extraordinário, vencidos há mais de cinco anos, só podem ser provados por documento idóneo.

II – O artº 64º, nº 1, da LCT e o artº 13º do DL nº 874/76, de 28/12, dispunham que a entidade patronal que não cumprir total ou parcialmente a obrigação de conceder férias, pagará ao trabalhador, a título de indemnização, o triplo da retribuição correspondente ao tempo de férias que deixou de gozar.

III – A ausência de gozo de férias vencidas desde 1974 até 1999 (sendo a acção instaurada em 2005) e a responsabilidade da entidade patronal por esse facto só podem ser provados por documento idóneo, ou seja, documento escrito capaz de não deixar dúvidas ao julgador sobre tais pontos e, logo, com exclusão de prova testemunhal – artº 392º C. Civ.

IV – Nos termos do nº 4 do artº 646º do CPC, têm-se por não escritas as respostas do tribunal dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos.

V – O artº 2º, nº 4, do DL nº 874/76, declara irrenunciável o direito a férias, daí decorrendo que, fora dos casos expressamente previstos na lei, o mesmo não pode ser substituído por qualquer compensação económica ou outra, ainda que com o acordo do trabalhador.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

A...., melhor identificado nos autos, intentou no Tribunal do Trabalho da Figueira da Foz acção de processo comum emergente de contrato individual de trabalho contra B...., pedindo seja a Ré condenada a pagar-lhe a quantia de € 125.365,95, acrescida de juros, vencidos e vincendos, à taxa legal e alegando, em síntese, o seguinte:
Entre o A. e a R. foi celebrado, em 02/09/1973, por simples ajuste verbal e por tempo indeterminado, contrato de trabalho pelo qual o autor foi admitido para trabalhar sob a autoridade, direcção e fiscalização da Ré, com a categoria de vendedor e para exercer a sua actividade no Stand da “Toyota” em Coimbra. Todavia, a partir de Janeiro de 1974, passou a exercer essa actividade no Stand de Cantanhede, onde ainda hoje se mantém.
O A. nunca gozou férias, porque a entidade patronal a tal obstou, dado que se tal sucedesse o stand ficaria sem ninguém e teria de fechar, sendo que a R. não indicou qualquer pessoa para nesse período exercer ali a sua actividade. Por isso, nos termos do art. 13.º do DL 874/76 de 28 de Dezembro, tem direito a receber o valor do período de férias em falta e ainda uma indemnização correspondente ao triplo da correspondente retribuição.
Por outro lado, a Ré tem vindo a fazer descontos no montante da retribuição do Autor, sem o consentimento deste e em violação do art. 95.º do DL 49.408 de 24 de Novembro de 1969. Esses descontos destinam-se ao pagamento do seguro das viaturas de serviço utilizadas pelo autor ao serviço da entidade patronal.
Antes da audiência de partes – a qual se realizou sem que tenha sido obtida a conciliação - o Autor veio rectificar a petição, corrigindo designadamente o montante do pedido principal para € 128.372,80.
A Ré contestou, impugnando, designadamente, que o Autor não tenha gozado as férias que refere na petição, declarando que todos os seus trabalhadores sempre gozaram férias a que tinham direito e afirmando que nunca obstou ao gozo de férias pelo Autor. Invocou ainda a disposição do artigo 381 nº 2 do Código do Trabalho, para defender que os créditos que o Autor reclama, referentes a férias, só podem ser provados por documento idóneo, pelo que a reclamação de tais créditos anteriores a 2000 deveria ser liminarmente indeferida.
Quanto aos créditos referentes a descontos no montante da retribuição devida mensalmente ao Autor, negou que estes tenham sido feitos sem o seu consentimento e alegou que, como contrapartida da utilização da viatura de serviço fora do período de trabalho, era pedido ao Autor que assumisse 2/7 do valor da franquia do seguro de danos próprios (vulgo seguro “contra todos os riscos”), esclarecendo que, desde 1987, a todos os vendedores é facultada a possibilidade de utilização das viaturas de serviço que lhes estão adstritas, fora do horário de expediente, em seu benefício próprio e que, fora dos períodos de trabalho, não faz sentido que seja a empresa a suportar o pagamento da fracção de seguro em causa - dos 7 dias da semana, a Ré apenas suportava a cobertura do risco de utilização da viatura de 2ª a 6ª feira (incluindo os períodos que não são tempo de trabalho). Tratava-se, disse, de um acordo tácito entre a entidade patronal e os seus trabalhadores, que, desde 1987, foi sucessivamente celebrado com todos os vendedores ao serviço da empresa.
Concluiu pedindo seja a acção improcedente e o Autor condenado como litigante de má-fé em multa e indemnização a favor da Ré.
Procedeu-se a julgamento, tendo o Tribunal proferido a decisão sobre matéria de facto e, subsequentemente, a sentença, que julgou a acção parcialmente procedente, condenando a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 22.753,89, a título de remuneração correspondente a férias não gozadas e a de € 3.500,20 a título de reembolso por descontos feitos no vencimento do Autor, tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal, vencidos e vincendos, no mais a absolvendo do pedido (no dispositivo da sentença condenou-se a Ré no pagamento da quantia total de € 26.2333,32, mas há um manifesto lapso material na realização da adição daquelas duas parcelas, que efectivamente somam 26.254,09).
Inconformados com a decisão, dela recorreram quer a Ré, quer o Autor.
A Ré formulou na motivação que apresentou as seguintes conclusões:
(……..)
O Autor, por sua vez, formulou as seguintes conclusões:
(…………..)
A Ré e o Autor contra-alegaram relativamente ao recurso interposto pela parte contrária.
A Ré concluiu assim a sua contra-alegação:
(……………)
O Autor, por sua vez, concluiu assim:
(……………..)
*
Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da improcedência de ambos recursos, sustentando, porém, que os juros de mora referentes a cada uma das retribuições de férias em dívida apenas são devidos a partir de 1 de Outubro de cada ano.
Notificado do teor do parecer, respondeu-lhe a Ré, no essencial reafirmando as posições anteriormente assumidas.
*
Constitui jurisprudência pacífica que são as conclusões da alegação que definem o âmbito do recurso, isto obviamente sem prejuízo da obrigatoriedade de apreciação das questões cujo conhecimento oficioso a lei imponha.
Analisando as conclusões formuladas por ambos os apelantes, constatamos que as questões suscitadas e que cabe dilucidar consistem em saber:
Relativamente ao recurso interposto pela Ré
a) Se o Autor tem direito a retribuição pelas férias não gozadas;
b) Se a prova de não haverem sido gozadas férias vencidas há mais de 5 anos pode ser feita com recurso a testemunhas;
c) Desde quando são devidos juros de mora no que toca aos créditos de retribuições por férias não gozadas;
d) Se houve consentimento tácito por parte do Autor na realização dos descontos efectuados mensalmente pela Ré no seu vencimento.
Relativamente ao recurso interposto pelo Autor
e) Se o Autor tem direito a receber da Ré indemnização por não haver gozado férias.
Face ao preceituado nas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, e 713º, nº 2, do Código de Processo Civil, o tribunal deve resolver todas as que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
E, sendo assim, a ordem de apreciação das questões enunciadas não deve ser a que acima consta, que é a da cronologia da interposição dos recursos e a da sequência das conclusões formuladas pela Ré, mas antes a que for determinada pela dependência em que algumas das questões estão relativamente a outras.
Nesta base, importa em primeiro lugar apurar a questão relativa à prova referida em b); depois, determinar se o Autor tem os direitos a que se alude em e) e a); a seguir, abordar a questão dos descontos, mencionada em d); finalmente, resolver a dos juros aludida em c).
*
Com vista à dilucidação de tais questões, interessa ter em conta a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, que é a seguinte:
(……………)
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O Autor, na presente acção, alegando que, ao longo dos anos que tem vindo a trabalhar para a Ré nunca gozou férias por a tal esta ter obstado, pede a condenação da demandada no pagamento da retribuição relativa aos períodos de férias a que tinha direito e que não gozou e ainda uma indemnização correspondente ao triplo dessa retribuição.
Na primeira instância foi dado como provado que o Autor, desde que foi admitido ao serviço da Ré (o que aconteceu em 02/09/73) e até 2003, nunca gozou férias.
Ora, o artigo 38º do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho (LCT) aprovado pelo Decreto-Lei nº 49.408, de 24/11/69 – e que se encontrava em vigor naquele período (o Código de Trabalho, aprovado pela Lei nº 99/2003, de 27/08, e que entrou em vigor em 1/12/2003 - cfr. o artigo 3º, nº 1, do diploma preambular - contém aliás disposição idêntica – o artigo 381º) diz o seguinte:
1. Todos os créditos resultantes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, quer pertencentes à entidade patronal, quer pertencentes ao trabalhador, extinguem-se por prescrição, decorrido um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho, sem prejuízo do disposto na lei geral acerca dos créditos pêlos serviços prestados no exercício de profissões liberais.
2. Os créditos resultantes de indemnização por falta de férias, pela aplicação de sanções abusivas ou pela realização de trabalho extraordinário, vencidos há mais de cinco anos, só podem, todavia, ser provados por documento idóneo.
Na contestação, a Ré invocou o disposto no artigo 381º, nº 2, do Código do Trabalho, para concluir que, por não ter sido junto aos autos o documento exigido por lei, a pretensão do Autor no que respeita às férias alegadamente não gozadas até 2000 terá de improceder.
Na sentença recorrida, o Senhor Juiz, anotando que, no caso, não é o Código do Trabalho mas a LCT que deve ser chamada a regular a questão, manifestou o entendimento de que o nº 2 do seu artigo 38º não tem que ver com o crédito da retribuição referente às férias não gozadas mas sim com o crédito da indemnização devida pelo empregador por haver obstado ao gozo de férias; e que, mesmo assim, “nenhum obstáculo legal existe quanto à prova testemunhal da ausência de gozo de férias”: a exigência de documento reportar-se-ia, apenas, aos “factos através dos quais explicitamente se pudesse concluir que a Ré teria obstado ao gozo de férias”. Todavia, não foi com esse fundamento (por ausência da prova legalmente exigida) que na sentença se recusou ao Autor a indemnização reclamada, mas por não ser possível, face aos factos dados como provados, “concluir que a Ré obstou ao gozo de férias”.
Vejamos.
Ao tempo em que Autor e Ré estabeleceram o vínculo contratual, estava em vigor o artigo 64º da LCT, que dispunha, no seu nº 1, que “a entidade patronal que não cumprir total ou parcialmente a obrigação de conceder férias, nos termos dos artigos anteriores, pagará ao trabalhador a título de indemnização, o triplo da retribuição correspondente ao tempo de férias que deixou de gozar.
No que respeita a férias, entrou em vigor em 1/01/77 o Decreto-Lei nº 874/76, de 28/12 (cfr. o seu artigo 30º) em cujo artigo 13º se dispõe que “no caso de a entidade patronal obstar ao gozo das férias nos termos previstos no presente diploma, o trabalhador receberá, a título de indemnização, o triplo da retribuição correspondente ao período em falta”.
E, versando a reclamação do Autor sobre férias que se venceram desde 1974 até ao ano de 2003, não há que aplicar ao caso o C.T., por um lado porque o mesmo só entrou em vigor em 1/12/2003, como se referiu já, por outro porque da 2ª parte do nº 1 do artigo 8º do respectivo diploma preambular resulta directamente a inaplicabilidade do mencionado Código.
Ora, quer à luz do artigo 64º da LCT quer do artigo 13º do Decreto-Lei nº 874/76, não suscita dúvidas que o direito à indemnização previsto em qualquer desses normativos assenta em dois pressupostos, cuja prova, nos termos do artigo 342º, nº 1, do Código Civil, incumbe ao trabalhador e que são os seguintes (neste sentido, entre muitos, vejam-se os acórdãos da Relação do Porto de 13/07/87, publicado na Colectânea de Jurisprudência, 1987, tomo IV, pag. 269 e da Relação de Lisboa de 19/03/2003, in JTRL00048456.dgsi.net): que este não gozou férias; que tal facto é imputável ao empregador.
Mas se são dois os pressupostos do direito e se a prova de ambos está a cargo do trabalhador, não vemos como se possa defender que a exigência contida no nº 2 do artigo 38º da LCT apenas tem a ver com a prova da responsabilidade do empregador pelo não gozo de férias e não já com a prova do não gozo de férias propriamente dito.
Por outro lado, a admitir-se que o trabalhador, para além da falada indemnização ou independentemente dela, tem direito a receber uma “retribuição suplementar” por não ter gozado férias – questão que à frente melhor se tratará – não poderá deixar de se sujeitar ao mesmo regime de prova o facto gerador desse direito, ou seja, o facto de não ter gozado férias. Isso, em primeiro lugar, porque as razões da imposição valem tanto para a uma hipótese como para a outra: como ensina Monteiro Fernandes (Direito do Trabalho, 13ª edição, pag. 483) a prescrição em geral visa corresponder a exigências de certeza do direito e segurança do comércio jurídico, permitindo considerar inatendíveis pretensões não reclamadas durante muito tempo, sendo que o regime prescricional especial dos créditos laborais acaba por se traduzir na possibilidade efectivação de créditos independentemente da sua antiguidade e “daí que a lei complete esse regime com uma singular exigência de prova quanto aos créditos mais antigos”.i
Mas depois, porque, a não ser assim - isto é, a aceitar-se que a exigência relativa à prova de não haverem sido gozadas férias apenas valeria quando estivesse em causa a indemnização correspondente ao triplo da retribuição, mas não já a “retribuição suplementar” – poderia vir a verificar-se a situação absurda de ter de considerar o mesmo facto provado para um dos efeitos e não provado para o outro.
De tudo o que se deixa exposto concluímos que a ausência de gozo de férias vencidas desde 1974 a 1999 (a acção foi proposta em 2005 e, por isso, tudo o que se venceu antes de do ano de 2000 venceu-se há mais de cinco anos) e a responsabilidade da Ré por esse facto, só podiam ser provados por documento idóneo, ou seja, documento escrito capaz de não deixar dúvidas ao julgador sobre tais pontos (assim, Pinto dos Santos, A prescrição de créditos emergentes do contrato de trabalho, Coimbra, 1982, pags. 38/39) - e, logo, como decorre do artigo 392º do Código Civil, com exclusão da prova testemunhal.
Simplesmente, analisando a decisão do Tribunal “a quo” sobre matéria de facto, constatamos que o Senhor Juiz deu como provado o que consta do ponto 7 (“o Autor, desde que foi admitido até 2003, exclusive, nunca gozou férias”) com base, simplesmente, em prova testemunhal. Tal é o que, indubitavelmente, se depreende do seguinte excerto da parte da referida decisão em que, dando-se cumprimento ao preceituado na parte final do nº 2 do artigo 653º do Código de Processo Civil, se especificam os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador:
- quanto ao facto descritos sob o n° 6: interessou sobretudo o depoimento da
referida testemunha Maria Isabel Vidal Costa, arrolada por ambas as partes, a qual - sendo a única trabalhadora da Ré no referido stand, para além do Autor – declarou peremptoriamente que o mesmo, enquanto ao serviço no stand, nunca gozou férias até 2003, declarando disso ter a certeza pois com o mesmo convivia no trabalho diariamente, com excepção das suas próprias férias e mesmo durante as mesmas sabia que o Autor mantinha o stand aberto, continuando a actividade; interessaram também os depoimentos das testemunhas Francisco Régio, que foi responsável comercial da Ré, e António José Machado dos Santos, o qual foi chefe de vendas da Ré e, nessas funções, trabalharam com o Autor e que admitiram que o Autor não gozou férias, como referido, e também que, como à área comercial interessava o trabalho do Autor pois era dos melhores vendedores, com isso contribuindo para cumprir os objectivos comerciais, admitiu que se tivessem "distraído" (para usar a expressão do segundo) com as férias do Autor.
Ora, nos termos do nº 4 do artigo 646º do Código de Processo Civil, têm-se por não escritas as respostas do tribunal dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos” sendo a sentença o lugar próprio para apreciar se devem ou não considerar-se demonstrados os factos para os quais a lei exige prova documental ( cfr. artigo 659º, nº 3, do mesmo Código).
E se, como decorre do disposto no artigo 712º, nº 1, alínea b), do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância pode ser alterada pela Relação se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas – nada obstará a que, agora, se dê o facto em causa como provado ou não provado em conformidade com a apreciação que se faça da prova documental porventura existente nos autos.
Sucede porém que, percorrendo os autos, não encontramos documento algum susceptível de comprovar que o Autor não gozou férias no período temporal que indica.
E, consequentemente, no quadro acabado de traçar, decide-se:
a) Considerar provado que o Autor não gozou férias desde 2000 a 2002, inclusive;
b) Considerar não provado que o Autor não gozou férias desde que foi admitido até 1999, inclusive.
Face à alteração que tal representa relativamente ao que foi a decisão da 1ª instância sobre matéria de facto, é evidente que os demais factos dados como provados pelo Tribunal “a quo” e que têm relação com a falta de gozo de férias por parte do Autor hão-de entender-se reportados aos mencionados anos de 2000, 2001 e 2002.
*
E é altura de passar à segunda das questões inicialmente enunciadas: tem o Autor direito a indemnização pelo não gozo de férias?
Na sentença, o Senhor Juiz respondeu negativamente a tal questão. E bem, a nosso ver.
Efectivamente, a tese do Autor segundo a qual a Ré teria obstado ao gozo das férias na medida em que nunca indicou ninguém para o substituir e isso implicaria o encerramento do “stand” caso ele se ausentasse naquele período, não se mostra comprovada.
É verdade que foi dado como provado que a Ré não indicou ninguém para substituir o Autor, em período de férias. Mas provado ficou também que, desde o primeiro dia de funcionamento do “stand”, as funções de recepcionista sempre estiveram entregues a Maria Isabel Vidal Costa, a qual foi contratada para permitir a libertação do Autor para as tarefas próprias da sua actividade de vendedor, sendo uma e outro os dois únicos trabalhadores da Ré em serviço no “stand” de Cantanhede; que todos os anos, sensivelmente no início do mês de Abril, a Ré organizava um mapa escrito de férias no qual o Autor era integrado; que a dita recepcionista, nos mais de 30 anos de relação laboral com a Ré, jamais deixou de gozar férias; e que aA Ré, através dos superiores hierárquicos do Autor, nunca lhe deu instruções para que não gozasse férias, nem lhe declarou qualquer objecção para que as gozasse.
E daqui havemos de concluir, como concluiu o Senhor Juiz “a quo”, que o “stand” poderia manter-se aberto durante o gozo de férias do Autor, ainda que não no pleno funcionamento, dada a presença, nele, da recepcionista e “que não é possível, em justa apreciação dos factos, concluir que a Ré obstou, ainda que numa dimensão omissiva, ao gozo de férias do Autor”.
E porque só há lugar à pretendida indemnização pela falta de gozo de férias, como dispõe o já citado artigo 13º do Decreto-Lei nº 874/76, “no caso de a entidade patronal obstar ao gozo de férias”, não parece poderem subsistir dúvidas de que a pretensão do Autor tem que improceder.
O Autor vem, porém, no recurso, sustentar que, dada a inexistência de outro vendedor que o substituísse nas férias, o Autor “com o seu espírito profissional de bom trabalhador não poderia deixar o “stand abandonado, até porque uma atitude dessas reflectir-se-ia inevitavelmente no volume de vendas dos outros meses e correspondentes comnissões”.
Ora, o que pode retirar-se daqui é que o Autor terá deixado de gozar férias por sua própria iniciativa e, como se alvitra na sentença recorrida, porque tal lhe interessava do ponto de vista económico, uma vez que a sua remuneração era integrada por “comissões” nas vendas efectuadas.
E porque da matéria de facto provada – e tendo em conta que a Ré não dispunha de meios para controlar a presença do Autor no “stand” em tempo de férias, pois este estava dispensado de marcar o ponto – nem sequer é possível extrair que aquela sabia que este não gozava as férias (prova que, nos termos já acima referidos, cabia a este fazer) não vemos que mesmo indo na esteira da jurisprudência, citada pelo recorrente, que atribui ao termo legal “obstar” um amplíssimo significado, se possa imputar à Ré qualquer responsabilidade por o Autor não haver gozado férias.
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Passemos agora à questão de saber se o Autor tem direito a retribuição pelas férias não gozadas.
Alega a Ré que disposição alguma confere esse direito ao Autor. E temos que reconhecer que não existe, na verdade, norma expressa a reconhecer tal direito. Simplesmente, os mais elementares princípios do direito laboral impõem que se responda à pergunta feita de modo afirmativo.
Efectivamente, o artigo 2º, nº 4, do Decreto-Lei nº 874/76 declara irrenunciável o direito a férias, daí decorrendo que, fora dos casos expressamente previstos na lei, o mesmo não pode ser susbstituído por qualquer compensação económica ou outra, ainda que com o acordo do trabalhador.
E, nesta senda, o já citado artigo 13º do mesmo diploma, no caso de a entidade patronal obstar ao gozo de férias do trabalhador, determina que as férias em falta deverão ser obrigatoriamente gozadas no primeiro trimestre do ano civil subsequente.
Revelando-se impossível – como acontece no caso – gozar as férias no período sucedâneo fixado neste normativo, poder-se-ia defender que, mesmo assim, o trabalhador não teria direito a receber compensação económica alguma (para além, é claro, da indemnização devida no caso de a falta de gozo de férias ser imputável à entidade patronal) mas apenas e ainda a gozar as férias em falta.
Tal solução é, porém, susceptível de conduzir a situações verdadeiramente aberrantes: em hipóteses como a que se admitiu ser, na 1ª instância, a dos autos, um trabalhador poderia ser “forçado” a “gozar”, seguidos, cerca de dois anos (!) de férias. O que, se por um lado não encontra já fundamento naquilo que é a própria justificação legal do direito a férias – a “recuperação física e psíquica do trabalhador, assegurando-lhe condições mínimas de disponibilidade pessoal, de integração na vida familiar e de participação social e cultural” – cfr. 2º, nº 3, do Decreto-Lei nº 874/76 e artigo 211º, nº 2, do Código do Trabalho, por outro se traduzirá, para o trabalhador – compelido a um tão prolongado período de inactividade, num penoso sacrifício.
E estes aspectos negativos – se não mesmo intoleráveis – da solução mencionada, se bem que mais esbatidos, não deixam de verificar-se no caso dos autos, com a configuração que acima expressámos: o Autor teria direito a “gozar” 66 dias úteis de férias (3x22), ou seja, qualquer coisa como três meses.
E, nesta senda, não fazendo sentido nestes casos impor o gozo das férias ao trabalhador, justificar-se-ia, porventura, conferir-lhe uma compensação económica, igual à retribuição que auferiria no correspondente tempo de férias, e que a entidade patronal – sem a contrapartida de qualquer prestação de trabalho – sempre teria de lhe pagar se ele entrasse em efectivo gozo das férias que não gozou na altura própria.
E, no caso sujeito, esta solução apresenta-se como imperativa, decorrendo de uma aplicação extensiva da norma constante do artigo 10º, nº 2, da Lei nº 874/76, segundo a qual “se o contrato cessar antes de gozado o período de férias vencido no início desse ano, o trabalhador terá ainda direito a receber a retribuição correspondente a esse período…”.
Expliquemo-nos.
Com a contra-alegação, o Autor juntou aos autos o escrito que ficou a constituir folhas 751 e 752, datado de 17 de Fevereiro de 2006 – e, portando, posterior à sentença recorrida, que tem a data de 3 desse mês e ano - no qual ele e a Ré declaram revogar de comum acordo, com efeito a partir daquela data, o contrato de trabalho que os unia.
A Ré foi notificada da junção aos autos desse documento e nada disse.
Ora, comprovando esse documento a cessação do contrato de trabalho e sendo esse facto – inequivocamente superveniente em relação à sentença recorrida - relevante para a decisão da causa, nada impede que o mesmo seja levado em conta, em conformidade com o que preceitua o artigo 663º do Código de Processo Civil.
E daí que, na absoluta impossibilidade de o Autor gozar, ainda, as férias em falta e tendo presente a disciplina consagrada no referido artigo 10º, nº 2, se tem de reconhecer-lhe o direito a perceber, a titulo de compensação pelo não gozo de férias em 2000, 2001 e 2002, a retribuição correspondente a cada um dos períodos de férias em falta.
Assim tendo em conta o valor mensal da sua remuneração nesses anos e considerando que, em cada um deles, o Autor tinha direito a 22 dias úteis de férias, conforme se decidiu na sentença recorrida, cabe-lhe receber as quantia de € 1535,82, 1401,73 e 1086,25 relativamente aos anos de 2000, 2001 e 2002, respectivamente, num total de € 4023,80.
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Quanto à questão dos descontos efectuados na remuneração do Autor, que montam a € 3500,20, sustenta a Ré, na alegação de recurso, que o comportamento patenteado por aquele - “que nunca se mostrou minimamente constrangido, quer em beneficiar das vantagens, quer em reclamar do ónus que sobre ele incidia quando assim o entendeu” – configura um verdadeiro consentimento tácito.
Ora, na sentença, porém, foram analisados criticamente os factos dados como provados e foi indagado se a conduta do Autor integraria, sob a forma tácita, o consentimento exigido pelo artigo 95º, nº 2, alínea e) da LCT e pelo artigo 270º, nº 2, alínea e), do Código do Trabalho (este aplicável aos descontos efectuados após a sua entrada em vigor – 1 de Dezembro de 2003) para legitimar os descontos.
Lê-se na sentença, a propósito da questão, o seguinte:
Provou-se que, desde 1987, a Ré tem vindo a fazer descontos no montante da retribuição do Autor, os quais se destinam ao pagamento do seguro das viaturas de serviço utilizadas pelo autor no serviço da Ré (III.8), nos montantes indicados em III.9.
Mais se provou, por banda da alegação da Ré que desde 1987, a todos os vendedores da Ré é facultada a possibilidade de utilização das viaturas de serviço que lhes estão adstritas, fora do horário de expediente, em seu benefício próprio (III.16) e que a Ré decidiu proceder aos descontos referidos de forma a fazer suportar pelos vendedores parte do prémio do seguro, quando passou a contratar os seguros transitando de seguros de mera responsabilidade civil para, também, a cobertura de danos próprios (vulgo seguro “contra todos os riscos”) e perante a constatação que ocorreram pelo menos dois acidentes com danos, em veículos adstritos aos vendedores, fora das horas de serviço dos mesmos (III.17).
Ora, o artigo 95 da LCT e depois dele o artigo 270 do Código do Trabalho, dispõem ambos que, na pendência do contrato, à entidade patronal é vedado compensar a retribuição com créditos sobre o trabalhador, ou fazer descontos ou deduções. Exceptuavam-se as situações elencadas nos nº 2 de ambos os artigos referidos. Uma delas era a prevista nas alíneas e) de ambos. Poderia, assim, a Ré proceder aos descontos de tais despesas com seguros, desde que consentidos pelo Autor.
Ora, pode concluir-se que o Autor deu o seu consentimento?
Provou-se que todos os meses, desde 1987, sempre que era entregue o recibo de quitação do pagamento respectivo, o Autor tinha conhecimento de tais descontos, mas nunca reclamou dos mesmos por escrito até Agosto de 2004, altura em que enviou à Ré a carta junta a fls. 23 (III.19).
A Ré alega que o Autor deu o seu consentimento tácito a tais descontos. É certo, assim, que o Autor não deu consentimento expresso.
Nos termos do artigo 217 nº 1 do Código Civil, a declaração tácita é aquela que de deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam.
Poderá entender-se que a circunstância de o Autor nunca ter reclamado, junto da Ré, sobre os descontos efectuados consubstancia um consentimento tácito?
A situação levanta todas as dúvidas. O “conformismo” com uma situação de facto, no quadro concreto de subordinação próprio do contrato de trabalho, não pode, de forma equilibrada, conduzir à conclusão de que aquele significa o mesmo que “consentimento”. Como se refere no Acórdão do STJ de 24.10.2000, in CJ-STJ, t. III.93, “a declaração tácita resulta de um comportamento concludente – aquele que, considerando todas as circunstâncias, não deixa fundamento razoável para as dúvidas”.
Ora, assim sendo, nenhuma outra circunstância havendo que “enriqueça” o quadro declarativo alegado pela Ré, afigura-se que não é possível extrair de tal “conformismo” a existência de um verdadeiro consentimento tácito.
Por isso, impõe-se concluir que a Ré não poderia ter efectuado os referidos descontos, tendo, por conseguinte, o Autor direito à restituição das quantias descontadas.
Ora, tudo o que se acaba de transcrever merece a nossa inteira concordância. E porque não é, seguramente, a alegada ausência de constrangimento por parte do Autor – de que a matéria de facto provada, aliás, nem sequer dá notícia – que pode levar a um diferente entendimento das coisas, julgamos dispensável aduzir sobre o ponto quaisquer outras considerações.
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A terminar, a questão dos juros.
Na sentença recorrida, atribuiu-se ao Autor direito a “juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos, desde as datas dos vencimentos dos direitos a férias referidos em IV. 1 supra, bem como desde as datas dos descontos efectuados ilicitamente referidos em IV.3, supra, até integral pagamento”.
Contra isto se insurge a Ré, invocando o disposto nos artigos 804º, nº 2 e 805º, nº 1, do Código Civil e sustentando que só se verifica mora da sua parte desde que foi interpelada através da carta de 27/08/2004.
E parece-nos que, em parte, lhe assiste razão.
Como se referiu, não há nos autos elementos que permitam concluir que a Ré soube na altura própria que o Autor não gozou as férias de 2000, 2001e 2002.
Assim sendo, não pode considerar-se imputável à Ré o não pagamento da compensação a que o Autor tem direito e que acima se lhe reconheceu antes da carta que este lhe enviou em Agosto de 2004 e em que reclamava tal pagamento. E daí decorre, nos termos das disposições conjugadas dos citados artigos 804º, nº 2 e 805º, nº 1, que só a partir da recepção dessa carta a Ré se constituiu em mora no que tange a tal compensação.
Já no que toca aos descontos efectuados nas remunerações, nos parece que ser de aceitar a solução adoptada na sentença recorrida: é que a Ré procedeu, sem fundamento legal ou contratual, aos descontos e, portanto, sua não atempada restituição é-lhe imputável, o que determina a sua constituição em mora, nos termos do referido artigo 804º, nº 2, no próprio momento da realização de cada um dos descontos.
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Por todo o exposto se decide:
a) Negar provimento ao recurso do Autor;
b) Conceder parcial provimento ao recurso interposto pela Ré, e alterando a sentença recorrida, condenar esta a pagar ao Autor a quantia de € 7524,00, acrescida de juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos até integral pagamento, sendo os devidos relativamente à compensação por férias não gozadas devidos desde Agosto de 2004 e no mais se confirmando a sentença recorrida.
Custas na proporção do decaimento.